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134 Unidade III Unidade III 7 ÉTICA DE KANT Estudamos a resposta de Kant à questão básica do seu projeto filosófico: O que posso conhecer? A Crítica da razão pura foi a grande resposta oferecida pelo filósofo, essa obra seminal na história da filosofia. A segunda questão de seu projeto de reformulação da filosofia é: O que posso fazer? Essa questão levou Kant a se preocupar com os problemas da conduta humana do ponto de vista ético, questões de natureza moral sobre como o sujeito deve agir em relação aos outros na sociedade, qual deve ser sua conduta moral, como proceder para obter a felicidade e alcançar o bem supremo. As respostas para essas questões constam na sua segunda grande obra, Crítica da razão prática, que passamos a analisar. 7.1 Influências éticas em Kant Desde a publicação da Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), Kant vinha refletindo sobre questões de conduta ética relacionadas aos costumes da sua época. Também, em decorrência do questionamento com que fechou a Crítica da razão pura, sobre as limitações da razão teorética pura para explicar temas como alma, eternidade e divindade, viu-se na obrigação de dar uma explicação aos seus interlocutores. Na direção dessas explicações, seu projeto ético-filosófico ganhou um impulso depois que leu as obras de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), especialmente Emílio, que trata da educação, e Do contrato social, que concilia liberdade e autoridade, indivíduo e Estado, ambas publicadas em 1762. Nessas obras, o filósofo suíço formula uma filosofia da liberdade e defende a autonomia e o primado do sentimento sobre a razão lógica, ideias que inspiraram Kant na formulação de uma ética para a razão pura baseada no princípio da liberdade e da autonomia do sujeito humano. Saiba mais Emílio ou Da educação (1762): romance filosófico de Rousseau sobre a educação natural de um jovem, realizada distante das convenções sociais; obra referencial na pedagogia infantil até hoje. ROUSSEAU, J.-J. Emílio ou Da educação. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Embora Kant estivesse distante das grandes discussões iluministas de Paris, mantinha uma preocupação permanente com as questões de natureza ética que dependiam do uso consciente da liberdade pelos homens. O filósofo sempre demonstrou interesse pelos problemas sociais e políticos da época, tomando 135 KANT partido a favor dos ideais da Revolução Francesa, na qual via não apenas um processo de transformação econômica, social e política, mas sobretudo um problema de ordem moral. Se retornarmos à biografia de Immanuel Kant, podemos ver que seu pensamento ético recebeu três grandes influências: • do pietismo, no período de educação inicial na família e na igreja; • dos filósofos moralistas britânicos, na fase de graduação na Universidade de Königsberg; • do filósofo Jean-Jacques Rousseau, na época da maturidade, por meio da leitura de seus livros. Das três influências, a mais determinante foi a de Rousseau, que fez Kant rever posições sobre o status do homem, a redirecionar o papel da razão teorética para a prática e, principalmente, a corrigir certos preconceitos sociais que portava. Do pietismo, a seita religiosa em que foi educado na infância por seus pais e pelo pastor da igreja que frequentava, Kant trouxe para a segunda Crítica a concepção rígida da lei e o rigor da obediência ao dever. Trouxe também, de sua mãe, a ideia de que os princípios morais e religiosos não devem se resumir a preceitos a observar, mas devem ser transformados em práticas a partir da própria intenção de querer ser bom, isto é, da boa vontade como um elã interior. Dos filósofos ingleses, sobretudo de Shaftesbury, aprendeu que os princípios morais não podem ser objeto exclusivo de preferências individuais; devem sim ser considerados em uma perspectiva de concordância com a vontade dos demais homens, ou seja, Kant reconheceu a dimensão de universalidade dos princípios morais fundamentais. Aprendeu também a reduzir os preceitos morais externos a elementos da experiência interior na forma de autonomia de consciência. Figura 31 – Primeira edição de Emílio ou Da educação (1762) 136 Unidade III Quanto a Rousseau, a influência foi mais determinante, podendo ser vista como uma espécie de conversão pessoal de Kant. O filósofo prussiano não teve oportunidade de conhecer pessoalmente o filósofo francês, mas leu todos os seus livros. Depois da leitura de Emílio e Do contrato social, Kant reviu suas concepções de homem, liberdade e democracia. Percebeu que a dignidade do homem não depende somente das ciências e das artes para progredir, depende também da sua moralidade. Depende de uma vida moral que institua uma nova metafísica para contemplar a liberdade que deve ser exercida por uma razão prática em lugar de uma razão estritamente teorética. Kant chegou a desprezar o povo mais simples, que julgava ignorante. Depois de ler Rousseau, reconsiderou seu ponto de vista e aprendeu a estimar o homem independentemente de sua condição intelectual. Reconheceu que os verdadeiros valores procedem do caráter, da vontade humana, e não da superioridade intelectual. Percebeu, sobretudo, que a moral deve ter primazia em relação ao conhecimento. Assim, de cada uma dessas fontes de influência, Kant recolhe valores e princípios para compor sua nova Crítica, tais como: • a força da vontade e a obediência ao dever; • a universalidade da lei e a autonomia da consciência; • o primado da prática sobre a teoria e a natureza boa do ser humano. 7.2 Nova revolução copernicana Como, na Crítica da razão pura, com a aplicação do método transcendental a razão teve sucesso na configuração dos objetos do conhecimento, Kant acredita que pode fazer o mesmo na perspectiva prática da razão. Nessa direção, promove uma nova revolução copernicana, a exemplo do que fez na primeira Crítica, centrando os atos de cognição no sujeito cognoscente, e não nos objetos que orbitavam em torno dele. Em seu novo projeto de investigação das potencialidades da razão prática, ou melhor, da razão teorética que se realiza também na prática, Kant coloca o sujeito no centro da problemática ética, atribuindo-lhe funções de legislador. Tal proposta difere radicalmente das éticas tradicionais, conhecidas na história da filosofia até o século XVIII, todas tendo um ideal ou um bem (a matéria), como escopo do homem, a ser alcançado na busca da felicidade. A ética de Kant, por sua natureza estritamente formal, distingue-se das éticas materiais e utilitaristas. Na proposta kantiana, vão ser privilegiadas as formas de atuação centradas no sujeito e nos deveres que este deve assumir com autonomia. A originalidade da proposta está na valorização do princípio formal autodeterminante (forma), em lugar dos conteúdos determinados (matéria) por doutrinas heterônomas ou a partir de leis, mandamentos e exigências autoritárias. 137 KANT O que vai importar, na sua ética voluntarista, é o “como” se deve fazer, mais do que “o que” se deve fazer. Kant vai substituir a ética do bem pela ética do dever, assinalando que: “o bem consiste no que se deve fazer (...) e não é o conteúdo do bem que determina a lei moral e a torna possível, mas, de modo inverso, é a lei moral que determina o conceito de bem e o torna possível” (apud FERRO e TAVARES, 1991, p. 50). Do mesmo modo que fez na Crítica da razão pura, ao realocar a metafísica em seu verdadeiro lugar metodológico, como fundamentadora dos juízos sintéticos a priori do conhecimento, destituindo-a do trono de rainha das ciências, Kant propõe uma ética independente da metafísica, esta que vinha sendo a fonte teológica dos valores transcendentes. Contudo, exigirá da abordagem metafísica a participação na escala dos deveres, enquanto convoca o sujeito ético a legislar em causa própria. Isso quer dizer que pretende construir uma doutrina ética que seja estabelecida por preceitos universais e que não seja relativizada à experiência do indivíduo. Na primeira Crítica, ficoudemonstrado que a razão teorética (o entendimento) pode produzir conhecimentos a priori sem precisar extrair elementos da experiência. Na segunda Crítica, com foco na razão prática, Kant busca, do mesmo modo, desenvolver uma ética cujos princípios sejam universais, não particulares ou condicionados ao contexto, ou seja, que sejam absolutamente independentes da experiência pessoal. Na Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), escrita entre a Crítica da razão pura (1781) e a Crítica da razão prática (1788), Kant já previa a necessidade de formular uma filosofia moral pura, despida de tudo que fosse empírico. Para ele, somente é possível uma vida moral do sujeito, na medida em que sua razão estabeleça, por si mesma, aquilo que se deve obedecer no terreno da conduta. 7.3 Razão prática Ao final da Crítica da razão pura, Kant deixou transparecer que a razão não é constituída somente por uma dimensão teorética e que pode, também, buscar o conhecimento em uma dimensão prática, capaz de determinar (instituir) seu objeto mediante e durante a ação prática. Nesse sentido, a razão vai dizer qual a forma da ação que o sujeito deve adotar, e não qual ato deve praticar. Novamente, Kant preocupa-se em demonstrar a tese de que o que importa na lei moral é o “como” se deve fazer, mais do que “o que” se deve fazer. Sua hipótese é que a razão teorética prática pode criar o mundo moral e, nesse domínio, deve encontrar os fundamentos metafísicos, necessários e universais, para legitimar as condutas humanas. Seu pressuposto parte da tese de que os valores incondicionados e absolutos, como substância, alma e Deus, que são inatingíveis pela razão teorética no âmbito do conhecimento, poderiam ser alcançados na esfera da moralidade, no terreno da prática. Para isso, vai considerar a liberdade como a coisa em si, que passa a ser almejada por uma razão teorética prática. Vale um parêntese aqui para diferenciar a razão teorética pura da razão teorética prática. São duas faculdades da mesma razão humana, mas com funções diferentes na ação sobre o mundo. A razão pura, estritamente teorética, corresponde ao entendimento (Verstand) que se ocupa das intuições e da 138 Unidade III produção de juízos. A razão teorética prática, que passaremos a denominar também razão raciocinante, tem a função de pensar e produzir ideias. Portanto, enquanto capacidade do sujeito que pode dirigir os atos sociais da sua vida, respondendo à segunda questão básica de Kant – O que posso fazer? –, a razão prática tem primazia sobre a razão pura, esta última mais ocupada em explicar cientificamente como podemos conhecer o mundo. A razão prática, em essência, também é teorética, visto que produz conhecimento – as ideias. A razão prática não produz conceitos, mas tem a capacidade de mover e determinar a vontade humana, essa característica identitária do sujeito, na determinação do que fazer de modo prático no mundo dos costumes. A palavra costume, em alemão Sitte, utilizada por Kant nos títulos de seus livros, corresponde ao latim mos e ao grego ethos, dos quais derivam moral e ética, que indicam a doutrina da conduta humana, em contraposição à doutrina da natureza, ou física (BOBBIO, 1997). Assim, por costumes, na época de Kant, deve-se entender toda a complexidade de regras de conduta ou de leis, no sentido mais geral de normas cívicas e religiosas, que disciplinam a ação do sujeito como um ser livre. 7.4 Razão ética raciocinante Devido ao abismo que existe no mundo, entre o númeno e o fenômeno, Kant é induzido a distinguir, na inteligência do sujeito, duas faculdades que não se equivalem, embora sejam de mesma natureza cognitiva: o entendimento (Verstand) e a razão (Vernunft). Kant usou grafias diferentes em alemão para nomeá-las. Para evitar confusão em português, adotaremos o seguinte: para Verstand usaremos sempre entendimento; e para Vernunft usaremos ora razão, ora razão raciocinante, ou, ainda, inteligência, a depender da necessidade de diferenciar suas funções em uma mesma frase. Desse modo, o entendimento (Verstand) é a faculdade que explica cientificamente os fenômenos por meio da composição dos conceitos (juízos) que elabora com dados da intuição sensível e das categorias a priori. Já a razão raciocinante (Vernunft) é a que produz ideias e, com elas, pensa a respeito do númeno, acreditando ter acesso à realidade da coisa em si. Nesse caso, a razão produz ideias que são formulações hipotéticas, portanto são falsas, na ilusão de que discursam sobre objetos reais. Observação Verstand é a faculdade do entendimento cuja função é unir e concatenar as intuições da sensibilidade com suas categorias puras para criar os juízos. A dificuldade de Kant em unir os dois mundos, inteligível e sensível, do númeno e do fenômeno, que ele mesmo separou na Crítica da razão pura, leva o filósofo a esse exercício de raciocínio para explicar a capacidade do sujeito de pensar sua experiência e falar sobre o mundo que vê. A saída foi atribuir duas funções diferentes à razão pura. 139 KANT A razão do entendimento, estritamente teorética e científica, tem a função regulatória e engenheira de compor os juízos, entre eles os juízos sintéticos a priori, que justificam a presença da metafísica no conhecimento. A razão raciocinante, intuitiva e mais prática, é responsável pela faculdade de pensar o mundo e produzir ideias a respeito dele. A razão raciocinante (que pode ser chamada de inteligência, para distinguir da razão que denominamos apenas entendimento) tem a função discursiva de apresentar o mundo para o sujeito e para os outros sujeitos por meio das ideias que produz e comunica a eles. São duas faces da mesma razão pura. A primeira face corresponde ao entendimento, que conhece o mundo e compõe conceitos para legitimar o conhecimento – por exemplo, justificar a noção de causalidade, que não existe como dado empírico, mas é uma noção a priori. A segunda face da razão corresponde à inteligência, que pensa o mundo e também produz ideias para explicar e se comunicar com os demais sujeitos. Por seu lado, a razão raciocinante, a inteligência, que é a mesma razão teorética, mas com a função de pensar psicologicamente o mundo, vai produzir ideias e, a partir delas, deduzir outras, na forma de silogismos, em sequência, para discursar sobre o mundo. Façamos uma comparação simples. O entendimento corresponderia ao processo de indução aristotélico, no qual o intelecto formula juízos a partir de dados da experiência unificando conceitos, mas essa unificação não faz o sujeito progredir para novos conhecimentos. Observação Vernunft é a razão cuja faculdade intuitiva consegue, além da experiência sensível, atingir imediatamente a substância do mundo, o númeno, de modo dialético, isto é, ilusório para Kant. A inteligência, a razão raciocinante (Vernunft), que é o raciocínio no sentido restrito, consiste em ordenar os dados, subsumir sob um princípio mais geral os juízos particulares. Trata-se do processo de dedução que utiliza os silogismos, também ao modo aristotélico, para unificar conceitos e concluir ideias gerais, ampliando o conhecimento, mesmo que isso, à primeira vista, possa parecer ilusório (dialético). É nesse gênero dedutivo de raciocínio que Kant vê a solução para superar o abismo entre o númeno incognoscível e as ideias circulantes no pensamento; ideias de alma, liberdade, imortalidade, divindade e outras que só podem ser pensadas, pois não têm nenhum componente a posteriori que lhes dê sustentação. Essas ideias, em um primeiro momento, dialéticas, consideradas ilusórias na concepção de Kant, conseguem, por dedução, concluir sobre conceitos não empíricos a respeito de substância, causalidade, totalidade etc. Trata-se de uma ilusão que, na visão de Kant, é uma ilusão natural, necessária para que o sujeito possa participar de todas as realidades, inclusive da realidade plausível do absoluto supremo – Deus. 140 Unidade III Assim, a ideia de Deus é obtida pela lógicada dedução como um Ideal, isto é, como uma ideia (não o conceito que seria derivado da experiência pela ação do entendimento); a razão raciocinante chega à ideia de um Ser, ao mesmo tempo, infinito, subsistente em si mesmo e causa primeira de tudo, em uma palavra, um Ser necessário. Se a ideia de um Ser necessário é possível, conclui Kant, convocando novamente o auxílio da metafísica como método transcendental para legitimar a conclusão, a existência do númeno divino também é possível, por exigir um referente para a razão pensar o Ser necessário, enquanto fonte de perfeição de todos os valores morais. Por esse raciocínio especulativo da inteligência, Kant estabelece alguns postulados na Crítica da razão prática para que o sujeito consiga pensar e interpretar o conjunto das substâncias: Deus, homem e alma. É esse raciocínio especulativo da filosofia kantiana que caracteriza seu método idealista de interpretar o mundo e que, por essa abordagem, recebeu a denominação na história da filosofia de idealismo racional. Na Crítica da razão prática, Kant demonstra que a razão raciocinante tem o poder de pensar o mundo, diferentemente de conhecer o mundo, com plena liberdade e independentemente de vínculo com a experiência e que é a razão prática, em sua face pensante (Vernunft), que vai ordenar o dever e os valores para as práticas da conduta humana. 7.5 Postulados éticos Como vimos, Kant resolve o problema do abismo entre o mundo numênico incognoscível e o mundo fenomênico prático dos costumes com o auxílio dos mecanismos metafísicos que o auxiliaram na montagem do conhecimento científico e agora contribuem na estruturação da sua ética formalista. Por mecanismos metafísicos entende-se a exigência, da razão, por ideias que sejam necessárias, universais e a priori, independentes da experiência, na ordenação das práticas e dos deveres éticos. Não se trata da metafísica enquanto disciplina teórica, desconstruída por Kant na primeira Crítica, mas de raciocínios transcendentais (metafísicos) que fundamentam as interpretações do sujeito ético sobre o mundo e sobre todos os entes substanciais: liberdade, alma, imortalidade e Deus. Os três postulados da ética kantiana são: a liberdade pessoal, a imortalidade da alma e a existência de Deus. São três númenos que correspondem a três ideias metafísicas. Não são conceitos, são entes racionais. Esses postulados, a exemplo da matemática, que Kant admirava, não são demonstráveis empiricamente, mas somente por dedução lógica. Para o filósofo, esses postulados fundamentam o fato moral. 141 KANT 7.6 Fato moral As éticas tradicionais, que Kant criticava em sua época, pautavam o fato moral, isto é, a prescrição de valores para a prática moral, em um objeto para a ação do sujeito. Kant chama esse objeto de matéria da lei. Por extensão, as éticas que perseguem um bem ou um ideal, como objeto a se atingir, são denominadas éticas materiais, distinguindo-se da ética formal da proposta kantiana. Na visão crítica de Kant, nas éticas tradicionais, o sujeito procura Deus como um valor supremo ou, se pratica o bem, é para alcançar uma felicidade eterna. Em qualquer caso, o sujeito realiza um ato moral de cunho egoísta, pois seu interesse é particular, da ordem da subjetividade e, portanto, dependente de sua sensibilidade pessoal (empírica), e não de uma ação racional objetiva. Kant critica todo fato moral que esteja associado às práticas que envolvem somente o interesse do sujeito. Nesse sentido, critica as éticas utilitaristas, por exemplo, a ética na qual o bem é o que é útil, e também as éticas subjetivistas, concentradas na individualidade do sujeito, que afirmam que: “o bem é o que me faz feliz”. Para superar esses modelos, Kant oferece na Crítica da razão prática uma ética que apresenta exclusivamente um procedimento formal no qual o sujeito não tenha que procurar um objeto fora de si mesmo. É a nova revolução copernicana. Em lugar de buscar no objeto, na matéria, a justificativa para a prática moral, o sujeito encontra na letra da lei, na forma, o fundamento para seu dever moral de agir. O que caracteriza a proposta de Kant é a obrigação pura do sujeito, que não está vinculada a nenhum interesse particular, não deve estar insuflada por nenhuma motivação de cunho pessoal, nem condicionada a este ou aquele ordenamento superior heterônomo. A forma da lei é, essencialmente, o dever a ser cumprido. Para desenvolver essa ética na Crítica da razão prática, Kant faz um paralelo com as funções do entendimento (Verstand) que operava com 12 categorias a priori para construir o conhecimento científico. Na mesma direção, demonstra que a razão raciocinante (Vernunft) possui uma categoria, ou forma a priori, cujo funcionamento só depende da estrutura interior do sujeito. Essa categoria é capaz de impor-se a todas as práticas morais e a todos os atos humanos de todos os homens para constituir um fato moral universal e necessário. Portanto, Kant desenvolve uma ética de princípios para orientar as condutas humanas, seguindo um método semelhante ao que empregou na Crítica da razão pura. Por isso, o título Crítica da razão prática. Segundo Kant, as atitudes éticas e morais não são impostas pela natureza, e sim prescritas pelo homem em sociedade. As leis éticas é que determinam as formas da vontade. Essas leis, ou imperativos, impostas à vontade do sujeito, regem a conduta a priori, isto é, com validade necessária e universal. 142 Unidade III 7.7 Imperativos éticos Com o intuito de destacar a importância do imperativo categórico na proposta de uma ética formalista e legalista, Kant faz uma longa explanação conceitual na Crítica da razão prática para comparar e distinguir o imperativo hipotético (ou condicional) do imperativo categórico (ou incondicional). De modo geral, o que vem a ser um imperativo? Do ponto de vista gramatical, o imperativo é um modo verbal determinativo e, enquanto substantivo, o imperativo pode significar: lei, dever, norma, ordem, ditame, instrução, prescrição, mandamento e muitos outros ordenamentos, todos com o sentido de uma indicação precisa de ação a ser realizada. Do ponto de vista lógico, imperativo é uma proposição sob a forma específica de um comando; particularmente, de um comando emitido pelo espírito humano e dirigido a outrem ou a si mesmo. Em lugar da palavra comando, nem sempre aceitável devido à conotação de imposição de uma ordem superior, é preferível a palavra resolução, mais conforme ao espírito voluntarista da ética kantiana. 7.7.1 Imperativo hipotético O imperativo hipotético é um ordenamento no qual a lei prescrita se condiciona, ela mesma, na qualidade de meio, a um certo fim a ser atingido ou atingível. O imperativo hipotético segue, comumente, a fórmula normativa das éticas tradicionais, utilitaristas e subjetivistas, que apresentam as seguintes prescrições: • No modo afirmativo: “se quiser X, faça Y”. • No modo negativo: “não faça Y se não quiser X”. Exemplos: • “Se quiser ser querido, faça amizades duradouras.” • “Se pensa em ter sucesso na vida, estude.” • “Se quiser ir para o céu, não faça o mal.” • “Se não quiser ser preso, não roube.” Em todos os exemplos, o imperativo hipotético está atrelado ao escopo material do sujeito, facilitando sua decisão a respeito de qual ação correta deve realizar. O objeto da ação, a finalidade, constitui o alvo-prêmio se, e somente se, o sujeito cumpre com as condições para merecer a premiação. Assim, o imperativo hipotético é condicional. A condição é o meio para atingir o objetivo, a matéria da ação. O imperativo é hipotético, também, uma vez que o sujeito não tendo interesse em realizar aquele fim, ou não estando disposto a cumprir a ação necessária para alcançar aquele objeto, pode desistir do 143 KANT ordenamento, pois não existe qualquer obrigação racional para cumpri-lo. Nesse sentido, o imperativo hipotético é facultativo, pois pode estar condicionado à flutuação da vontade do sujeito ou às inclinaçõesda razão no ato. Os imperativos hipotéticos ordenam as ações humanas em vista de um fim – desejo, prazer, satisfação, felicidade – e não a uma lei, objetivamente necessária e válida para todos os homens. Os imperativos hipotéticos concernem às práticas ou mesmo às prudências que indicam os meios (condições) para atingir um objetivo de felicidade. Assim, na conclusão de Kant, o imperativo hipotético é condicional, na medida em que subordina a prescrição da ação a um determinado fim, e só tem valor se, e somente se, o sujeito procura atingir esse fim em particular. Por isso, o imperativo hipotético é apenas um meio para atingir esse fim, podendo, ainda, ser apresentado na forma de conselho, de orientação de prudência ou de modo de vida. 7.7.2 Imperativo categórico O imperativo categórico é o conceito central da ética kantiana. Com ele, Kant pretende definir um modo de avaliar as motivações para a ação humana em todos os momentos da vida. O imperativo categórico é formulado como uma proposição que declara uma determinada ação que deve ser sempre necessária, de abrangência coletiva e que possa constituir-se, enquanto proposição de conduta, como um fim em si desejável. Assim, o imperativo categórico deve ser uma decisão moral pautada pela razão, e não por inclinações do sujeito; é, portanto, uma instrução na qual o comando é incondicional, por encerrar um fim em si mesmo. Sendo um fim em si mesmo, ou seja, não tendo nenhuma outra finalidade a fundamentar o cumprimento da lei imperativa, não carece de justificação; por isso, é denominado categórico, isto é, explicitamente determinante, pois não está condicionado a nenhuma particularidade, incluindo a identidade da pessoa, devendo ser aplicável a qualquer ser racional. Esta é a razão pela qual o imperativo categórico, em suas primeiras formulações, foi chamado princípio da universalidade. Seu formato decididamente categórico e incondicional é “faça X”, nunca é “faça X se quiser Y”. Para Kant, o imperativo categórico exprime uma lei moral que pode ser representada na seguinte fórmula geral: “Age sempre em conformidade com uma máxima que possas querer que se torne uma lei universal”. Nessa perspectiva, o ato moral se realiza como um acordo entre a vontade do sujeito e a lei moral que ele aceita para si mesmo. Essa fórmula geral permite deduzir três máximas morais que reforçam a incondicionalidade dos atos a serem realizados por dever. São elas: • Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal. • Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como fim, e nunca como meio. • Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais. 144 Unidade III As três fórmulas do imperativo categórico, apresentadas por Kant, resumem a força normativa do dever, sempre vistas do ponto de vista da unanimidade, isto é, para toda a humanidade, mesmo sendo uma iniciativa do sujeito-indivíduo, e do ponto de vista da uniformidade da ação decorrente, cada um supostamente agindo conforme a ação prescrita pela letra da lei do imperativo. Nem todas as máximas, aceitáveis como leis universais, podem ser consideradas imperativos categóricos, segundo a ótica de Kant. Somente aquelas que funcionam como motivação moral adequada para a ação livre do sujeito, implicando, da parte dele, respeito incondicional a uma exigência absoluta (a priori), que não deve e não pode ser desobedecida, em hipótese alguma, por corresponder a um critério de moralidade que envolve, no sujeito de escolha, toda a humanidade. Vejamos alguns exemplos. 7.8 Normas e condutas O imperativo categórico – agir de tal modo que a máxima da sua ação possa valer como lei universal – deve ser tomado então como um fato da razão, a revelar como essência a liberdade da vontade, liberdade que é compreendida como autonomia. Desse modo, o imperativo categórico é o respeito a uma máxima imediata, máxima que foi interiorizada conscientemente por um sujeito como valor a ser respeitado, porque fundamenta uma decisão da vontade que, na letra da lei, tem dimensão universal. Isso significa que, quando o sujeito age autonomamente, por ser seu dever agir assim – e não de outra forma –, ele está acatando e seguindo o imperativo categórico. A obediência ao imperativo independe de como outros sujeitos agiriam no lugar dele e independe de como ele gostaria que os demais sujeitos agissem com ele. O que deve prevalecer no sujeito, decididamente, é a consciência da função moral do imperativo que deve reger sua vida. Observação Essa conduta é completamente distinta e distante da simples “regra de ouro”, bastante repetida hoje em dia, de “não se deve fazer com os outros o que não gostaria que fizessem consigo”. Kant, certamente, rejeitaria essa proposição, não categórica, por ser contrária ao espírito da sua ética universalista. Na Crítica da razão prática, Kant (1959, p. 35) escreve que: A regra prática é, portanto, incondicionada, sendo, por consequência, representada como proposição categoricamente a priori, em virtude da qual a vontade é determinada, objetiva, absoluta e imediatamente (pela mesma regra prática que aqui, evidentemente, é lei). Com efeito, a razão pura, em si mesma prática, aqui resulta imediatamente legisladora. A vontade é concebida como independente de condições empíricas e, por conseguinte, como vontade pura, determinada mediante a simples forma da lei, sendo esse motivo de determinação considerado como a suprema condição de todas as máximas. 145 KANT Kant não concordaria, também, com a ideia de que sujeitos diferentes poderiam ter imperativos categóricos diferentes, pela seguinte explicação: se todos os sujeitos exercitassem a prática de uma lei moral, com o tempo todos chegariam ao mesmo nível de respeito ético, no qual as individualidades deixam de ser consideradas em prol de uma moral universal, que respeitaria todas as pessoas humanas. Assim, apesar de as experiências individuais e as respectivas conclusões serem distintas para cada um, todos os sujeitos racionais formariam seu raciocínio sintético da mesma forma ética, independentemente da matéria de suas intenções. Ampliando sua visão ética, na Crítica da razão prática, Kant (1959, p. 86) afirma: “se os seres humanos são racionais, dependem da razão para obterem as suas conjecturas de mundo com base nessa razão, e não apenas sendo guiados pela natureza. Por isso todos são responsáveis por seus atos”. E conclui que, se o Estado garantir a possibilidade de liberdade interna de cada sujeito gradativamente, cada um agindo sob o amparo da lei (do imperativo categórico), todos alinhariam suas ações moralmente, de modo que todos se tratassem, uns aos outros, como fins em si mesmos. Quadro 7 Imperativo hipotético Imperativo categórico Faz A, se queres B Faz A Exemplo: Cumpre as tuas promessas, se queres ser bem visto Exemplo: Cumpre as tuas promessas Condicionado (se...) Incondicionado O que ordena é um meio para algo O que ordena é um fim em si A vontade é heterônoma (determinada por algo que lhe é exterior) A vontade é autônoma (determinada por um princípio que dá a si mesma) Não depende exclusivamente da razão Depende exclusivamente da razão Adaptado de: Almeida (2019). Na comparação entre os dois imperativos, percebe-se que o imperativo hipotético acentua o caráter subjetivo da ação, pois, centrando a decisão no sujeito (na pessoa que escolhe), acaba por individualizar a ação, desconsiderando os efeitos da escolha. No imperativo categórico, a ênfase está na decisão segundo a lei, que tem caráter objetivo, pois é necessária e universal. Os efeitos são colocados na perspectiva de abrangência, de visão coletiva, de cálculo das consequências para o restante da humanidade. Lembrete Imperativo categórico é a norma na qual o comando é incondicional. Exemplo: Seja bom! Segue fundamentalmente a fórmula: age sempre em conformidade com uma máximaque pudesse ser declarada uma lei universal. 146 Unidade III 7.9 Ética e rigor O imperativo categórico é uma lei moral que não visa nenhum objeto, nenhum fim, nenhum esforço para alcançar objetivo fora de si mesmo, a não ser o rigor à conformidade da lei. A única recompensa é a satisfação de ter cumprido a lei, ou seja, do dever cumprido. Por excluir qualquer objeto de desejo e qualquer escopo particular, o imperativo categórico é puramente formal. A única obrigação da razão prática é agir conforme o rigor da lei. Trata-se, deste ponto de vista, de uma ética rigorista. Kant vai demonstrar que o que institui esse rigor da lei e a própria exigência necessária de uma lei transcendental, que esteja fundamentada na razão, e que defina os compromissos necessários e universais da razão prática. Uma lei que considere, sempre, a perspectiva de pensar anteriormente a prática e suas decorrências, e de antever o envolvimento de todos os homens tomando a mesma decisão de ação. Essa postura racional move o sujeito, individualmente, a realizar ações não pessoais (particulares) que possam reforçar seu egoísmo ou a inveja, quando se compara aos outros. Ao contrário, o cumprimento da lei, enquanto imperativo categórico, leva o sujeito a assumir decisões de ação na qual todos os homens se sentiriam representados e se retratariam como conveniente, portanto não teriam inveja e vivenciariam a solidariedade (humanidade). Ter inveja é se comparar com o outro e, nesse caso também, é um processo egoico. 7.10 Ética humanista No imperativo categórico legítimo, não há espaço para sentimentos pessoais (inveja, orgulho, soberba, vaidade etc.), pois não há comparação entre sujeitos, mas identificação do sujeito da iniciativa com toda a humanidade. Trata-se da verdadeira solidariedade, no sentido próprio de “ser um sólido”, de ser um com o todo, que é o sentido pleiteado pela ética universalista de Kant. Em outras palavras, todos os homens, decidindo em consenso formal a mesma ação comum, teriam consciência de que a ação seria efetiva e seu resultado seria produtivo, confirmando, assim, que a escolha foi pertinente, porque feita conforme a norma que, enquanto indivíduo, pressupôs e agregou todos, pois todos, no seu lugar de sujeito de escolha, fariam da mesma maneira. Essa característica de conduta, que pode ser chamada de senso de humanidade, confirma o caráter universalista da ética kantiana. Por fim, requer Kant que essa lei moral deva prescrever uma norma que auxilie na evolução da humanidade, de tal modo que todo proceder esteja de acordo com o valor maior de universalidade. O raciocínio ético de Kant é o seguinte: se a lei estabelecida não regulamentar ações que valham para todos, será uma determinação que causa inveja, que pode dividir e destruir a harmonia social. Trata-se de uma ética de aspiração humanista. 147 KANT Lembrete Imperativo hipotético: norma em que o comando emitido se condiciona, na qualidade de meio, para certo fim a ser atingido ou atingível. Exemplo: “estude, se deseja ter um futuro melhor”. 7.11 Lei moral O imperativo categórico tem força de lei moral no kantismo. É a fórmula universal da lei moral que Kant propõe para orientar, eticamente, as liberdades de todos os homens, deixando claro que existe uma estreita relação de dependência entre o determinismo da lei e o exercício da liberdade, esta faculdade que caracteriza os seres humanos racionais. Por outro lado, Kant lembra que o exercício da liberdade passa pelo crivo crítico da razão pura que encontra em seu interior, na vontade, o fundamento para orientar a decisão de escolha. O pressuposto da ética de Kant é a necessidade do compromisso que todos os homens devem levar em conta, no uso da liberdade de escolha individual, o determinismo da dimensão da humanidade. Para que essa relação de dependência entre o determinismo e a liberdade resolva-se, o ato moral deve se apoiar no substrato da fórmula categórica, ou seja, na noção de dever do sujeito que pressupõe sua vontade de escolher por todos. O imperativo é relevante porque é para todos. Nessa perspectiva, de seu cerne emerge a predisposição racional do sujeito de querer agir como todos porque tem consciência de que o fundamento da lei moral é bom, isto é, o senso de universalidade. 7.12 Ética e autonomia Outra característica da ética kantiana é a autonomia. No prefácio da Crítica da razão prática, Kant define autonomia como o princípio de dignidade da natureza humana e de toda natureza raciocinante. Vale lembrar que o vocábulo nomo, do grego nómo, significa lei, norma; e o vocábulo auto, também do grego autós, significa de si mesmo, por si. Assim, para Kant, autonomia é a “lei ou norma que regula a si mesmo”, predominando, no sujeito racional, a concepção de “governo de si mesmo” e não, equivocadamente, a noção hoje corrente de “liberdade pessoal absoluta” ou “desgoverno”, isto é, fazer o que quiser. Na ética kantiana, o imperativo categórico é o modo próprio da razão autônoma. A lei moral, consolidada no imperativo categórico, tem como fundamento, do leque de opções possíveis, o dever de o sujeito ser um homem livre, isto é, saber usar conscientemente sua liberdade, governar-se a si mesmo, ser autônomo. Dessa forma, raciocina Kant, a lei moral não deve ser heterônoma, isto é, não deve proceder do exterior da razão, do mando das autoridades, dos mandamentos religiosos, das obrigações civis para com os outros cidadãos. 148 Unidade III Todas essas normas são relevantes e devem ser respeitadas; contudo, por serem normas governadas de fora, não tendo apelo no íntimo do sujeito, em sua boa vontade, acabam sendo cumpridas, ou não, por mera conveniência, rotina ou medo. O exemplo típico é o de um sujeito cidadão que, se não houver ninguém por perto, decide jogar lixo em lugar público. Ora, a norma de higiene pública: “não jogue lixo no local” não foi incorporada por ele como um imperativo categórico, nesse caso, na fórmula negativa: “não faça X”. O cidadão só respeita quando tem alguém próximo, quando alguma força heterônoma está vigilante de sua conduta. Ou seja, o sujeito não age com autonomia. A lei moral, para ser autônoma, deve proceder do âmago do sujeito, da consciência de que, em conformidade com a lei, sua ação será sempre a correta para o benefício de todos. Por isso, Kant (1959, p. 128) afirma que a lei moral é um ato voluntário da razão pura, no sentido de que “somos conscientes dela (lei) a priori e que, apoditicamente, é certa, mesmo se se supõe que na existência não se pode encontrar nenhum exemplo da sua exata observância”. Com a afirmação, Kant universaliza a ideia da observância ou inobservância da lei. Isso não importa para ele, pois o valor a priori não está na prescrição ou na observância, mas no texto da lei, no imperativo que formalmente está cristalizado na lei moral, e cujo valor essencial deve ser incorporado pela vontade do sujeito de agir livremente, lembrando que, para Kant, liberdade é agir segundo a lei. No episódio da norma de higiene pública, se não houvesse mais nenhum ser humano no planeta, só um indivíduo – o sujeito kantiano conhecedor da lei –, mesmo assim ele a respeitaria, pelo valor intrínseco da lei, que contém uma validade necessária e universal: não se pode poluir com lixo nenhum lugar do universo, independentemente de se encontrar alguém, hoje ou amanhã, que possa ficar incomodado com essa má conduta. Tome, pensei em ficas com o troco da padaria para comprar bala, mas não consegui Inquilino? Quê inquilino? Esse que a gente tem aqui dentro E tudo por causa do maldito inquilino que começou a dizer que isso é muito feio, que nao se faz e sei lá o quê! Figura 32 – Exemplo de imperativo categórico e dever pessoal Segundo Kant, a lei moral também pode ser expressa na autodeterminação do sujeito que tem consciência de seu projeto de atuação no mundo social, pela fórmula categórica: “tu deves, portanto, podes”. Trata-se de fundamentar a lei moral, a leique prescreve os atos de conduta e os costumes sociais, no primeiro termo da fórmula do imperativo: “tu deves, portanto, podes”, isto é, dar maior ênfase ao dever do sujeito, à sua consciência de obediência à lei, nunca perdendo a dimensão da coletividade, o que reforça o caráter voluntarista da ética kantiana. Contudo, é interessante observar que a sociedade moderna, da época de Kant, e a sociedade contemporânea mudaram e mudam a ênfase da fórmula para 149 KANT “tu podes, portanto, deves”, de modo a acentuar a possibilidade individual do cidadão em relação às escolhas, empoderando-o ao poder (ter) e não ao ser. Isso acarreta uma afirmação inicial do indivíduo e não do coletivo, resultando ações de natureza egoísta e invejosa. O fato de fundamentar a lei no indivíduo, o que pode parecer antropológico, à primeira vista, na verdade, reforça o senso particular do sujeito, revelando uma razão, de um sujeito egoísta que, unicamente e sempre, só escolhe a si mesmo. O tu podes abre um leque de alternativas que turva a decisão consciente do sujeito raciocinante: “se posso, por que não tentar?”. Novamente, o foco da escolha assenta-se na individualidade e abre o leque de opções para fazer o que quiser (vontade própria). A escolha é individualista, sem nenhuma dimensão de abrangência coletiva. O argumento para justificar, individualmente, é: “Os outros também podem, se não fazem é porque não querem ou não ousam”. As consequências podem ser nefastas para o sujeito e para a humanidade, mas o sujeito raciocinante não pensa nisso. O que pesa no momento de decisão da ação é a tônica na vontade pessoal sem a antevisão racional das consequências que a lei moral resguarda para o todo. Portanto, é um exemplo de má vontade. Trata-se do caráter subjetivo que reforça o próprio subjetivismo, incorrendo em um solipsismo moral: “eu sou eu”. Observação Solipsismo é a doutrina que considera o eu única realidade do mundo. Kant emprega esse termo para indicar a totalidade dos desejos e inclinações do sujeito que, sendo satisfeitos, produz a sensação de felicidade. Por outro lado, se a ênfase for no primeiro termo da fórmula: “tu deves, portanto, podes”, ou seja, na dimensão categórica a priori, a consciência tanto de determinação do dever da lei moral como de seus efeitos estará subsumida no imperativo categórico. Na própria noção de dever está implícita a natureza do conteúdo do preceito que, por ser um imperativo categórico, passou pelo crivo da orientação geral e, nessa direção, pode ser realizado conscientemente, pois a ação imperativa está consoante a decisão de todos, ou seja, é consensual (universal). Portanto, quando se fundamenta a lei no primeiro termo do imperativo: “tu deves, portanto, podes”, a ênfase maior é no dever. Nesse caso, conforme a visão de Kant, a norma formal transforma-se em lei geral e universalizante, porque prescinde da acentuação do sujeito individual, da sua vontade particularíssima, singular e inconstante, para elevar essa vontade de decisão pessoal ao nível consensual, segundo a convocação do manifesto do iluminismo – Ousa e tem coragem –, e para assumir sua ação e sair da menoridade de pensamento. 150 Unidade III Observação Deontologia é a ciência que estuda os princípios, fundamentos e sistemas de moral; de modo mais genérico, tratado de deveres. 8 CRÍTICA DO JUÍZO A Crítica da razão pura, respondendo à questão básica do projeto de filosofia de Kant – O que posso conhecer? –, analisou as condições empíricas e transcendentais do conhecimento teórico (científico). Com isso, desenvolveu-se uma epistemologia. A Crítica da razão prática, ao responder à segunda questão – O que devo fazer? –, analisou as condições para uma conduta social, baseada na lei moral imperativa e, em decorrência, tivemos a ética kantiana. Ao tratar da terceira questão – O que posso esperar? –, Kant desenvolve uma criteriologia para tratar das condições da vida sentimental. A Crítica do juízo faz o exame das possibilidades de um juízo, também a priori, acerca da finalidade (teleologia) da natureza e do sentir humano, juízos reflexivos que tenham fundamento no próprio sentimento. Com a Crítica do juízo, Kant introduz uma nova categoria de análise no campo da filosofia, uma categoria desconhecida até então, na divisão tradicional das faculdades da alma, fundada na distinção clássica entre faculdade teórica e faculdade prática. Novo pioneirismo do filósofo que, com sua filosofia original, lança raízes de futuras disciplinas e novos campos de pesquisa. Na Crítica do juízo, Kant (1995, p. 15) afirma: “Todos os poderes ou faculdades da alma podem reduzir-se a três, os quais não podem ser ulteriormente reduzidos a um princípio comum: o poder cognitivo, o sentimento do prazer ou da dor, e o poder de desejar”. Sentimento, para Kant é o aspecto irredutivelmente subjetivo de toda a representação para um sujeito; é o aspecto de singularidade da experiência que vai resultar novos sentidos, conforme o desejo do sujeito esteja associado à sua liberdade. Usando a linguagem atual, do campo da linguística, o sentimento na representação kantiana seria equivalente ao sentido conotativo da representação para o sujeito. Conotativo e denotativo não são conceitos utilizados por Kant. O sentido denotativo seria o aspecto mais objetivo da experiência do sujeito, enquanto o conotativo equivaleria ao subjetivo, individual. Por exemplo, no caso do sujeito que toma chuva, a mesma experiência corporal, de chuva, para dois sujeitos simultaneamente, pode resultar em sentimentos diferenciados para cada um: sensação de mais frio ou de ser desagradável, para um; enquanto, para outro, a sensação é de frescor e prazer. A oposição entre a necessidade e a liberdade, que culminou na Crítica da razão pura e na Crítica da razão prática, trouxe consigo uma nova reflexão, para o filósofo, destinada a manter a unidade da razão. Essa tarefa vai ser realizada, por Kant, na Crítica do juízo. 151 KANT Segundo Kant, o sujeito pode salvar essa unidade da razão graças à fantasia, toda vez que ela ocupa um lugar intermediário entre a representação e o querer. Isso porque, na fantasia, o sujeito supõe uma representação do objeto, retoma o juízo conceitual do entendimento, mas também pode pensar essa representação relacionando-a à sua liberdade, à sua capacidade de desejar. Isso implica a ideia de finalidade, que pode ser consciente ou inconsciente. No caso de ser consciente, os objetos (de desejo) são considerados adequados ou inadequados; no caso de não ser consciente, os objetos (desejados) podem ser considerados agradáveis ou desagradáveis. Agradabilidade (prazer) ou desagradabilidade (desprazer) são sentimentos ou juízos reflexivos do sujeito, associados aos juízos do entendimento sobre as experiências com esses objetos (de desejo), mas são independentes, enquanto juízos reflexivos, destes últimos. Em todo caso, Kant vai colocar-se a mesma pergunta que fez nas Críticas anteriores: há leis, no caso presente, formas emotivas ou sentimentais, que sejam universalmente válidas, a priori? Para responder a tal pergunta, Kant vai distinguir os sentimentos que acompanham a consciência moral e os que carecem de tal intenção livre. No que se refere aos primeiros, a Crítica da razão prática deu uma resposta convincente com o imperativo categórico da lei. No que se refere às ações que não têm esteio da lei moral da ética, é necessário estabelecer novas categorias, a saber: os sentimentos do belo e do sublime. Na Crítica do juízo, ou seja, na investigação da capacidade de julgar do sujeito, Kant vai retomar essas questões, em duas partes: • uma que estuda as relações de finalidade do sujeito humano com os objetos da experiência (juízo estético); e • outra em que considera a natureza como se estivesse dotada em si mesma de uma finalidade geral (juízo teleológico). Na doutrina do juízo estético, primeira parte da Crítica do juízo, Kant estabelece a distinção entre o belo, o bome o agradável. Ainda que beleza e bondade sejam modalidades a priori da consciência, a primeira agrada sem servir-se de conceitos, enquanto a segunda exige por dever. A crítica do juízo teleológico, na segunda e última parte da Crítica do juízo, estuda fundamentalmente as relações entre a explicação científica (causal) da natureza e a sua finalística, isto é, sua conformidade com os fins. Ainda que a doutrina científico-natural sustente uma concepção mecânica para a natureza e o conhecimento científico, Kant percebe que existem certos territórios da realidade não explicáveis por meras relações causais. Nesse ponto é que Kant faz uma consideração finalista do mundo: a teleologia crítica trata somente dos conceitos limites da explicação mecânica da natureza. O primeiro desses conceitos é a vida, cuja essência reside nas mútuas relações do todo (o organismo) com as partes (os membros). 152 Unidade III 8.1 Juízo determinante e juízo reflexivo Nas duas primeiras Críticas, Kant analisou a faculdade do juízo, isto é, a capacidade de discernir se algo se encontra subordinado à dada regra ou não e de resultar em aplicações teóricas e práticas. Na Crítica do juízo, Kant (1995, p. 23) vai analisar suas aplicações estéticas e teleológicas: A faculdade do juízo em geral é a faculdade de pensar o particular como contido sob o universal. No caso de este (a regra, o princípio, a lei) ser dado, a faculdade do juízo, que nele subsume o particular, é determinante (o mesmo acontece se ela, enquanto faculdade transcendental, indica a priori as condições de acordo com as quais apenas naquele universal é possível subsumir). Porém, se só o particular for dado, para o qual ela deve encontrar o universal, então a faculdade do juízo é simplesmente reflexiva. Para isso, na Crítica do juízo, Kant estabelece a distinção entre juízos determinantes e juízos reflexivos. O critério de distinção está na maneira segundo a qual o particular e o universal se relacionam entre si, lembrando que à faculdade do juízo compete capacidade de pensar o particular como contido no universal. A faculdade do juízo é que realiza essa relação de duas formas possíveis: • Juízo determinante: em que o universal é dado e o sujeito deve encontrar o particular. • Juízo reflexivo: em que apenas o particular é dado e o sujeito tende a buscar o universal. Lembrete Reflexão, para Kant, é uma ação indutiva, da razão, de procurar, disto que é particular (a imagem, o sentimento), sua significação universal (seu conceito, sua lei ou finalidade). Kant chama reflexivo ao juízo próprio da faculdade do sentimento. O juízo do sentimento difere do juízo do entendimento, que é determinante. O juízo determinante é a faculdade de pensar o particular como contido no universal, quando o universal é dado e subsume, sob ele, o particular. É o tipo de juízo no qual uma faculdade comanda a outra, ao se relacionarem entre si. Por exemplo, o juízo de conhecimento é determinante quando há relação entre a imaginação e o entendimento. No caso de a razão determinar a vontade, o juízo também é considerado determinante. Por outro lado, o juízo reflexivo é a faculdade de pensar o particular como contido no universal, quando só o particular é dado e para o qual ele deve encontrar o universal. Desse modo, o juízo reflexivo é aquele que, a partir de fenômenos, procura um conceito por meio da reflexão. O conceito é buscado para que o objeto dado possa ser pensado. Nesse sentido, sua validade é subjetiva, pois o sujeito precisa do conceito para pensar o objeto: 153 KANT O juízo pode ser considerado, seja como mera faculdade de refletir, segundo um certo princípio, sobre uma representação dada, em função de um conceito tornado possível através disso, ou como uma faculdade de determinar um conceito, que está no fundamento, por uma representação empírica dada (KANT, 1995, p. 47). O juízo reflexivo não tem valor cognitivo, porque contém apenas os princípios do sentimento do prazer e do desprazer; portanto, o juízo reflexivo é um juízo do sentimento. Ele não determina, como o juízo do entendimento, a constituição do objeto derivado do fenômeno, mas reflete sobre esse objeto constituído para descobrir (intuir – processo indutivo) seu acordo com as exigências da vida moral. A ideia de acordo pressupõe uma lei geral em relação à qual se deve concordar, harmonizar. No caso do que se deve fazer em termos de conduta, a razão prática mostrou que basta buscar o acordo com a lei moral por meio do imperativo categórico. No presente caso, de juízo de sentimento, isto é, do que se deve esperar (da questão: O que posso esperar?), trata-se de buscar um determinante universal de orientação que independa diretamente do sujeito. No caso do juízo determinante, se ele é um juízo de conhecimento, as faculdades cognitivas se relacionam por meio do esquema da imaginação de modo que os dados sensíveis sejam determinados. Na Crítica da razão pura, Kant demonstrou que o entendimento, por meio dos conceitos, determina os dados da sensibilidade em relação aos quais a imaginação exerce um papel mediador, formando um esquema que possibilitava um acordo (homogeneidade) entre a universalidade do conceito (o a priori) e a singularidade dos dados sensíveis (a posteriori). A determinação dos dados sensíveis pelo conceito do entendimento é possível por meio de uma coerção entre as faculdades cognitivas do sujeito, pois o entendimento, por meio do conceito, determina a imaginação, que, por sua vez, determina os dados sensíveis. Na Crítica do juízo, Kant vai demonstrar que, de outro modo, o juízo reflexivo não parte de nenhum conceito. Ele parte de um dado singular para o qual é preciso encontrar o conceito universal para pensar sobre o dado. Lembrete Imaginação é, para Kant, dado um conceito universal (a priori), é a ação de procurar, sem a presença do objeto, sua imagem particular; equivale a uma operação de dedução transcendental. Há dois tipos de juízo reflexivo, também denominado reflexionante: • Juízo reflexivo teleológico: diz respeito à finalidade objetiva da natureza. 154 Unidade III • Juízo reflexivo estético: diz respeito à representação com relação ao sentimento de prazer e desprazer no sujeito. O juízo teleológico e o juízo estético são as duas formas, uma objetiva, outra subjetiva, de manifestação do juízo reflexivo. Os juízos teleológicos são os julgamentos referentes às coisas da natureza enquanto meios para a obtenção dos fins últimos, isto é, que terminam nos valores supremos de ser homem (humanidade – universalidade) ou de Deus (vontade divina). Os juízos estéticos são os julgamentos referentes às coisas segundo a impressão de prazer ou desprazer que exercem sobre o sentimento – sobre o juízo reflexivo do sentimento –, e não têm vinculação conceitual. O juízo estético trata do julgamento estético, do gosto em geral, enquanto o juízo teleológico trata do ato de julgar segundo o qual se supõe atribuir fins à natureza. Daí o emprego do termo teleologia, ou seja, o estudo dos fins (do grego télos = fim). Por isso, se costumou dizer que a Crítica do juízo aborda tanto os temas clássicos da estética como também os da futura biologia, ciência ainda em germe na época de Kant. 8.2 Juízo teleológico O juízo teleológico refere-se às coisas da natureza, enquanto um sujeito, sentimentalmente, as considera ou opera sobre elas como meios para atingir fins pessoais e espirituais. A respeito da natureza, Kant reconhece que ela não pode ser explicada unicamente com base na concepção mecanicista, das ciências físicas e naturais, na qual os sujeitos e tudo o que existe de material resultariam em um todo orgânico, uma grande união de partes, mecanicamente estruturadas pelo princípio da causalidade. Kant destaca a necessidade de uma explicação mais teleológica que leve em consideração uma inteligência que opera na perspectiva de uma finalidade. A explicação teleológica não anularia a concepção mecânica; ao contrário, fariasua integração harmônica, combinando entre si todas as partes, preordenadas, porém, na direção de um fim ou tendo em vista uma finalidade maior. Tal coordenação das partes em vista do todo é especialmente evidente no mundo vivo e orgânico da natureza. Assim, Kant vê a natureza, na sua organicidade, como requerendo uma conformidade a fins. Fins que podem ser cumpridos (realizados) com o advento da espiritualidade e por meio da cultura, da civilização, da habilidade técnica e da educação moral, condições valorizadas pelo movimento iluminista no século das luzes. Contudo, o juízo teleológico em relação à natureza não equivale ao conhecimento verdadeiro e mecanicista que permanece sempre único, como o conhecimento científico. Para Kant, o juízo teleológico aplicado à natureza parte de uma visão sentimental do sujeito. Agora, não se trata mais da representação de um objeto fenomenal a um outro mediante as formas da sensibilidade e as categorias do entendimento, mas na referência das coisas naturais e dos eventos, do dia a dia, ao próprio sujeito, à sua espiritualidade, aos seus sentimentos íntimos que experimenta, como 155 KANT mortal, ao se aproximar da sublimidade da natureza e do universo. Por conseguinte, Kant considera a natureza, o mundo, as coisas e os eventos como ordenados por uma Mente superior em vista dos fins e das exigências espirituais; tudo deve estar em conformidade aos fins (princípio da teleologia) para manter a harmonia do conjunto orgânico. A conformidade a fins, ou o princípio objetivo de finalidade, refere-se a uma exigência lógica da razão de ordenação da natureza. Enquanto a conformidade subjetiva, ou seja, do sujeito particular, é o poder de este julgar e discernir a possibilidade de um fim. Os juízos reflexivos auxiliam o sujeito a estabelecer uma sintonia entre sua percepção e as coisas, possibilitando pensar a natureza como um fim para ele. É como se a natureza fosse feita para o homem, porque o princípio da conformidade a fins opera como se a natureza se deixasse compreender como um todo pela experiência. Segundo Kant, esse princípio possibilita pensar a natureza como se ela fosse final para todos os sujeitos. Isto é, admitir essa homogeneidade na natureza possibilita formar conceitos particulares sobre ela. Nesse sentido, o sujeito deve realizar sua liberdade na natureza e sem se opor ao mecanismo dela. O sujeito tem necessidade de que a própria natureza esteja de acordo com sua liberdade e que, de algum modo possível, sua liberdade de escolha esteja em harmonia com as leis naturais (teleologia). Por meio do princípio de finalidade, o sujeito encara a natureza não só com a pretensão de conceituar, regular, colocar em ordem, mas como um objeto com o qual tem o intuito preferencial de interação. A partir do princípio da finalidade, aplicado à natureza, o sujeito pode admitir uma organicidade natural, por meio da qual é capaz não só de interagir com o meio em que ele vive, mas também de pensar o todo de maneira finalista. Trata-se, assim, de uma teleologia consoante a exigência metafísica do incondicionado, do absoluto, do infinito, do inteligível, diferentemente da exigência da metafísica, examinada na primeira Crítica, que tinha um valor cognoscitivo, teorético e científico. Desse modo, Kant desloca-se do campo epistemológico, da fundamentação do conhecimento, para a esfera dos valores (e juízos) relacionados à vontade, à liberdade e à espiritualidade do sujeito. Na explicação teleológica da natureza, Kant encontra um lugar para fundamentar a existência divina por meio da Mente que concebe os fins últimos da natureza, do universo e dos seres humanos. Exemplo de aplicação Vamos aplicar o princípio teleológico a uma situação concreta de arranjo de elementos, por analogia, no jogo Sudoku. O princípio da teleologia pressupõe uma grande Razão que pensa os fins do todo orgânico, uma espécie de design inteligente que orienta a evolução do universo. Não se trata de determinismo ou do popular destino, mas de teleoformidade, a forma do todo se adequando a um fim. 156 Unidade III O ser humano, sabemos, é livre para, com sua vontade, dispor uma organização diferente em relação ao todo. Mas o todo manterá sua organicidade, apesar das constantes e diversas modificações na sua estrutura sistêmica. É por isso que Kant escreve que parece que a natureza foi feita para o homem, porque o princípio da conformidade aos fins opera como se o mundo natural atendesse às escolhas dos indivíduos, adequando-se, a todo instante, a uma forma final, a um novo arranjo, ad infinitum. Cada vez que há uma escolha de alteração do indivíduo em sua circunstância (e há muitas escolhas desse indivíduo e dos demais com quem convive), o arranjo do sistema passa por modificações que se ajustam, mantendo as possibilidades da harmonia formal do todo. Daí a analogia com o Sudoku. No caso do jogo Sudoku, as possibilidades são inúmeras, mas finitas, pois há somente nove elementos participantes e há regras (leis preestabelecidas) de participação. Há um predeterminismo – por exemplo, não estar na mesma linha com outro elemento similar. No caso do organismo natural (o planeta Terra) ou social (a humanidade), neste último ainda, com a agravante da liberdade humana volúvel, que não permite definir leis antecipadas, como os seres vivos participantes são incontáveis, as possibilidades de arranjo orgânico são infinitas, mas sempre direcionadas para fins de organização em busca da harmonia, de um estado de adequação que reverta na felicidade comum, em um sumo bem. Do mesmo modo que cada elemento tem seu lugar único no organismo do mundo, cada letra tem uma função específica no lugar que ocupa na célula do Sudoku. Se uma letra é trocada de lugar, isto implica uma alteração no arranjo de todo o sistema. O que demonstra que, tanto no tecido social quanto no organismo natural, os seres têm um télos, um fim que define sua participação na harmonia do conjunto. Reflita acerca da relação do sujeito-indivíduo com o organismo natural (planeta) na perspectiva da ecologia e do desenvolvimento sustentável hoje. Como você entende a consciência de fim (finalidade) em cada decisão de ação que um sujeito toma em relação ao planeta? Amplie a reflexão, enquanto cidadão(ã), pensando sobre seu relacionamento com o organismo social e circunstancial em que vive. Você concorda com a ideia de consciência de fim na tomada de decisão individual de um sujeito na perspectiva da justiça social? Por fim, aproveite para testar suas habilidades cognitivas na resolução do Sudoku a seguir, que serviu de analogia para esta discussão. O jogo é uma versão do passatempo que normalmente é preenchido com números. Nesta proposta, o desafio é preencher as 81 células com as noves letras, constantes na grade, sem repetir as letras numa mesma linha, coluna ou grade menor (3 × 3). O jogo requer atenção e análise para obter a única solução formal possível. Além de desenvolver seu raciocínio lógico, você encontrará, no campo sombreado, o nome de um conceito da teoria do conhecimento do filósofo cujo nome é destaque na disciplina. A resolução está no Apêndice. 157 KANT O U T A I Z T U N K O Z J K A N T O T A N Z U K J I Z N K J K A I J A U N 8.3 Juízo estético Segundo Kant, o juízo estético é definido a partir de um juízo reflexionante, isto é, de um juízo que parte em busca de uma representação universal para uma obra dada (no caso da arte, de um quadro, de uma escultura, de uma música etc.). No caso de uma obra de arte, em particular, a faculdade de julgar almeja atingir um universal a partir dela. Para Kant, é esse universal encontrado no particular que se entende por gosto. Para o gosto, no entanto, que, segundo Kant, é apenas subjetivo, é preciso formação e cultura. O juízo de gosto, então, é aquele segundo o qual é possível julgar, de modo meramente subjetivo, isto é, referente apenas ao sujeito que julga, se uma obra é bela ou não, ao relacionar a representaçãoda obra de arte à sua faculdade de prazer ou desprazer. Desse modo, a Crítica do juízo não é um tratado de estética, conquanto se costuma denominar um tipo de filosofia que trata de obras de arte propriamente ditas, mas, antes, é uma investigação sobre a capacidade de julgar qualquer obra de arte. Assim, a questão de saber se uma obra é arte ou não depende desse sentimento de prazer ou desprazer do sujeito, diante da obra, por meio do qual somente ele poderá ajuizar sobre sua beleza. Para isso, Kant fundamenta o juízo estético no juízo de gosto, que vai ser analisado do ponto de vista das quatro categorias básicas do entendimento, mas, de modo paradoxal, sem ser determinado por elas. As categorias vão ser somente referências para aplicar o juízo do gosto. Do ponto de vista da qualidade, o juízo estético ou juízo de gosto é desinteressado, não existindo a ideia de possuir o objeto de atenção, devendo ser apenas motivo de deleite estético. Do ponto de vista da quantidade, o juízo estético ou de gosto deve ser universal e não conceitual, ou seja, o belo deve agradar a todos, universalmente e sem conceito. Nesse caso, se distingue do prazer comum, que agrada a um indivíduo em particular. 158 Unidade III Do ponto de vista da relação ou finalidade, o juízo de gosto vai contemplar um objeto belo que é a forma final de um objeto sem representação de fim. Eis aí o paradoxo. O belo kantiano é autotélico, isto é, possui finalidade própria, ou, afirmando com outras palavras, é uma finalidade sem fim. Do ponto de vista da modalidade, o juízo estético ou de gosto é aquele que ocorre ao modo de uma fruição livre, a partir de um prazer necessário, sem a intervenção da reflexão, ou seja, fundado no consenso de que aquilo que o sujeito experimenta na fruição será vivenciado por todos os homens, independentemente de gênero, raça ou cultura (universalmente). Portanto, segundo Kant, o juízo estético é aquele pelo qual o sujeito qualifica de belo um objeto, após julgá-lo imediatamente agradável em relação ao seu sentimento. O juízo é estético, também, quando considera que algo do objeto, que não é conceituado, entra no jogo livre das suas atividades (preferências) espirituais, preferências que seriam as mesmas de todos os homens em condições sadias de fruição do objeto. Em suma, o juízo estético distingue-se do juízo do entendimento, por este ter um caráter prático e utilitário, enquanto aquele é totalmente desinteressado; distingue-se da mera sensibilidade, por ser determinado não pelas sensações isoladas, mas pela unidade concreta e orgânica de todas as sensações; e, por fim, distingue-se do prazer sensível, enquanto requer uma exigência de necessidade e universalidade, que o prazer particular, na esfera do sujeito individual, não tem. Embora o belo e o agradável não estejam vinculados a conceitos, o valor estético é universal e necessário, enquanto o agradável é subjetivo e casual. Se se trata de uma harmonia com as faculdades sensíveis, diz-se que o sentimento é agradável, e é um sentimento interessado e inteiramente subjetivo. Mas se se trata de uma harmonia com o ser intelectual, com a finalidade absoluta ordenada pelo imperativo categórico, diz-se que o sentimento é belo, desinteressado, universal e absoluto (sentimento estético) cujo objeto é o belo. O belo define-se como aquilo que agrada universalmente, sem conceito. Isto é, sendo conhecido, não veio pelo entendimento (Verstand), mas por uma espécie de intuição da razão prática (Vernunft), a razão raciocinante. Assim, a beleza se distingue do bom e do agradável, por agradar desinteressada e universalmente. O valor da beleza não deriva do objeto, mas é posto pelo sujeito, cuja atividade estética consiste no livre jogo da sua fantasia criadora da razão raciocinante. Por seu lado, a finalidade que preside o juízo estético refere-se à harmonia dos objetos representados pela fantasia com as leis formais da sensibilidade e do entendimento. Ao passo que o belo se associa, mas não depende, das funções cognitivas do entendimento, a essência do sublime trava contato com a relação que guarda a parte sensível e a suprassensível da natureza humana. Há duas espécies de sublime: o matemático e o dinâmico. 159 KANT O matemático é a imagem da ideia teorética do infinito e, portanto, funciona como um postulado, a exemplo dos conceitos metafísicos da geometria. Por isso, Kant denomina matemáticos as espécies de sublime que têm correlação com o universo e a natureza. Já o sublime dinâmico está relacionado à ideia moral do absoluto, de uma finalidade que progride crescentemente para uma perfeição. A estética de Kant dirige-se, então, para uma explicação do belo e do sublime em função da natureza, isto é, das leis diretoras da razão que definem uma finalidade, a teleologia, que, por si, é imanente. Kant trata, ainda, na Crítica do juízo, da questão do belo relacionada à fruição de obras de arte. Para ele a representação dos supremos ideais (os que indicam fins absolutos) constituem a suprema tarefa da arte (do artista) que deve espelhar a teleologia natural. A produção estética deve ser como uma produção espontânea da natureza. É necessário que essa produção represente a unidade buscada entre liberdade e necessidade, entre finalidade e causalidade. Quando a representação não se mantém no simples jogo da fantasia, isto é, quando obedece a interesses externos, então a arte é tendenciosa (não é bela). Saiba mais Aprofunde seu conhecimento por meio da seguinte leitura: SANTOS, L. R. A concepção kantiana da experiência estética: novidades, tensões e equilíbrios. Trans/Form/Ação, Marília, v. 33, n. 2, 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid =S0101-31732010000200004. Acesso em: 21 jan. 2020. 8.4 Conexão do juízo estético Kant utiliza a Crítica do juízo para aprofundar um problema que ficou sem solução na Crítica da razão pura: a questão do esquema que relaciona a esfera da sensibilidade à esfera do entendimento. O fenômeno sensível e o juízo estético são opostos em demasia para se unirem sem uma conexão; faltando um intermediário, o juízo deveria concretizar-se somente com as formas a priori, de espaço e tempo, e perderia seu status racional de existência no entendimento. Kant vai pesquisar esse intermediário na interface, ao mesmo tempo, da esfera sensível, com seus elementos concretos, com a esfera do inteligível, a inteligência, com sua espontaneidade e indeterminação, própria de uma ação transcendental. A solução apresentada são os esquemas da imaginação que se comportam como imagens. Na Crítica do juízo, Kant confere maior amplitude à sua perspectiva sintética. Afinal, o homem não é apenas um ser cognoscente e um ser moral, é também senciente. Ao tratar a faculdade de sentir, Kant vai promover uma síntese entre sensível e não sensível. Mas parece haver uma lacuna entre essas esferas. 160 Unidade III Para resolver esse hiato entre o sensível e o não sensível, Kant (1995, p. 127) vai admitir um princípio subjetivo – o sentimento, mas não vai concebê-lo como pura passividade, como era o visto pelos empiristas, que não conseguiram elevá-lo de seu baixo nível de gnosiologia inferior, de uma forma espiritual obscura, e não plenamente determinada. Nessa direção, Kant questiona se não existiria um terceiro termo para compor o juízo estético, um termo mediador entre a impressão do fenômeno, isto é, entre o sensível, dado na intuição empírica, e as categorias intelectuais na faculdade não sensível do entendimento, fornecida na intuição inteligível. Kant aprendeu com Baumgarten que o conhecimento sensível não é inferior ao conhecimento distinto e racional; ambos têm o mesmo grau de importância e compõem o conhecimento lógico como um todo com funções e atribuições diferentes, mas pertinentes. Por isso, volta a analisar a teoria da sensibilidade para verificar se encontra alguma solução para a conexão do mundo sensível com o mundo inteligível. Na Críticada razão pura, Kant demonstrou que os juízos ou conceitos são formulados por meio de sínteses entre as representações que o sujeito recebe no ato da intuição. Mas percebeu que ficou um hiato entre essas representações que, em um primeiro momento, parecem ser equivalentes a imagens. Então, Kant sai a investigar, na Crítica do juízo, qual a natureza dessas representações que ocorrem entre as instâncias da sensibilidade e do entendimento. Kant institui dois tipos de representação: a imediata e a mais elevada. Esta última compreende, em si mesma, aquela e várias outras representações que permitem a composição de uma síntese, de uma reunião, a fim de obter um conhecimento unitário que forme o juízo. Em nenhum ponto Kant admite literalmente que qualquer dessas representações seja uma imagem, no sentido de signo icônico de natureza mimética como os empiristas imaginavam. Sendo cauteloso, refuta a teoria da imagem dos empiristas que admitiam a representação de ideia enfraquecida, como uma impressão física na mente, tipo estampagem. Não aceita o modelo empirista, pois seu pressuposto é de que o mundo numênico jamais é conhecido. No entanto, Kant admite a existência de uma faculdade mediadora da imaginação entre o conhecimento sensível ou perceptível e o conhecimento científico, além das faculdades originais da sensibilidade e do entendimento. Desse modo, as formas da sensibilidade – o espaço e o tempo – e as formas do entendimento – as categorias – entrelaçam-se por meio da intermediação da imaginação, a fim de homogeneizar o sensível ao não sensível, transportando o conteúdo da intuição empírica para o entendimento, como uma interface. Ao retomar a questão da gnosiologia inferior para fundamentar o juízo estético, Kant refere-se à síntese ocorrida ao nível da sensibilidade, como síntese especiosa ou figurada (synthesis speciosa), para a distinguir da que, em relação ao diverso de uma intuição em geral, seria pensada na simples categoria e se denomina síntese do entendimento (synthesis intellectualis). “Ambas são transcendentais, não só porque se processam a priori, mas também porque fundamentam a priori a possibilidade de outros conhecimentos a priori” (KANT, 1989, p. 150). 161 KANT Trata-se, portanto, de duas representações, a imediata e a mais elevada ou, na forma kantiana, de duas sínteses. A primeira elaborada na intuição através das formas a priori da sensibilidade que emolduram a multiplicidade de dados sensíveis, ou seja, relativiza-os no espaço-tempo. A segunda síntese é elaborada pelo entendimento, que opera sobre a representação (síntese primeira) vinda da intuição, e busca uma unidade com o cogito no processo de apercepção. A primeira síntese corresponderia à ideia de imagem (figurada), de síntese especiosa, significando, numa tradução aproximada, figura vistosa, mas ilusória ou forma de aparência enganosa. Em algum tópico dessa passagem, em algum momento entre as duas sínteses, como um flash instantâneo, surge a imagem equivalente à representação sensível, empírica, sem portar ainda os ingredientes lógicos do entendimento. Essa imagem equivale à primeira síntese sobre a qual o entendimento se debruça para gerar os juízos estéticos. 8.5 Papel da imaginação Kant parece ter encontrado uma solução. A imagem corresponderia às representações da imaginação enquanto esta é um lampejo da intuição do sujeito ainda inconsciente, isto é, enquanto representação totalmente sensível, correspondendo ao momento da sensação, da impressão caótica do fenômeno na sensibilidade, sem o recurso ainda das categorias do entendimento, mas já parcialmente auxiliada pelas formas a priori tempo e espaço que configurariam uma imagem similar à da manifestação (fenômeno) do objeto intuído. Kant sente a necessidade de descrever essa conexidade entre as duas esferas – do sensível e do inteligível – que, segundo ele, indicaria a região da experiência estética. Ou seja, deve ser pensada uma passagem, uma conexão entre as duas ordens; devem ser indicados e delimitados esse novo campo de experiência, bem como a atividade universal sintética que lhe serve de alicerce. Essa faculdade Kant denomina imaginação, isto é, a “faculdade de representar um objeto, mesmo sem a presença deste na intuição”. Como é uma tarefa sensível, por estar situada na intuição, a imaginação pertence ao âmbito da sensibilidade, mas por relacionar-se à ação do entendimento, também tem uma face semi-inteligível, isto é, pré-lógica. Reforça ainda essa interpretação – de imagem como representação sintética mais sensível que inteligível – a distinção de Kant acerca dos dois tipos de imaginação. Kant distingue a imaginação reprodutiva (ou reprodutora), cuja síntese está submetida a leis meramente empíricas, isto é, aos modelos (espécie de códigos) naturais de similitude, por isso mesmo ligados à receptividade; e a imaginação considerada como espontaneidade, ou imaginação produtora, distinta da imaginação reprodutora, será a faculdade, intermediária entre a sensibilidade e o entendimento, capaz de produzir determinações (esquemas mediadores) de subsunção do fenômeno sob as categorias. Na Crítica do juízo, Kant refere-se à imaginação, de maneira geral, como a faculdade que “sabe evocar a imagem” (1995, p. 79), face sensível – imaginação reprodutora. Mais à frente, refere-se de novo como a faculdade que “põe a pensar” (1995, p. 160), face inteligível – imaginação produtora. 162 Unidade III Assim, entre a sensibilidade e o entendimento, entre as duas faculdades existe a operação mediadora da imaginação que, para Kant, significa a ação de procurar, dado um conceito universal, sua imagem particular. A imaginação, para Kant, tem uma função reprodutora, pois “exerce-se sobre as percepções e destas faz um quadro ou imagem”. Trata-se da vertente sensível da imaginação. Mas ela é, também, produtora, ou seja, espontaneidade, e assim se aproxima do entendimento. Em sua análise, Kant (1995, p. 33) mostra que: A imaginação, como intermediária sintética, introduz na diversidade sensível a unidade intelectual, tendo, para alguns autores, um papel fundamental na construção do conhecimento [...] Sem ela a apercepção transcendental e as categorias não poderiam aplicar-se aos objetos da experiência. Assim, o eu realiza-se entrando em contato com uma multiplicidade que unifica. 8.6 Terceiro termo – esquema Kant já se interrogava, na Crítica da razão pura, sobre a possibilidade de um terceiro termo que pudesse homogeneizar as duas esferas: É claro que tem de haver um terceiro termo, que deva ser por um lado, homogêneo à categoria e, por outro, ao fenômeno e que permita a aplicação da primeira ao segundo. Esta representação mediadora deve ser pura (sem nada de empírico) e, todavia, por um lado, intelectual e, por outro, sensível (KANT, 1989, p. 181, grifos nossos). Na Crítica do juízo, Kant aprofunda essa ideia de passagem de um estado empírico, experienciado pela sensibilidade, a outro intelectivo, conceituado pelo entendimento, na consolidação do conhecimento; passagem que não significa simples transitoriedade, mas conexão de representações de naturezas diferentes, em processo de homogeneização. Trata-se, assim, de uma conexão por subsunção dos dados empíricos às categorias preexistentes, que representam potencialidades, ou seja, aberturas da mente para operar as faculdades já prescritas por Aristóteles: qualidade, quantidade, relação e modalidade. Para Kant, a subsunção realiza-se através de um mediador, o esquema transcendental. Esse mediador é análogo, por um lado, à categoria e, por outro, ao fenômeno; é, simultaneamente, puro e sensível. Entende-se aqui sensível como sinônimo de empírico (a posteriori), porque se refere ao dado que traz as marcas do fenômeno, isto é, da exterioridade. À medida que o dado vai subindo os degraus do edifício gnosiológico, e vai se interiorizando nos departamentos lógicos do entendimento, perde a moldura empírica de imagem e reveste-se das nuances conceituais
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