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O Mal disfarçado de Bem JÚLIA BÁRÁNY O Mal disfarçado de Bem Manual de sobrevivência para vítimas de psicopata O MAL DISFARÇADO DE BEM Copyright © 2017 de Júlia Bárány Todos os direitos reservados, inclusive o direito de reprodução de parte ou do todo, qualquer que seja a forma. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida em qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer armazenamento de informação, e sistema de cópia, sem permissão escrita do editor. Direção editorial: Júlia Bárány Revisão de texto: Barany Editora Preparação: Barany Editora Edição: Ana Vieira Pereira Capa e Projeto gráfico: Lumiar Design Produção de eBook: Sergio Gzeschnik Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Elaboração: Aglaé de Lima Fierli – CRB9 - 412) B18m Bárány, Júlia, 1949- O mal disfarçado de bem: manual de sobrevivência para vítimas de psicopatas / Júlia Bárány. – São Paulo: Bárány, 2017. ISBN: 978-85-61080-67-9 1. Psicologia – Manual de sobrevivência. 2. Distúrbios da personalidade antissocial. 3. Psicopatas. I. Título. CDD 158 Índices para catálogo sistemático: Psicologia: Psicopatas: Manual de sobrevivência 158 Distúrbios da personalidade antissocial: Psicopatas 616.8582 Psicopatas 616.8582 2018 Edição Digital mailto:gzeschnik%40hotmail.com.br?subject=Diagrama%C3%A7%C3%A3o%20/%20ePub Todos os direitos desta publicação reservados à Barany Editora © 2017 São Paulo - SP - Brasil contato@baranyeditora.com.br www.baranyeditora.com.br mailto:contato@baranyeditora.com.br http://www.baranyeditora.com.br/ SUMÁRIO SOBREVIVENTE PRIMEIRA PARTE 1. RECONHECIMENTOS 1. Sofrimento 2. Abusadores e psicopatas: quem são? 3. Teste para saber se você se relaciona com Psicopata (adaptado de psychopathfree.com) 2. POR QUE CAÍMOS NA ARMADILHA? 1. Porque acreditamos na bondade inata 2. Porque não sabemos que seres assim existem entre nós 3. Porque preferimos e escolhemos acreditar 4. Porque o afeto funciona como uma cola 5. Porque temos a imagem hollywoodiana 6. Porque charme e sedução são usadas como ferramentas predatórias 7. Porque imaginamos poder encontrar a nossa alma gêmea 8. Porque sempre damos mais uma chance 9. Porque aprendemos a confundir perdoar o outro e justificar seus erros 10. Porque o outro ocupa uma posição de poder 11. Porque faltam divulgação e conhecimento compartilhado 12. Porque faltam profissionais habilitados e preparados para lidar com os psicopatas e suas vítimas 13. Porque as autoridades estão despreparadas para defender as vítimas e evitar que outras sejam feitas 14. Porque temos medo de enfrentar o mal 15. Porque só vemos aquilo que estamos 16. Porque não estamos preparadas para lidar com alguém que mente olhando em nossos olhos 17. Porque já fomos invalidados anteriormente e sobrevivemos 18. Porque resistimos a acreditar que não exista cura 3. APOIOS: MÉDICOS, TERAPEUTAS, NUTRICIONISTAS E DEMAIS PROFISSIONAIS DA SAÚDE 1. Os estados da vítima 1) Estado físico 2) Estado emocional/psicológico 3) Estado espiritual 4) Estado financeiro 5) Estado relacional 2. As necessidades imediatas da vítima 1) Se a vítima ainda está convivendo com o psicopata, e não sabe que ele é um psicopata, é imprescindível: 2) Se a vítima já foi descartada, e não convive mais com o psicopata, os caminhos necessários são: 3) Se a vítima convive com o psicopata e sabe que é um psicopata: 3. Processo de cura – resumo dos requisitos básicos 4. Cuidados continuados – manutenção 5. Aos advogados 6. Aos médicos (contribuição de Dr. Mikhael Marques) 7. Os três estágios do relacionamento com um psicopata 1) Seduzir e conquistar 2) Subjugar e explorar 3) Destruir e descartar 8. Sobrevivência! 9. Filhos com o psicopata 10. Os fãs-clubes do psicopata 4. O PROCESSO DE AUTO CURA DO SOBREVIVENTE 1. Plano de fuga em cinco passos 2. Entenda o que aconteceu com você: Síndrome de Estocolmo 3. Trauma: do que se trata? 4. Agressão verbal e agressão psicológica são tão danosas quanto agressão física 5. Culpa, o parasita que nos atormenta 6. Vergonha 7. A vergonha e a culpa deslocadas 8. Vulnerabilidade 9. “Torne-se a pessoa de quem o psicopata se arrependa de ter abusado” 10. O mal no mundo – o que fazemos com ele 11. Perdoar 12. Ingenuidade e inocência 13. Erro 14. Separação de psicopata não é separação 15. Afinal: o que é o amor? 5. AS DIVERSAS MANIFESTAÇÕES DO MAL 1) Borderline 2) Narcisista 3) Histriônico 4) Psicopata 1. Como reconhecer o psicopata entre nós 1) Bases conceituais 2) primeiras impressões 3) psicopata nos relacionamentos – No relacionamento profissional – No relacionamento social – No relacionamento consigo mesmo 4) Resumindo 2. Técnicas que o psicopata usa 1) Estudo do alvo 2) Roubo de ideias, projetos, recursos, posições, contatos 3) Dividir para dominar 4) Megalomania 5) Salada de palavras 6) Dissonância cognitiva 7) Campanha de difamação 8) Triangulação 9) Mentira descarada 10) Sexo 11) Manipulação 12) Calúnia (e denúncia) 13) Destruição da autoestima do alvo 14) Destruição da identidade da vítima 15) Fazer-se de vítima e evocar compaixão dos outros SEGUNDA PARTE O QUE É UM PSICOPATA: ASPECTOS FÍSICOS, PSICOLÓGICOS E ESPIRITUAIS 1. Aspectos físicos: distúrbios na estrutura cerebral, no sistema nervoso central, no sistema rítmico 2. Biografia 3. Aspectos psicológicos: percepção da 4. Psicopata tem cura? TERCEIRA PARTE O QUE EU TIRO DE TUDO ISSO? 1. A função da dor 2. Declaração do sobrevivente de um trauma 3. Por que é tão difícil continuar a vida depois de sair de um relacionamento tóxico com um psicopata ou narcisista? 4. É possível amar de novo depois de um AGRADECIMENTOS BIBLIOGRAFIA Sites SOBREVIVENTE Este livro é para você. Para você que custa a reconhecer-se no que sente hoje. Para você que se sente esgotado – esgotado em seu físico, em seus sentimentos, em sua mente. Como se tivesse sido sugado por uma aranha e todas as suas forças o tivessem abandonado. E qualquer movimento que você faça o prende ainda mais na teia grudenta. O sentimento é de que esse vazio e esse esgotamento cada vez aumentam mais e mais. Se você chegou até este livro, é porque busca respostas. Talvez as esteja procurando há muito tempo. Você não sabe exatamente o que aconteceu, mas há uma indignação avassaladora que cresce dentro de você, ao lado de uma luta interna absurda entre a repulsa e o anseio inaceitável por alguém que lhe provoca sofrimento. É aí (você sabe sem conseguir admitir até o fim) que reside o início de tudo. Há uma parte sua que se foi. A alegria que costumava colorir seu caminho sumiu. Qualquer coisa que lhe aconteça fica sombreada por essa atmosfera densa que pontua todos os seus dias. Tanto faz se você é um homem ou uma mulher: há dias em que você acorda e não se reconhece ao espelho. Onde está aquele ou aquela que costumava saudar o novo dia com esperança e contentamento? Que tsunami é esse que varreu sua vida? Que dor e desânimo são esses que preenchem seus dias e suas noites? Seus familiares, seus amigos, seu trabalho: tudo entrou em colapso. Ou se afastaram, ou você mesmo se afastou. A sua autoconfiança desapareceu, tragada por algum lamaçal inconcebível. A sua autoestima seguiu o mesmo caminho. Logo você, para quem as pessoas olhavam com confiança e admiração. É difícil saber ao certo quem você é hoje. O peso em seu peito, a sensação insuportável de ter sido traído no mais profundo de sua humanidade, nublam a sua capacidade de pensar e de ver a realidade com clareza. Você parece ter sido contaminado por algum veneno, que aos poucos se infiltra em todas as suas células. Como se estivesse intoxicado. As pessoas cobram-lhe atitudes. Você não as entende e nem consegue assumi-las. Ninguém acredita mais em suas palavras. Nem você mesmo. As suas tentativas de resolver a situação não deram certo. Na realidade, o resultado parece ter sido o oposto. A cada dia que passa, a cada resolução tomada e não cumprida, você se sente mais confuso, mais deprimido,mais sofrido. Saiba que você não está sozinho. Muitos passam ou passaram por esse lugar por onde você caminha. Você não está louco: fizeram-no acreditar que está. Você não é culpado: fizeram-no acreditar que é. Se você assentiu com a cabeça ao ler as linhas precedentes, é porque você está convivendo com todos os sintomas de abuso emocional. E é preciso saber que existe uma saída. A porta para a saída é entender do que se trata e tomar as medidas necessárias. Há um longo, penoso, mas certeiro caminho de recuperação à sua frente. É claro que não será fácil. Mas quando você, ao atravessar o deserto, se restabelecer um pouco no oásis que este manual lhe oferece, perceberá uma nova vida do outro lado, uma vida que você jamais poderia imaginar. Você terá morrido e nascido de novo. E encontrado companheiros de caminhada que sabem do que você fala, entendem o que você sente e lhe estenderão a mão com o olhar amigo de quem passou por esse mesmo lugar e sabe que é possível sair. Seja bem-vindo a um novo momento da sua vida. Passo a passo, vamos desanuviar o entendimento. Retirar as camadas densas de nuvens que têm impedido de ver a realidade. Para que você possa saber onde você está e o que deve fazer. Quem mais nos machuca é quem está mais próximo de nós. Os abusadores, na maioria das vezes, não estão lá fora, mas dentro da própria casa. Os piores são os que estão dentro do nosso relacionamento afetivo, seja familiar, seja amoroso. Piores, porque é difícil acreditar que sejam pessoas que se aproveitam justamente da nossa capacidade de amar, ou da nossa dependência, quando ainda não nos tornamos adultos. O abusador pode estar sentado com você em sua sala de aula. Pode ser seu chefe, seu médico, seu terapeuta, seu professor, colega de trabalho, advogado, líder religioso. Pode ocupar qualquer posição, desde que, a partir dela, obtenha controle, poder e/ou sexo. Tudo isso, é claro, de forma velada e disfarçada. Você confiaria em alguém com cara de mau? É claro que não. Por isso, essas pessoas jamais se apresentam com sua verdadeira face. Muito pelo contrário: elas se apresentam com a aparência que mais atração possa exercer sobre você. E você cai na armadilha. A vida é preciosa demais para passá-la sofrendo num relacionamento tóxico. Todos nós precisamos ser livres e estar disponíveis para trabalhar por um mundo melhor. Ao reconquistar a tranquilidade, o amor e a produtividade, tudo se torna possível. E, a partir de um certo ponto, tudo depende de você. Um você fortalecido, capaz e corajoso, forte o suficiente para enfrentar a sensação terrível de ter se deparado com a maldade. Para chegar a esse lugar, é preciso tomar e manter algumas decisões. Mas antes, é fundamental saber como você chegou a esse lugar, e que formas esse caminho tomou, à revelia de tudo o que você possa ter sido, pensado, estudado e feito ao longo de toda a sua vida. Por isso, comecemos pelo princípio. PRIMEIRA PARTE 1 RECONHECIMENTOS 1. Sofrimento O sofrimento é resultado de ignorância de como a vida realmente é e de como as pessoas são. A começar por nós mesmos. Aprendemos pela experiência, na grande maioria das nossas lições. Caímos, levantamos, caímos outra vez... até conseguir dar os primeiros passos e sair caminhando. Sentir dor por empatia é outra questão. Sentir dor porque o outro sente. Causamos o sofrimento dos outros também por ignorância, por cegueira, por egoísmo – uma combinação infeliz de ignorância e cegueira. As feras que habitam em nós, quando descontroladas, atacam e destroem os outros. Quando nos damos conta do que fizemos, sentimo-nos mal; sentimo- nos culpados, arrependidos, revoltados conosco mesmos, inconformados, e sofremos por isso. Quando é possível consertar, fazemos de tudo para consegui-lo. Não sendo possível, carregamos o peso da culpa por vezes pela vida inteira, até aprender a soltar e a restaurar, de outras formas, o equilíbrio por nós destruído. Porém, o mal pode ser deliberado. Talvez você acredite que não. No entanto, isso existe e por isso é tão espantoso. Quando o mal é deliberado, quando o outro não se importa com o mal que causa, sabe que causa e ainda assim continua: qual é o resgate possível? Resgate é uma palavra latina, derivada de recaptare. Significa tomar, pegar de volta. Se alguém não tem noção que perdeu ou arrancou algo de alguém, como poderá vir a resgatar, a tomar, ou a devolver o que perdeu ou retirou? Quem pode resgatar alguma coisa quando não existe arrependimento nem vontade de reparar? Ninguém tem o direito de fazer o outro sofrer, nem mesmo você a si mesmo. Costumamos culpar o outro pelo nosso sofrimento. E às vezes ele pode mesmo ter tido uma grande participação. Porém, ainda que tenha sido o outro que machucou você, e o tenha feito de forma deliberada, inescrupulosa, ainda assim quem é responsável total por sua vida é você. Eis um fato muito difícil de aceitar. Mas para sair do sofrimento, esse é o primeiro passo. É o único caminho seguro para recuperar as forças sugadas pelo abusador e reconstruir sua vida. Sei que parece absoluto e duro demais, mas centenas de histórias como a sua corroboram o que lhe digo. O outro é responsável por ter sido o agente do mal que fez a você, e ele terá acertos a realizar pela parte que lhe cabe. Todo sofrimento causado a outrem volta ao perpetrador. Ninguém escapa. Mas a você cabe libertar-se dos relacionamentos tóxicos, quaisquer que sejam, e dar os passos para alcançar essa libertação. O abusador jamais ajudará a dar esse passo. É seu, e apenas seu. UMA FAMÍLIA DE PSICOPATAS – GERAÇÕES Há 100 anos, assassinatos, suicídios, desmoronamentos familiares, internações psiquiátricas, cânceres, ocorrem nesta família contemplada com psicopatas graves. É uma história que atravessa quatro gerações, causando espanto e temor a seus contemporâneos. A hereditariedade, neste caso, atinge preferencialmente as mulheres; a violência não é percebida diretamente, mas induzida ferina e sub- repticiamente por intrigas, calúnias, mentiras incríveis que levam a agressões violentas. O único homem do grupo é muito conhecido na cidade. Tem 57 anos de idade, nunca trabalhou, cometeu dois assassinatos, diversos roubos, envolveu-se com drogas e tem um espantoso histórico de agressões, sem o menor sentimento de culpa e desejo de recuperar-se. Ele sempre foi acobertado para “não manchar o nome da família”. Até hoje é protegido e protege a mãe, os dois praticantes de todo tipo de calúnias cruéis. Está sendo processado pelos outros três irmãos por agressão e ameaça de morte. É muito importante observar que os afetados emocional ou fisicamente são sempre os que convivem com o psicopata. Estes seguem incólumes, por sua ausência de sentimentos genuínos, pela inacreditável capacidade de dissimulação, de se passarem por vítimas e por seu incrível poder de sedução, geralmente dirigido aos poderosos, a quem enganam e sob cujas asas procuram abrigo. O autor deste depoimento é um profissional bem-sucedido, reconhecido no seu meio. Orgulha-se da família que construiu. Mas o passado traz lembranças muito pesadas. Conta que, desde criança, percebeu que havia algo errado com sua família de origem. Aos nove anos de idade, fugia correndo para não ser atingido pela fivela do cinto, instrumento com que sua mãe costumeiramente o agredia, enciumada pelo grande afeto que o marido dedicava ao menino bom e estudioso. “À noite, estávamos iniciando jantar, quando minha mãe, com ostentação e arrogância, chamou a empregada à sala de jantar. – Diz o que ele te fez, disse à moça constrangida. – Mas... Dona X?, ela replicou, hesitante. Parei de comer. Levantei os olhos para minha mãe. Os seus, fixos e frios, paralisavam e desafiavam os meus: – Diz ao Dr. X como o menino chutou sua barriga, disse ela, mentindo cruel e descaradamente. A moça estava no final da gravidez. A intenção era jogar o pai contra o filho. A crueldade fazia brilhar intensa e estranhamente suas pupilas. Um dos cantos da boca, não suportando tanto prazer e maldade, pendia com desprezo.Aquela máscara de terror sorvia calmamente cada gota do meu sangue paralisado pela surpresa, cada estilhaço da minha alma detonada por tão brutal e covarde injustiça. A moça nada falou, cabisbaixa, voltou para a cozinha. – Saia, menino!!! Vá para seu quarto!, gritou a brava voz de meu pai querido. Emudeci. O sentimento de desamparo e medo diante do mundo e da vida foi total. Ou quase total. No fundo de mim, senti presença de algo muito bom e verdadeiro, e a enorme certeza de que isto seria sempre minha única força. Maior do que as palavras de meu pai que, escondido, procurou-me no meio da noite: – Eu sei que você não fez isto. Sua mãe é muito má. É igual à mãe dela. Acho que percebi isto tarde demais. Muitos filhos para criar. Eu sentia muita pena dele. Sempre fiz tudo para ajudá-lo. Anos mais tarde, já moço, reencontrei a empregada que nunca se conformou: – Ela disse que me mandaria embora se eu não confirmasse aquela terrível mentira, confidenciou. Até hoje, quando eu conto isso, vou ficando rouco e vai sumindo minha voz. Você não tem o que dizer. É como um louco sem loucura, você não o percebe. A história começou muito tempo antes, com a avó. O hábito de fazer chantagens e ameaças para conseguir dinheiro foram passando de mãe para filha. Sua avó, sua mãe e dois de seus irmãos têm comportamento doentio, e os exemplos de atitudes agressivas são incontáveis. O irmão, mais próximo de sua mãe, apresenta traços de psicopatia desde pequeno. “O irmão que é psicopata, desde os cinco anos mata bichinhos, transfixa coelhinho pela boca e pelo ânus com taquara. Nem andava de bicicleta ainda e fechava o corredor, soltava os pintinhos e ia com o triciclo esmagando, pra frente e pra trás. E é esse irmão que está com ela até hoje.” “Isso se perpetua. A minha mãe não teve como vencer a minha avó, e o comportamento dela é igualzinho. E eles não veem nada do que fazem como um problema. Dormem bem, comem bem, se justificam com a maior frieza. Para eles, quem os combate é que não presta.” 2. Abusadores e psicopatas: quem são? Existe o perigo de sair diagnosticando todo abusador, cafajeste, estelionatário, “má pessoa”, um ex-parceiro amoroso de psicopata? Existe. A primeira coisa que devemos saber é que nem todo cafajeste mentiroso abusador é psicopata, mas todo psicopata é cafajeste mentiroso abusador. Diagnóstico preciso só pode ser dado por um profissional habilitado, depois de um longo processo de estudo da personalidade e da biografia da pessoa. O que você pode fazer é analisar, juntar os dados, se precaver, e depois levar o caso a um profissional, para evitar incorrer em erro. Nesse primeiro momento, um caminho é perceber se traços comuns a essas pessoas lhe são familiares, se estão presentes nessa relação que você identifica como de possível abuso. A escala Hare foi desenvolvida pelo Dr. Robert D. Hare, autor de Sem consciência – o mundo perturbador dos psicopatas que vivem entre nós1 e estudioso norte-americano da população carcerária. Os que estão entre nós, ao contrário de uma população contida como é a encarcerada, não podem ser estudados de forma sistemática. Mas as suas vítimas podem, e é a partir de seus sintomas, dentro do relacionamento, que podemos detectar e lançar luz sobre a natureza da relação e a forma como ela se estabelece. As características são as mesmas, variando apenas em grau de manifestação. Os que estão entre nós praticam essas crueldades de forma mais velada ou indireta, menos óbvia. São abusos emocionais e psicológicos, com uma menor ou até inexistente carga de violência física. Robert Hare reuniu, em torno de quatro focos (interpessoal, afetivo, estilo de vida e antissocial), vinte características individuais. Essa escala é aplicada para estabelecer o diagnóstico de psicopatia; no caso do trabalho desenvolvido pelo médico canadense, a escala foi aplicada mediante uma entrevista semiestruturada feita por especialista. Cada item, num total de 40, é quantificado em uma escala de 3 pontos (de 0/inexistente a 2), de acordo com a extensão verificada no sujeito. Até 11, não existem traços de psicopatia na personalidade. De 11 a 22, verificam-se transtornos de personalidade. A partir de 23, está diagnosticada a psicopatia, podendo variar em intensidade e gravidade até 40. A Dra. Hilda Morana é responsável pela validação desta escala para uso nos tribunais brasileiros. Por ora, observe o esquema. Avalie se a pessoa com quem você se relaciona se encontra entre essas características. É de grande ajuda também este breve teste: 3. Teste para saber se você se relaciona com Psicopata (adaptado de psychopathfree.com) 1. A pessoa cumpre suas promessas? ( 2 ) Às vezes sim, às vezes não. ( 1 ) Não, suas ações nunca combinam com suas palavras grandiosas. Aprendi a ficar calado/a para não parecer sensível demais ou maluco/a. ( 4 ) Sim, é claro. Sempre que o meu parceiro promete, cumpre. ( 3 ) Na maior parte das vezes. Sua conduta combina bastante com suas palavras. 2. A pessoa entende seus sentimentos? ( 2 ) Não realmente. Mas sempre foi assim. É bem centrada em si mesma, mas me ajuda sempre que eu preciso. ( 3 ) Um tanto, mas eu não tenho do que meu queixar. ( 4 ) É bem empático/a e compassivo/a. Parece sempre entender minhas motivações e, quando compartilho algo, a pessoa ouve e compreende. ( 1 ) Não mais. Tento desesperadamente explicar como a pessoa me faz sentir, mas isso só a incomoda. Ou então se distancia e fica calada. Eu me sinto enlouquecer. 3. Essa pessoa costuma ser hipócrita? ( 1 ) A pessoa espera muito de mim mas não admite que eu espere o mesmo dela. ( 3 ) Se é, não percebi. Afinal somos todos humanos. ( 2 ) Às vezes, mas acaba admitindo quando fica evidente. ( 4 ) Nunca foi hipócrita e nunca me julga por meus erros. Não se coloca acima das regras. 4. Você já pegou esta pessoa mentindo? ( 3 ) Não mais que qualquer pessoa normal. Todos dizem uma mentirinha de vez em quando. ( 2 ) A pessoa mente de vez em quando, mas não por maldade ou intenção. Quando pega na mentira, fica constrangida. ( 1 ) Sim, e nunca é culpa da pessoa. Sempre tem uma desculpa para tudo mesmo para algo que não precisa de justificativa. ( 4 ) Não, esta pessoa jamais mentiria para mim. 5. Ele/ela se torna distante afetivamente, do nada, ou nega afeto? ( 2 ) Às vezes, mas é assim desde que nos conhecemos. Não me importo com certo distanciamento ocasional. ( 1 ) Sim, mas fico realmente confuso/a porque no início do relacionamento era o contrário. Está sempre justificando porque não se comunica comigo ou não fica mais tempo comigo. ( 3 ) Não, não sinto que está me evitando ou se distanciando de mim. Depois de uma discussão, sim, mas isso logo passa. ( 4 ) Não, meu parceiro/a jamais usaria essas táticas comigo. Quando temos problemas, simplesmente conversamos. 6. Como você se sente dentro do relacionamento? ( 2 ) Não estou muito feliz, mas ainda consigo expressar minhas opiniões e frustrações. ( 3 ) Estou bem feliz no meu relacionamento e sei que posso conversar com meu parceiro/a quando algo me perturba. ( 1 ) Eu era uma pessoa bem tranquila, mas agora eu me sinto ciumento/a, desesperado/a e carente o tempo todo. ( 4 ) Eu me sinto calmo/a, tranquilo/a e seguro/a no meu relacionamento. Tem sido assim desde o início. 7. Você tem medo de perder esta pessoa? ( 3 ) Não, nós dois gostamos da companhia um do outro e nos sentimos de forma semelhante no relacionamento. ( 2 ) Não tenho total certeza quanto ao relacionamento, mas não acho que a pessoa queira me largar. ( 1 ) Sim, em vez do entusiasmo de ter encontrado o amor, agora tenho constante medo de perdê-lo. Qualquer briga pode ser o fim de tudo. ( 4 ) Não tenho motivo algum de ter este medo. O nosso amor é mútuo e o nosso relacionamento é saudável. 8. Você confia na pessoa? ( 1 ) Não. E não consigo explicar porque, mas muitas vezes acabo me fazendo de detetive e investigando o que a pessoa declara. ( 2 ) Não realmente, porque a pessoa foi mudando com o tempo, então nunca sei o que esperar. ( 3 ) Confio.A pessoa não faz nada para eu não confiar. ( 4 ) Confio totalmente, colocaria minha vida nas mãos da pessoa. 9. Existe drama no relacionamento de vocês? ( 3 ) Existe um certo drama em qualquer relacionamento. Nada diferente do que eu já passei como outros parceiros. ( 2 ) Nós brigamos muito, mas não sobre as mesmas questões. Porém eu gostaria de brigar menos. ( 4 ) Raramente brigamos porque entendemos como o outro se sente. Não tentamos provocar ciúmes nem criamos tensão desnecessária. Estamos construindo a confiança mútua. ( 1 ) A pessoa disse que odeia drama mas o nosso relacionamento é sempre dramático. Estamos sempre brigando por causa das mesmas coisas. Parece que ela cria drama e depois me acusa por estar reagindo a isso. 10. Como ele/ela lida com o tédio? ( 1 ) Ele/ela está sempre entediado e o tempo todo busca a atenção dos outros. ( 3 ) Fica entediado facilmente mas não se importa em ficar sozinho durante um tempo. ( 4 ) Nunca fica entediado, e gosta de ficar sozinho com seus pensamentos. ( 2 ) Ele/ela fica entediado com tarefas chatas, mas não somos todos assim? 11. Como ele/ela se relaciona com o ex dele/dela? ( 4 ) Estão de bem mas não se falam muito, portanto não é um problema para nós. ( 1 ) Diz que seu ex “maluco” está com ciúme de nós e eu não tenho que me preocupar, mas eu suspeito que eles ainda se falam. Eu sinto que estou sempre competindo com outros pela atenção do meu parceiro/a. ( 2 ) Eles são amigos e isso me incomoda. Mas eles sempre foram amigos então não é da minha conta. ( 3 ) Ele/ela nunca fala do ex e nós nunca discutimos essa questão. 12. Como foi o relacionamento de vocês no início? ( 1 ) Extraordinário! Nada comparado com qualquer parceiro anterior. Havia tanta coisa em comum, parecíamos perfeitos um para o outro. Eu era o centro de suas atenções, me cumulava de mimos e elogios. ( 2 ) Como qualquer início de relacionamento. Fomos nos conhecendo e descobrindo muita coisa em comum. As coisas se acomodaram, mas ainda gostamos muito um do outro. Houve uma fase de lua de mel, mas acabou, e tudo bem. ( 3 ) Nada de especial no início. Saímos algumas vezes e percebi algumas coisas das quais não gostei, mas no geral estava bom. Com o tempo, fomos nos acostumando um com o outro. ( 4 ) Éramos grandes amigos. O relacionamento não andou rápido, mas ríamos bastante juntos e nos divertíamos. Todos os meus amigos e minha família gostaram muito dele/ela, e estamos felizes até hoje. 13. Como essa pessoa trata você? ( 1 ) Nem sei mais. Temos dias bons de vez em quando, iguais ao início maravilhoso e perfeito. Mas em geral a pessoa me critica e me diz o que tenho que fazer, ou então me ignora. Eu estou muito sensível e me sinto enlouquecer por causa do seu comportamento que me machuca. ( 2 ) Geralmente a pessoa não me trata muito bem, mas sempre foi assim. Eu não preciso de muito afeto nem gentileza, então está tudo bem. ( 3 ) Assim como todos me tratam. Brincamos, nos divertimos e gostamos da companhia um do outro. Nós nos tratamos como adultos. ( 4 ) A pessoa se esmera em me ouvir e entender o que sinto. Sempre me respeita e se preocupa comigo, sempre pronto para conversar e melhorar sua conduta para ajudar a melhorar o nosso relacionamento. GABARITO: ( 1 ) Típico psicopata ( 2 ) Traços psicopáticos ( 3 ) Pouco provável que seja psicopata ( 4 ) Não é psicopata _______________ 1. Editora Artmed, 2013 2 POR QUE CAÍMOS NA ARMADILHA? 1. Porque acreditamos na bondade inata A grande maioria dos seres humanos acredita na bondade intrínseca existente em cada um. Insistimos em dar mais uma chance, mesmo que seja a enésima, em acreditar que no final a bondade emergirá, mesmo que essa possiblidade pareça extremamente remota. Acreditamos que todos erramos e depois acertamos, que todos temos as nossas mazelas, as nossas crueldades ocultas, a nossa sombra. Que é preciso aceitar, perdoar, ver o lado bom. Pessoas machucadas, principalmente na infância, podem desenvolver comportamentos agressivos e destrutivos; quando tratadas, com cuidados adequados e com amor, podem se recuperar e viver vidas construtivas e felizes. Mas há aqueles que não se recuperam, e que fazem o mal por terem uma visão distorcida da realidade e dos outros. É extremamente difícil conceber que existam criaturas que sintam prazer na dor do outro, que provocam sofrimento nos outros para se alimentar desse sofrimento, que tratam os outros como objetos utilitários a seu serviço e não como seres humanos que sentem. É extremamente difícil conceber que seres com todas as características aparentes de seres humanos tenham total ausência de sentimentos tipicamente humanos, como compaixão, empatia, solidariedade, responsabilidade, respeito e amor. Essas pessoas não têm problemas mentais. Não são psicóticos. Não têm uma visão distorcida da realidade. Sabem muito bem o que fazem, e agem de forma planejada e fria. Talvez a parte mais difícil de todo este trajeto seja derrubar dentro de nós a ilusão tão bem construída de que todos sejamos basicamente bons, e de que o bem sempre triunfe. Pode ser que sim, que o bem triunfe, mas à custa de estarmos atentos e sabermos reconhecer o mal onde ele habita (ou seja, reconhecer a sua existência e saber das formas que usa para se manifestar), nos afastarmos dele e não permitirmos que nos ataque e destrua. 2. Porque não sabemos que seres assim existem entre nós É difícil identificar os abusadores porque são hábeis em camuflagem, mimetismo, fingimento e engodo. Fazem-se passar por pessoas com características opostas ao que de fato são. São sedutores, enigmáticos, eloquentes; parecem sinceros, abertos, talvez espiritualizados, talvez bem- sucedidos na vida social, financeira, empresarial – dependerá de quem pretendam se aproximar. Atuam como predadores: assim que localizam e focam uma presa, tudo farão para que ela os note e aprecie. Estão nos lares, na vizinhança, nas empresas, nas instituições religiosas, na política. Aparentemente, são iguais a todos nós. Todos nós já nos deparamos com pelo menos um deles e nem desconfiamos. Sendo pessoas do convívio social, até íntimo, e sendo exímios atores, apresentam-se como amáveis, bondosos, prestativos. Há pequenos indícios, não conformes com essa imagem, que são aqui e ali relevados, de forma tênue. Pequenas excentricidades ou lapsos momentâneos, coisas tão pequenas que descartamos. Pensamos que talvez seja a nossa imaginação. Se os confrontamos, dizem que entendemos errado. E nós nos apegamos à imagem positiva, dificilmente desconfiando de uma oposta e negativa. Como você poderia admitir que aquele filho seu, que causa tanto distúrbio na família, na escola, entre seus amigos, desde que nasceu, seja um deles? Sim, a realidade pode ser assim brutal. Você até sabe disso, porque talvez esteja bem dentro dela, mas a arte de prestidigitador é dominada pelo abusador, até de forma inconsciente, e ele tudo fará para que você se revolte e descarte, de imediato, a possibilidade. No entanto, há uma tecla dentro de você que continuará tocando, e um dia você prestará atenção a ela. EU NÃO ESCOLHI ME CASAR COM UM NARCISISTA – Joanna Moore, sobrevivente de abusador2 Quem sofreu abuso de narcisistas ouve todo tipo de comentários ridículos e cruéis das pessoas que não têm noção alguma. Já me disseram que sou culpada por ter sofrido abuso porque eu me casei com um narcopata, que é pior eu falar sobre o abuso do que ele abusar de mim, que fui eu que escolhi, portanto, devo enfrentar as consequências. Ora... e ele, não deveria se emendar? Eu só quero dizer que os acusadores de vítimas devem ter alguma coisa errada na cabeça. Acho que muitos de nós já se depararam com aquele bully julgador que diz: “bem, você não deveria ter se casado com ele” ou “foi você quem quis se casar com ele”, ou algum outro comentário que basicamente culpa você por ter se envolvido sem saber como com o abusador. Sim, tecnicamente nós de fato escolhemos o abusador, mas não foi uma escolha baseada em informação! Se eu tivesse recebido qualquer dicade como narcisistas e psicopatas funcionam, sem hesitar correria para o lado oposto. Se eu soubesse de toda a informação e a história toda, eu teria sido capaz de fazer uma escolha melhor. Os moralistas donos da verdade que se apresentam como se “eles” jamais tivessem errado em suas escolhas, adoram nos tratar como se fossemos idiotas que voluntariamente tomaram a má decisão de se relacionar com psicopatas. 3. Porque preferimos e escolhemos acreditar e confiar Por não terem sentimentos humanos nobres, e por fingirem tê-los, os abusadores lhe dirão exatamente o que você quer ouvir. Assim, ganham a sua confiança e o seu apreço. Exploram em favor de si mesmos a tendência instintiva que temos de confiar uns nos outros, confiança esta que, desde os primórdios da humanidade, garantiu a nossa sobrevivência, proporcionando a nossos antepassados segurança e proteção mútua. A sua primeira reação ao se conectar com uma pessoa é se abrir para o que ela lhe traz. Um clima amigável de troca de palavras, de impressões, de informações. A menos que a pessoa tenha uma aparência que lhe pareça duvidosa ou desagradável, você lhe dá o seu voto de confiança de antemão. Depois disso, só algo evidentemente não merecedor de confiança que a pessoa demonstre remove esse voto de confiança. Essa reação quase instintiva nos protegeu durante milênios contra os predadores comuns. Ao nos agruparmos, tornávamo-nos menos vulneráveis. Colocando-nos costas contra costas, apoiando-nos uns nos outros, aprendemos a nos proteger mutuamente, multiplicando a visão ao nosso redor, quase atingindo o ideal de 360 graus. Aprendemos a acreditar no que os outros dizem, a não ser quando detectamos algum indício de que aquilo possa não ser verdade. Sobretudo quando são declarações de afeto e de amor. Entendemos que, quando a pessoa diz “Eu gosto de você” ou “Eu te amo”, ela o diz de coração. Custa- nos desconfiar de que essas frases possam ser ditas para manipular, enganar e explorar alguém. Se alguém próximo a nós nos diz que vai fazer alguma coisa, acreditamos, enquanto não se provar o contrário. Se alguém do nosso convívio íntimo nos diz que vai devolver o dinheiro que estamos lhe emprestando, confiamos e emprestamos, até que esse alguém prove não ser digno da nossa confiança. Por meio da confiança estabelecemos a compreensão mútua. A confiança nos faz abrir o coração para o outro, revelar nossos segredos mais íntimos, nossos medos, nossas dores e nossos pontos vulneráveis. A confiança proporciona ao outro fazer o mesmo. É uma via de mão dupla. Mas para os abusadores, a nossa prestatividade é uma mesa de banquete, e não uma comemoração colaborativa. Esta não é uma via de mão dupla, mas um processo de alimentar-se através do sugar e do utilizar os recursos e as forças de outro. Com um abusador, você dá, e não recebe nada. Quando pensa receber, está apenas sendo ludibriado e levado a dar um pouco mais. Não tem fim, e nem solução. Os predadores dos seres humanos costumam ser identificáveis, primeiro, porque pertencem a outra espécie. São leões, animais selvagens, animais irracionais, de quem nos protegemos instintivamente e que não identificamos como seres com quem possamos inaugurar uma relação de trocas e confiança íntimas. Jamais você suspeita que um ser humano ao seu lado possa ser um predador. Quando isso acontece, seus instintos já não o protegem. É preciso algo mais. Esse algo mais chama-se conhecimento e consciência. Este livro oferece-lhe o conhecimento, os dados. A consciência é você quem adquire, relacionando fatos e dados, percebendo a ligação entre as coisas, criando um novo você. Esse novo você perde a ingenuidade e ganha sabedoria: é nisso que o conhecimento se transforma quando iluminado pela luz da consciência pessoal. 4. Porque o afeto funciona como uma cola O hormônio ocitocina, também chamado de “cola do afeto” ou “hormônio do amor”, é secretado pelo hipotálamo e armazenado na hipófise. É produzido sempre que você cria uma situação de vínculo com outro ser humano, seja num abraço, num sorriso ou num contato mais íntimo, como o sexual. Existem estudos3 que referem que abusadores não secretam ocitocina, por excesso de testosterona em seu organismo, o que exacerba a competição, a agressividade e o egocentrismo. A ocitocina tem a sua máxima produção durante o parto. No processo de dar à luz, a mãe o secreta e envolve seu bebê, criando um vínculo indelével com sua cria. É um recurso sábio da natureza, garantindo a sobrevivência do bebê e proporcionando bem-estar instintivo tanto a ele quanto à mãe. A ocitocina age como um anestésico da psique, provoca o primeiro grande esquecimento, protegendo-nos das lembranças agoniantes do parto4. A vivência de algo de intensidade semelhante é o encontro amoroso sexual. A cada novo encontro, o vínculo que se estabelece é reforçado; mais ocitocina é produzida, podendo criar uma espécie de dependência química da fonte identificada dessa produção, ou seja, o parceiro amoroso. Quando você é privado dessa fonte, sofre todas as dores da abstinência, abstinência química, abstinência orgânica, abstinência na sua carne e, consequentemente, abstinência psíquica emocional. Você tenderá a fazer tudo ao seu alcance para evitar a falta da fonte do seu prazer. Quando essa falta é hábil e sutilmente manipulada, fabricada e intencionalmente provocada, as dores podem ser atrozes, quase enlouquecendo a pessoa. 5. Porque temos a imagem hollywoodiana do serial killer Outra armadilha à nossa espreita é a imagem hollywoodiana, distorcida, sensacionalista e fantasiosa do serial killer, divulgada também nas notícias de crimes hediondos. A imagem do assassino com expressão de monstro cruel, sanguinário, empunhando uma faca ensanguentada numa cena de filme de terror, está muito, mas muito longe mesmo, do predador que anda entre nós. Mesmo esse predador das telas, quando está no processo de caça de sua vítima, mostra-se belo, sedutor, confiável – e só por isso consegue atraí-la para a armadilha. A imagem monstruosa pode povoar os seus mais terríveis pesadelos, mas raramente você a encontra na rua. Apenas um pequeno grupo dessas criaturas se assemelha ao famoso Dr. Lecter, interpretado no cinema por Anthony Hopkins em “O silêncio dos inocentes” (1991), e pratica crimes hediondos. Alguns são apanhados e presos, outros conseguem camuflar tão bem seus crimes que continuam soltos por aí, incólumes e reincidentes. A maioria dos abusadores nunca é apanhada. Não tira vidas, mas mata. Mata sonhos, mata a saúde física e psíquica, mata carreiras, mata famílias, mata amizades e mata finanças. Por onde passa, deixa um rastro de destruição, parecendo que o responsável pela destruição é, infalivelmente, o outro. Por ser fraco, ingênuo, inconsciente, carente ou simplesmente doido. Como os abusadores não são atrapalhados por emoções e sentimentos como vergonha, culpa, medo, constrangimento, compaixão, remorso, arrependimento, respeito ou responsabilidade, e como as pessoas não os identificam como tais, continuam espalhando sofrimento, dor e confusão à sua volta, sem impedimentos. 6. Porque charme e sedução são usadas como ferramentas predatórias O charme, a sedução e a beleza atraem. Não costumamos pensar ou sentir que essas características sejam camuflagens. Talvez você nunca descubra, ou talvez descubra apenas quando tudo já estiver perdido, e o abusador não precise mais de disfarces, que todos aqueles belos sentimentos nada mais eram do que artimanhas para se aproximar de você e deixar a sua pessoa ao seu dispor. Há uma forma abusiva de prazer que é o deleite com o sofrimento alheio. Não existem criaturas dessa espécie que sejam desagradáveis, porque seria contraproducente às suas intenções. Ninguém desagradável tem chance alguma de atrair os outros, e quem precisa dos outros para se alimentar sabe disso. Charme e sedução são armas infalíveis e a maioria de nós é presa mais ou menos fácil. Você é atraído pelo que lhe parece belo, íntegro, agradável, amoroso. É uma tendência natural, intrínseca da almahumana. A alma humana se alimenta do belo, do bom e do verdadeiro, e quando acessada da maneira correta não pensará, nunca, que o que vê possa ser fabricação e não realidade. ERRADO! Estou farta de ser verbalmente agredida com esta ideia de que eu “escolhi” o abuso. Existe uma enorme diferença entre escolher algo que você sabe que é errado – como roubar de uma loja, mentir, cortar os pneus do outro – e fazer uma inocente escolha ruim quando você não sabe que está fazendo algo errado. Um narcisista parece ser maravilhoso, divertido, interessante, honesto, responsável e tantas outras coisas boas. Um psicopata então encena melhor ainda. O que uma boa garota deve pensar quando o Príncipe Encantado está fazendo espetáculo para ela? Se ela nunca teve experiência com um psicopata, jamais perceberá o que está acontecendo. Mesmo que já tenhamos passado pela experiência de relação com um típico abusador, o psicopata pode nos enganar, porque ele sabe muito mais e melhor quais são as coisas certas a dizer. Um abusador psicopata costuma procurar vítimas anteriores para que elas tenham pena dele. O psicopata fingirá ser uma vítima para obter a confiança de uma pessoa vulnerável. Depois de eu me divorciar um narcisista controlador fingido, pensei que seria mais esperta da próxima vez. Em vez disso, encontrei um psicopata altamente inteligente, que usou o fato de eu haver sofrido abuso para me espelhar. É fato que as pessoas que sofreram abuso uma vez são mais propensas a sofrer abuso de novo. Quanto mais você sofreu abuso, maiores são suas chances de re-vitimização. Não porque você esteja tentando propositadamente sofrer abuso, mas porque os abusadores, especialmente os psicopatas, sabem como localizar você na multidão. Eles conhecem a linguagem corporal, reconhecem quando alguém baixa a guarda, reconhecem uma pessoa faminta por amor, e reconhecem quem desistiu. Também porque aprendemos padrões e não conseguimos sair deles, porque muitas vezes não temos ideia de que os relacionamentos não devem ser sofridos e controladores, e não sabemos reconhecer ao abuso mesmo sabendo que há algo errado. Como é que uma pessoa pode saber algo se não sabe?! As pessoas passam por vários ciclos de abuso até que percebem que estão repetindo um padrão ou que isso não é normal. Isso acontece principalmente com pessoas que sofreram abuso quando crianças. Relevamos mau comportamento porque estamos acostumados com ele e não vemos nada melhor. Alguém que se envolve com um abusador uma vez não espera sofrer abuso. Alguém que se envolve com vários abusadores não está procurando sofrer abuso. Não é assim que funciona. A psicologia por trás de ciclos repetitivos de abuso é bem mais complexa do que apenas culpar ignorantemente a vítima por escolhas sem conhecimento. Francamente, a qualquer um que diz à vítima de abuso narcisista que ela é responsável por escolher o abusador falta empatia e noção! 7. Porque imaginamos poder encontrar a nossa alma gêmea Quando você encontra pessoas que espelham o que há de mais nobre e puro dentro de você, seus sonhos e seus ideais, você se irmana com elas. Estar juntos em tudo fortalece a sintonia e oferece a possiblidade de realização. É um eco do paraíso perdido que todo ser humano leva no mais recôndito de sua alma, paraíso de quando tudo estava protegido e seguro, e a fonte de alimento estava garantida. Tudo com o que você sempre sonhou na vida de repente encontra-se nessa determinada pessoa. Nas conversas, você não para de descobrir pontos em comum. Você nem acredita que seja verdade. Será que existe alguém que não tenha sonhado com isso? Mesmo que amargamente acredite que seja um sonho impossível? Que esteja convencido em seu pessimismo de que tal coisa não existe? O que acontece quando esse sonho se materializa diante dos seus olhos? É tão estonteante que, no mínimo, você se percebe abalado em suas bases. Sua capacidade crítica se anuvia por algum tempo, e você não tem nenhuma condição de perceber que tudo isso possa ser teatro. Seu senso crítico se encontra desligado, e parece não haver nenhum sinal de perigo à mostra. 8. Porque sempre damos mais uma chance Mesmo quando você desconfia de que algo esteja muito errado, e chegue até a constatar esse algo errado, releva, na atitude tolerante do “dar mais uma chance”. É isso que aprendemos a fazer. A dar mais uma chance, a sermos compreensivos e condescendentes com o outro, como gostaríamos que fossem conosco. Você percebe como é difícil se livrar desse aprendizado? Aprender a estar aberto ao outro sem, no entanto, ficar à mercê dele? O equilíbrio e o lugar de segurança são estados difíceis e muito suscetíveis de alcançar. Como escreve Dr. Hare, “todos, inclusive os especialistas no assunto, podem ser envolvidos, manipulados, enganados e abandonados por eles de modo surpreendente. Um hábil psicopata é capaz de tocar uma sinfonia nas cordas do coração de qualquer um”. Você quer acreditar que todos têm direito e podem se redimir, inclusive você mesmo. Uma pessoa consciente conhece o seu lado sombra, ou pelo menos sabe que ele existe. O problema é que você esquece (ou ignora) que existem exceções. Você se coloca no lugar do outro e acha que você gostaria de ter mais uma chance. Então você a dá ao outro, porque você é sensível e bondoso; porque não concebe que alguém possa usar contra você sua compaixão, sua solidariedade e principalmente o seu amor. Que alguém possa usar contra você a sua disposição em acreditar, em confiar, em se doar. O mais difícil é quando essa pessoa é seu filho. É muito difícil você não acreditar que, com muito amor, compreensão e sabedoria, vai conseguir educá-lo. UM PSICOPATA EM MINHA VIDA Tinha acabado de deixar a empresa onde trabalhava com meu marido. Empresa que montamos juntos e que finalmente começava a dar frutos. Minha saída foi dolorosa, por conta de intrigas de um sócio. Meu marido ficara ao lado do sócio e diante disso decidi deixar a empresa. Estava frágil e frustrada e em meio a isso saí em busca de fazer inúmeros cursos para ocupar todo aquele vazio causado pela minha saída da empresa e da sensação de desproteção, causada pela atitude de meu marido. Aquele foi o início do fim de meu casamento. Nessa busca desenfreada, me matriculei numa escola de música perto de casa, onde eu faria aulas de violão com o psicopata em questão. Fazendo aulas toda semana, acabamos ficando amigos, muito próximos. Ele me ouvia com atenção, me dava força, se mostrava sensível, compreensivo, disponível, o amigo perfeito. Eu, do outro lado, deprimida, frágil, tentando aceitar e digerir que o meu casamento havia acabado. Eu era a presa perfeita. Num determinado dia R., como vou me referir a ele aqui, me disse que o dono da escola a estava vendendo, perguntando se eu não estaria interessada. Considerando que eu estava naquela busca de me encontrar profissionalmente, vi naquilo uma oportunidade. Considerando que R. era músico, chamei-o para ser meu sócio. À época, meu pai me emprestou o dinheiro necessário. Obviamente que R. não entrou com nenhum valor na sociedade. O combinado é que ele iria me pagando aos poucos, com suas retiradas mensais, fato que, claro, nunca aconteceu. Nesse interim, me separei e logo comecei a namorar com R. Estava perdidamente apaixonada, iludida, mas achei que ele seria meu porto seguro para superar o luto da separação. Na sociedade, logo percebi que ele era mau caráter, já que eu carregava a escola nas costas. A escola dava prejuízo e acabamos tendo que aceitar um empréstimo para conseguir pagar as contas. R. gastava mais do que tinha que receber, passava o cartão de crédito da escola nas suas saídas na noite e todos os meses ficava devendo dinheiro pra empresa. Além disso, o dinheiro que ele ganhava gastava tudo com bebida e, assim, eu pagava tudo de nós dois. A escola estava indo para o buraco. Eu quebrava a cabeça para tentar sair daquilo, mas com esse psicopata jamais daria certo. As pessoas que conviviam comigo viam o que estava acontecendo e me avisavam para eu retirá-lo da sociedade,que ele estava afundando a empresa, mas eu não dava ouvidos. Em meio a tudo isso, engravidei desse crápula. Vivia de pensão de ex marido e a empresa só dava prejuízos. Resolvi tudo sozinha. Procurei a clínica, consegui o dinheiro para o aborto, e ele simplesmente dizendo que não teria para quem pedir. Em 2012 me rendi. Decidimos fechar a escola. A empresa foi fechada e hoje devemos dinheiro ao banco, ao meu pai, ao meu irmão e a minha irmã (que foi quem emprestou o dinheiro para o aborto). Eu ainda não o via como um psicopata, mas já percebia o quanto ele era vagabundo, folgado, mau caráter, espaçoso e egoísta. O namoro ia de mal a pior. Ele praticamente morava em minha casa, me sugava de todas as maneiras possíveis – emocional, financeira e energicamente – não contribuía com absolutamente nada. Tinha na minha casa o aconchego familiar que ele dizia que nunca havia tido, eu lhe proporcionava tudo. E tudo saía de mim. Conquistou a mim e às minhas filhas, mas também as frustrou inúmeras vezes. Eu descontava na comida toda a minha insatisfação, engordava a olhos vistos, não tinha energia, estava sempre triste. No meio do caminho cobrava dele a procura de um trabalho. Com 41 anos, morando com a mãe, vivendo numa total dependência dela e de mim, era o mínimo. Isso sem contar o alcoolismo. Ele bebia muito, muito mesmo. Na parte sexual, só se excitava me maltratando. Enquanto fazíamos sexo me chamava de puta, de vagabunda, eu via a raiva em seus olhos; com o tempo, começou a me machucar fisicamente. Puxava meu cabelo, me dava tapas, mas se empolgava e acabava me machucando de verdade. Muitas vezes, durante o sexo, via o verdadeiro R. Ali, toda a raiva em seus olhos enquanto me xingava e machucava. Muitas vezes tinha que mandá-lo parar e me parece que demorava a voltar a si. Afinal, deve ser muito difícil ser o que não se é. E tanto na hora do sexo, como quando ficava muito bêbado, essa agressividade que ele disfarçava ao máximo vinha à tona. Era quando ele estava bêbado que deixava o inconsciente vir à tona. Ficava extremamente agressivo, me torturava psicologicamente, me humilhava, mas eu achava que não dava conta de ficar sozinha, embora eu já estivesse. Apesar de tudo isso, ele me ganhava sempre, eu perdoava tudo mediante um “eu te amo” ou um “você é a mulher da minha vida”. Eu não percebia, mas ele me isolou da minha família (com quem eu brigava com frequência enquanto estive com ele), de meus amigos – não havia um amigo ou amiga de quem ele gostasse. Falava mal de todos e não ia comigo a nenhum evento social que envolvesse meus amigos. Com o tempo, eu não tinha mais vida social, estava distante de minha família e não tinha mais amigos. Em 2014 fiz uma delicada cirurgia de coluna. Como sabemos coluna é o eixo: eu havia perdido o eixo. Na minha recuperação da cirurgia só pude contar com meus pais. Apesar de todas as brigas que eu havia criado com eles, cuidaram de mim impecavelmente. Claro que não pude contar com R. para nada, muito pelo contrário. Quando ia me visitar, além de tudo o que ele tirava de mim, tirava também a minha paz. Naquele último semestre de 2014 percebi o quanto esse relacionamento era nocivo. A cirurgia me sacudiu para eu perceber muitas coisas. Nesses anos que passaram, eu sempre falava precisamos pagar o banco, você tem que trabalhar, essa vida que você leva de acordar à uma da tarde não vai te levar a nada, eu nunca tive o nome sujo... e ele respondia “eu nunca vou pagar o banco, pra mim não muda nada ter o nome sujo”. Percebendo o quanto esse relacionamento era nocivo, fui deixando de dar a atenção que ele sempre recebeu de mim. Já não tinha vontade de vê-lo, a presença dele me incomodava. Os maus tratos, a tortura, eu não suportava mais. Mas ele percebeu que estava me perdendo e conseguia me enrolar. No fim de 2014 propus um relacionamento aberto, alegando que não funcionávamos como namorados e ele fez um belo discurso do quanto me amava e que jamais aceitaria que eu me envolvesse com outros homens. Mas pelas minhas costas já estava envolvido com outra pessoa e eu não sabia. Brigamos em dezembro de 2014 (briga causada por ele) e ficamos um mês sem nos falar. Nesse meio tempo eu soube que ele estava namorando. Procurei-o para oficializar o término, já que para mim aquela situação não estava resolvida. Essa é a diferença de quem tem caráter e quem não tem. Nos encontramos, conversamos e, na minha cabeça, tudo estava resolvido, Aquilo pra mim foi um adeus. Mas ele começou a me procurar todos os dias. Dizia que me amava, que tinha saudades e desse jeito ficamos “juntos” por 2 meses, enquanto ele traía a namorada comigo. Não se resolvia. Ia a minha casa todos os dias, transávamos, e logo após ele começava a tortura. Fui chamada de burra, gorda, louca e ele ainda ficava dizendo o quanto a namorada dele era melhor que eu. Ele me fez acreditar que voltaríamos e eu, carente como sou, aguentava tudo aquilo, acreditando que iríamos reatar. Ele tinha todo o poder nas mãos, sabia de todos os meus conteúdos, eu estava frágil, carente, me sentia incapaz de ficar sozinha. Depois de dois meses de maus tratos terríveis, disse a ele que não queria mais aquilo e que estava tirando meu time de campo. Decidi então enviar uma mensagem à namorada dele, informando da traição, tentando dizer quem ele era, mas ele conseguiu reverter a situação e eu saí de louca da história. Para os amigos dele, eu já era a louca há tempos, pois ele já fazia essa campanha desde o namoro. Entrei em depressão, sentia-me morta. Não tinha vontade de fazer nada, chorava o tempo todo, desejei morrer. Quis me vingar várias vezes, fiquei obsessiva e paranoica, tracei planos de retaliação na minha cabeça. Estava totalmente desequilibrada. E pensava no quanto amei esse homem mau, o quanto cuidei desse homem mau. Coloquei esse crápula na vida das minhas filhas. E nunca, nunca tive a contrapartida de tudo o que dava. O que eu tinha eram maus tratos. Isso me consumia, toda essa raiva, toda essa mágoa. E ainda pensava que, apesar de tudo o que ele me fez – ele estava lá, feliz, namorando de novo. Em julho de 2015, por orientação do meu terapeuta, finalmente procurei um psiquiatra e assim comecei o antidepressivo. Em alguns poucos meses eu estava com 16 quilos a menos, me sentindo mais bonita, comecei a estagiar na psicanálise e me reencontrei novamente. Voltava a sentir alegria em viver, encontrei-me na psicanálise e desde então minha vida caminha para a frente. De vez em quando a ferida se abre novamente, sangra – acredito que, neste momento, seja porque está fazendo um ano que tudo terminou. Ele ainda me vem à mente, tento me controlar, tento não pensar, tento me curar de toda essa raiva e desse espírito de vingança. Sim, eu desejo o mal a ele, não posso negar. Ainda não cheguei nesse grau de evolução. Quero sim que ele sofra, que pague tudo o que me fez e às minhas filhas também. Mas sei também que tudo isso é só uma questão de tempo. Que o tempo cura tudo. Que o tempo se encarrega de fechar as feridas, de permitir o auto perdão, de sanar as mágoas e de curar. 9. Porque aprendemos a confundir perdoar o outro e justificar seus erros Ainda que tenhamos sido ensinados a sempre perdoar o outro e amar nossos inimigos, perdoar não é nunca justificar o erro. Perdoar não é deixar o abusador continuar seus abusos. Perdoar não é aceitar aquele que finge arrependimento, que vai se emendar, se corrigir, mudar – mas continua suas crueldades, porque é essa a sua natureza. Perdoar também não é permitir que o mal continue agindo. Perdoar é você se soltar do apego ao abusador. Tenha certeza de que é tão difícil escrever quanto ler essa frase. Talvez porque pareça uma incongruência, talvez uma fraqueza. Como podemos nos apegar a algo que nos machuca, que nos ofende, que nos usa, que nos inutiliza? Esse apego pode ser feito de ódio, de vingança, de mágoa. Não nos apegamos apenas ao que nos é agradável e positivo em nossas vidas. Nossos mecanismos internos nos levam por caminhos inimagináveis e, com a ajuda deum abusador inteligente, podemos ser levados a nos apegarmos a sentimentos que sequer reconhecemos como sendo nossos. A eles também precisamos nos desapegar. Perdoar é amar. Em primeiro lugar a si mesmo. Inclusive para ter capacidade de amar o abusador. Esta frase o surpreendeu? Como assim amar o abusador? Ao final de todo o doloroso processo de sair de um relacionamento tóxico e abusivo, o lugar de chegada é o amor, inclusive pela fonte do seu sofrimento. O verdadeiro amor dá ao outro aquilo de que o outro precisa, e o que o abusador precisa é de oportunidades para perceber que pratica o mal. O amor verdadeiro é exigente. Não admite crueldade. Se o abusador não se emenda, porque não tem cérebro ou alma para tanto, amar o abusador é conter a sua maldade. É praticar a justiça e deixar que o abusador sofra as consequências de seus atos para assim, quem sabe, enxergar-se e adquirir consciência moral. É preciso, também, amar as vítimas. As vítimas passadas, presentes e futuras. Amar, aqui, assume seu lado de não omissão, porque a omissão fará você praticar a injustiça e a falta de compaixão para com as vítimas. Ainda que a sua boca nada diga, é preciso saber que aqueles de quem o abusador se aproxima são, no mínimo, suas vítimas potenciais, e é preciso estar aberto e disponível para ajudá-las, se for necessário e possível, e sem que isso signifique retomar seu próprio pesadelo. 10. Porque o outro ocupa uma posição de poder A grande maioria das pessoas cai em armadilhas porque quem assumiu o serviço de cuidar de nós, ou ocupa posições de autoridade, como pais, terapeutas, médicos, psicólogos, advogados, aconselhadores, professores, políticos, chefes nas empresas, guias religiosos, juízes – não sabe o que é isso ou, o que é mais assustador, é ele próprio o abusador, portador de um transtorno de personalidade. Você se encontra numa posição de submissão à autoridade a eles conferida. O abusador procura posições de poder porque é assim a sua natureza, o desejo de controle do outro. E a tendência é se aproveitar de todas as oportunidades possíveis. 11. Porque faltam divulgação e conhecimento compartilhado Em primeiro lugar, é preciso saber. É preciso divulgar a informação. É preciso educar o público para essa realidade assim como se educa em princípios básicos de higiene para evitar doenças e epidemias, como se educam princípios básicos de convivência em sociedade para evitar arruaças e caos. A disseminação e a devastação dos abusadores em nosso mundo equivalem a uma epidemia que urge conter. Basta olhar à sua volta e perceber a quantidade de situações que entendemos como “normais”, que aceitamos sem nada dizer ou fazer, e que estão dentro do quadro de transtornos de personalidade definidos como psicopatias ou sociopatias. Precisamos perder o medo às palavras e chamar as coisas pelo nome que têm. Amor que faz sofrer e que agride não é amor. Para não cair nas armadilhas tecidas, é preciso saber como identificar, isolar e se proteger desses abusadores. E, se já se encontra numa situação de abuso, é preciso aprender a sair da forma mais inteira possível. É muito fácil cair no equívoco de chamar de psicopata um ex que lhe causou muito sofrimento. Por raiva e indignação, você pode chamar de psicopata um chefe que invalidou você, ou um colega de trabalho que lhe passou a perna. É preciso distinguir quem é quem para saber como lidar com esse problema. Embora todos os psicopatas sejam abusadores emocionais, nem todos os abusadores emocionais são psicopatas. Eu não sabia o que era um psicopata Há cerca de três anos vim morar nesta cidade pequena, a mais ou menos 100 km de onde sempre morei e onde ficou minha família. Havia terminado recentemente um relacionamento desastroso de quatro anos. Enfim, decidi aqui recomeçar pela primeira vez na vida. Cidade pequena, turística, que trabalha três meses ao ano no verão. Vim em plena temporada, sozinha. Deixei as meninas (tenho duas filhas, 10 e 14 anos) na casa de parentes. Conheci melhor a cidade, as pequenas empresas, busquei oportunidades. Entre as pessoas que conheci estava Adriano (usarei esse nome como codinome, para não citar o verdadeiro nome), um jovem de 23 anos que trabalhava de dia e tomava todas de noite. Todo mundo passava a perna nele, era destratado por todo canto, mas era um guri bom, de bom coração, planejava morar três meses numa barraca. Assim que acabou a temporada, não o vi mais. No ano seguinte eu já estava estabelecida na cidade. Com emprego bem definido, casa, as meninas morando junto. Preparavam-se para passar as férias de novo com parentes, pois o desafio aquele ano era trabalhar 12 horas sem intervalos. Adriano então entra em contato comigo, pedindo para receber seu irmão de 33 anos, o Júnior (nome fictício também), minha idade à época. Concordei. Seis horas depois que falou comigo, Junior chegou. Me apaixonei no ato. Alto, magro, charmoso, jeito mineirinho de ser. No decorrer dos dias, via-o poucas horas por dia, na hora de dormir, se ele estivesse acordado, e às vezes quando ele passava no meu trabalho. Sempre muito gentil. Sempre levando alguma coisa para comer, pedindo desculpas o tempo todo. Logo arranjou um lugar para trabalhar e morar, e foi embora. Em menos de uma semana estava de volta. Pediu ajuda para encontrar outro trabalho e passou praticamente a temporada toda morando comigo, desempregado. Fez amizade com meu irmão, que então morava comigo, e andavam juntos por todo lado. Eu sentia que ele era diferente. Nunca queria falar sobre a vida dele, e por isso eu não sabia nada. Sabia muito mais do irmão dele do que dele. Assim que as meninas voltaram das férias ele foi morar perto de um trabalho que tinha arranjado. Sempre nos falávamos, sei o que é estar sozinho em uma cidade longe dos parentes e sabia que ele se isolava. Ele sempre me dizia que gostava de estar sozinho, mas sempre que eu ligava estava com algum amigo, em pescarias ou caminhadas. Não dei importância à contradição. Um dia ele me ligou, dizendo que as dores que ele vinha sentido haviam se agravado e já não conseguia levantar da cama. Quando cheguei a seu apartamento, estava um caos meio arrumado, uma bíblia em cima da cama. Levei-o por 70 km até um hospital que ficava perto da casa de minha família, o melhor hospital que conhecia para aquele problema. O excesso de álcool sobrecarregara fígado e rins, teria que ficar uns dias de repouso. Fiquei preocupada com ele e previa que o demitiriam. Assim, novamente ofereci abrigo, e assim ele veio morar comigo de novo. Pessoa prestativa, sempre organizada, surgindo algo para consertar ele dava um jeito antes de eu chegar. Detestava incomodar, estava sempre procurando um emprego, ia a outras cidades próximas porque dizia que era onde havia melhores oportunidades. Quando começou a trabalhar, numa loja de artigos náuticos, chegava mais tarde e geralmente bêbado. Havia feito grande amizade com seu chefe e ia para o bar depois do trabalho com muita frequência. Mas era meu amigo, era meu irmão, meu sonho de marido. Sempre pedia desculpas por se deitar de roupas molhadas e sapatos sujos na cama limpa e pronta. Assim que começou o verão deixou de ir trabalhar, o que já imaginei que aconteceria. E eu então entrei na função do trabalho da temporada, as meninas foram de novo para casa de meus parentes e junto foi meu irmão também. Foi quando nos aproximamos. Achei muito estranho ele me dar oportunidade, sempre o considerei inalcançável para uma mãe solteira, sem formação superior, ex- garota de programa, atendente de balcão. Ele um solteiro charmoso, formado em Administração, filho de casal da alta sociedade de Minas Gerais. Achei um presente de Deus, resisti um pouco porque me parecia muito bom para ser verdade mas em pouco tempo estávamos dormindo na mesma cama. Ele me via trabalhar o tempo todo, e aos poucos foi oferecendo boas sugestões, que me resolviam muitos problemas. Todo dia ele se metia um pouco mais nos negócios. Em menos de um mês, controlava o caixa da minha empresa e minhas despesas pessoais. Não podiagastar o dinheiro em qualquer coisa e tudo que comprasse precisava apresentar nota. Não achei ruim, o dinheiro estava rendendo, mas todo na mão dele. Ele o contava diariamente. Eu não comprava nem um picolé. Um dia ele olhou pra mim e disse: “Você está precisando de roupas novas, venha, vamos comprar roupas mais decentes.” E me levou para comprar shorts que eu não queria, e depois me pediu desculpas por ter me obrigado. Eu raramente o contrariava, era assim desde sempre, era só ele pedir que eu fazia o impossível. Às vezes eu precisava pegar material em outra cidade e ele se oferecia pra ir no meu lugar, então ele dizia: “Fico muito tempo fora cada vez que precisamos buscar os materiais, precisamos de um carro ou moto”. As crises de ciúmes aumentaram. Eram em público, no meu trabalho, na rua, em casa. Aí ele me disse “precisamos comprar uma moto”, escolhemos pela internet e ele foi em outra cidade buscar. Agora tínhamos como nos deslocar. Enquanto eu trabalhava, ele ficava andando pra cima e pra baixo de moto na rua o tempo todo. De dia, de noite e de madrugada. Um dia ele me sugeriu que depositasse um pouco do dinheiro que tínhamos em caixa no banco, dizia que quando necessitássemos empréstimo o banco emprestaria. Me agradou a ideia de tê-lo no banco, mesmo sem saber quanto tínhamos. Lembro falarmos sobre uma procuração em que ele pudesse me representar para movimentar a conta. Uma vez minha filha de 14 anos encontrou o caixa e resolveu brincar de contar dinheiro, ela me disse que naquela ocasião tinha seis mil reais, provavelmente tinha outro lugar com mais dinheiro. De novo não dei importância. Era idôneo demais para eu pensar qualquer coisa. Falávamos sobre filhos, sobre o que as meninas seriam quando crescessem, sobre o aparelho ortodôntico e óculos que necessitavam usar. Todo domingo fazíamos a agenda da semana. Mas ele andava estranho. A cada cinco minutos pegava a moto e sumia, deixando tudo pela metade. Até que um dia levantou a mão pra mim e me ameaçou bater porque queria que lhe dissesse se havia estado algum homem em casa. No dia seguinte agiu com violência me fazendo sentar no sofá. Então pedi que passasse alguns dias na casa de sua irmã, e ele foi. Levou o caixa e a moto também. No dia seguinte veio com o carro da irmã e levou as coisas dele embora. Foi frio. Depois de quatro dias sem me atender ou retornar minhas ligações, desisti de falar com ele. Quando ele tentou contato, resolvi não atendê-lo mais. Então ele veio pessoalmente, sem nada de dinheiro. Disse que veio só para me ajudar na empresa, para as crianças não passarem fome. Às vezes parecíamos estar bem como antes, carícias, carinho e atenção. De repente ele se tornava frio, grosseiro e impaciente. Na quinta noite estava visivelmente ríspido, me pediu que o acompanhasse em um passeio romântico, como sempre fazíamos antigamente. Durante o caminho me contou que o dinheiro que eu havia lhe dado já tinha terminado, porque precisou comprar coisas para minha filha. Quando lhe disse que não tinha nada em dinheiro, porque havia esquecido em casa, ficou visivelmente irritado, era possível ver a boca dele dizendo “Idiota!” sem voz. Paramos num bar onde ele sempre ia. Disse que ia pegar cigarro fiado e quando voltou estava exageradamente enciumado, afirmando com veemência que na sua ausência eu estava flertando com um homem qualquer que passava na rua. A certeza dele era tamanha que eu estava me sentindo uma adúltera desgovernada, e me perguntava “Meu Deus, flertei com um homem sem saber, que oferecida que sou!”, mas na verdade acho que o homem nem existia. Ele precisava que eu assumisse, admitisse e estava cada vez mais irritado. Fui ficando com medo, porque não conseguia acalmá-lo como antes. Então lhe disse algo como: “Junior, pode ser que eu tenha flertado e não tenha percebido, me perdoa!” e essa foi a única forma de cessar seu ataque. Tornou-se gélido. Foi como se vestisse uma camisa amaldiçoada que o tornasse outra pessoa, no mesmo corpo. Me ordenou que subisse na moto. Senti tanto medo daquela presença que lembro em dar as costas e caminhar no sentido de volta pra casa. Ele me segurou pelo braço e de forma tenra e me disse: “Não viemos aqui para brigar.” O amava demais pra não acreditar. Chegamos ao local romântico onde já estivéramos outras vezes. Comentamos sobre o mar, a lua e o clima, mas logo ele voltou ao assunto do homem com quem eu estava flertando. E a resposta desta vez tinha que ser SIM, porque somente assumindo o problema poderia corrigir o problema. Me arrependi de cada conversa que tivemos sobre minha infância, minhas fraquezas, dos trabalhos como garota de programa, ele sempre me perguntava em detalhes. Cheguei a sentir pena por ele amar alguém tão imperfeito como eu. Eu o rebaixei. Então o espírito o vestiu de novo. Ele me puxou pelo ombro e apertou meu pescoço com as duas mãos. Quando tentei soltar as mãos dele, apertou mais forte. Seu olhar era de estranho de prazer. Pude notar em seus dentes um leve sorriso e eu caí. Não sentia meus braços, minhas pernas, não escutava sons, o tempo congelou. Lembro que pela minha cabeça passou a ideia de que eu merecia mesmo morrer, por causar danos à moral dele. Para não ter que passar por cima de mim, me empurrou com o pé para fora da trilha. Como um objeto qualquer. Não sei quanto tempo levou, mas fui acordando aos poucos. A ponta do meu nariz formigava. Quando percebi que eu ainda estava ali, com ele, senti um pavor. Ele me segurou pelos shorts jeans com uma mão e com a outra acendeu um cigarro, sem dizer uma só palavra. Só observava atento enquanto eu me debatia, me desesperava, gritava. Não conseguia imaginar o que passava pela cabeça dele. Olhar frio. Quando ele terminou o cigarro disse: “Foi só pra te dar um susto.” Voz calma e clara como o anúncio da previsão do tempo. Sentia tanto medo que queria correr, mas ele não me soltava. Demorou até eu me acalmar, ele parecia tão compreensivo quanto a Madre Teresa de Calcutá, chegou a comentar, que se pudesse me daria um copo de água com açúcar. Ainda sinto as mãos dele no meu pescoço. Depois de muito insistir finalmente voltamos pra casa. Em casa lhe expliquei que precisava ir embora, mas que não poderia levar a moto. Então tivemos uma luta corporal pelas chaves e claro, eu perdi. E o vi ir embora. Fiquei a noite toda preocupada com ele por ter ido sem dinheiro, sem ter onde dormir. Talvez o que fez foi por amor, talvez estava sob efeito de drogas, não devia tê-lo mandado embora, tentava encontrar motivo e forma de voltar atrás. Ele não me atendia, celular desligado. Às seis e meia da manhã me enviou uma mensagem dizendo “Tive uma noite fantástica!”. Imediatamente entrei em contato com a mãe, pai, tentei falar com a irmã. Avisei a todos que ele tinha atentado contra minha vida e saído com a moto com pouca gasolina, visivelmente alterado (na verdade estava muito calmo), que estava passando uma fase de uso compulsivo da cocaína. Nesse dia, a mãe se mostrou compreensiva e prestativa, dizia que ele precisava de Deus e coisas assim. O pai me disse que ele sempre foi muito ciumento. E nunca mais ninguém falou comigo, nem o irmão Adriano. Ele ainda me procura, me envia mensagens. Sempre falando sobre negócios, às vezes dá dicas de como cuidar das minhas filhas, sempre fazendo charminho. Eu aos poucos estou me recuperando. Precariamente, porque acordo de noite achando que ele entrou em casa. Olho para o portão achando que ele vai guardar a moto. Objetos que deixou na pressa de ir. Mas principalmente penso na noite em que ele me levou no nosso cantinho. Tento não lembrar, faço terapia, mas a tristeza está impregnada em mim. Da hora que abro os olhos de manhã até a hora que fecho os olhos de noite. 12. Porque faltam profissionais habilitados e preparados para lidar com os psicopatas e suas vítimas A maioria dos terapeutas, médicos, advogados, professores e empresários desconhecem o que seja psicopatia e não sabem como reconhecer, tratar ou abordar. É urgente que profissionais que se conservaram íntegros e servem aopróximo, que lidam com abusadores e suas vítimas, saibam identificá-los, abordá-los e tratá-los adequadamente. Pioneiro no estudo da psicopatia, Hervey Cleckley, autor de A máscara da sanidade5 diz que “poucos problemas médicos ou sociais merecem tanto e exigem tão urgentemente ser endereçados”. A informação e a atenção do público é a forma de minimizar o efeito destrutivo que eles têm na vida das pessoas. Precisamos DESEMPODERAR os psicopatas EMPODERANDO a todos os outros. 13. Porque as autoridades estão despreparadas para defender as vítimas e evitar que outras sejam feitas A destruição pelo psicopata acontece em vários níveis, dos sutis aos berrantes, como é o caso de assassinatos. Embora a imensa maioria não chegue a matar, o assassinato psicológico, emocional, financeiro e relacional é real e não deixa marcas físicas. Contra ele, não há proteção legal. Vejamos um caso, entre muitos outros, em que poderia ter sido evitado um assassinato, caso as autoridades tomassem providências aos primeiros sinais de alerta6: Basil Borutski tinha uma extensa ficha criminal desde 1977. Uma parte significativa desses registros registrava abundantes incidentes de violência doméstica, ameaças de ataque e descontrole alcoólico. Com o passar dos anos, a grande maioria dessas acusações foi dispensada e ocultada do público. Até que três mulheres – Anastasia Kuzyk, Nathalie Warmerdam e Carol Culleton – foram brutalmente assassinadas em questão de horas próximo à cidade Wilno, Ontario, em setembro de 2015. O documentário examina as falhas do sistema judiciário em proteger essas mulheres de uma ameaça conhecida. Cada uma dessas mulheres foi seduzida por Borutski em períodos vulneráveis e incertos de suas vidas, e não tinha ideia das encrencas anteriores dele com a lei. Duas delas foram selvagemente espancadas por ele, e as três tinham medo dele. Quando suas vítimas se muniram de coragem para denunciá-lo às autoridades, os tribunais pouco fizeram para penalizá-lo pelos seus crimes. A falta de efetivação dessas denúncias colocou mais mulheres em perigo, pois o empoderou a continuar no seu reinado de abuso. Essas falhas montaram o palco para uma bomba relógio que cada jogador se sentia incapaz de desativar. Os cineastas entrevistaram familiares e amigos íntimos de cada uma das vítimas, e seus testemunhos doloridos expõem um sistema que abandonou os próprios cidadãos que deveria proteger. Ficamos conhecendo também a mentalidade distorcida do próprio Borutski pela conversa telefônica que a repórter Gillian Findlay, da CBC News, teve com ele. Embora não negue ser o perpetrador desses assassinatos, condena a repórter por não entender que ele foi vítima de mulheres vingativas que se propuseram a macular seu nome. A reforma judiciária é mais do que urgente para cessar essa escalada de violência. 14. Porque temos medo de enfrentar o mal As pessoas têm medo de enfrentar o mal. Temos medo dos pesadelos e revertemos à estratégia infantil de negar o mal e fantasiar que os monstros não existem. Ou, então, projetamos o mal fora de nós, nos outros. É por isso que filmes de terror são tão apelativos e encontram tanta ressonância. Ao mesmo tempo em que temos medo, algo nos impele até à porta do cinema. Curioso, não? É preciso reconhecer o mal, tanto dentro quanto fora de nós. É preciso não fazer de conta que não existe, mesmo quando está dentro de nossa própria casa, na figura de filho, mãe, pai, irmão, cônjuge. Para a maioria de nós, é muito difícil reconhecer o mal que está dentro de nós, por isso se torna tão difícil reconhecê-lo fora. “Ah, eu sou uma boa pessoa...”, gostamos de acreditar. Somos também, mas não só. A possibilidade de eliminar a psicopatia da nossa sociedade não existe, porque não é possível eliminar o mal. Existe com o mesmo propósito que existe o escuro, o feio, o desagradável, o doloroso. Os seres humanos reconhecem as realidades pelos opostos, pelos contrastes, pelas diferenças, pois vivemos num mundo dual. A luz se torna visível porque ao lado está a sombra. É preciso que criemos em nós mais discernimento, que nos possibilite cada vez mais distinguir a luz da sombra, de forma a podermos lidar com ambas, e com seus excessos. Costumamos dar valor a algo depois que o perdemos. A manhã luminosa traz conforto depois de uma noite escura. A ação anestesiante do remédio contra a dor é um alívio, mesmo que temporário, que nos dá alento para prosseguir. Mas é preciso reconhecer onde residem a escuridão e a dor: o mal deve ser reconhecido, para podermos lidar com ele e controlá-lo. É preciso cerceá-lo, isto é, estabelecer-lhe limites, senão seremos omissos e bobos. Reconhecer o mal faz parte da aquisição da consciência. Não é possível ter consciência seletiva, a sua aquisição é parte indispensável do nosso processo de amadurecimento. A humanidade sai da infância e entra da idade adulta reconhecendo os lugares de sombra e luz, aprendendo a conviver com a dualidade dentro e fora de si mesma. Assim, também, a nossa humanidade individual. 15. Porque só vemos aquilo que estamos preparados para ver Em certo experimento, filmou-se um jogo de basquete entre um time vestido de branco e outro de preto. Pediu-se aos espectadores que contassem quantas vezes a bola era passada de um time para outro. Quase ninguém notou o grande sujeito fantasiado de gorila que aparecia no meio dos jogadores, pois todos estavam focados no desafio proposto. Esse experimento foi idealizado por Christopher Chabris e Daniel Simons, ambos PhDs em psicologia, como forma de medir e expor a nossa capacidade de atenção seletiva. Os resultados geraram o conceito de “cegueira inatencional”. Seu livro “O gorila invisível” 7 expõe o quanto a ilusão de atenção afeta a todos, de diversos modos, do corriqueiro ao risco de vida – é realmente uma ilusão cotidiana. Ela influencia tudo, dos acidentes de tráfego e painéis de aviões aos telefones celulares, na medicina e até nas performances do metrô. O experimento do gorila ficou cada vez mais conhecido e tem sido usado para explicar inúmeras falhas de atenção, das concretas às abstratas, em diversas áreas. Não se trata apenas da atenção visual; a ilusão se verifica no mesmo grau em todos os nossos sentidos e até mesmo em questões mais amplas à nossa volta. O experimento do gorila é poderoso porque força as pessoas a se confrontarem com a ilusão de atenção. Ele fornece uma excelente metáfora justamente por conta do amplo alcance da ilusão de atenção. É essa ilusão de atenção que permite aos psicopatas nos ludibriar. As pessoas não enxergam o que poderia parecer óbvio, porque o inesperado só chama a atenção quando repetido e gritante, deixando, portanto, de ser inesperado. Ninguém espera que uma pessoa que se apresenta como alguém inquestionavelmente moral, inteligente, poderoso, respeitável, amoroso, não o seja. Ninguém espera que alguém do seu círculo de amigos esteja usando uma máscara. Ninguém admite com facilidade que um membro da sua família seja um monstro disfarçado. O psicopata cria cenários maravilhosos com todas as características de cenários reais. Desvia a nossa atenção daquilo que quer ocultar, usando outro foco para se revelar. E, porque confiamos, ou nem temos ainda motivos para desconfiar, deixamo-nos levar. São comuns, em relatos de vítimas em relação com psicopatas e abusadores, frases que talvez você reconheça. É importante prestar atenção às pequenas coisas, àquilo que nos dizem e que nos deixa sem respostas, sem sabermos exatamente por que, mas sabendo que algo não se encaixa corretamente. Veja, abaixo, algumas possibilidades, recorrentes em depoimentos de sobreviventes de relacionamentos tóxicos abusivos. • Minha querida, como é que você pode desconfiar de mim? Você sabe que você é a mulher da minha vida. • Como você pode pensar isso de mim? Eu poderia abrir a janela e gritar para o mundo o quanto te amo. • Como pode pensar/dizer/insinuar isso? Logo você, que é o amor pelo qual esperei a vida toda. Nunca ninguém chegou nem perto de você. • É incrível o sexo com você.
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