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O�cina literária Aula 10: Minhas leituras II Apresentação Nesta aula, analisaremos um poema de Drummond bem como entenderemos a relação entre música e literatura a partir da leitura da letra de Que país é esse, de Renato Russo. Objetivo Praticar a leitura de poemas. Perceber a posição do leitor diante do poema. Compreender a relação entre música e literatura. Introdução Para começarmos esta nossa última, aula vamos ler o Poema de Sete Faces, de Carlos Drummond de Andrade. Poema de Sete Faces, de Carlos Drummond de Andrade. Clique no botão acima. “Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do -bigode, Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo.” (Carlos Drummond de Andrade) Após esta leitura, perguntamos: 1 Você consegue visualizar, no texto, sete faces? 2 Como é cada uma dessas faces? 3 Qual é a �sionomia apresentada? Análise de poema Esse poema abre o primeiro livro de poesia de Carlos Drummond de Andrade. Sendo assim, ele carrega marcas que vão se repetir em toda a produção literária do autor. São questões que o incomodam e o movem no processo de criação. Tem espaço, então, temas como: a vocação para ser poeta, o papel social que precisa desempenhar enquanto escritor, a di�culdade de compreender tudo aquilo que sente e a noção de família. | Fonte: Maarten Zeehandelaar / Shutterstock O Poema de Sete Faces é a expressão da subjetividade do poeta. Ele revela, ou melhor, deixa �uir a sua forma de ver o mundo que o cerca. Trata-se de uma visão um tanto quanto diferente dos demais. O olhar do poeta é um olhar diferenciado. Por isso, ele se diz gauche, isto é, diferente, desajeitado. Há um tom de desencontro entre o eu lírico e o mundo. É como se ele vivesse num ritmo ou frequência diferente de tudo que está à sua volta. No entanto, há um enorme desejo de alcançar respostas para tudo que vê. Na fala do eu lírico, há um caráter re�exivo que perpassa toda a poesia de Drummond. Você reparou que o poema é composto por sete estrofes? Pois é. Isto não é de graça. Cada estrofe corresponde a uma face da existência que o eu lírico deseja revelar. Clique nos botões para ver as informações. Na primeira face, o eu lírico fala de seu nascimento. Através de um tom meio memorialístico, o eu lírico se vê como alguém predestinado a ser poeta. O seu caminho foi traçado por um anjo. Mas, que anjo é esse? Ora, trata-se de um anjo torto. É um anjo que vive na sombra e não na luz. Isso signi�ca que o anjo não estava determinando para ele um caminho fácil, tranquilo, mas um caminho árduo, repleto de inquietações. Trata-se de um caminho que o colocaria numa condição à margem da sociedade. É colocá-lo como diferente, como esquerdo: “Vai, Carlos!, ser gauche na vida”. Além disso, se estamos falando de algo determinado por um anjo, ou seja, por alguém que faz parte de um plano superior, �ca claro que nada pode ser evitado. primeira face Na segunda face, existe a representação dos desencontros. Há um choque entre os sentimentos do eu lírico e os desejos. A inquietação borbulha no eu lírico, pois, a existência de tantos desejos, impedem a sensação de paz: “A tarde talvez fosse azul,/não houvesse tantos desejos.” Se azul é a cor da paz, a tarde não pode ser desta cor porque muitos desejos movem homens e mulheres, gerando suas inquietações. segunda face Na terceira face, o sentimento vai além da observação. O eu lírico sente o mundo ao seu redor. As inquietações não nascem da observação que faz das pernas, mas nascem do coração, da forma como sente o �uxo da vida: “Os bondes passam cheios de pernas/ Para que tanta perna, meu Deus,/ pergunta meu coração./ Porém, meus olhos não perguntam nada.” terceira face Na quarta face, o eu lírico revela a possível relação familiar. Quem é o homem de bigode? Qual é a personalidade deste homem?Há suposições de que esse homem de bigode seja a réplica literária de seu pai. A imagem construída é de seriedade, simplicidade, força: “é sério, simples e forte.” Trata-se de alguém mergulhado num mundo restrito, fechado, isto é, alguém avesso à sociabilidade: “ Quase não conversa/ Tem poucos, raros amigos”. Observe também que as suas características físicas sinalizam o tipo de relação que estabelece. Onde está posicionado este homem? Ora, atrás dos óculos e do bigode. Portanto, a imagem dos óculos e do bigode funcionam como um obstáculo para o desenvolvimento de relações. Estar atrás é como se estivesse escondido dos outros. Está numa posição de recuo. Mas, por que o pai é traduzido desse jeito pelo eu lírico? Provavelmente, isto é fruto da difícil relação que Drummond tinha com o pai. Sendo assim, ele de�ne o pai como alguém que se mantém distante, como alguém que impõe, entre eles, uma barreira para a convivência e para a comunicação: óculos e bigode. quarta face Na quinta face, o eu lírico revela um estado de angústia, ou melhor, de incapacidade diante de tantas questões. No mundo em que vive, ele não é Deus para tudo saber e tudo fazer: “se sabias que eu não era Deus/ se sabias que eu era fraco.” Há um sentimento de impossibilidade, de fraqueza sendo expresso. O eu lírico se sente de mãos atadas, sente-se abandonado por Deus e implora a sua ajuda. Ele percebe que sozinho não é possível achar respostas para todos os acontecimentos que o cerca. quinta face Na sexta face, o eu lírico extravasa a subjetividade, revelando que o coração, ou seja, que o espaço do sentimento, que o território da emoção é mais vasto que o mundo. Ele, expressa, assim, a grandiosidade do sentir. Ele mostra a importância de se ter uma sensibilidade apurada. Nesta face, também ele rea�rma a sua impossibilidade de entender o mundo. O mundo é muito vasto: “Mundo mundo vasto mundo”. Diante da grandeza, surge a impossibilidade de achar solução para tudo: “se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução.” sexta face Na sétima face, o eu lírico atribui a um certo estado de embriaguez as revelações que faz sobre si mesmo, sobre sua miséria. Além de evocar o álcool (mas esse conhaque), o eu lírico também evoca a lua nesse momento de intimidade em que fala de seu coração comovido. Assim, o poema termina num estado de comoção intensa, diga-se de passagem, “comovido como o diabo”. sétima face Depois dessas sete faces, só nos resta dizer que esta é, apenas, uma leitura deste poema. É, apenas, uma maneira, dentre tantas, de sentir o texto. Música e Literatura A música é uma forma de lirismo. Existe nela um olhar muito particular, uma forma única de sentir o mundo. Além disso, assim como a literatura, é um veículo de denúncia de grandes questões sociais. Agora vamos ler a letra da música Que país é esse?, de Renato Russo. Que país é esse? de Renato Russo Clique no botão acima. Nas favelas, no Senado Sujeira pra todo lado Ninguém respeita a Constituição Mas todos acreditam no futuro da nação Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse? No Amazonas, no Araguaia iá, iá Na Baixada Fluminense Mato Grosso, Minas Gerais E no Nordeste tudo em paz Na morte eu descanso Mas o sangue anda solto Manchando os papéis, documentos �éis Ao descanso do patrão Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse? Terceiro mundo, se for Piada no exteriorMas o Brasil vai �car rico Vamos faturar um milhão Quando vendermos todas as almas Dos nossos índios num leilão Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse? (Renato Russo) Como se vê, a música tem um tom de protesto, de grito para que determinadas questões sociais sejam observadas. Trata-se de um texto produzido numa época em que o Brasil passava por muitas crises econômicas e sociais, ansiando, por isso, por mudanças. Claro que os temas, muitas vezes, não perdem a sua atualidade. Ainda vivemos num país que passa por muitas crises. Ainda existem muitas comunidades pobres e muita ilegalidade nos diversos setores sociais. (Fonte: ArtTower por Pixabay ). (Fonte: Photo by Maurilio Quadros on Unsplash). A música nos mostra que, tanto na periferia quanto nos altos patamares do governo, o Brasil é marcado pelo desrespeito e pela ilegalidade como prática natural: “Nas favelas, no senado/ Sujeira pra todo lado/ Ninguém respeita a constituição”. A música constrói a imagem de um país onde os negócios e o enriquecimento se dão pela via da criminalidade: "Sangue anda solto/ Manchando os papéis, documentos �éis/ Ao descanso do patrão". O texto mostra ainda que as práticas sociais e econômicas são objetos de vergonha e denigrem a imagem do país: “Terceiro mundo se for/ Piada no exterior”. Dentro de um contexto de corrupção, há um tom de ironia quando se fala sobre o futuro da nação. Há um sentimento de descrença: “Mas todos acreditam no futuro da nação” ou “Mas o Brasil vai �car rico/ Vamos faturar um milhão”. Com ironia, também, são reveladas as negociatas que vendem tudo aquilo que o Brasil tem de essencial. Gera-se, inclusive, a perda da identidade: “Quando vendermos todas as almas/ Dos nossos índios num leilão”. E, o que signi�ca, então, “Que país é esse”? A repetição dessa pergunta, ao longo do texto, é o questionamento movido por um sentimento de indignação. É uma tentativa de despertar aqueles que ouvem para uma re�exão sobre tudo aquilo que se passa a sua volta. Podemos comparar o poema Que país é este?, de Affonso Romano de Sant’anna, à música de Renato Russo. A�nal de contas, todos os dois questionam o país em que vivem. Ainda que o pano de fundo seja diferente. Leitura Clique aqui para acessar o poema Que país é este?, de Affonso Romano de Sant’anna. javascript:void(0); Em Que país é esse?, de Affonso Romano, temos a imagem de um Brasil da época da ditadura militar. Trata-se de uma poesia participante. Mergulhado em sua subjetividade, o eu lírico expõe o quadro dos que foram torturados e exilados: “Sei que há outras pátrias/ um terço se exilou/ um terço se fuzilou/ um terço desesperou / houve sangue e desamor. Por isto,/ canto-o-chão mais áspero e cato-me/ ao nível da emoção. Para muitos que lutaram contra o regime militar, o país se transformou em sinônimo de dor, de ferida na alma e no corpo, literalmente, pela tortura sofrida: “Uma coisa é um país,/ outra uma cicatriz” ou “ Uma coisa é um país,/ outra esses duros per�s.” (Fonte: Reimund Bertrams por Pixabay). Há, também, um tom de saudosismo no poema. O eu lírico recupera a imagem de um passado feliz que �cou na infância. Através das brincadeiras infantis, ele resgata esse passado: “Esta é a rua em que brinquei,/ a bola de meia que chutei/ a cabra-cega que encontrei,/ o passa-anel que repassei,/ a carniça que pulei”. Dessa forma, há um contraste. O país em que viveu uma infância feliz é o mesmo país em que viu tortura, sangue e desamor. Como se vê, tudo isso são leituras. São formas de nos posicionarmos, enquanto leitores, diante dos textos. E, como cada leitura é um ato histórico novo, pode ser que, daqui mais um tempo, esses mesmos textos tenham para nós outros signi�cados, muito além dos já identi�cados! Boas leituras para você! Aula Teletransmitida em LIBRAS Assista a versão na Linguagem Brasileira de Sinais da Aulateletransmitida. Notas Referências Próxima aula Explore mais