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Dom Casmurro (92)


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imagina. Descido o cadáver à cova, trouxeram a cal e a pá; sabes disto, terás ido a mais de um 
enterro, mas o que não sabes nem pode saber nenhum dos teus amigos, leitor, ou qualquer outro 
estranho, é a crise que me tomou quando vi todos os olhos em mim, os pés quietos, as orelhas 
atentas, e, ao cabo de alguns instantes de total silêncio, um sussurro vago, algumas vozes 
interrogativas, sinais, e alguém, José Dias, que me dizia ao ouvido: 
--Então, fale. 
Era o discurso. Queriam o discurso. Tinham jus ao discurso anunciado. Maquinalmente, meti a mão 
no bolso, saquei o papel e li-o aos trambolhões, não todo, nem seguido, nem claro; a voz parecia-me 
entrar cm vez de sair, as mãos tremiam-me. Não era só a emoção nova que me fazia assim, era o 
próprio texto, as memórias do amigo, as saudades confessadas, os louvores à pessoa e aos seus 
méritos; tudo isto que eu era obrigado a dizer e dizia mal. Ao mesmo tempo, temendo que me 
adivinhassem a verdade, forcejava por escondê-la bem. Creio que poucos me ouviram, mas o gesto 
geral foi de compreensão c de aprovação. As mãos que me deram a apertar eram de solidariedade; 
alguns diziam: "Muito bonito! muito bem! magnífico!" José Dias achou que a eloqüência estivera 
na altura da piedade. Um homem, que me pareceu jornalista, pediu-me licença para levar o 
manuscrito e imprimi-lo. Só a minha grande turvação recusaria um obséquio tão simples. 
CAPÍTULO CXXV / UMA COMPARAÇÃO 
Príamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mão daquele que lhe matou o filho. Homero 
é que relata isto, e é um bom autor, não obstante contá-lo em verso, mas há narrações exatas em 
verso, e até mau verso. Compara tu a situação de Príamo com a minha; eu acabava de louvar as 
virtudes do homem que recebera, defunto, aqueles olhos... É impossível que algum Homero não 
tirasse da minha situação muito melhor efeito, ou quando menos igual. Nem digas que nos faltam 
Homeros, pela causa apontada em Camões; não, senhor, faltam-nos, é certo, mas é porque os 
Príamos procuram a sombra e o silêncio. As lágrimas, se as têm, são enxugadas atrás da porta, para 
que as caras apareçam limpas e serenas, os discursos são antes de alegria que de melancolia, e tudo 
passa como se Aquiles não matasse Heitor. 
CAPÍTULO CXXVI / CISMANDO 
Pouco depois de sair do cemitério, rasguei o discurso e deitei os pedaços pela portinhola fora, sem 
embargo dos esforços de José Dias para impedi-lo. 
--Não presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentação de dá-lo a imprimir, fica já 
destruído de uma vez. Não presta, não vale nada. 
José Dias demonstrou longamente o contrário, depois elogiou o enterro, e por último fez o 
panegírico do morto, uma grande alma, espírito ativo, coração reto, amigo, bom amigo, digno da 
esposa amantíssima que Deus lhe dera... 
Neste ponto do discurso, deixei-o falar sozinho e peguei a cismar comigo. O que cismei foi tão 
escuro e confuso que não me deixou tomar pé. No Catete mandei parar o carro, disse a José Dias 
que fosse buscar as senhoras ao Flamengo e as levasse para casa; eu iria a pé. 
-- Mas... 
--Vou fazer uma visita. 
A razão disto era acabar de cismar, e escolher uma resolução que fosse adequada ao momento. O 
carro andaria mais depressa que as pernas- estas iriam pausadas ou não, podia afrouxar o passo. 
parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabeça cismasse à vontade. Fui andando e cismando. Tinha 
já comparado o gesto de Sancha na véspera e o desespero daquele dia; eram inconciliáveis. A viúva 
era realmente amantíssima. Assim se desvaneceu de todo a ilusão da minha vaidade. Não seria o 
mesmo caso de Capitu. Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posição em que a vi, o ajuntamento de 
pessoas que devia natural mente impor-lhe a dissimulação, se houvesse algo que dissimular. O que 
aqui vai por ordem lógica e dedutiva, tinha sido antes uma barafunda de idéias e sensações, graças

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