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Dom Casmurro (102)


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com legado ou sem ele, não se separaria de mim. Talvez a esperança dele fosse enterrar-me. 
Correspondia-se com Capitu, a que pedia que lhe mandasse o retrato de Ezequiel; mas Capitu ia 
adiando a remessa de correio a correio, até que ele não pediu mais nada, a não ser o coração do 
jovem estudante; pedia-lhe também que não deixasse de falar a Ezequiel no velho amigo do pai e do 
avô, "destinado pelo céu a amar o mesmo sangue." Era assim que ele preparava os cuidados da 
terceira geração; mas a morte veio antes de Ezequiel. A doença foi rápida. Mandei chamar um 
médico homeopata. 
--Não, Bentinho, disse ele- basta um alopata; em todas as escolas se morre. Demais, foram idéias da 
mocidade, que o tempo levou; converto-me à fé de meus pais. A alopatia é o catolicismo da 
medicina... 
Morreu sereno, após uma agonia curta. Pouco antes ouviu que o céu estava lindo, e pediu que 
abríssemos a janela. 
--Não, o ar pode fazer-lhe mal. 
--Que mal? Ar é vida. 
Abrimos a janela. Realmente, estava um céu azul e claro. José Dias soergueu-se e olhou para fora; 
após alguns instantes, deixou cair a cabeça, murmurando: Lindíssimo! Foi a última palavra que 
proferiu neste mundo. Pobre José Dias! Por que hei de negar que chorei por ele? 
CAPÍTULO CXLIV / UMA PERGUNTA TARDIA 
Assim chorem por mim todos os olhos de amigos e amigas que deixo neste mundo, mas não é 
provável. Tenho-me feito esquecer. Moro longe e saio pouco. Não é que haja efetivamente ligado as 
duas pontas da vida. Esta casa do Engenho Novo, conquanto reproduza a de Mata-cavalos, apenas 
me lembra aquela, e mais por efeito de comparação e de reflexão que de sentimento. Já disse isto 
mesmo. 
Hão de perguntar-me por que razão, tendo a própria casa velha, na mesma rua antiga, não impedi 
que a demolissem e vim reproduzi-la nesta. A pergunta devia ser feita a princípio, mas aqui vai a 
resposta. A razão é que, logo que minha mãe morreu, querendo ir para lá, fiz primeiro uma longa 
visita de inspeção por alguns dias, e toda a casa me desconheceu. No quintal a aroeira e a 
pitangueira, o poço, a caçamba velha e o lavadouro, nada sabia de mim. A casuarina era a mesma 
que eu deixara ao fundo, mas o tronco, em vez de reto, como outrora, tinha agora um ar de ponto de 
interrogação; naturalmente pasmava do intruso. Corri os olhos pelo ar, buscando algum pensamento 
que ali deixasse, e não achei nenhum. Ao contrário, a ramagem começou a sussurrar alguma cousa 
que não entendi logo, e parece que era a cantiga das manhãs novas. Ao pé dessa música sonora e 
jovial, ouvi também o grunhir dos porcos, espécie de troça concentrada e filosófica. 
Tudo me era estranho e adverso. Deixei que demolissem a casa, e, mais tarde, quando vim para o 
Engenho Novo, lembrou-me fazer esta reprodução por explicações que dei ao arquiteto, segundo 
contei em tempo. 
CAPÍTULO CXLV / O REGRESSO 
Ora, foi já nesta casa que um dia. estando a vestir-me para almoçar, recebi um cartão com este 
nome: 
EZEQUIEL A. DE SANTIAGO 
--A pessoa está aí? perguntei ao criado. 
--Sim senhor, ficou esperando. 
Não fui logo, logo; fi-lo esperar uns dez ou quinze minutos na sala. Só depois é que me lembrou 
que cumpria ter certo alvoroço e correr, abraçá-lo, falar-lhe na mãe. A mãe,--creio que ainda não 
disse que estava morta e enterrada. Estava; lá repousa na velha Suíça. Acabei de vestir-me às 
pressas. Quando saí do quarto, com ares de pai, um pai entre manso e crespo, metade Dom

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