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PAIDÉIA, PAIDIA OU LUDUS? Dr. Paulo Alexandre Cordeiro de Vasconcelos Universidade Anhembi Morumbi A ideia do jogo perpassa toda a história da civilização, seja como ação reduzida à situação da infância, seja como ação no mundo adulto, que leva ao mundo da representação. No primeiro sentido, ter-se-ia uma ação delimitada pela infância, caracterizada de modo superficial como algo "pueril", de brincadeira, de não seriedade. No segundo sentido, ter-se-ia o termo com o sentido amplo, comportando o lazer, a representação e até a competição. É meu propósito verificar o sentido do jogo infantil na obra de Piaget dentro de sua "classificação dos Jogos" e, para fazê-lo de modo comparativo, traçarei um paralelo com o que se chamou de paidéia e paidia platônica. Isto ajudará a cercar a visão de Piaget sobre o jogo, dentro da construção do seu projeto epistemológico genético, ou mesmo dentro de uma perspectiva de sua Psicologia Genética que privilegia o desenvolvimento, tendo como forma de expressão a ação do jogo. Isto posto, passarei a visualizar o jogo na perspectiva da paidéia grega e observar como a construção platônica da paidéia e paidia se assemelham ao arcabouço do jogo como movimento de construção de significados. A construção platônica da diferença entre o plano dos objetos, das coisas e, de outro lado, as palavras, a representação, remete ao plano da produção da significação, que se realiza por um mecanismo mediado por um estado de "jogo das idéias", ou de uma criatividade de significados. A Paidéia A ideia de cultura na atualidade muito se distância da compreensão daquilo que os gregos perseguiram como tal. Na realidade, o conceito da cultura hoje esta muito mais relacionado com um sentido descritivo de manifestações de determinado povo, em linguagens diversificadas. O conceito atual é compartimentado sem a globalidade ou abrangência do sentido grego clássico. Tal conceito é visto como um produto da manifestação do conhecimento, sem perseguir necessariamente a natureza e o aperfeiçoamento do humano. Jaeger, ao estabelecer o confronto entre o conceito grego de paidéia e o conceito de cultura em nossos dias, chama atenção: "... sem a concepção grega de cultura, não teria existido a 'antigüidade' como unidade histórica; nem o mundo da cultura ocidental.... Hoje estamos habituados a usar a palavra cultura não no sentido de um ideal próprio de humanidade herdeira da Grécia, mas antes numa acepção bem mais comum que a estende a todos os povos da terra, incluindo os primitivos. Entendemos assim por cultura a totalidade das manifestações e formas de vida que caracterizam um povo... A palavra converteu-se num simples conceito antropológico descritivo... O que hoje denominamos cultura não passa de um produto deteriorado, derradeira metamorfose do conceito grego originário" (Jaeger:1989:6). A dimensão do conceito grego de cultura imprime uma especulação da natureza humana, da busca da dignidade, ou seja, de um aperfeiçoamento da condição humana. Não há nos gregos uma separação do mundo do conhecimento, para o mundo da poesia, da arte, da ciência. Tudo se entrelaça numa perfeita organicidade. Pensar o conceito de cultura do ponto de vista da civilização grega é refletir o homem na sua formação. Assim, o processo de formação da cultura é o próprio processo de educação e de produção de valores de uma filosofia. Neste processo de formação, percebe-se uma reconciliação entre o homem e a natureza. Sem os gregos não se poderia, hoje em dia, pensar o que seria a cultura, entre outras coisas, já que este conceito envolve-se com uma amplitude da formação do homem. Por isso mesmo, para os gregos, não havia um correlato desta palavra como hoje se utiliza. Havia sim um termo que, entre outras coisas, se envolveria com o nosso termo cultura. Esta palavra de abrangência maior seria a paidéia. A palavra paidéia só aparece no século V a.C. É curioso verificar que esse termo surge, inicialmente, com o significado de "criação dos meninos", ou seja, como coisa pueril, de pouco valor. Na verdade será com Platão, como apontarei mais adiante, que se tentará esclarecer as relações entre a paidéia e a paidia. Ou seja, entre a noção de cultura e do jogo infantil. É com Sócrates que aparece o conceito mais firme de paidéia, na cultura Grega. Ele consolida seu significado a partir da idéia de "fim da vida". É com este sentido que Sócrates vai refletir sobre uma educação do homem grego e solicitar, para essa, a busca de condições para se atingir um fim na vida. A paidéia, como concepção socrática, é a síntese da vida, ou seja, é o seu conduto interior na sua existência espiritual. O homem Socrático é o homem com autodeterminação face ao seu telos. Em sentido mais figurado, a paidéia seria a busca e a realização da vontade do homem socrático, afirmando o que seria o bem. No que pese a determinação de Sócrates para uma educação que objetivasse o telos e, portanto, o bem, o conceito de paidéia continua num conceito amplo, envolvendo não apenas o conceito de cultura e de formação do homem, mas da construção de uma educação. É com Platão que o termo paidéia melhor se objetiva, aproximando-se do que hoje se entende por cultura. O período áureo da paidéia é o período platônico. Basicamente, toda a sua obra denota a preocupação com a paidéia. Contudo, três das suas obras merecem destaque pela forma acentuada de tratar a questão: Górgias, a República e Leis. É em Górgias que Platão vai rever a paidéia socrática e, ao fazê-lo, cerca o termo, dando-lhe uma conotação de formação do homem, compromissando o Estado a tal. Nesta obra, Platão põe em relevo a educação e a relaciona com os propósitos do Estado Grego, levantando críticas ao mesmo. Considerando Górgias como a obra platônica que inicia a discussão da paidéia, será na República e nas Leis que Platão caminhará para esclarecer as relações entre o jogo e a paidéia, portanto, entre a cultura e o jogo. A forma como Platão reflete sobre a cultura e o jogo prende-se a uma questão inicial: Quem contém quem? É com a República que Platão absorverá a paidia na paidéia, ou seja, a Cultura contendo o jogo, ou a paidéia contendo a paidia. No bojo da Paidéia platônica, pode-se enumerar três tipos de reflexões: 1 - o jogo como competição; 2 - o jogo como estratégia para a educação; 3 - o jogo como fim em si ou predicativo da ação. O jogo como competição aparece em Platão, compondo a sua paidéia. A Grécia teve como forma exemplar de jogos os jogos agonísticos, desenvolvidos com a ideologia Espartana. Huizinga ao estudar o jogo nas suas formas mais diversificadas, sublinha a forma dos jogos agonais, que tiveram seu maior destaque o século IV a.C., que coincide com o período de expansão helênica e dos grandes Jogos Nacionais da Grécia. Tais jogos criaram facetas no mundo Grego, a ponto de ser aquele povo caraterizado pelo espírito competitivo (agonístico). Segundo Huizinga, o homem grego deixou marcas na história como um verdadeiro homem "heróico" ou homem agonal, ou ainda o homem "helenístico" (Huizinga:1980). Os jogos agonísticos vão se caracterizar como jogos de competição, de luta, buscando o aperfeiçoamento da destreza face às regras ali estabelecidas. Tais jogos refletem um ideal, que é sublinhado por um desejo à honraria, à dignidade e a um espírito de superioridade. As grandes festas gregas tinham algo de agonístico, de competitivo, e que correspondia a um ideal do país no sentido de mostrar a habilidade daqueles que jogavam. Este mesmo ideal era algo sagrado, à medida que as competições homenageavam alguns deuses, como era o caso do ludi votivi, que era organizado para cumprir uma promessa ou voto, ou mesmo para acalmar a fúria dos deuses. Esses jogos tinham grande variedade de espécies, desde uma vasta nomenclatura de lutas corporais, aos combates de gladiadores, corridas de carros, concursos de canto, decifraçãode enigmas, de resistências diversificadas, como é o caso de ingestão de bebidas, quedas de braço, dores físicas etc. Estes jogos caracterizaram a paidéia grega, e toda uma cultura esportiva posterior, como é exemplo ainda hoje dos jogos olímpicos. O segundo caso, o jogo como estratégia (a aprendizagem infantil) temos sua aparição tanto na República, como nas Leis. Platão explicita a razão pela qual o jogo é estimulante para tal a partir da noção da ficção, ou seja, sendo o jogo elemento de ficção e estando a criança mais sensível ao ficcional, o jogo se presta a tal tarefa. Por outro lado, frisa Platão, que a educação não principia pela verdade e sim pela ficção, como é o caso do jogo educando a partir de elementos imaginários. "... Digamos então que os homens livres precisam estudar o que a grande maioria dos meninos do Egito aprende desde as primeiras letras. Inicialmente, foram inventados métodos para facilitar o estudo do cálculo, que lhes ensinavam desde a infância, por brinquedo e com deleite, consistindo na divisão de maçãs e de coroas entre maior ou menor número de meninos, ou na distribuição e substituição progressiva dos competidores de luta do pugilismo conforme a ordem natural. Ou então por brinquedo, os professores misturarão pequenas conchas de couro, ferro , prata ou material do mesmo gênero, quando não o fizerem por séries, conforme disse. Aprendendo no jogo o emprego indispensável dos números, todos os alunos ficarão sabendo como distribuir convenientemente um exército e de que modo conduzir uma expedição militar, e bem assim administrar sua própria casa, com o que se consegue deixá-los mais espertos e úteis até para eles mesmos..." (Platão:1980: 240). Com o relato, se esclarece a condição de estratégia do jogo face à aprendizagem e, neste sentido, ele é uma forma de materializar situações para as passagens de conceitos educacionais. Somado a isso, o jogo seria o elemento de prazer que levaria, ao mesmo tempo, a criança a ser motivada para a aprendizagem. Platão salienta ainda mais, que o desinteresse natural da criança para o aprendizado não deve ser combatido pela coação - castigos -, mas pelo jogo, pelo prazer (Jaeger: 1989:627). Desta segunda acepção do jogo como estratégia educacional, utilizado a partir do prazer que o mesmo empresta, se depreende a terceira concepção do jogo: o jogo como um fim em si. Mas por que o jogo é prazeroso? Para Platão, o jogo é naturalmente criador, pois enseja naquele que joga a ação conjunta de criar, de dar sentido. Neste aspecto, estaria a mimesis platônica, ou o processo criador envolvido com o jogo e, desse modo, o jogo seria um fim em si, ou o jogo pelo jogo criador que ele implica. Na verdade, o jogo como fim em si já remonta mesmo à condição humana platônica de vida, vista enquanto jogo ou de criação de significado. O jogo dava sentido para o viver do homem, já que o mesmo está condenado a assim fazê-lo. "...imaginemos que cada um de nós, como seres vivos, não passe de um boneco (um jogo) nas mãos dos deuses, que talvez nos tenham formado por divertimento, ou mesmo com a intenção séria, o que escapa à nossa compreensão. Uma coisa, porém sabemos com segurança: que no nosso íntimo as referidas paixões se agitam a maneira de nervos ou fios que puxam em sentido contrário, compelindo-nos, por isso mesmo, à prática de ações opostas, na linha limítrofe do vício e da virtude. Manda-nos a razão só ceder a tração de um desses fios, sem nunca abandoná-lo, e resistir aos outros. É o fio sagrado e de ouro da razão, que denominamos lei comum da cidade. Os demais fios, por serem de ferro, são duros; este é maleável, porque de ouro, ao passo que os outros se parecem com as mais diferentes substâncias. É preciso que todos cooperem sempre no sentido da mais bela direção, a da lei. E porque a razão é algo belo, porém branda e infensa a qualquer violência, necessita de auxiliares na sua condução, para que o gênero ouro vença os demais. Fica assim, justificada a fábula relativa à virtude, que nos compara a bonecos (jogos), ao mesmo tempo que torna compreensível o que significa ser superior ou inferior a si mesmo, tanto com referência à cidade como aos particulares. Estes, ao atingirem o conhecimento da verdade do fio que neles existe, devem viver de acordo com a sua linha de tração..." (Platão: 1980:43). Platão ao se expressar com base na metáfora homem/joguete/boneco, nada mais faz que expressar a dimensão sagrada do gênero humano, privilegiando o prazer do jogo na consecução dos seus objetivos, portanto, do seu telos. O homem é esse jogo de movimento, de procura de sentido para a sua condição humana. Buscá-lo nada mais é que fazer a busca do prazer ou de auferi-lo sempre que possa, elevando-o, cada vez mais, a sua condição de humano. A vontade divina seria o fruir a vida jogando em conformidade com o próprio brinquedo que é o homem. Neste viés, não há nada tão sério quanto o próprio homem e o seu jogo. Portanto, sem esta ótica o homem não seria a medida de todas as coisas, mas de todo o seu jogo. Fica então aqui, relatado por Platão, a condição do jogo não só como busca do sentido para a vida, como para a realização da condição do homem, do humano. Platão sublinha a sua preocupação, ou seja, o antropocentrismo do seu pensamento, à medida que constata a condição do jogo como condição do humano. O homem é a medida de todas as coisas, assim como o jogo é a medida de todos os homens. Ao mesmo tempo, o jogo humano é na medida em que ele exercita o homem, personifica-o com o prazer de jogar, portanto com o prazer de ser. É importante aqui contemplar a alegoria da caverna, contida na República, para que se sinta a mesma relação de jogo que afirma Platão, quando faz menção àquela alegoria de um verdadeiro jogo (de teatro de bonecos) que se projeta no interior da caverna sem que, com isto, os homens ali aprisionados percebam a condição de jogo. Aquela condição só será percebida na saída da caverna. Platão sublinha que é pelo jogo que se entende ou se chega ao logos, ao conhecimento. É, pois, inicialmente fazendo o jogo muitas vezes sem sabê-lo, mas vivendo-o para depois compreendê-lo (ao penetrar em outro jogo), que se ascende à categoria do conhecimento e, portanto, de si. Ao viver o jogo, exercita o corpo e, ao compreendê-lo, exercita o espírito, chega à razão e ao conhecimento. Neste sentido, o jogo é também a metáfora platônica (1). Dos três tipos de jogos que aparecem na paidéia platônica, o terceiro tipo é o de sentido amplo, enquanto os demais possuem os sentidos restritos ou específicos. A grande característica desse terceiro tipo (com sentido ¹.É interessante observar o iguana raciocínio, no que diz respeito à condição do jogo e do humano no pensamento de Schiller, quando ao atestar a existência de um impulso lúdico no homem, o caracteriza como humano. Desse modo, para Schiller, o homem só consegue sê-lo, no sentido extremo da palavra, quando joga. Seu pensamento reflete a influência platônica e reafirma a tese de Platão, do homem enquanto joguete, ou submetido a um impulso para o jogo. Concordando explicitamente com o ideal platônico, diz Schiller que foram os gregos que demonstraram o talento par o jogo, afirmando o ideal de homem, do humano (Schiller: 1990:84). amplo) de jogo vai ser encontrado no âmago da linguagem, ou seja, na forma como a mesma se estrutura através das proposições e dos argumentos. É o jogo das palavras, do raciocínio, da busca de sentido, de estrutura de significações, se constituindo numa verdadeira faceta dos problemas ligados à ontologia. Huizinga, ao buscar as várias acepções do jogo, vai até ao que ele denomina de "formas lúdicas da filosofia" ou, numa expressão mais adequada que a língua francesa fornece, o "jeux d'esprit" (Huizinga: 1980: 167). Dentro desta acepção de jogos, aparecerão os sofistas como osmais destacados e seguidos por Sócrates e Platão. Os sofismas com suas antilogias (confronto aparente de idéias, ou jogos de raciocínio) aparecerão caracterizando o jogo dos sofistas, como em Sócrates e Platão aparecerá o diálogo. Platão, ao propor uma trajetória para a cultura, faz referências à dialética, descrevendo-a como "capacidade de prestar e fazer com que os outros prestem contas" das idéias que defendem. Este jogo dialético, de busca de sentido, é o que estimula Platão a conceber o brincar como estratégia para a aprendizagem infantil (Jaeger:1989:623). A dialética para Platão permite a ascese do conhecimento, do sentido e, portanto, do homem. Neste sentido, a alegoria da caverna revela o jogo dialético (de metáfora e de significação) ao exibir a comparação de um saber antes de sair da caverna e outro após sair. Neste caminho os jeux d'esprit se implicam: . na caracterização do processo de significação e de criação; . na caracterização de fenômenos, como é o caso do aparecimento de linguagens. O processo de jogos de significação produz fenômenos (do grego phainomenon - coisa que aparece) de linguagens, intricando-se com outros através dos seus pensamentos. Na estrutura mantida pelo fenômeno da linguagem e do pensamento, resgata-se uma ordenação. O jogo, portanto é ordem, é organização. E o que é o sentido ou significação, senão ordem? Ressalte-se, por outro lado, que este terceiro tipo de jogo contém todos os outros tipos, tornando-se assim um tipo mais exemplar e de maior abrangência. O jogo e suas características Por esta via de compreensão, resgatam-se algumas características do jogo como um todo, mesmo partindo desta modalidade que ora se aponta: . o jogo é uma função significante, isto é, encerra certo sentido (o jogo predica a ação); . o jogo implica na presença de um dado elemento não material em sua essência (Huizinga 1980:4); . o jogo é uma qualidade da ação, é representação; . o jogo busca o movimento antitético; (Aquilo que pode ser relacionado ao oposto, sentido de contrário) . o jogo tem uma tendência a produzir formas; . o jogo é cultura e produz cultura (Huizinga:1980:6); Por conseguinte, fica a afirmativa de Huizinga respaldada quando indica a relação da cultura com o jogo, acreditando que, neste aspecto, o jogo tem este sentido amplo (referido no primeiro tipo de jogo), o jogo enquanto predicado da ação ou uma função significante. Caracteriza-se este por um movimento antitético que, revelando uma busca e produção de formas, chega a produzir o conhecimento. O jogo ao se estruturar no campo do imaginário-simbólico, constrói linguagens e, portanto, a cultura. Desse modo, é relevante e pertinente a síntese que o mesmo opera: "...O fato de apontarmos a presença de um elemento lúdico na cultura não quer dizer que atribuamos aos jogos um lugar de primeiro plano entre as diversas atividades da vida civilizada, nem que pretendamos afirmar que a civilização teve origem no jogo, através de qualquer processo evolutivo, no sentido de ter havido algo que inicialmente era jogo e depois se transformou em algo que não era mais jogo, sendo-lhe possível ser considerado cultura... a cultura surge sob a forma de jogo, que ela é desde seus primeiros passos, como que jogada... a vida social reveste-se de formas supra-biológicas , que lhe conferem uma dignidade superior sob a forma de jogo, e é através deste último que a sociedade exprime sua interpretação da vida e do mundo" (Huizinga, 1980:53). Apesar de Huizinga abrir sua obra "Homo Ludens" com a afirmativa de que o "jogo é mais antigo que a cultura", mais adiante, como vimos no texto citado, o mesmo esclarece a dimensão do jogo na cultura, pontuando: . o jogo como um fenômeno produzido pela cultura, em que se depreende momentos em que há uma pureza de jogo, transformando-se mais tarde em cultura; . o jogo como fenômeno de dar sentido, portanto, de conceber significações, predicando assim a conduta e, ao mesmo tempo, concebendo ordem, sentido e conhecimento que se integra mais tarde ao mundo da cultura. Por estes aspectos considerados por Huizinga, e que se explicitam ao longo de sua obra, o jogo tem sentido e significado amplo, por vezes tendendo a se assemelhar com a cultura, seja pelo seu movimento de concepção, da forma como é articulada (le jeux d'esprit), seja como os conteúdos que o jogo produz (Huizinga: 1980). Da mesma forma, o conceito de paidéia, do ponto de vista dos gregos, guarda semelhança com o que afirma Huizinga, ou seja, o jogo entre os gregos tinha tal dimensão que se constituía paidéia - cultura - e possuía a característica de ser movimento, caracterizando a concepção da ação (Jaeger: 1989). O jogo na acepção restrita ou a paidia e o brincar Do ponto de vista dos gêneros, ou mesmo numa tipicidade de jogos, dois tipos são sublinhados na cultura grega: a paidia e o agon. A paidia correspondia ao entendimento de ação da infância com o sentido de coisa pueril, de mera ocupação de tempo. O mesmo termo, derivando sua desinência e mantendo sua raiz, tinha igual significado de brincar e de brinquedo. Estas expressões têm, também, como significado a idéia de não seriedade e, no que isto pese, ela poderia mais tarde penetrar no campo da paidéia, ou seja, adquirir um caráter de coisa séria. Esta relação é discutida por Platão não só na República, como também é aprofundada em Leis (Jaeger:1989:630). Já o conceito de agon, correspondia na paidéia grega àquilo que se entende por competição ou combate. Na formação do homem grego, havia um espaço exemplar para os jogos de combate, o que permitiria fazer a formação do guerreiro, do combatente. Há nos jogos agonísticos características de oposição, de antagonismos, de um movimento antitético que exige a formulação de regras pelo jogador ou, se preferir assim dizer, de estratégias para efeito do confronto. Na verdade, os gregos não tinham na sua cultura uma única palavra que expressasse a vastidão que o conceito de jogo hoje possui. Como afirma Huizinga, "a concepção de jogo enquanto regra geral e universal, e com sentido lógico/homogêneo, é uma invenção na sua língua, mas como acontecimento tardio" (Huizinga: 1980:36). O Jogo - O Ludus Dentro do latim havia um termo que cobria a acepção de jogo com uma só palavra, que era a palavra ludus. Para Huizinga, a palavra latina ludus derivaria da palavra ludere. Ludus teria a significação de jogos infantis, recreação, e as mais diversas formas de representações, como aquelas ligadas aos atos litúrgicos ou às encenações teatrais, à dança, ou ainda aos jogos de azar. Destaca o autor que vários derivados da mesma palavra como alludo, colludo, iludo, apontam para a significação da simulação ou do ilusório. Contém de igual modo, a significação de não seriedade. Contudo, se os romanos possuíam este termo, também possuíam o termo jocus, que tinha como significado destacado fazer humor, gracejar, não correspondendo dentro do latim clássico ao que se entende hoje por jogo (Huizinga:1980:41). Roger Caillois, ao tratar da classificação dos jogos, se envolve com os conceitos gregos e romanos que, misturados, criam um referencial significativo para a compreensão do jogo como um todo. Caillois parte de uma nomenclatura referencial que não só envolve a paidia e o ludus, mas quatro outras que são: o agon, a alea, mimycry e ilinx. Este autor, ao aglutinar estas categorias, chega a estabelecer diferenças: "Depois de examinadas as diferentes possibilidades, proponho para tal uma divisão em quatro rubricas principais, conforme predomine, nos jogos considerados, o papel da competição, da sorte, do simulacro ou da vertigem. Chamar-lhes-ei, respectivamente, AGON, ALEA, MIMICRY E ILINX. Todas se inserem francamente no domínio dos jogos. Joga-se bola, ao berlinde ou às damas (agon-alea), joga-se na roleta ou na loteria, faz de pirata, de Nero, ou de Hamlet (mimicry), brinca-se,provocando em nós mesmos por um movimento rápido de rotação ou de queda, um estado orgânico de confusão e desordem (ilinx). No entanto, estas designações não abrangem por inteiro todo o universo do jogo..." (Caillois:1990:32). Roger Caillois continua, então, buscando dois referenciais mais abrangentes que se superponham às quatro categorias já referidas: "Desta forma, pode-se hierarquizá-los simultaneamente entre dois pólos antagônicos. Numa extremidade, reina, quase absolutamente, um princípio comum de diversão, turbulência, improviso e despreocupada expansão, através do qual se manifesta uma certa fantasia contida, que pode se designar por paidia. Na extremidade oposta, essa exuberância alegre e impensada é praticamente absorvida, ou pelo menos disciplinada, por uma tendência complementar, contrária nalguns pontos, ainda que não em todos, à sua natureza anárquica e caprichosa: uma necessidade crescente de a subordinar à regras convencionais, imperiosas e incômodas, cada vez mais a contrariar, criando-lhes incessantes obstáculos com o propósito de lhe dificultar a consecução do objetivo desejado. Este torna-se assim, perfeitamente inútil, uma vez que exige um número sempre crescente de tentativas, de persistência, de habilidade ou de artifício. Designo por ludus esta segunda componente..." (Caillois:1990:32.33). Caillois, ao propor sua classificação dos jogos, mistura conceitos diferentes. Isto se refere ao conceito grego de paidia e ao conceito latino - romano - ludus. É desprezado por ele o conceito de agon, como referência genérica, que se assemelharia ao ludus. O agon tinha sentido de maior organização e de confronto a obstáculos. Não obstante suas origens estarem ligadas aos jogos bélicos, de formação do guerreiro grego, este conceito ganhou amplitude, para não mais se concentrar na idéia dos jogos bélicos, passando a representar jogos de natureza ordenada, com objetivos de enfrentar obstacularizações. No entanto, o que leva Caillois a desprezar o agon e eleger o ludus, é que, para a superação dos obstáculos, os esforços se concentram no objeto lúdico ou no próprio sentido de emulação que o cerne do jogo evoca e, uma rivalização contra o adversário, o sujeito com que se joga. Para o autor, o ludus é mais completo, produzindo emulação imanente na estrutura do jogo e, outras vezes, produzindo a rivalidade, também no sentido do adversário do jogo. Produz-se, assim, no ludus uma dupla emulação na destreza em superar os obstáculos, como no combate com o adversário. E, quando isto ocorre, evoca ou congrega também o agon. Assim, o ludus seria mais abrangente que aquele outro termo. Buscando argumentar o porquê da polarização de sua classificação em paidia e ludus, pontua o autor: "...o ludus também se revela nas várias categorias de jogos, excetuando aqueles que assentam integralmente na decisão do acaso. Surge como complemento e adestramento da paidia, que ele disciplina e enriquece" (Caillois:1990:50). Neste viés de entendimento, o ludus é mais amplo do que o agon, comportando-o e também a outros, como são o caso do ilinx, alea, e mimicry. Desta feita, pela classificação de Caillois e com relação ao jogo e ao brincar, ter- se-ia: . a Paidia contendo o campo do brincar e da brincadeira; . o ludus contendo o jogo e todas as formas disciplinadas das emulações relativas ao brincar. Face a esta diversidade de conceitos oriundos de origens diferentes, as reflexões sobre o jogo só tiveram a ganhar, no que se refere ao cuidado para congregar termos diferentes e com campos de significações ligados a campos étnicos e sócio-culturais divergentes. Huizinga tenta esclarecer o fato. O autor afirma que, em se tratando da Grécia não possuir um termo com a extensão do ludus, a sua cultura, sua paidéia, se deu dentro deste caráter, ou seja, toda a ritualística grega apontava para esse aspecto (Huizinga:1980). Esclarece, ainda, que não se trata de uma degenerescência do agon face a uma decadência do pendor heróico grego, para só então surgir um tipo degenerado de agon, e que seria similar ao ludus. O espírito ludi não estava presente naquela civilização. Não nega ele que, havendo uma decadência do espírito grego, o agon decaiu como formação do guerreiro, mas não por transformar-se numa quase banalidade de ocupação do tempo e simulação. Huizinga chama atenção para um eterno caráter da cultura Grega, que é, ao mesmo tempo, a característica mais intrínseca do jogo ou da forma ludus, no sentido de apontar para os simulacros, os jogos de sentido, de criação, como a arte. A união entre a terminologia grega da paidia e, de outro lado, o ludus romano, produz os dois grandes pólos de hermenêutica do jogo, construindo seu paradigma sócio-histórico , existente na civilização greco-romana. Assim, a paidéia grega, se não produziu a palavra ludus, conteve-a em seu espírito cultural. Portanto, não se constitui entrave metodológico, tampouco incoerência terminológica, esta união. Finalmente, o que se percebe nesta dupla polarização, é o jogo como "ação-movimento puro" (paidia) ou a tendência a organizar-se sobre regras que o conduz a simulacros, às representações que levam ao imaginário (ludus). Deste modo, guardadas as devidas atenções ao campo da nomenclatura que há pouco anunciei, há que se destacar que, em relação às distinções já pronunciadas, o termo jogo mantém na literatura especializada o predomínio de termo genérico para as espécies - paidia (o jogo infantil ou o brinquedo) e o ludus (os jogos infantis regrados, ou aqueles dos adultos em situação de regras). Como se verá mais adiante, em capítulo denominado "Piaget e o Jogo", não há preocupação desse autor em formalizar uma rigidez na sua nomenclatura utilizada, até porque a sua teoria classificatória do jogo não investe com a mesma abrangência que a de Caillois ou de Huizinga. Para Piaget, o jogo infantil se subordina a esquemas lúdicos possíveis nos limites do desenvolvimento do pensamento, da linguagem e da inteligência. Assim, o jogo nada mais será que uma estrutura que, antes de se afirmar como estrutura lúdica, é uma conduta motivada pela ação, orientada ora por esquemas sensório-motores, ora pela operatória de ordem concreta e formal. Insistindo em pensar a forma pela qual estariam as modalidades piagetianas do jogo face a polarização do ludus e da paidia, as duas haveriam de ser consideradas, em sua classificação, com algumas ressalvas. Ou seja, haveria um nascimento do jogo na ação, enquanto paidia, ajustando-se ao campo das regulações interativas entre o sujeito e o meio. Considerando que a paidia é o desejo primitivo ao impulso de realização, isto estaria relacionado com o jogo de exercício. É notável a forma descritiva de Caillois ao descrever a paidia, pois lhe atribui semelhança com os jogos de exercício, a ponto de indicar exemplos de condutas (de paidia) recolhidas por um fisiólogo holandês - Karl Goros - que, como indicarei mais adiante, é o grande influenciador na definição do jogo de exercício piagetiano. Observe-se como o mesmo descreve a paidia: "...Em minha opinião, há que defini-lo como o vocábulo que abrange as manifestações espontâneas do instinto do jogo: o gato aflito com o novelo de lã, o cão sacudindo-se e o bebê que ri para a chupeta, representam os primeiros exemplos identificáveis desse tipo de atividade ...Assim, K. Groos recorda o caso de um macaco que adorava puxar a cauda de um cão que com ele coabitava, sempre que este se preparava para dormir..." (Caillois:1990:48-49). Destaca, ainda, Caillois a característica impulsiva deste tipo de jogo, o que implica em duas outras, que são: a "espontaneidade" e a "improvisação". Estas características constituem, para Caillois, o perfil básico deste tipo de jogo, ou então a "razão de ser" (idem). Já o ludus, por outro lado, como conduta que disciplina e predica a ação, no constructo da significação, tende auma busca de representação, com a alusão às regras, e aqui estaria a similitude com o início do jogo de regras piagetiano. Para Piaget, o ludus, enquanto jogo de regras, apenas se esboça para, em seguida, descaracterizar-se como jogo infantil, pois se embrenha com a objetividade social e subordina suas leis às regras morais. Ao mesmo tempo, o pensamento já se encontra formado, o que leva essa modalidade de jogo a um caráter não mais infantil e sim adulto. Há que se considerar que, como o próprio Caillois afirma a paidia e o ludus não estão tão separados. Na verdade o ludus seria "um complemento e adestramento da paidia" (ibidem). O que não se explicita claramente na obra de Caillois é a questão do simbólico. Contudo, se o mesmo não faz menção direta ao jogo simbólico, ele o faz indiretamente ao abordar as condutas implicadas no ludus, como sejam o ilinx, o agon, alea e mimicry, que se inserem no quadro de atividade imaginária, o que implica na construção do simbólico. Se Piaget considera, notadamente, o Jogo Simbólico como aquele por excelência, Caillois considera também o ludus como tal, o que permite a ele afirmar que esse participa da criação da Cultura pelo seu aspecto de criação simbólica. Há, portanto, uma grande abrangência no ludus, no que ele incita a desenvoltura da criação e do desenvolvimento das categorias do conhecimento, através das criações de ordem sígnicas ou simbólicas. Se a paidia e o ludus não explicam o jogo do ponto de vista de sua natureza, Caillois os classifica como ação do comportamento humano e conduz os mesmos para a categoria da cultura, do conhecimento e do seu desenvolvimento. Já para Piaget, o jogo infantil se constitui por matizes de uma ação do sujeito, que se embrenha em esquemas lúdicos, ora do exercício motor, ora da criação simbólica, ora da representação, ora com o pacto regrado. Desse modo, a semelhança mais próxima entre o ludus-paidia de Caillois e a classificação piagetiana só se verifica mais efetivamente junto a paidia, pois, com relação ao ludus, o jogo de regras se inicia como tal, mas deixa de sê-lo para já se constituir como jogo adulto e não mais infantil. Assim, se a classificação de Caillois não se preocupa com o ponto de vista do desenvolvimento infantil, ou seja, com fases do desenvolvimento, do mesmo modo Piaget, ao processar sua classificação a faz com vistas à infância essencialmente, o que permite apenas vislumbrar a paidia de Caillois. BIBLIOGRAFIA CAILLOIS, R. Os jogos e os homens. Trad. J. G. Palha. Lisboa: CotovIa 1990. HUIZINGA, J. Homo ludens. Trad. de J. F. Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1980. JAEGER. Werner W. Paideia: a formação do homem Greco. Trad. de A . M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes 1989. PLATÃO. Diálogos – Leis Epinomis – vol. Xll e XlII. Trad. B. Nunes. Belém. Ed. Universidade do Pará, 1980. Notas: Emulações: competições. Imanente: permanente (que está contido em...) Hermenêutica: interpretação do sentido das palavras. Fonte: http://paulo-v.sites.uol.com.br/textos/img11.htm 26/07/2016 http://paulo-v.sites.uol.com.br/textos/img11.htm