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FILOSOFIA ANTIGA Introdução A filosofia foi uma invenção totalmente grega (assim como a democracia, o teatro, as ciências). Os povos orientais tinham um corpo de conhecimentos empíricos transmitidos de geração em geração ao longo de séculos (antigos egípcios tinham a engenharia, agrimensura, medicina; os babilônios, astrologia), ou seja, ainda não tinham a theoria, a episteme. De qualquer modo, todos esses povos tinham crenças religiosas, que surgiam em seus mitos poéticos cosmogônicos e teogônicos. I) CONTEXTO HISTÓRICO DA GRÉCIA ANTIGA: PERÍODOS ARCAICO E CLÁSSICO a) Poemas épicos homéricos – Ilíada e Odisseia e hesiódicos – Teogonia e Os Trabalhos e os Dias. Mythos (enredo fabular) e métrica. Pontos importantes: - Encadeamento de causas/razões/motivos para as ações dos deuses e heróis; - Relações entre os homens e entre homens e deuses; - Personagens revelam piedade, coragem, ira, sabedoria, eloquência, paixão sexual; - Eventual punição da hybris, o que antecipa a hamartía (erro trágico): Sabedoria gnômica (proverbial): “Nada em excesso”, “Conhece-te a ti mesmo”. - Questão da Moira (destino). b) Religião dos gregos (Jean-Pierre Vernant: Mito e Religião na Grécia Antiga) - Religião Pública e dos Mistérios (orfismo, pitagorismo, Mistérios de Elêusis) - Na religião pública, não havia nem livro sagrado, nem dogmas, nem casta sacerdotal (eram apenas cargos). O núcleo da religião pública dos gregos se encontrava no sacrifício aos deuses, que unia (e separava) mortais e imortais (mito hesiódico de Prometeu). - Não havia crença na vida pós-morte, mas sim na morada subterrânea do Hades, aonde iam todas as almas. - Havia a exigência religiosa-moral da hospitalidade (Zeus), da prestação de serviços fúnebres ao cadáver (ainda que do inimigo), da busca da justa medida (para evitar a hybris), do temor frente aos deuses. c) Discussão da tese do Milagre Grego. PRÉ-SOCRÁTICOS Foram os primeiros pensadores da Filosofia Ocidental, por esse motivo, também são chamados de pensadores originários. Localizavam-se em várias cidades gregas espalhadas pelo Mediterrâneo, sobretudo na Magna Grécia e Ásia Menor. Didaticamente, são divididos em “escolas”, ou seja, grupos formados por mestre e discípulos que problematizavam certos temas de modo semelhante. I) Para esses pensadores, a problematização do mundo era uma ciência. A palavra filosofia só surge mais tarde e se consolida aos poucos. Nas palavras de hoje, não havia nem sequer a percepção de que filosofia e ciência fossem atividades distintas. Para os pré-socráticos, o mundo é ordenado (kosmós), logo, é inteligível. Podemos e devemos utilizar argumentos racionais encadeados de forma compreensível e coerente para buscar explicações para as coisas e os eventos. Tais explicações acenam para as causas de tudo o que acontece. Assim, os pré-socráticos buscam a simplicidade por trás daquilo que aparece como complexo e multifacetado. Há crença na existência dos deuses, mas eles não interferem no universo e nem nas ações humanas. Os deuses fazem parte do universo. Finalmente, esses pensadores também deram início à formação de uma linguagem conceitual que seria muito importante para os filósofos subsequentes. Os principais conceitos são: a) cosmo: universo ordenado e elegante, impregnado de racionalidade; b) physis (natureza): algo que surge, brota, acontece a partir de si mesmo, foi o principal tema a ser problematizado pela Escola Milésia; c) arché: Elemento ou princípio que inicia e mantém um processo. É um começo que perdura sustentando aquilo ao qual deu início. Pode ser entendida como causa (aitia). Posteriormente, passou a significar o governo de uma polis, entrando na composição de palavras tais como monarquia ou oligarquia; d) logos: Palavra polissêmica. Vem do verbo legein, que primitivamente significava recolher, reunir, colher. O verbo, no entanto, adquiriu o importante significado de falar, sendo, portanto, um atributo exclusivamente humano. Assim, logos está vinculado ao universo da linguagem e do pensamento. Seus significados: pensamento, argumento, história, discurso, palavra, frase. Finalmente, passou a significar as regras de ordenação racional do pensamento ou, simplesmente, razão. A ciência que estuda tais regras é a ciência do logos, ou seja, a lógica. II) Os pensamentos dos pré-socráticos só podem ser encontrados em textos de outros autores/comentadores, isso de duas formas: doxografia, ou seja, paráfrases nas quais tais autores apresentam de forma resumida e comentada as principais teses pré-socráticas e fragmentos, citações diretas dos filósofos. A grande parte dos pré-socráticos escreveu vários livros, mas quase tudo se perdeu já na Antiguidade. Os fragmentos são organizados de formas diferentes. Uma das formas de classificação mais aceitas universalmente é chamada Diels- Kranz. Uma importante fonte de conhecimento das vidas e pensamentos dos pré-socráticos (e de outros filósofos também) é a obra do biógrafo Diógenes Laércio – Vidas dos Filósofos Ilustres. No entanto, a obra mais traz anedotas e dados soltos sobre as vidas dos pré- socráticos do que uma investigação mais fundamentada, logo, deve ser lida com reservas. III) ESCOLA MILÉSIA Começaremos pela primeira escola, a Escola Milésia (Mileto), a dos pensadores da physis (natureza), também chamados de fisiólogos. Esses pensadores acreditavam haver na physis uma arché que estruturasse todos os seres e eventos. Para cada pensador da escola milésia, haveria uma arché distinta. O primeiro fisiólogo é também o primeiro pensador da tradição ocidental de que temos notícia. 1. Tales de Mileto. Temos apenas um fragmento de Tales: “Tudo está cheio de deuses”. O significado dessa sentença é obscuro. No entanto, sabemos pela doxografia que Tales acreditava que a arché, o princípio unificador da physis seria um elemento - a água (não necessariamente na forma líquida). Provavelmente Tales chegou a essa conclusão de modo empírico, observando que o elemento líquido está sempre presente nas principais transformações da physis e em várias coisas – nascimento e morte de animais, nos alimentos, no mar e fenômenos atmosféricos, no corpo dos animais, nos vegetais etc. 2. Anaximandro de Mileto. A arché é o Apeiron, ou seja, o Ilimitado, indefinido em características. Os elementos clássicos surgem do Apeiron a partir do quente e do frio. 3. Anaxímenes. Modificou a doutrina de Anaximandro. A arché é o ar infinito, do qual tudo surge por condensação e rarefação. IV) PITÁGORAS E OS PITAGÓRICOS 1. A vida de Pitágoras desde a Antiguidade é envolta em uma mistura de realidade com fantasia. De qualquer modo, Pitágoras provavelmente foi o criador da psicologia. A alma seria imortal e passaria por uma série de reencarnações, em um processo infinito (metempsicose). A história do mundo e das civilizações seria cíclica. 2. Os discípulos de Pitágoras, os pitagóricos, constituíram uma espécie de seita, uma sociedade secreta de mistérios, cujos ritos e revelações seriam expressamente vedados aos não-iniciados. 3. A escola pitagórica acreditava haver harmonia no mundo, chamado cosmos, pois sua essência seria o número. V) XENÓFANES DE COLOFON 1. Foi grande crítico das crenças teológicas tradicionais e populares dos poetas gregos. Segundo Xenófanes, existiria um único deus, moralmente justo e imóvel, onisciente e onipotente. O pensador rejeitava o antropomorfismo, pois Deus era força abstrata e impessoal. VI) HERÁCLITO DE ÉFESO Analisaremos o Fragmento 53 Diels, um dos mais importantes de Heráclito. “Pólemos pánton men patér esti, pánton de basileús, kai tous mentheoús édeixe tous de anthrópous, tous men doulous, epoíese tous de eleuthérous”. a) Pólemos = guerra, luta, mas não agón, que é apenas uma competição entre adversários. Na Pólemos, temos luta séria contra o inimigo, que é quem ameaça a integridade do povo. O inimigo pode ser externo ou interno, o interno é o mais perigoso. Quanto mais invisível e aparentemente inexistente o inimigo, mais dura e difícil a luta: deve-se espreitá-lo, deixá-lo desenvolver-se, não permitir que ele desconfie de nada. Pantón: Tudo é abrangido na luta, o todo do ente (panta = todas as coisas), logo, a luta vai muito além do humano. b) Páter – basileús: Duplo poder: Perto do termo “senhor” (basileús), há dois sentidos: pater como o que origina, e basileús como o que domina, conserva, controla, faz persistir. Logo, a luta é que controla o sendo do todo. A luta domina a geração e a conservação do ser. Conclusão: sem luta reina apenas a paralisia, a fadiga, nivelamento, equivalência, mediania, capricho e futilidade: a desaparição. Os poderes de destruição moram no próprio ente, cabe à luta controlá-los e dominá- los. A luta não é contingente, muito menos arbitrária, ela é necessária. Nietzsche: poderes contrários da luta: apolíneo e dionisíaco. c) Diz-se do pólemos que édeixe – epoíese: edeixe vem de dokein (aparece a mim porque brilha, phaino – phainomenon – dokei moi – aparência – doxa - fama – opinião). Logo, significa fazer aparecer, por para fora, ou seja, aparecer em determinada delimitação, CONFORMAÇÃO (lembrar do Caos, abismo sem fundo e da hylé, matéria sem forma, sem eidos), ex-posição à visibilidade, à percepção (noein – nous). O que se expõe? Tudo o que é. Epoíese faz, produz algo em termos de disponibilidade para ser visto, ser percebido. O ente é posto e mantido pela vigência da luta, e é a luta que lhe concede solidez e estabilidade, PERSISTÊNCIA no ser. d) E, seguida, fala-se de deuses (theous), homens (anthropous), escravos (doulous) e de homens livres (eleutherous). Por que não a chuva, o vento, as árvores, as gaivotas, os templos e as poleis? Por que deuses e homens, livres e escravos? Não se deve entender essas figuras como partes arbitrárias do ser, nem mesmo como partes mais importantes do ser, mas sim como modos fundamentais de ser: ser deus, ser homem, ser escravo e ser senhor. Mas como? Ora, em toda luta, há decisão, vitória e derrota (deuses e homens), ou então desistência, derrocada, fracasso, insuficiência, covardia. O caráter originário da luta é a Decisão do “ou – ou”, ou a luta ou a fuga, ou a vitória ou a derrota. Apenas os heróis e os grandes conhecem a angústia da decisão. e) A sentença de Heráclito, por sua vez, também fala da verdade (alétheia), embora não expressamente. Aletheia, entre os gregos, tinha o significado de des-encoberto, des-velado. Mas o que entendemos por verdade hoje? (Exemplos de verdade = 1+1=2, estamos no mês de fevereiro, Brasília é a atual capital do país, o núcleo da terra é feito de níquel e ferro, há mais de 20 alunos nesta sala agora etc. São afirmações que contêm algo verdadeiro, mas onde está esse algo? Está na própria afirmação, mas o que lhes concedeu o caráter de verdade? Ora a frase DIZ O QUE É COMO É. As afirmações dão de volta o que já encontramos: o algoritmo de adição na matemática, a noção de geografia, o estado da sala, dizemos que as afirmações concordam com a conjuntura das coisas. Enfim, a afirmação é verdadeira porque COINCIDE com a “realidade”, deixa-se reger pelo real, ou seja, o caráter de verdade da afirmação verdadeira está em sua CORREÇÃO. Mas correção provém, por sua vez, de algo ser regido/dirigido/conduzido por outro algo. Em suma, correção significa ser medido por algo. Nada mais diferente, no entanto, do que “medir” e “des-velar”. f) Ora, dissemos que édeixe e epoíese põem para fora o que é. Mas de onde e para onde? Para a visibilidade e a percepção, logo para a abertura, para o dês-velar, para o dês-encobrir e, portanto, para a alétheia. Logo, o ente sai do encobrimento para o aberto, para a abertura, para SER, ou seja, estar na abertura do aparecimento significa SER. A luta põe o que é para a abertura, para a verdade, para o ser. Conclusão: A essência do ser do ente encontra-se em conexão intrínseca com a essência da verdade (enquanto dês-velamento). Mas como a verdade enquanto des-velar-se tornou-se verdade enquanto correção, medida? 1. Heráclito foi chamado o Obscuro, devido à complexidade de suas sentenças. Ele defendia a ideia de que o fogo é a arché do cosmos. O fogo seria Logos, um deus que governaria tudo. A physis seria governada por leis. Em sua metafísica, o mundo sempre teria existido (não teria havido cosmogonia). 2. Panta rei – é a própria expressão de que tudo é mudança, movimento, devir, vir-a-ser. Há a manutenção da tensão entre opostos que se digladiam um contra o outro, num conflito incessante (polemos). 3. O universo é a eterna transformação do fogo (Logos), em virtude do qual tudo acontece. VII) ESCOLA ELEATA (ELEIA) Os eleatas pertencem a uma segunda geração de pensadores gregos, que visavam a contestar a aparente “anarquia” dos pensadores primevos defendendo o monismo, ou seja, a concepção de que haveria apenas um único ser. Sua influência na história do pensamento é extraordinária – Platão chamou Parmênides de “pai” no diálogo O Sofista. 1. PARMÊNIDES DE ELEIA a) Parmênides apresentou seu pensamento em um longo poema, que chegou até nós apenas parcialmente, e que é chamado Poema das Duas Vias ou Poema de Verdade. O poema descreve um condutor de carruagens guiadas por uma parelha de cavalos alados e que se encontra defronte a dois caminhos distintos – o caminho da aletheia, que é o caminho do Ser, e o caminho da doxa, que é o caminho do não-Ser/Nada. Esse segundo caminho deve ser evitado, pois é o caminho da falsidade e do engano. Afinal, nada podemos dizer/pensar sobre o Nada. Afinal, do nada, nada se faz. Assim, conhecer o falso é conhecer nada, ou seja, nada conhecer. b) O único caminho válido é o do Ser. O Ser é aquilo que é (o Nada simplesmente não é). O ser é não-gerado e incorruptível, portanto, é eterno (os deuses existem, são imortais; os homens, mortais). Além disso, o Ser é contínuo, não tem vazios, nem vácuo, nem gradações. Não é constituído de partes, mas é pleno, repleto de si mesmo. O ser é imutável, não se altera, não se transforma, não se degrada, não perece. È delimitado, ou seja, é finito (segundo Zenon, é uma esfera plena). c) É a razão que mostra a verdade com evidência incontornável, apodítica. No entanto, nossa percepção sensorial mostra outra coisa – há mudanças, diversidade, movimento, distinções, partes. É daí que surge o caminho enganoso da doxa, do dokei moi, ou seja, daquilo que nos aparece. A doxa seria a crença de que as coisas são tais como as presenciamos com os sentidos. Começa a veemente desconfiança da metafísica frente aos sentidos. A razão, infalível, sobrepuja os dados dos sentidos, que sempre nos atraiçoam. Leitura: Poema das Duas Vias (Fragmentos 1-8), Parmênides. POEMA DAS DUAS VIAS - PARMÊNIDES (FRAGMENTOS I-VIII) Os corcéis que me transportam, tanto quanto o ânimo que impele, conduzem-me, depois de me terem dirigido pelo caminho famoso da divindade, que leva o homem sabedor por todas as cidades. Por aí me levaram, por aí mesmo me lavaram os habilíssimos corcéis, puxando o carro, enquanto as jovens mostravam o caminho. O eixo silvava nos cubos como uma siringe, incandescendo (ao ser movido pelas duas rodas que vertiginosamente o impeliam de um e de outro lado), quando se apressaram as jovens filhas do sol a levar-me, abandonando a região da noite para a luz, libertando com as mãos a cabeçados véus que a escondiam. Aí está o portal que separa os caminhos da Noite e do Dia, encimado por um umbral de pedra; o portal, etéreo, fechado por enormes batentes, dos quais a Justiça vingadora detém as chaves que os abrem e fecham. A ela se dirigiram as jovens, com doces palavras, persuadindo-a habilmente a erguer para elas por um instante a barra do portal. E ele abriu-se, revelando um abismo hiante, enquanto fazia girar, um atrás do outro, os estridentes gonzos de bronze, fixados com pregos a cavilhas. Por ali, atrás do portal, as jovens guiaram com celeridade o carro e os corcéis. E a deusa acolheu-me de bom grado, mão na mão direita tomando, e com estas palavras se me dirigiu: “Ó jovem, acompanhante de aurigas imortais, tu, que chegas até nós transportado pelos corcéis, Salve! Não foi um mau destino que te induziu a viajar por este caminho – tão fora do trilho dos homens –, mas o Direito e a Justiça. Terás, pois, de tudo aprender: o coração inabalável da realidade [ou “da verdade”] fidedigna e as crenças dos mortais, em que não há confiança genuína. Mas também isso aprenderás: como as aparências têm de aparentemente ser, passando todas através de tudo”. Vamos, vou dizer-te – e tu escuta e fixa o relato que ouviste – quais os únicos caminhos de investigação que há para pensar: um que é, que não é para não ser, é caminho de confiança (pois acompanha a realidade); o outro que não é, que tem de não ser, esse te indico ser caminho em tudo ignoto, pois não poderás conhecer o não-ser, não é possível, nem indicá-lo [...] [...] pois o mesmo é pensar e ser. Nota também como o que está longe pela mente se torna firmemente presente: pois não separarás o ser de sua continuidade com o ser, nem o dispersando por toda a parte segundo a ordem do mundo, nem o reunindo. [...] para mim é o mesmo por onde hei de começar: pois aí tornarei de novo. É necessário que o ser, o dizer e o pensar sejam: pois podem ser, enquanto o nada não é: nisto te indico que reflitas. Desta primeira via de investigação te [afasto], e logo também daquela em que os mortais, que nada sabem, vagueiam, com duas cabeças: pois a incapacidade lhes guia no peito a mente errante; e são levados, ao mesmo tempo surdos e cegos, aturdidos, multidão indecisa, que acredita que o ser e o não- ser são o mesmo e o não-mesmo, para quem é regressivo o caminho de todas as coisas. Pois nunca isto será demonstrado: que são as coisas que não são; mas afasta desta via de investigação o pensamento, não te force por esse caminho o costume muito experimentado, deixando vaguear olhos que não veem, ouvidos soantes e língua, mas decide pela razão a prova muito disputada de que falei. Só falta agora falar do caminho que é. Sobre esse são muitos os sinais de que o ser é ingênito e indestrutível, pois é compacto, inabalável e sem fim; não foi nem será, pois é agora um todo homogêneo, uno, contínuo. Com efeito, que origem lhe investigarias? Como e onde se acrescentaria? Nem do não- ser te deixarei falar, nem pensar: pois não é dizível, nem pensável, visto que não é. E que necessidade o impeliria a nascer, depois ou antes, começando do nada? E, assim, é necessário que seja de todo, ou não. Nem a força da confiança consentirá que do não-ser nasça algo ao pé do ser. Por isso nem nascer, nem perecer, permite a Justiça, afrouxando as cadeias, mas sustém-nas: esta é a decisão acerca disso – é ou não é –; decidido está, então, como necessidade, deixar uma das vias como impensável e inexprimível (pois não é via verdadeira), enquanto a outra é a autêntica. Como poderia o ser perecer? Como poderia gerar-se? Pois, se era, não é, nem poderia vir a ser. E assim a gênese se extingue e da destruição não se fala. Nem é divisível, visto ser todo homogêneo, nem num lado é mais, que o impeça de ser contínuo, nem noutro menos, mas é todo cheio de ser e por isso todo contínuo, pois o ser é com o ser. Além disso, é imóvel nas cadeias dos potentes laços, sem princípio nem fim, pois gênese e destruição foram afastadas para longe, repelidas pela confiança verdadeira. O mesmo em si mesmo permanece e por si mesmo repousa, e assim firme em si fica. Pois a potente Necessidade o tem nos limites dos laços, que de todo o lado o cercam. Pois não é justo que o ser seja incompleto: pois não é carente; ao [não-]ser, contudo, tudo lhe falta. O mesmo é o que há para pensar e aquilo por causa de que há pensamento. Pois, sem o ser – ao qual está prometido –, não acharás o pensar. Pois não é e não será outra coisa além do ser, visto o Destino o ter amarrado para ser inteiro e imóvel. Acerca dele são todos os nomes que os mortais instituíram, confiantes de que eram reais: “gerar-se” e “destruir-se”, “ser” e “não ser”, “mudar de lugar” e “mudar a cor brilhante”. Visto que tem um limite extremo, é completo por todos os lados, semelhante à massa de uma esfera bem rotunda, em equilíbrio do centro a toda a parte; pois, nem maior, nem menor, aqui ou ali, é forçoso que seja. Pois nem o não-ser é, que o impeça de chegar até o mesmo, nem é possível que o ser seja maior aqui, menor ali, visto ser todo inviolável: pois é igual por todo o lado, e fica igualmente nos limites. Nisso cesso o discurso fiável e o pensamento em torno da verdade; depois disso as humanas opiniões aprende, escutando a ordem enganadora das minhas palavras. E estabeleceram duas formas, que nomearam, das quais uma não deviam nomear – e nisso erraram –, e separaram os contrários como corpos e postaram sinais, separados uns dos outros: aqui a chama do fogo etéreo, branda, muito leve, em tudo a mesma consigo, mas não a mesma com a outra; e a outra também em si contrária, a noite sem luz, espessa e pesada. Esta ordem cósmica eu te declaro toda plausível, de modo algum que nenhum saber dos mortais te venha transviar. 2. MELISSO Melisso apenas reforçou o parmenidianismo, mas o alterou em dois pontos: afirmou que o mundo é infinito e que existe apenas uma coisa – o Ser. 3. ZENON DE ELEIA Elaborou 40 paradoxos e, polêmico, foi vigoroso defensor de Parmênides. Nesses paradoxos, Zenon tentou mostrar que a crença na existência da diversidade e do movimento necessariamente leva a contradições incontornáveis. Nesse sentido, parece ter sido o criador da demonstração “por absurdo”. Exemplo: Se existe mais de uma coisa, cada uma delas deve ser ao mesmo tempo grande e pequena, ou mesmo existir em número limitado e ilimitado – ao mesmo tempo. Outro conhecidíssimo paradoxo é o de Aquiles e a Tartaruga. VIII) EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO IX) ESCOLA ATOMISTA: LEUCIPO E DEMÓCRITO X) ANAXÁGORAS PLATÃO (427 – 347) Biografia Ateniense de família aristocrática, o que ajudou a trazer a discussão política para o cerne de seu pensamento filosófico. Pertenceu aos círculos de Crátilo (da escola heraclitiana e título de um de seus diálogos) e de Sócrates, provavelmente para preparar-se melhor para a atividade política, fundamental em uma polis democrática. Dois de seus parentes, Cármides e Crítias (parentes de Platão e também títulos de diálogos) participaram do Governo dos Trinta Tiranos (404-403), no pós-Guerra do Peloponeso. A execução de Sócrates em 399 teve impacto extraordinário em sua visão da política. A partir de então Platão viajou para Mégara, onde ficou por três anos e se encontrava com outros discípulos de Sócrates, como Euclides. Em seguida, vai a Cirene, onde conheceu Teodoro (conferir diálogo Teeteto). Na Magna Grécia, conheceu os pitagóricos (afirma na Carta VII, autobiográfica), sobretudo Arquitas, governante de Tarento. Volta e permanece em Atenas de 395 a 388, quando provavelmente escrever seus diálogos aporéticos. Nessemomento, Platão foi convidado a permanecer na corte de Siracusa pelo tirano Dionísio I, onde fez duradoura amizade com Díon, parente do tirano. No entanto, Platão logo se indispôs com o tirano e a corte. Vendido como escravo em Égina, foi resgatado por um amigo e voltou a Atenas. Ao voltar, fundou em 387 sua escola de filosofia, a Academia, no jardim dedicado ao herói mítico Academos. A partir de então, provavelmente, começou a divulgar sua doutrina nos diálogos, o que aumentou ainda mais o prestígio da escola. Em 367, Platão cedeu aos argumentos de Díon e volta para Siracusa para aconselhar o novo tirano Dionísio II, filho de Dionísio I. Mais uma vez, Platão se indispôs com o tirano, que expulsou Díon de Siracusa, e Platão foi feito prisioneiro, até que conseguiu permissão para voltar a Atenas. Finalmente, em 361, novamente instado por Díon, que se havia refugiado em Atenas, Platão volta pela última vez a Siracusa. Mais uma vez, a viagem se revela um fracasso, e Platão só foi poupado da morte devido aos amigos influentes na Sicília. Tendo voltado a Atenas, escreve seus diálogos tardios, e retoma a direção da Academia até sua morte em 347. Questão Platônica Trata-se de discutir a autenticidade e a cronologia dos diálogos, tema de notável importância filosófica para que possamos entender as mudanças no pensamento de Platão ao longo do tempo. As pesquisas só se tornaram sistemáticas nos séculos XIX e XX, e os filólogos chegaram a algumas conclusões parciais a partir de estudos estilométricos. Atualmente, dividimos os diálogos de Platão em três grandes grupos: 1) diálogos socráticos, aporéticos ou de juventude, nos quais o filósofo desenvolve a pesquisa socrática a respeito das virtudes humanas – as aretai – tais como a piedade, a justiça, a amizade, a coragem. São diálogos mais curtos, que terminam em aporia (perplexidade) e nos quais o personagem Sócrates, provavelmente, tem características que pertenciam ao Sócrates histórico; 2) diálogos de maturidade (provavelmente a partir do Mênon), nesses Platão expõe sua Teoria das Formas ou das Ideias, que diz respeito às instâncias suprassensíveis, que só podem ser encontradas em uma “segunda navegação” (Fédon). Diálogos como República, Fedro, O Banquete e Fédon são os mais importantes dessa fase e constituem os principais textos do chamado platonismo clássico; 3) Finalmente, os diálogos de velhice, mais longos, nos quais Sócrates mal aparece e em que Platão faz uma vigorosa crítica de sua própria Teoria das Ideias. Têm um caráter mais “dialético” e místico. Doutrinas não-escritas de Platão O tema das doutrinas não-escritas de Platão foi intensamente explorado a partir do século XX. Fontes antigas afirmam que Platão deu cursos chamados Sobre o Bem na Academia. No entanto, Platão sempre enfatizou que jamais colocaria o conteúdo desses cursos em seus textos escritos. Sabemos pelas fontes que tais cursos versavam sobre os primeiros princípios, para cuja compreensão Platão defendia o emprego oral da dialética, além de longa preparação e rigorosas observações. Na Carta VII, Platão afirma que o entendimento dessas realidades últimas ocorreria “de modo imprevisto, como luz que se acende de uma simples fagulha, [já que] esse conhecimento nasce na alma e de si mesmo se alimenta”. Em outro trecho da mesma carta, o filósofo assevera que “sobre essas coisas não há nenhum escrito meu e nunca haverá”. No entanto, alguns discípulos que presenciaram as conferências escreveram sobre tais doutrinas. Sabemos que Platão teve acesso a esses escritos e, embora os condenasse, admitiu que as lições tinham sido bem compreendidas. Crise do Logos Podemos dizer que Platão busca um logos que diz o ser, ou seja, um discurso que diz o que é. Na Atenas democrática, impregnada da influência sofística, os logoi tendem a ser desvinculados da realidade, podendo tornar-se instrumentos de mentira, engano, ilusão, manipulação e dissimulação. Em outras palavras, os logoi são muitas vezes usados como instrumento de poder persuasivo – estamos no campo das doxai. Platão, provavelmente seguindo seu mestre Sócrates, tenta fazer o logos novamente dizer o que é (cf. Crátilo 386d9-387c). Importância das technai Desde os diálogos socráticos, Platão persegue a concepção de que é necessário ter o saber de uma techné, um saber-fazer, para ter acesso ao discurso legítimo – o único logos que deveria aparecer na polis. Na democracia, em princípio, qualquer cidadão tem a liberdade de discursar e de ser ouvido, de ver e de ser visto. É a capacidade persuasiva do discurso entre iguais que é levada em consideração na ação política. Para Platão, no entanto, apenas os peritos poderiam ter acesso ao logos, ou seja, é necessário competência. Além disso, existe uma hierarquia entre as technai. Logo, deve haver uma techné superior a todas as outras, que deve governá-las. Tal techné é a dialética – a arte do bem falar, prerrogativa exclusiva do sábio, do filósofo. A dialética promoverá a necessária reconciliação entre o logos e o ser. O logos, através da dialética, volta a dizer o que é, volta a ter dignidade. ALEGORIA DA CAVERNA – INTERPRETAÇÃO HEIDEGGERIANA 1) Interpretação da Alegoria da Caverna pelo próprio Platão (517a – 518d) a) Caverna: o que se mostra à visão que olha em sua volta; b) Fogo na Caverna: Imagem do Sol; c) Abóbada da Caverna: Firmamento. Em a, b e c temos o ente. d) Objetos fora da Caverna são os aspectos através dos quais o ente se apresenta (não é aparência exterior). Só se pode lidar com o ente (ver, calcular, sentir, visar, perceber, entender, arrepender-se) através do “aspecto”, que em grego é idea ou eidos; e) O Sol na Alegoria é aquilo que faz com que todas as coisas sejam visíveis. 2) O que importa na Alegoria da Caverna não são seus elementos mas sim as transições efetuadas na Caverna entre as sombras e a luz, entre o dentro da Caverna e o fora, nas quais surgem para os olhos dois modos de perturbação, cada um deles portando um sentido diferente. Na passagem das sombras para a luz, fora da Caverna o ente se mostra de maneira mais essencial, mas o homem não está amadurecido para vislumbrá-lo; na volta à escuridão, o homem decai de seu saber e não consegue adaptar-se à realidade escura de um mundo inessencial. 3) Em cada transição, não é apenas o olho que deve readaptar-se mas também a alma, que deve readaptar-se ao novo mostrar-se do ente. Estamos falando aqui de uma mudança na essência do homem, portanto, estamos falando da transição da apaideusia para a Paideia, que, aliás, é o modo como Platão introduz a Alegoria. A base da formação (paideia) é uma mudança que Platão efetua na essência da verdade, como mostraremos. A Paideia implica que o modo através do qual o ente se revela é modificado. Des-velamento = a-letheia. 4) Existiriam quatro níveis de dês-velamento do ente, ou de moradas, em gradação ascendente e descendente, na Alegoria. Em cada morada, o alethés dá uma medida diferente. Na primeira morada, o alethés são as sombras. Quando as correntes caem, temos a segunda morada, na qual o homem que consegue divisar o contorno sombrio dos objetos iluminados pelo fogo ainda não tem a medida necessária para a decisão sobre o “verdadeiro”: Ele apenas se libertou das correntes mas ainda não foi lançado na liberdade real. Ser apenas deixado solto ainda não é a liberdade. Na terceira morada, fora da Caverna, as coisas todas se mostram tais como são em seu aspecto próprio (em si mesmas e por si mesmas), o que Platão afirma ser o mais desvelado. Aqui surge a libertação verdadeira, que significa a perseverança e paciência em firmar o olhar para as coisas que se mantêm firmes emseu aparecer. É só nessa morada que se dá então a realização efetiva da “formação”, o que mostra sua co-pertença com a verdade. Ora, como a paideia parte da apaideusia, então o homem decide-se por voltar à Caverna e libertar os outros homens do que estes consideram o mais desvelado para o âmbito do mais desvelado de todos. Nessa quarta morada, o problema é que o liberto não consegue mais orientar-se. Isso significa que ele pode sucumbir à verdade que ali serve de medida, ou seja, a “verdade” que afirma ser aquela “realidade” a única. 5) O que nos interessa é que o desvelado tem que surgir, tem quês er arrancado do velado: Verdade é aquilo que se arrancou do velamento (daí: a-letheia). Por isso essa conquista é luta de vida ou morte. No entanto, desde o primeiro âmbito da Alegoria, Platão lida também com outra essência da verdade. 6) A essência da Ideia reside no caráter de luminosidade e visibilidade. Ou seja, o desvelar-se deve sempre referir-se àquilo que é acessível pela luminosidade da Ideia. Na Alegoria é o Sol, enquanto fonte de luz, que dá visibilidade ao que é visto. Em Platão, o olho é helioeides – “conforme ao sol”, pois o próprio olho “brilha” e se entrega ao luzir, podendo, assim, acolher e anotar aquilo que aparece. 7) O Bem não significa o “bem moral”, nem Valor, nem perceptio (“representação subjetiva” na Modernidade). To Agathon significa “aquilo que se presta para alguma coisa ou que torna prestável para alguma coisa”. Logo, a ideia do Bem é o que faz com que uma ideia, enquanto ideia, se preste para algo, ou seja, possibilite o aparecer de tudo o que é em sua visibilidade. Assim, a ideia do Bem é a ideia suprema, em duplo sentido: a) É a ideia mais elevada em termos do que torna todos os entes possíveis; b) A visada para cima em sua direção é a mais difícil. Onde quer que um ente se mostre, o “bem” se encontra – mesmo nas sombras, que só são sombras porque há um lume na Caverna, ainda que esse lume seja ignorado.