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DESAFIOS PARA A APLICAÇÃO DA VISÃO SISTÊMICA NAS EMPRESAS E NO MEIO ACADÊMICO Omar Sacilotto Donaires Smar Equipamentos Ind. Ltda. omardonaires@ig.com.br Resumo A aplicação da visão sistêmica, tanto nas empresas quanto no meio acadêmico, se depara com dificuldades. Várias dessas dificuldades são apontadas por autores clássicos na literatura sobre visão sistêmica aplicada à administração de organizações. Algumas delas se fizeram presentes ao longo da experiência do autor. O objetivo deste artigo é identificar algumas dessas dificuldades, com as quais o autor se deparou ao longo de cerca de dez anos de experiência com pesquisa, aplicações na empresa onde atua, e disseminação das suas experiências como palestrante e docente. O autor descreve essas dificuldades na forma de desafios que se apresentam para a aplicação da visão sistêmica, tanto no meio organizacional quanto no meio acadêmico. As dificuldades identificadas são agrupadas em quatro categorias, denominadas desafio semântico, desafio conceitual, desafio epistemológico e desafio pragmático. Ao empreender uma aplicação da visão sistêmica, seja no meio empresarial, seja no meio acadêmico, é importante que se esteja consciente desses desafios. Caso eles surjam, as referências fornecidas neste artigo, a autores clássicos ou a publicações do próprio autor, devem oferecer subsídios para ajudar a superá-los, contribuindo, assim, para resultados mais consistentes. Palavras-Chave: visão sistêmica, administração, empresas, metodologias sistêmicas Abstract The application of systems thinking, both in enterprises and in the academy, faces difficulties. Many of those difficulties are pointed by classic authors in the literature about systems thinking applied to the management of organizations. Some of those difficulties made themselves present in the experiences of this author. The goal of this article is to identify some of those difficulties that the author faced in his experiences during about ten years of research, applications in the company where he works, and dissemination of those experiences as lecturer and instructor. The author describes those difficulties as challenges that are posed to the application of systems thinking both in enterprises and in the academy. The difficulties that were identified are grouped here into four categories, called semantic challenge, conceptual challenge, epistemological challenge, and pragmatic challenge. When one undertakes an application of systems thinking, either in an enterprise or in the academy, it is important to be conscious of those challenges. In the case that they arise, the references given in this article to classic authors and to publications of this author, should provide support to help to overcome them, so contributing to more consistent results. Keywords: systems thinking, management, companies, systems methodologies 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 2 Introdução A aplicação da visão sistêmica nas empresas é dificultada pelo fato de que os profissionais raramente dominam os fundamentos teóricos necessários para orientar uma aplicação prática conforme procedimentos metodológicos consistentes. No meio acadêmico, os pesquisadores estão mais acostumados a lidar com construções teóricas elaboradas e rigor metodológico. Porém, ainda há resquícios da visão reducionista, uma herança inseparável da abordagem cartesiana que pode contribuir para distorcer princípios fundamentais da visão sistêmica. Além dessas dificuldades, tanto as empresas quanto o meio acadêmico compartilham características que se são, por natureza, contrárias à visão sistêmica: a ênfase na compartimentação do conhecimento em disciplinas, que caracteriza o sistema de ensino desde a educação fundamental, e o elevado grau de especialização dos profissionais e pesquisadores mais qualificados. O fato é que, em ambos os contextos, existem dificuldades reais que se apresentam como empecilhos para a disseminação do pensamento sistêmico e a vulgarização da prática sistêmica. Neste artigo, o autor se propõe a evidenciar algumas dessas dificuldades, com as quais ele tem se deparado ao longo de cerca de dez anos de atividades profissionais e acadêmicas envolvendo a visão sistêmica. Além disso, o autor se propõe a apresentar subsídios para a superação dessas dificuldades. A respeito das seções que se seguem, primeiramente é apresentado um breve referencial teórico, seguido da descrição dos objetivos e da metodologia utilizada. Então, as dificuldades identificadas são apresentadas, organizadas em quatro categorias denominadas desafio semântico, desafio conceitual, desafio epistemológico e desafio pragmático. Para concluir, apresentam-se algumas considerações finais. 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 3 Referencial Teórico Em 1937, Ludwig Von Bertalanffy (1968) propôs a Teoria Geral de Sistemas (TGS) com o objetivo de “estabelecer uma nova visão da realidade que transcenda os problemas tecnológicos das várias ciências, que tenha generalidade suficiente para ser transdisciplinar, abstraindo e fatorando os atributos comuns que porventura existam entre as várias ciências num corpo de conhecimento unificado”. É notória na definição de Bertalanffy, a orientação da TGS à transdisciplinaridade. Uma das suas preocupações centrais eram os sistemas abertos, tais como os sistemas vivos, cuja capacidade de regulação e auto-organização desafiava as formulações convencionais da Física baseadas na segunda lei da termodinâmica. Praticamente nessa mesma época, Norbert Wiener (1948) introduziu a Cibernética como uma ciência interdisciplinar, para relacionar as várias ciências, preencher os espaços vazios não pesquisados por nenhuma delas e permitir que cada ciência utilizasse os conhecimentos desenvolvidos pelas outras. Wiener descreveu essa nova ciência como “o domínio todo da teoria da comunicação e do controle, seja na máquina ou no animal”. Cibernética é o estudo interdisciplinar da estrutura dos sistemas complexos, especialmente dos processos de comunicação, mecanismos de controle e princípios de retroalimentação. A partir da Teoria Geral de Sistemas e da Cibernética começaram a surgir discussões e aplicações dos conceitos de sistemas no âmbito das ciências sociais e da administração. Várias metodologias sistêmicas floresceram com o fim de operacionalizar os conceitos da teoria de sistemas no domínio da administração de organizações e do planejamento social. Como exemplos, pode-se citar a Dinâmica de Sistemas de Forrester (1961, 1969, 1971), o Modelo do Sistema Viável de Beer (1979, 1985), a Metodologia Sistêmica Soft de Checkland (1981, 2000), a Heurística Sistêmica Crítica de Ulrich (1994, 2002, 2010), entre várias outras 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 4 descritas por Flood e Jackson (Jacson, 1991; Flood & Jackson, 1991), e articuladas no sistema de metodologias sistêmicas que se tornou parte da Intervenção Sistêmica Total. O pensamento sistêmico, segundo Checkland (1981), está fundamentado em dois pares de ideias: emergência e hierarquia, e comunicação e controle. O primeiro par está relacionado ao conceito de complexidade organizada, que se tornou o assunto da nova disciplina “sistemas”. O modelo geral de complexidade organizada consiste numa hierarquia de níveis de organização, cada um mais complexo do que o inferior, um nível sendo caracterizado por propriedades emergentes que não existem no nível inferior, nem sequer fazem sentido na linguagem apropriada ao nível inferior. Nos sistemas abertos, a manutenção da hierarquia implicará um conjunto de processos que operam nas interfaces entre os níveis, nos quais há comunicaçãode informação com o propósito de regulação ou controle. Isso leva ao segundo par de ideias, comunicação e controle. A prática sistêmica é facilitada pelas metodologias. Flood (1991) destaca que as metodologias sistêmicas encerram suposições explícitas ou implícitas, conscientemente ou inconscientemente, acerca do mundo que elas procuram entender ou modificar, incluindo suposições acerca dos interesses humanos que elas servem; da natureza do pensamento sistêmico e dos sistemas sociais; da maneira apropriada de se “ver” as organizações; da complexidade dos sistemas com os quais elas lidam e da relação entre os participantes; e coisas tais como racionalidade, verdade e progresso. Nesse sentido, foi Checkland (2000) quem primeiro estabeleceu a distinção entre pensamento sistêmico “hard” e “soft”. O pensamento sistêmico “hard” é típico das abordagens que usam o termo “sistema” simplesmente como um rótulo para algo que se considera existir no mundo exterior. A pressuposição subjacente é de que o mundo pode ser entendido como um conjunto de sistemas em interação, alguns dos quais não funcionam bem, e podem ser modificados através de engenharia para funcionarem melhor. 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 5 As pressuposições subjacentes ao pensamento sistêmico “soft” são bem diferentes. O mundo é entendido como sendo complexo, problemático, misterioso. Entretanto, assume-se que o processo de lidar com ele, isto é, o processo de investigação acerca dele, pode ser organizado como um sistema de aprendizagem. Assim, o termo “sistema” deixa de ser aplicado ao mundo, e passa, ao invés, a ser aplicado ao processo de se lidar com o mundo. É essa mudança de “sistemicidade”, ressalta Checkland, do mundo para o processo de investigação do mundo, que caracteriza a distinção intelectual crucial entre as duas formas fundamentais de pensamento sistêmico, “hard” e “soft”. Ulrich (1983) acrescenta a perspectiva crítica ao pensamento sistêmico. Ele observa que, sempre que se aplica o conceito de sistemas, tem-se que emitir juízos prévios a respeito de quais observações empíricas e considerações são relevantes – o que pertence ao sistema – e quais devem ser deixadas de lado – o que pertence ao ambiente. Tais juízos carecem de reflexão crítica, uma vez que o que determina o que pertence e o que não pertence ao sistema é o ponto de vista do investigador, o propósito do seu mapeamento, suas preconcepções da realidade a ser mapeada e os valores que ele associa a ela. A ideia de sistemas, portanto, representa apenas um ideal de compreensibilidade, uma vez que não se pode conhecer “o sistema todo”. Sendo assim, a ideia de sistemas sugere a necessidade de reflexão crítica na inevitável falta de compreensibilidade no nosso entendimento e projeto de sistemas (sociais). Essas diferentes vertentes do pensamento sistêmico ampliam a perspectiva do observador ou interventor, aumentando sua competência para lidar com as situações da realidade prática das organizações. Objetivo e metodologia O objetivo deste artigo é evidenciar algumas dificuldades fundamentais que podem se apresentar como obstáculos para o entendimento correto das ideias associadas ao pensamento 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 6 sistêmico ou para o exercício consistente da prática sistêmica, seja no contexto organizacional, seja no ambiente acadêmico. Além disso, o objetivo inclui fornecer subsídios, através de referências aos autores clássicos ou a trabalhos publicados pelo próprio autor, para ajudar a superar essas dificuldades. A lista de dificuldades apresentadas neste artigo foi identificada a partir das atividades do autor como profissional da indústria, pesquisador e docente, através de estudos, aplicações e discussões motivadas e proporcionadas por essas atividades. Entre elas, o autor destaca: • As aplicações das metodologias sistêmicas no contexto das suas atividades como desenvolvedor de software, coordenador de projetos e gerente de equipe na Smar Equipamentos Industriais Ltda. (Donaires, 2003, 2005, 2006a, 2006b, 2006c, 2007, 2008, 2009, 2010a, 2010b, 2012); • As atividades de pesquisa como membro do Grupo de Sistemas da FEA-RP/USP (Donaires, Cezarino, Pinheiro, Ostanel, & Martinelli, 2007; Pinheiro, Donaires & Figueiredo, 2011); • As atividades de ensino no curso de MBA em Gestão de Projetos Inovadores da FEA-RP/USP (Donaires & Takahashi, 2011); • As palestras para os estudantes de graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado) do curso de administração da FEA-RP/USP; • A contribuição nos Congressos Brasileiros de Sistemas, como autor e avaliador de artigos em todas as edições; como membro da comissão de organização da 1ª, 2ª e 10ª edições; e como apresentador e participante ativo em todas as edições, com exceção da 5ª. Através de um processo de reflexão, o autor resgata as dificuldades que ele considera serem as mais relevantes ou marcantes com as quais ele se deparou durante o exercício dessas 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 7 atividades. Algumas dificuldades identificadas são discernimentos que surgiram a partir desse processo de reflexão. Qualquer que seja o caso, o autor procura apresentar evidências de que a dificuldade identificada é, de fato, pertinente, fazendo referência às suas próprias publicações, à literatura pesquisada, ou a ambos. De modo geral, a descrição das dificuldades consiste de uma combinação de elaboração pelo próprio autor, citações da literatura pesquisada, e citações das suas publicações anteriores. A fim de estruturar o trabalho, o autor agrupou as dificuldades identificadas em quatro categorias, denominadas desafio semântico, desafio conceitual, desafio epistemológico e desafio pragmático. O desafio semântico diz respeito à dificuldade associada ao entendimento do significado do vocábulo “sistêmico”; o desafio conceitual discorre acerca de como conceitos importantes da teoria de sistemas podem ser interpretados e empregados de forma fundamentalmente equivocada; o desafio epistemológico focaliza a atitude do observador ou interventor em relação aos modelos sistêmicos e aos procedimentos metodológicos; e o desafio pragmático trata das dificuldades que se apresentam para as aplicações práticas. Desafios para a aplicação da visão sistêmica Desafio semântico O desafio semântico diz respeito às dificuldades associadas ao entendimento do significado do vocábulo “sistêmico”. O tipo de equívoco mais ingênuo que se pode cometer é confundir o uso de algum tipo de abordagem sistemática com visão sistêmica. Esse tipo de confusão tem origem no próprio dicionário, com as definições dos vocábulos “sistemático” e “sistêmico” (Ferreira, 1999), conforme contrastadas na Tabela 1. Chama a atenção o fato de que o dicionário Aurélio praticamente apresenta os dois vocábulos, “sistêmico” e “sistemático”, como sinônimos. Além disso, ele apresenta o 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 8 segundo como tendo raízes etimológicas no grego e no latim, enquanto que o primeiro, na acepção que mais se aproxima ao que interessa para a visão sistêmica, tem origem no inglês. Tabela 1: Definições de sistemático e sistêmico sistemático [Do gr. systematikós, pelo lat. tard. systematicu.] Adj. 1. Referente ou conforme a um sistema. 2. Que segue um sistema. 3. Ordenado, metódico. 4. Coerente com determinada linha de pensamento e/ou de ação. 5. Biol. Relativo à sistemática (1). [Sin., nessas acepç.: sistêmico.] 6. Bras. Diz-se do indivíduo que, por ser metódico ao extremo, se torna ranheta, ranzinza. S. m. 7. Tip. O materialtipográfico (quadrados, fios, vinhetas, etc.) cuja medida se baseia no cícero. sistêmico1 [De sistema + -ico] Adj. 1. Sistemático (1 a 5). 2. Referente à visão orgânica, lógica de um sistema. sistêmico2 [Do ingl. systemic.] Adj. Med. 1. Que afeta todo o corpo; generalizado. Nota. Fonte: Ferreira, A. B. H. (1999). Novo Dicionário Aurélio – Século XXI. Nova Fronteira. Para ser sistemático, sugere o dicionário, é preciso que se proceda de forma ordenada ou metódica. Ser sistemático, no sentido de ser metódico, é essencial para ser sistêmico. Porém, simplesmente ser sistemático, não é, de forma alguma, suficiente. Tome-se, a título de ilustração, a abordagem cartesiana. As quatro regras sugeridas por Descarte para que se conduza a razão de maneira apropriada são, conforme lembra Checkland (1981, p. 46): (1) evitar a precipitação e o preconceito, e aceitar somente as ideias claras e distintas; (2) dividir cada uma das dificuldades em tantas partes quantas possíveis e necessárias a fim de melhor resolvê-las; (3) progredir de forma ordenada do simples para o complexo; (4) fazer a análise completa, sem omitir nada. 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 9 Essa abordagem metódica para lidar com a complexidade pode ser qualificada, sem dúvida, como sistemática; mas ela nem sempre será sistêmica. Para caracterizar a visão sistêmica, é preciso que se considere, com algum grau de formalidade, os fundamentos do pensamento sistêmico. Entretanto, provavelmente não se encontrará na literatura uma proposta consensual a respeito de quais conceitos do pensamento sistêmico estabeleceriam um fundamento mínimo necessário para caracterizar a prática sistêmica. Uma boa referência, porém, é o “modelo formal” de sistemas que Checkland (1971) propôs com o fim específico de verificar se um modelo sistêmico não é fundamentalmente deficiente. Na concepção de Checkland, um modelo S é um modelo formal se, e somente se atende aos requisitos enumerados na Tabela 2. Tabela 2: Modelo formal de sistema Um modelo S é um modelo formal se, e somente se: 1. S tem um propósito ou missão perene 2. S possui uma medida de desempenho que indica o sucesso ou fracasso do sistema em cumprir seu propósito ou missão. 3. S possui um processo de tomada de decisão que lhe permite tomar ação reguladora à luz de (2) e (1). 4. S possui componentes que são eles mesmos sistemas com todas as propriedades de S. 5. S possui componentes que exibem um grau de conectividade tal que efeitos e ações podem ser transmitidos através do sistema. 6. S existe em sistemas e/ou ambientes mais amplos com os quais interage. 7. S possui uma fronteira, que o separa de (6), definida pelos limites do alcance do processo de decisão. 8. S possui recursos físicos e, através de participantes humanos, abstratos à disposição do processo de decisão. 9. S possui alguma garantia de continuidade, não é efêmero, possui estabilidade de longo prazo, e recuperará a estabilidade após algum grau de perturbação. Nota. Fonte: Checkland, P. B. (1981). Systems Thinking, Systems Practice. Chichester: Wiley. O modelo formal de Checkland não tem a intenção de ser normativo, isto é, não é descritivo das manifestações dos sistemas no mundo real, tampouco prescritivo. Ele é baseado na “Anatomia da Teleologia de Sistemas” de Churchman (1971), mas contém somente os componentes cuja ausência ou ineficiência em situações-problema reais se mostrou crucial para indicar a existência de algo que se percebeu como sendo um problema. Por isso ele não inclui aspectos como, por exemplo, “entropia negativa”; porque, embora esse 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 10 seja um conceito importante, ele nunca se monstrou relevante do ponto de vista prático nas inúmeras aplicações empreendidas por Checkland. A definição de Checkland de sistema formal representa uma referência semântica mais apropriada do que a definição do dicionário Aurélio, tanto para caracterizar quanto para orientar a prática sistêmica. Uma boa referência semântica, seja essa ou outra qualquer que se venha a sugerir, é o primeiro passo para se estabelecer uma linguagem comum que possibilite discussões racionais acerca do pensamento sistêmico. Desafio conceitual Esta seção evidencia situações que envolvem a interpretação ou o emprego de conceitos da teoria de sistemas de forma fundamentalmente equivocada. Redução da visão sistêmica a uma visão disciplinar dos sistemas. A visão sistêmica, conforme expressam as definições de dois dos seus mais ilustres fundadores, Bertalanffy e Wiener, traz desde a sua origem uma preocupação com a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade. É próprio da visão sistêmica, portanto, desde a sua gênese, tomar conceitos emprestados das disciplinas, abstraí-los, e emprestá-los a outros usos sem discriminação da sua disciplina de origem. Essa ideia possui um forte apelo, mas exige que quem quer que se aventure no pensamento e na prática sistêmica consiga se desvencilhar dos condicionamentos impostos por uma formação acadêmica e profissional calcada na compartimentação do conhecimento em disciplinas. Isso pode se tornar um desafio para o gestor comum, ou para qualquer profissional, assim como para o pesquisador acadêmico. Existe, dessa forma, o perigo da aplicação de conceitos recuperados a partir da visão sistêmica, porém com viés disciplinar, por profissionais ou pesquisadores que acabam se identificando com tais conceitos, se apropriando deles, porém, despindo-os do seu caráter sistêmico transdisciplinar e restabelecendo um viés disciplinar. 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 11 É assim que pode se manifestar, então, na aplicação da visão sistêmica à administração de organizações, ou ao projeto de sistemas sociais, por exemplo, o mecanicismo, quando conceitos da cibernética oriundos da física e da engenharia são aplicados com um viés típico das suas disciplinas de origem. Da mesma forma, pode se manifestar o organicismo, quando conceitos da Teoria Geral de Sistemas oriundos da biologia são aplicados com um viés próprio da sua disciplina de origem. Redução da visão sistêmica a uma visão tecnicista dos sistemas. Em particular, em face do encantamento do mundo moderno com a tecnologia, existe o perigo de se fazer uma interpretação dos conceitos da visão sistêmica com viés acentuadamente técnico. Nesse caso, a visão mecanicista degenera em tecnicismo. A visão tecnicista privilegia os aspectos técnicos dos sistemas, reduzindo o trabalho de intervenção para melhoria nas organizações ao desenvolvimento de sistemas de tecnologia da comunicação e informação (TIC), normalmente para automatização de processos organizacionais. Quando, justificada pela pressão competitiva, a agenda de uma organização privilegia aspectos técnicos dos sistemas em detrimento das necessidades sociais, organizacionais e humanas, a visão tecnicista degenera um pouco mais, em tecnocracia. Exemplos disso encontram-se na implantação de sistemas de Enterprise Resource Planning, ERP (Pinheiro, Donaires & Figueiredo, 2011) e no desenvolvimento de sistemas de software. Há várias maneiras através das quais um sistema ERP e o sistema organizacional podem se ajustar. A mais simples, é através da configuração de parâmetros do sistema ERP para adequá-lo aos processos organizacionais. Outra forma é a integração de sistemas de software existentes, que implementam processos de gestão da organização, ao sistema ERP. Outra forma ainda, é modificar os processos organizacionais para adequá-los ao sistema ERP. 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 12 Esta última, é a formamais propensa a encerrar investidas tecnocráticas. Infelizmente, ela pode ocorrer frequentemente, já que a primeira forma é viável apenas na extensão em que o sistema ERP, desenvolvido a priori, puder ser configurado para se tornar aderente à organização, e a segunda forma pode envolver riscos e investimentos em desenvolvimento que, normalmente, não estão ao alcance das empresas, especialmente das de menor porte. Quanto ao desenvolvimento de sistemas de software, a engenharia de software recomenda o envolvimento dos usuários no processo de desenvolvimento, para que suas necessidades sejam compreendidas e atendidas pelo sistema a ser desenvolvido. Quando os requisitos dos usuários são muito complexos, diante das dificuldades ou da inviabilidade técnica ou econômica em atendê-los, os especialistas técnicos são capazes de sugerir simplificações técnicas que viabilizam uma solução, porém, em detrimento, por exemplo, da usabilidade do sistema. Configura-se, assim, uma forma de manifestação da tecnocracia. Implantar um sistema ERP ou implementar um sistema de software segundo uma visão sistêmica implica compreender que os sistemas técnicos são apenas uma das faces da moeda. De fato, o trabalho desenvolvido pelos pesquisadores do Instituto de Tavistock, em Londres, constatou que as relações entre o sistema técnico e o sistema social constituíam um campo de estudo à parte. Isso os levou ao desenvolvimento da teoria dos sistemas sociotécnicos (Emery & Trist, 1960). Ao investigar os motivos porque a produtividade da indústria britânica de mineração de carvão no pós-guerra não aumentava na proporção do aumento da mecanização, os pesquisadores de Tavistok entenderam que, ao introduzir a tecnologia, os engenheiros estavam também, inadvertidamente, modificando a organização social do trabalho. Os pioneiros sociotécnicos, relata Mumford (2006), desafiaram o trabalho de rotina, que consistia de tarefas mecânicas nas linhas de montagem. Porém, o advento dos computadores introduziu uma forma mais onerosa de trabalho rotineiro, que consistia na 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 13 digitação de dados para serem processados eletronicamente. Com o teletrabalho, tem-se uma forma ainda mais onerosa de trabalho de rotina, que requer que os empregados nas centrais de atendimento respondam a chamadas ou façam ligações constantemente, enquanto são monitorados eletronicamente e ouvidos por um supervisor. Como se não bastasse o prejuízo social, há ainda a exposição dos trabalhadores ao risco de lesão por esforço repetitivo (LER). Esses exemplos mostram como a tecnocracia pode caminhar pari passu com a evolução da tecnologia. As pesquisas com os sistemas sociotécnicos recaíram no problema clássico de sub- otimização em sistemas. Dividir um sistema em subsistemas e otimiza-los separadamente, não necessariamente resulta na otimização do sistema como um todo. O inverso disso é, talvez, ainda mais importante: o sistema total pode ser otimizado como um todo quando um ou mais subsistemas não está particularmente otimizado. O desdobramento disso para os sistemas sociotécnicos é que o sistema todo pode ser otimizado quando o sistema técnico não está otimizado. Essa constatação desconcertante suplanta a tecnocracia, porém, pode ser muito difícil convencer um profissional técnico dessa realidade. Pinheiro, Donaires & Figueiredo (2011) discorrem sobre os fatores críticos na implantação de sistema ERP e sugerem maneiras através das quais a visão sistêmica poderia ser empregada no processo de implantação desses sistemas. Donaires (2003, 2005, 2006a, 2006b, 2006c, 2007, 2008, 2009, 2010a, 2010b, 2012) apresentam casos de aplicação da visão sistêmica no desenvolvimento de software. Esses trabalhos demonstram o uso da visão sistêmica para “suavizar” o viés tecnológico e reduzir o risco de se incorrer em tecnocracia. Confusão entre hierarquia de níveis recursivos e organograma. No desenvolvimento do modelo do sistema viável, Beer (1979, 1985) precisa recorrer frequentemente ao conceito de hierarquia. Ao fazê-lo, ele adverte que é necessário ter cautela com as conotações que a palavra “hierarquia” importa consigo. Beer precisa do conceito de 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 14 hierarquia somente para demonstrar a recursividade existente entre os níveis organizacionais. Porém, no contexto da ciência da administração, a palavra “hierarquia” geralmente remete ao organograma e à cadeia de comando. A recursividade representa, num nível conceitual, a “cola” coesiva que estabelece a união entre os níveis organizacionais. Sua manifestação concreta é o processo de planejamento, e não o autoritarismo que porventura possa se expressar através da cadeia de comando retratada no organograma da organização. As conotações tradicionais da palavra “hierarquia” têm duas consequências. Por um lado, parecem promover o modelo autoritário da administração e privilegiar a senioridade. Por outro lado, as pessoas em geral, que vivem o dia-a-dia de uma organização, responsabilizam o modelo hierárquico por uma perda de autonomia, por uma erosão da liberdade. Beer observa que essas pessoas vivem uma situação paradoxal: “a mais fervorosa ânsia por liberdade no nível do elemento operacional de qualquer instituição, é contrabalanceada por um clamor necessário por coesão institucional” (1979, p. 173). A fim de aliviar essa condição, ele propõe que a restrição dentro da instituição deve se limitar ao mínimo necessário para garantir a coesão que indica viabilidade. Restrição que excede esse mínimo é opressiva. Portanto, conclui Beer, a intervenção metassistêmica deve ser reduzida ao mínimo necessário para manter a sinergia das unidades organizacionais sob sua responsabilidade, de forma a maximizar a autonomia dessas últimas e, consequentemente, a capacidade de auto-organização e de adaptação da organização. Através do modelo do sistema viável, Beer promete oferecer uma alternativa que dispensa o modelo autoritário tradicional. Se ele consegue fazer isso ou não, ele mesmo reconhece, é um ponto controverso. De fato, seu modelo do sistema viável consegue dar as razões cibernéticas que permitem validar tanto um modelo organizacional autocrático quanto um modelo organizacional que promove a autonomia. 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 15 Porém, aplicar o modelo do sistema viável para justificar um modelo autocrático de administração, é uma distorção da proposta de Beer. Significa aplicar o modelo do sistema viável para explicar o óbvio, e promover mudanças pouco relevantes. O óbvio é o modelo autocrático de administração, que ainda prevalece em muitas organizações. Mudanças pouco relevantes são mudanças que promovem o status quo, ao invés de promover a autonomia. Donaires (2003) aplica o modelo do sistema viável ao planejamento e controle de múltiplos projetos concorrentes num departamento de desenvolvimento de uma empresa brasileira. Ele conclui que a liberdade responsável promove a flexibilidade, que, por sua vez, reflete na capacidade do sistema organizacional de se auto-organizar para acomodar os impactos provenientes de um ambiente turbulento. A pergunta que ecoa a partir dessa constatação é, então, se estaríamos dispostos a desenvolver a cultura – o “etos” – da liberdade para promover a flexibilidade. Desafio epistemológico Esta seção trata das dificuldades metodológicas, com foco na atitude do observador ou interventor em relação aos modelos sistêmicos e aos procedimentos metodológicos. Confusão entre abstração e realidade. As metodologias sistêmicas normalmente se lançam mão de modelos conceituais. Tais modelossão criados através de um processo de abstração da realidade. O verbo abstrair tem dupla conotação (Donaires, 2013): (1) significa incluir num modelo os aspectos da realidade que se considera relevantes; e (2) excluir do modelo os aspectos da realidade que se considera irrelevantes. Além disso, abstração é um processo tipicamente humano e, portanto, permeado de subjetividade. Essa subjetividade se manifesta em pelo menos dois momentos. Num primeiro momento, é preciso estabelecer um propósito para o modelo; porém, observadores diferentes podem entender propósitos distintos para criação de um modelo que se aplica à mesma 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 16 situação. Num segundo momento, as considerações a respeito de quais aspectos são relevantes e quais são irrelevantes, segundo o propósito estabelecido, envolvem juízos que são, inevitavelmente, impregnados com os valores e as impressões subjetivas do observador. Portanto, ao se utilizar modelos para estudo ou intervenção na realidade, não se deve jamais tomá-los como fatos objetivos, como se fossem uma representação fiel de uma realidade concreta, sob pena de se incorrer em ilusão de objetividade. Para não sucumbir à ilusão de objetividade (Ulrich, 1983, p. 184), é preciso estar consciente de que todo nosso conhecimento está expresso em termos de mapas, e “um mapa não é o território” (Korzybski, 1958, p. 58). Um modelo sistêmico é o mapa, não o território, ou seja, não é a realidade que ele se propõe a representar. Todo modelo é criado através de um processo de abstração, e encerra um conteúdo normativo. Portanto, tanto o modelo quanto os desdobramentos práticos decorrentes da sua utilização são passíveis de reflexão crítica, questionamento e debate. Esse questionamento pode partir do leigo, que não participou, juntamente com os ditos especialistas, das decisões durante criação do modelo; mas foi afetado pelas consequências dessas decisões. O desafio, nesse caso, é convencer tais especialistas da possibilidade de ilusão de objetividade, sabendo que essa possibilidade legitima as queixas dos afetados em detrimento da sua prerrogativa de especialista. Donaires (2013) discorre com mais detalhes sobre o processo de abstração e a ilusão de objetividade. Donaires (2005, 2006a, 2010a) descrevem casos de aplicação da abordagem sistêmica crítica, que oferece subsídios para lidar com o processo de abstração de forma consciente da possibilidade de ilusão de objetividade. Confusão entre decomposição recursiva e abordagem cartesiana. Para lidar com sistemas complexos, aprende-se a decompô-los em subsistemas, recursivamente. Ora, a decomposição é a técnica, por excelência, da abordagem cartesiana. O 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 17 desafio, nesse caso, é discernir a distinção fundamental entre a análise cartesiana e a decomposição dos sistemas em subsistemas. A análise cartesiana consiste em decompor recursivamente um problema complexo em suas ideias componentes, até chegar a ideias elementares, claras e distintas, racionalmente intuitivas. Após chegar a ideias intuitivas, a síntese cartesiana consiste em compor a solução do problema original a partir delas. Nesse tipo de abordagem, a composição representa a soma das contribuições das partes para a solução do problema no nível superior de recursão. Checkland (1981, p.12) observa que Descartes ensinou a civilização ocidental que o que se deve fazer com a complexidade é quebrá-la em partes componentes e tratar cada uma delas separadamente. A lição foi bem aprendida, e essa ideia está profundamente arraigada não somente nos cientistas, para quem essa ideia é central, mas em cada um que tenha uma educação nos moldes ocidentais. O pensamento sistêmico, entretanto, começa por observar uma suposição Cartesiana que não é questionada: que uma parte componente separada continua sendo a mesma que ela era quando fazia parte do todo. Ao usar a decomposição e a composição como ferramentas da abordagem sistêmica, deve-se ter sempre em mente que a ênfase do pensamento sistêmico não deve recair sobre as partes isoladas, e sim sobre as relações entre as partes num determinado nível recursivo. As relações entre as partes num determinado nível de recursão suscitam o efeito de sinergia que resulta em propriedades emergentes no nível de recursão superior. Como resultado, o todo é mais do que a soma das partes. Essa constatação diferencia o pensador sistêmico do pensador cartesiano quando ambos lançam mão das técnicas de decomposição e composição para lidar com a complexidade. Confusão entre a natureza da metodologia e o uso que se faz dela. A fim de não comprometer a consistência da aplicação de uma metodologia e, consequentemente, a validade das conclusões teóricas que se pode generalizar a partir dela, 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 18 Flood e Jackson (1991) advertem que é preciso que se esteja sempre atento às suposições subjacentes às metodologias, e aplicá-las de forma tão consciente quanto possível. Isso deve ser observado com atenção especial nos casos de aplicação de múltiplas metodologias em combinação. Metodologias diferentes podem encerrar suposições contrárias, ou até contraditórias. Isso pode comprometer a consistência de uma aplicação quando elas são aplicadas em conjunto. Por isso, Flood e Jackson (Jackson, 1991; Flood & Jackson, 1991) condenam a estratégia do pragmatismo, porque faz uso das várias metodologias de forma inadvertida, sem consideração crítica às suas suposições subjacentes. Eles recomendam que as aplicações das metodologias sistêmicas sejam fundamentadas em três posições filosóficas: complementarismo, consciência social e emancipação. A filosofia do complementarismo requer que as posições teóricas alternativas subjacentes a diferentes metodologias sejam respeitadas, e que as metodologias e suas sustentações teóricas apropriadas se desenvolvam em parceria. A consciência social leva os investigadores ou interventores a contemplarem as consequências sociais de se usar metodologias em particular. O interesse emancipatório consiste em procurar alcançar para todos os indivíduos que trabalham nas organizações e na sociedade o máximo desenvolvimento do seu potencial. Considerando essas posições filosóficas, Donaires (2012) sugere, a partir de casos de aplicação de metodologias em conjunto, que pode ser ingenuidade rotular uma metodologia sistêmica particular como um representante estrito da vertente “hard”, “soft” ou crítica. Parece mais sensato utilizar esses termos para qualificar a atitude do investigador ou interventor ao aplicar uma ou mais metodologias, isto é, para qualificar o uso que ele faz dos modelos sistêmicos na aplicação, a sua postura em relação à realidade, e a forma como ele interpreta os resultados obtidos. 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 19 Desafio pragmático Nós usamos modelos sistêmicos porque nosso foco é lidar com a complexidade na vida diária, e essa complexidade é sempre, pelo menos em parte, uma complexidade de relações de interação e sobreposição. As ideias sistêmicas estão intrinsecamente preocupadas com relações e, portanto, modelos sistêmicos parecem ser uma escolha sensata; e desde que se descobriu que eles, vez após outra, trazem discernimento, eles não tem sido abandonados (Checkland, 2000). É notório o pragmatismo de Checkland nessa citação. Trocando em miúdos, os modelos sistêmicos são usados porque eles “funcionam”. Não se pode, porém, desprezar o fato de que o uso de modelos sistêmicos envolve incerteza e ambiguidade. Conforme Checkland (2000, p. 173), “não hámodelos válidos nem modelos inválidos, somente modelos conceituais defensíveis, e modelos que são menos defensíveis”. Beer (1985, p. 2) corrobora: “um modelo não é verdadeiro nem falso: ele é mais, ou menos, útil”. Sendo assim, não é possível provar a exatidão de um determinado modelo sistêmico que se elaborou para fins de estudo ou intervenção na realidade. Portanto, para se conduzir uma aplicação prática é preciso que se esteja consciente desse fato, e psicologicamente preparado para lidar com essa incerteza e ambiguidade. Caso contrário, o uso de modelos sistêmicos pode parecer pouco concreto e, consequentemente, pouco prático. Quando se fala em aplicação da visão sistêmica nas empresas, pode ter havido um progresso na medida em que os gestores passaram a compreender e utilizar o que se poderia denominar de visão de processos. Parece não haver grandes dificuldades quando se pretende fazer algum tipo de estudo ou intervenção numa empresa utilizando o conceito de processos. A popularização da visão de processos pode ser atribuída à pressão competitiva, como foi o caso, por exemplo, da pressão pela certificação dos sistemas de qualidade das empresas segundo a norma ISO 9000 (Associação Brasileira de Normas Técnicas, 2000), que aborda a 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 20 qualidade segundo uma visão sistêmica orientada a processos. A pressão pela implantação de sistemas ERP demanda, da mesma maneira, o mapeamento de processos organizacionais (Senapeschi & Alliprandini, 1998). O processo de certificação de gerentes de projetos pelo Project Management Institute (PMI) também promove uma visão do gerenciamento de projetos por processos de gerenciamento (Project Management Institute, 2013). Se os gestores nas empresas muito provavelmente compreendem o que é um processo, e podem considera-lo até mesmo um conceito bastante prático, talvez não se possa dizer o mesmo a respeito de conceitos em geral da visão sistêmica. A aplicação do pensamento sistêmico requer o conhecimento de conceitos fundamentais da teoria de sistemas. Porém, esses conceitos são pouco disseminados através da educação formal e da prática profissional. Isso pode fazer com que os profissionais mais pragmáticos achem o pensamento sistêmico – na acepção mais fiel do termo, em distinção às acepções equivocadas apontadas anteriormente – muito teórico. Isso dificulta a passagem do pensamento para a prática sistêmica, ainda mais em face da incerteza e da ambiguidade associadas aos modelos conceituais sistêmicos, mencionadas anteriormente. Dessa forma, a profundidade com que se consegue aplicar a visão sistêmica, e a extensão dos resultados obtidos, pode ser limitada pela capacidade dos atores em absorver conceitos que podem ser estranhos à sua linguagem. Considerações Finais Esse artigo apresenta algumas dificuldades com as quais o autor se deparou nos seus esforços de aplicação da visão sistêmica na empresa onde desempenha suas atividades como desenvolvedor de novos produtos, coordenador de projetos e gerente de equipe; bem como nas suas atividades de pesquisa e ensino. Essas dificuldades são apresentadas como desafios à compreensão correta e à aplicação consistente do conceito de sistemas, tanto no meio empresarial quanto no meio acadêmico. A lista de desafios apresentada está longe de ser 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 21 completa. Sua relevância, porém, se há alguma, reside no fato de que ela é o resultado de uma experiência de cerca de 10 anos de estudos e aplicações, de exposições e debates em congressos e salas de aula, de reflexões e de publicações. A lista de desafios começa com a dificuldade de se estabelecer um significado compartilhado para o termo “sistemas”. Ela continua , com as dificuldades relativas à compreensão de conceitos de sistemas de forma transdisciplinar – livre dos vieses da disciplinaridade e do tecnicismo – e à compreensão do conceito de hierarquia desprovido da tendência tradicional ao autoritarismo. A lista de desafios inclui os cuidados necessários para se evitar a ilusão de objetividade ao utilizar modelos sistêmicos abstratos, para se evitar o reducionismo cartesiano ao utilizar a técnica de decomposição, e para assumir uma postura madura ao aplicar as metodologias sistêmicas. Finalmente, a lista ressalta as dificuldades práticas relativas à incerteza e ambiguidade associadas aos modelos conceituais, e as dificuldades práticas relativas à necessidade de se dominar conceitos pouco disseminados na educação formal e na prática profissional. Para superar tais desafios, parece necessário empreender um esforço de desconstrução e reconstrução dos significados de conceitos profundamente arraigados na língua e na cultura, e de libertação de concepções epistemológicas tradicionais, amplamente disseminadas através do sistema educacional e consolidadas através da prática profissional. Este artigo, através de referências fornecidas ao longo do texto a autores clássicos e a trabalhos publicados pelo próprio autor, oferece subsídios para esse processo de desconstrução e reconstrução, bem como para enfrentar os desafios e superar as dificuldades que eles encerram. O artigo não esgota o assunto, de maneira que ainda há espaço para investigação a respeito desses desafios e de como superá-los no intuito de promover, tanto na academia como nas empresas, uma disseminação mais ampla do pensamento sistêmico e um exercício mais consciente da prática sistêmica. 10º Congresso Brasileiro de Sistemas 22 Referências Bibliográficas Associação Brasileira de Normas Técnicas. (2000). NBR ISO 9000: Sistemas de gestão da qualidade – Fundamentos e vocabulário. Rio de Janeiro: Autor. Beer, S. (1979). The Heart of Enterprise. Chichester: Wiley. Beer, S. (1985). Diagnosing the System for Organizations. Chichester: Wiley. Bertalanffy, L. (1968). General Sytem Theory. Foundations, Development, Applications. New York: George Braziller. Checkland, P. B. (1981). Systems Thinking, Systems Practice. Chichester: Wiley. Checkland, P. B. (2000). Soft Systems Methodology: A Thirty Year Retrospective. Systems Research and Behavioural Science, 17(S1), S11-S58. Churchman, C. W. 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