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Livro do Professor Volume 3 Filosofia ©Editora Positivo Ltda., 2015 Dados Internacionais para Catalogação na Publicação (CIP) (Maria Teresa A. Gonzati / CRB 9-1584 / Curitiba, PR, Brasil) Presidente: Ruben Formighieri Diretor-Geral: Emerson Walter dos Santos Diretor Editorial: Joseph Razouk Junior Gerente Editorial: Júlio Röcker Neto Gerente de Arte e Iconografia: Cláudio Espósito Godoy Autoria: Alexandre Martins e Lidiane Grützmann; reformulação dos originais de: Michele Czaikoski Silva e Sandro Fernandes Supervisão Editorial: Jeferson Freitas Edição de Conteúdo: Lysvania Villela Cordeiro (Coord.) e Michele Czaikoski Silva Edição de Texto: Tania Tatiane Cheremeta e Kathia Gavinho Paris Revisão: Willian Marques Supervisão de Arte: Elvira Fogaça Cilka Edição de Arte: Cassiano Darela Projeto Gráfico: YAN Comunicação Ícones: ©Shutterstock/ericlefrancais, ©Shutterstock/Sashkin, ©Shutterstock/Nelson Marques, ©Shutterstock/Lightspring, ©Shutterstock/Goritza e ©Shutterstock/Chalermpol Imagens de abertura: ©Shutterstock/Brendan Howard, ©2002–2015 LiveAuctioneers e ©Shutterstock/Jeka Editoração: Debora Scarante Ilustrações: DKO Estúdio Pesquisa Iconográfica: Janine Perucci (Supervisão) e Juliana de Cássia Câmara Engenharia de Produto: Solange Szabelski Druszcz Produção Editora Positivo Ltda. 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CDD 373.33 Epistemologia moderna ............................. 4 Método experimental .................................................................................... 9 Racionalismo: inatismo ................................................................................. 13 Empirismo ..................................................................................................... 17 Criticismo ....................................................................................................... 21 03 Sumário Acesse o livro digital e conheça os objetos digitais e slides deste volume. Ponto de partida Epistemologia mo derna 03 1. Nascemos com todo tipo de conhecimento já presente em nossas mentes? 2. Aprendemos somente pela experiência? 3. Nossa capacidade de aprender tem limites? 4. Como a Matemática e a Ciência influenciaram o conhecimento humano na percepção sobre si e sobre o mundo? DA VINCI, Leonardo. Homem vitruviano. [ca. 1492]. 1 lápis e tinta sobre papel, 34 cm × 24 cm. Gallerie dell'Accademia, Veneza. ©Wikimedia Commons/Lviatour©iStockphoto.com/Najin Essa gravura retrata uma figura humana inscrita em formas geométricas. Sua cabeça mede um oitavo do total da altura. A obra remete a uma con- cepção matemática da realidade e, até mesmo, da natureza humana. 4 Como a mente humana adquire conhecimentos? Essa questão foi tratada, no âmbito da Epistemologia moderna, sob diferentes perspectivas, das quais algumas privilegiaram a ex- periência, outras a razão e outras, ainda, a junção de ambas. A seguir, você vai estudar as teorias de alguns filósofos em resposta a essa questão. s? Essa questão foi tratada, no âmbito da as das quais algumas privilegiaram a ex Atualmente, a compreensão que temos a respeito da razão está muito ligada à concepção moderna de ciência. Porém, a natureza da razão humana já despertava curiosidade desde períodos remotos, sendo, inclusive, tema de mi- tos da Antiguidade. Segundo a mitologia grega, por exemplo, Prometeu criou os humanos, com base na imagem dos deuses, usando argila e um pouco de água de um rio. A deusa Atena admirou-se com essa criação e soprou sobre ela o espírito. Porém, Prometeu observou que, ao se tornarem viventes, os primeiros humanos não tinham sabedoria, sendo necessário ensinar-lhes todos os conhecimentos para que se desenvolvessem. No entanto, faltava-lhes um dom, o maior deles, necessário para se manterem vivos: o fogo. Zeus não permitia que o fogo saísse do Olimpo, mas Prometeu secretamente se aproximou da carruagem de Febo (o Sol) e incendiou uma tocha, entregando-a à humanidade. O fogo representava a sabedoria em sua expressão máxima, a ponto de aproximar as criaturas dos criadores. Essa chama, a razão, que se manifesta de muitas formas, é investigada pela Epistemologia como capacidade de conhecer. Na filosofia antiga, a razão foi interpretada valendo-se de relações problemáticas entre os conhecimentos opinativo e racional (dóxa e epistéme), ou sensível e inteligível. Na filosofia medieval, ela foi confrontada com a fé. Nos períodos históricos seguintes, novas oposições estiveram sob a análise dos filósofos. Na Idade Moderna (séculos XV a XVIII), os pensadores realizaram estudos voltados para o conhecimento espe- cializado e organizado por um método, que é chamado atualmente de ciência. Nesse período, muitos intelectuais desqualificavam a Idade Média, à qual se referiam com a expressão “Idade das Trevas”, por considerá-la um período em que a razão humana esteve obscurecida. Sendo assim, eles reclamavam para si próprios o resgate simbólico da tocha entregue por Prometeu à humanidade, inauguran- do um movimento intelectual que ficou conhecido como Iluminismo, ou Esclarecimento. Os representantes desse movimento defendiam a retomada do pensamento dos gregos antigos para a Filosofia e a aplicação de um mé- todo para a Ciência, a qual obteve um grande desenvolvi- mento nesse período. Detalhe do frontispício da Encyclopédie (1772), desenhado por Charles- -Nicolas Cochin e gravado por Bonaventure-Louis Prévost. No centro dessa imagem, produzida no século XVIII, está a verdade, radiante de luz, expressão máxima do Iluminismo. Sob seu manto, encontram-se a razão e a Filosofia. 1 Orientações didáticas. Iluminismo: surgiu na Europa, no século XVIII, com ba se na defesa do predo- mínio da razão sobre a fé. Os quatro principais precurs ores desse movimento cultural foram Francis Bacon, René Descartes, John Lock e e Isaac Newton. © W ik im ed ia C om m on s/ Sh iz h ao 5 Desse modo, ao falar em Ciência antiga e Ciência moderna, faz-se referência a formas distintas de conhecimento, das quais a segunda buscou maior independência em relação à própria Filosofia, à religião e às crenças que fazem parte do dia a dia das pessoas. Cada uma das áreas em que a Ciência moderna se dividiu passou a adotar métodos próprios na investigação da realidade, utilizando observações, hipóteses, experimentos, cálculos, verificações, generalizações e previsões, a fim de conhecer as leis que regem os fenômenos naturais e até mesmo sociais. Conceito 2 Orientações didáticas. No século XVII, Isaac Newton formulou a Lei da Gravidade, ao identificar que a Terra (ou outros corpos que têm massa) exerce uma atração sobre a matéria. Logo, a simples queda de uma maçã não era obra do acaso, estando submetida a uma das regras matemáticas que regiam a natureza. XVII, Isaac Newton Lei da Gravidade, car que a Terra (ou pos que têm massa) a atração téria. mples uma era obra do ndo submetida a gras matemáticas que atureza. D KO E st ú d io . 2 01 5. D ig ita l. A palavra método vem dos termos gregosmetá e hódos, que juntos significam “estar de acordo com um caminho”. Um método constitui o conjunto de procedimentos para orientar determinada atividade ou pesquisa. No contexto científico, corresponde à forma de investigação organizada, com condições de ser repetida e de se autocorrigir, tendo por objetivo conduzir a resultados válidos. Entre os exemplos, destacam-se os métodos dedutivo, indutivo, matemá- tico e experimental, cada qual envolvendo procedimentos próprios, adequados às especificidades dos objetos das diferentes ciências que os utilizam. Uma vez que seguem as orientações de um método, as investiga- ções científicas são consideradas “metódicas”. Ao realizá-las, o cien- tista procura conhecer leis universais que expliquem determinados fenômenos particulares por meio da associação de uma classe de ob- jetos a determinados processos e condições. Por exemplo: os corpos físicos dilatam-se na presença do calor. As leis, por sua vez, apresentam o encadeamento mate- mático dos fenômenos, permitindo a elabo- ração de equações para descrevê-los e até prevê-los. Assim, as teorias cien- tíficas articulam fatos e leis, de- monstrando a relação existente entre eles, ao passo que as teorias filosóficas nem sem- pre buscam a comprovação empírica, organizando-se pela coerência lógica en- tre suas afirmações. empírico: ligado ao empirismo, método que enfatiza o papel da experiência e da evidência na formação de ideias. 6 Volume 3Volume 3 Para ler e refletir Segundo a mitologia grega, Prometeu entregou aos humanos a chama da sabedoria. De acordo com o mito, a ori- gem dessa chama era divina e, por isso, o conhecimento teria tanta importância. Uma vez presente entre os homens, ele os aproximaria dos deuses. Você concorda com isso? Afinal, somos distintos de outras espécies somente por causa da nossa razão? Isso nos faz melhores? 3 Orientações didáticas. Mito de Prometeu O Céu e Terra já estavam criados. A parte ígnea, mais leve, tinha-se espalhado e formado o firmamento. O ar colocou-se de seguida. A terra, como era mais pesada, ficou por baixo e a água ocupou o ponto inferior, fazendo flutuar a terra. Neste mundo assim criado, habitavam as plantas e os animais. Mas faltava a criatura na qual pudesse habitar o espírito divino. Foi então que chegou à terra o Titã Prometeu, descendente da antiga raça de deuses destronada por Zeus. O gigante sabia que na terra estava adormecida a semente dos céus. Por isso apanhou um bocado de argila e molhou-a com um pouco de água de um rio. Com essa matéria fez o homem, à semelhança dos deuses, para que fosse o senhor da terra. Tirou das almas dos animais características boas e más, animando assim a sua criatura. E Atena, deusa da sabedoria, admirou a criação do filho dos Titãs e insuflou naquela imagem de argila o espírito com o sopro divino. Foi assim que surgiram os primeiros seres humanos, que logo povoaram a terra. Mas faltavam-lhes conhecimentos so- bre os assuntos da terra e do céu. Vagueavam sem saber a arte da construção, da agricultura, da filosofia. Não sabiam caçar ou pescar – e nada sabiam sobre a sua origem divina. Prometeu aproximou-se e ensinou às suas criaturas todos esses segredos. Inventou o arado para o homem poder plantar, a cunhagem das moedas para que houvesse o comércio, a es- crita e a extração do minério. Ensinou-lhes a arte da profecia e da astronomia, enfim todas as artes necessárias ao desenvolvimento da humanidade. No entanto faltava-lhes ainda um último dom para que puderem se manter vivos – o fogo. Este dom, entretanto, havia sido negado à humanidade pelo grande Zeus. Porém, Prometeu apanhou um caule do nártex, aproximou-se da carruagem de Febo (o Sol) e incendiou o caule. Com esta tocha, Prometeu entre- gou o fogo à humanidade, o que lhe dava a possibilidade de dominar o mundo e os seus habitantes [...]. FÜGER, Heinrich Friedrich. Prometeu leva o fogo à humanidade. [ca. 1817]. 1 óleo sobre tela, color., 221 cm × 156 cm. Museu Liechtenstein, Viena. POMBO, Olga. Mito de Prometeu. Disponível em: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/protagoras/links/mito_prom.htm>. Acesso em: 20 nov. 2014. © W ik im ed ia C om m on s ígneo: produzido pela ação do fogo. Titãs: segundo a obra Teogonia, atribuída a Hesíodo, foram entidades que enfrentaram Zeus e os deuses do Olimpo. nártex: planta de grandes dimensões, parecida com a cana-de-açúcar. 7Filosofia Reflexão em ação 1. Observe a seguir a imagem de uma obra do pintor Francisco de Goya. Depois, leia o texto e responda às questões. 4 Orientações didáticas. GOYA, Francisco de. O sonho da razão produz monstros. 1797-99. 1 gravura, 21,4 cm × 15 cm. Rijksmuseum, Amsterdã. Essa obra faz parte de um acervo intitulado Los caprichos, um conjunto de 80 gravuras criado por Francisco de Goya e lançado em 1799. No canto inferior esquerdo, podemos ver a mensagem “El sueño de la razón produce monstruos”. [...] Goya abraçou os princípios iluministas, acreditava na razão e na liberdade como os caminhos a serem seguidos pela huma- nidade. O pintor espanhol demonstra sua adoração pela luz, ele confere a ela um tratamento único e espetacular, é pela lumino- sidade que o homem busca desvencilhar-se da escuridão, é com a luz que se chega ao racional. PETTY, Luiz F.; GOMES, Aline F. Luz e razão: a sede de Goya. Disponível em: <http:// www.unicamp.br/chaa/PDFTrabs/MI-Osonodarazao.pdf>. Acesso em: 3 dez. 2014. a) A obra de Goya representa o próprio artista adormecido, enquanto é assombrado por vários animais. Reflita e registre sua interpretação sobre os possíveis significados dessa cena. A obra demonstra que, embora tenha sido um artista tipicamente iluminista, por comungar da ideia da supremacia da razão, Goya também afirmou que ela poderia produzir alguns “monstros”. Afinal de contas, não foi pela razão que os homens construíram armas e começaram as guerras? Também é pertinente tratar como correto o julgamento de que o adormecimento da razão favorece a aparição de monstros ou, ainda, interpretar as corujas como símbolos da razão, que protegem o artista dos morcegos, representando a proteção do conhecimento científico em relação às superstições ou crendices combatidas pelos iluministas. b) O que representam as corujas e os morcegos que estão em volta de Goya? Justifique. Uma possível interpretação da imagem: as corujas que parecem proteger Goya simbolizam a razão e a sabedoria, ou a Ciência e a Filosofia, ao passo que os morcegos, mais escuros e sem detalhes, desenhados como sombras, representam os pesadelos, além de remeterem às sombras da alegoria platônica ou à ausência de luz antes que a humanidade recebesse a tocha da razão, conforme o mito de Prometeu. c) De acordo com o texto, qual é a relação entre a obra de Goya e os ideais dos pensadores da Idade Moderna? Goya é um artista que reflete os ideais do Iluminismo, privilegiando a luz e tratando-a como representação simbólica da razão. Para além do texto, vale ressaltar que, em diversas outras obras, ele denuncia a permanência de ranços medievais em relação a questões consideradas pelos pensadores contemporâneos, o que considera inaceitável. © W ik im ed ia C om m on s/ Sp ar ki t 8 Volume 3 Método experimental Enquanto os pensadores medievais cristãos afirmavam que o mundo era regido pela vontade divina, os pensadores modernos o consideravam regido por leis naturais. Logo, as teorias científicas desse período partiam de métodos com o objetivo de “decifrar” essas leis, o que acarretou mudanças também no pensamento filosófico. Entre 1609 e 1642, por exemplo, as obras do físico italiano Galileu Galilei romperam com o modelo aristotélico-medieval de compreensão da reali- dade. Ele descreveu o mundo natural como um livro escrito em caracteres matemáticos a serem desven- dados para que se pudesse compreendê-lo. Negou-se a reproduzir o conhecimento sobre a natureza, legadopela tradição e decorrente da mera especulação racional. Galileu se propôs a investi- gar os fenômenos naturais e as suas leis por meio da observa- ção, da experimentação e de cálculos que pudessem medir matematicamente a regulari- dade desses fenômenos. Suas afirmações geraram grande polêmica, sofrendo sérias retaliações, a ponto de ele ser obrigado pela Inquisição a desmentir publicamente algumas delas. Outro nome que merece referência nesse contexto de tran- sição para um novo modelo científico é o do inglês Francis Bacon. De 1597 a 1626, ele produziu obras que criticavam a concepção de conhecimento dos pensadores antigos e me- dievais. Defendeu a máxima “saber é poder”, desejando formar uma nova ciência, capaz de garantir à humanidade um domí- nio significativo sobre a natureza. Para ele, a ciência estava di- retamente relacionada à técnica, e o seu valor subordinado à utilidade que ela pudesse ter para a vida prática. Bacon é considerado o pai do método experimental, pois utilizava procedimentos empíricos de análise e comparação dos fenômenos, a fim de atingir o conhecimento das leis que os go- vernavam. Seu método era rigoroso, seguindo passos predeter- minados, que ele chamava de “tábuas de investigação”. 5 Orientações didáticas. SUSTERMANS, Justus. Retrato de Galileu Galilei. 1636. 1 óleo sobre tela, color., 86,7 cm × 68,6 cm. National Maritime Museum, Greenwich, Londres. RETRATO de Francis Bacon. [ca. 1731]. 1 óleo sobre tela, color., 76,5 cm × 63,2 cm. National Portrait Gallery, Londres. N at io n al M ar iti m e M u se u m N at io n al P or tr ai t G al le ry Modelo aristotélico-medieval: a Fís ica aristotélica constituiu o modelo cientí fico medieval por excelência. Era uma ciên cia teórica e não empírica, que estudava o m o- vimento em uma perspectiva qualitat iva, atribuindo-lhe uma finalidade: Deus – o primeiro motor, ou seja, aquele que ger a o movimento dos corpos ao atraí-los. Na M o- dernidade, Galileu contribuiu para que a Física abordasse a realidade e o movime nto de forma quantitativa – segundo cálcu los matemáticos. Além disso, passou a utili zar instrumentos de observação, retirando as pesquisas do âmbito da pura teoria. Tábuas de investigação: expressão que remete às tá- buas usadas para se escrever na Antiga Roma. Elas eram cobertas com uma fina camada de cera, sobre a qual eram feitas incisões com uma espécie de estilete. 9Filosofia As tábuas de investigação propostas por Bacon formavam um método para a compreensão da natureza, com o intuito de exercer controle sobre ela, para utilizá-la a favor dos interesses humanos. Logo, caberia à Ciência munir-se de instrumentos, recursos e procedimentos capazes de auxiliar o intelecto na busca da verdade, por meio da experiência, de acordo com três passos: afirmação, negação e comparações. Observe, a seguir, um exemplo da aplicação desses passos na investigação sobre a existência do calor e de seus efeitos. BACON, Francis. Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. Pará de Minas: M&M, 2003. p. 75-102. 6 Orientações didáticas. O método indutivo analisa os casos particulares para identificar uma lei geral. Observando, por exemplo, que inúmeras baleias lançam leite na água para alimentar seus filhotes, pode-se concluir que todas são mamíferos. Isso exige um número significativo de observações, considerando diferentes indi- víduos e espécies, a fim de estabele- cer a validade da generalização. Já o método dedutivo segue o caminho inverso: parte de leis gerais para explicar os casos particulares. Por exemplo: considerando-se que todo mamífero é um animal, sendo a baleia um mamífero, conclui-se que ela é um animal. Esse tipo de procedimento envolve a reflexão, mas não estabelece novos conhecimentos, apenas demonstra o al- cance daquele que já apresentamos. Por essa razão, na Modernidade, na qual as pessoas estavam ávidas por novos conhecimentos, houve grande empenho em desenvolver métodos de pesquisa que fossem pautados pela indução. Conceito Modernidade: designação utilizada para o período de transição entre a produção agrícola, feudal, para a produção industrial – situado entre o Renascimento e a Idade Moderna. Além dessa mudança no aspecto econômico, a Modernidade caracteriza-se pela transição do conhecimento teológico para o científico. A aplicação das tábuas de investigação constituía um método que ficou conhecido como indução por eliminação. Tratava-se do exame detalhado de diversos casos particulares e da relação entre eles, o que se mostrou útil para as des- cobertas e demonstrações científicas. Sua análise da natureza baseava-se nas afirmações, mas, sobretudo, nas rejeições e exclusões, para, então, de posse dos casos negativos, concluir a respeito dos casos positivos e concretos. 1.ª TÁBUA: AFIRMAÇÃO – TENHO DE LEVAR EM CONSIDERAÇÃO FONTES DE CALOR, COMO AS LABAREDAS DO FOGO, A TEMPERATURA DO SANGUE HUMANO... 2.ª TÁBUA: NEGAÇÃO – MAS NÃO POSSO ESQUECER QUE EXISTEM FENÔMENOS OPOSTOS AO CALOR, COMO O DOS RAIOS DE LUAR, O SANGUE FRIO E OS ANIMAIS MORTOS... 3.ª TÁBUA: COMPARAÇÕES – PORTANTO, O CALOR SE MANIFESTA DESDE REGISTROS DE TEMPERATURA MAIS ALTOS ATÉ OS MAIS BAIXOS, EM DIFERENTES CORPOS. NO ENTANTO, É INEGÁVEL QUE EXISTA E QUE ALTERE AS SENSAÇÕES. D KO E st úd io . 2 01 5. D ig ita l. © Sh u tt er st oc k/ C at m an d o 10 Volume 3 pórtico logrado e descerrado: portal alcançado e aberto. Para ler e refletir Ao unir o método científico à reflexão epistemológica, Francis Bacon defendia a possibilidade de um conheci- mento mais seguro. No entanto, para que isso fosse possível, ele considerava necessário que nos livrássemos de alguns ídolos, ou seja, de falsas noções que condicionam a nossa reflexão. Descubra, no texto a seguir, que ídolos seriam esses. Resta-nos um único e simples método para alcançar os nos- sos intentos: levar os homens aos próprios fatos particulares e às suas séries e ordens, a fim de que eles, por si mesmos, se sintam obrigados a renunciar às suas noções e comecem a habituar-se ao trato direto das coisas. Coincidem até certo ponto, em seu início, o nosso método e o daqueles que usaram a acatalepsia. Mas, nos pontos de che- gada, imensa distância nos separa e opõe. Aqueles, com efeito, afirmaram cabalmente que nada pode ser conhecido. De nossa parte, dizemos que não se pode conhecer muito acerca da natureza, com auxílio dos procedimentos ora em uso. E, indo mais longe, eles destroem a autoridade dos sentidos e do intelecto, enquanto nós, ao contrário, lhes inventamos e subministramos auxílios. Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente o obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como, mesmo depois de seu pórtico logrado e des- cerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria instauração das ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam. São de quatro gêneros os ídolos que bloqueiam a mente humana. Para melhor apresentá-los, lhes assina- mos nomes, a saber: ídolos da tribo, ídolos da caverna, ídolos do foro e ídolos do teatro. [...] Os ídolos da tribo estão fundados na própria natureza humana, na própria tribo ou espécie humana. É a falsa asserção de que os sentidos do homem são a medida das coisas. Muito ao contrário, todas as percep- ções, tanto dos sentidos como da mente, guardam analogia com a natureza humana e não com o Universo. O intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das coisas e, dessa forma, as distorce e corrompe. Os ídolos da caverna são os dos homens enquanto indivíduos. Pois cada um – além das aberrações pró- prias da natureza humana em geral – tem uma caverna ou cova que intercepta e corrompe a luz da natureza: seja devido à natureza própria e singular de cada um;seja pela leitura dos livros ou pela autoridade daqueles que se respeitam e admiram; seja pela diferença de impressões segundo ocorram em ânimo preocupado e predisposto ou em ânimo equânime e tranquilo; de tal forma que o espírito humano – tal como se acha disposto em cada um – é coisa vária, sujeita a múltiplas perturbações e, até certo ponto, sujeita ao acaso. Por isso, bem proclamou Heráclito que os homens buscam em seus pequenos mundos e não no grande ou universal. Há também os ídolos provenientes, de certa forma, do intercurso e da associação recíproca dos indivíduos do gênero humano entre si, a que chamamos de ídolos do foro devido ao comércio e consórcio entre os homens. Com efeito, os homens se associam graças ao dis- curso, e as palavras são cunhadas pelo vulgo. E as palavras, impostas Acatalepsia: Bacon refere-se à atitude dos cétic os da Antiguidade, que praticavam a acatalepsia, ou seja, declaravam não compreender a realidade e, portanto, não afirmavam nem negavam uma supo s- ta verdade (atitude denominada epoché). 8 Etimologia do termo. 7 Orientações didáticas. Heráclito: Bacon refere-se a um fragmento de texto de Heráclito, no qual o filósofo antigo afirma- va que, embora a razão seja universal, os homens costumam viver como se tivessem uma inteligên- cia absolutamente pessoal. 11Filosofia 1. Os itens a seguir referem-se aos quatro ídolos descritos por Francis Bacon. Indique a qual deles cada texto se refere, de acordo com a legenda. a) Ídolo da Tribo b) Ídolo da Caverna c) Ídolo do Foro d) Ídolo do Teatro ( d ) ( a ) ( b ) Os filósofos e suas teorias, que buscam explicar a reali- dade, muitas vezes tentam nos fazer crer em coisas que não são possíveis de se comprovar. Faz parte da natureza humana o erro de simplificar aqui- lo que é complexo. Por exemplo: da observação dos as- tros naturais, foram criados signos que, de acordo com a astrologia, interferem diretamente nos comportamen- tos e relacionamentos humanos. No entanto, para crer que essa teoria funciona, ignoram-se todas as previsões que falham. Pelo olhar de cada pessoa, todas as situações da vida ganham um sentido específico, significado pelas expe- riências que tiveram. Um exemplo disso é a imagem que tecemos de nós mesmos. de maneira imprópria e inepta, bloqueiam espantosamente o intelecto. Nem as definições nem as explica- ções com que os homens doutos se munem e se defendem, em certos domínios, restituem as coisas ao seu lugar. Ao contrário, as palavras forçam o intelecto e o perturbam por completo. E os homens são, assim, arrastados a inúmeras e inúteis controvérsias e fantasias. Há, por fim, ídolos que imigraram para o espírito dos homens por meio das diversas doutrinas filosófi- cas e também pelas regras viciosas da demonstração. São os ídolos do teatro: por parecer que as filosofias adotadas ou inventadas são outras tantas fábulas, produzidas e representadas, que figuram mundos fictícios e teatrais. Não nos referimos apenas às que ora existem ou às filosofias e seitas dos antigos. Inúmeras fábulas do mesmo teor se podem reunir e compor, porque as causas dos erros mais diversos são quase sempre as mesmas. Ademais, não pensamos apenas nos sistemas filosóficos, na sua universalidade, mas também nos numerosos princípios e axiomas das ciências que entraram em vigor, mercê da tradição, da credulidade e da negligência. Contudo, falaremos de forma mais ampla e precisa de cada gênero de ídolo, para que o intelecto humano esteja acautelado. BACON, Francis. Novum organum. São Paulo: Nova Cultural, 2005. p. 39-41. Aforismos 36-39; 41-44. (Os pensadores). Ilu st ra çõ es : D KO E st ú d io . 2 01 5. D ig ita l. 12 Volume 3 inatismo: concepção segundo a qual o conhecimento antecede a experiência. 2. Discuta acerca da questão a seguir e registre as conclusões a que você chegar: É possível superar os quatro ídolos descritos por Bacon e, assim, estabelecer uma ciência livre de qualquer equívoco? Por quê? Não existe nenhum tipo de conhecimento que seja neutro em relação às influências subjetivas e do meio. Logo, torna-se impossível livrar-nos completamente dos equívocos, já que são inerentes à nossa percepção. No entanto, é possível estabelecer alguns graus de superação dos quatro ídolos, por meio de uma maior criticidade em relação aos agentes externos e às concepções pessoais, capazes de interferir na produção de um conhecimento. 3. Imagine uma cidade utópica, marcada por relações ideais entre a Ciência e a vida. Produza um texto descrevendo essa cidade fictícia, apontando como deveria ser tal Ciência e como ela deveria interagir com a natureza e a sociedade. ( c ) Racionalismo: inatismo As mudanças propostas no século XVIII, em relação aos métodos de produção de conhecimento, geraram longos debates sobre seus verdadeiros fundamentos. Isso levou ao surgimento de novas teorias filosóficas, como foi o caso do racionalismo. Se o método proposto por Bacon tornou-se uma referência para a ciência moderna, privilegiando o papel da experiência, o racionalismo surgiu como forma de priorizar a razão na apreensão da realidade. Segundo os racionalistas modernos, os sentidos poderiam causar enganos. Portanto, a apreensão da realidade não se daria pela experiência, e sim por meio de ideias inatas, ou seja, presentes no intelecto do sujeito e anteriores a qualquer experiência vivenciada por ele. Guardadas as devidas distinções, pode-se dizer que o inatismo racionalista tem alguma semelhança com a visão platônica, segundo a qual conhecer significava recordar ideias preexistentes na alma. Um dos principais representantes do racionalismo foi René Descartes, cuja obra revelou um projeto comum em sua época: a busca por um princí- pio sólido que possibilitasse um conhecimento científico seguro. Descartes afirmava que esse fundamento era a própria razão, pois acreditava que ela fosse dotada de ideias inatas, claras e distintas – ou seja, evidentes – e que pudesse julgar a verdade ou a falsidade das aparências, a fim de conhecer a realidade. 10 Contextualização histórica. HALS, Frans Franchoisz. René Descartes. [ca. 1649-1700]. 1 óleo sobre tela, color., 77,5 cm × 68,5 cm. Museu do Louvre, Paris. © 20 15 K in g F ea tu re s Sy n d ic at e/ Ip re ss © W ik im ed ia C om m on s/ D ed d en 9 Orientações didáticas. A tira a seguir exemplifica o fato de que as palavras podem ser interpretadas de diferentes maneiras, podendo gerar falsas ideias e compreensões. Sugestão de atividades: questões de 1 a 3 da seção Hora de estudo. 13Filosofia No desejo de evitar os preconceitos acumulados pela tradição, Descartes afirmou existirem três tipos de verdades: • adventícias – resultantes dos conhecimentos adquiridos por meio dos sentidos, os quais, por sua vez, capta- riam somente objetos suscetíveis a constantes mudanças; • fictícias – provenientes da imaginação e resultantes de combinações mentais realizadas com base nos conteú- dos da memória; • inatas – verdades eternas, imutáveis e universais, superiores às informações obtidas com base na experiência ou na memória. Ao afirmar a existência de verdades inatas, Descartes desejava alcançar, na Filosofia, verdades tão in- contestáveis, evidentes e invariáveis como os princípios da Matemática. Portanto, estabeleceu um méto- do, com base na Geometria, para reavaliar todo o conhecimento adquirido em sua formação cultural e para orientá-lo na busca de novos conhecimentos. Assim, decidiu duvidar sistematicamente de tudo o que percebia e de tudo o que aprendera, submetendo cada crença à necessidade de uma prova racional, para, somente então, adotá-la. Esse método era composto de quatro etapas, descritas pelo filósofo: 2.ª etapa: Devo dividir cada uma das dificuldades que eu examinar em tantas parcelas quantas forem possíveis e necessárias para melhor resolvê-las. 3.ª etapa: Preciso ordenar meuspensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, até o conhecimento mais composto. 4.ª etapa: Tenho de fazer enumerações complexas e revisões gerais que me garantam a certeza de nada omitir. DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 37-38. (Os pensadores). As ideias de Descartes influenciaram outros pensadores, como o alemão Gottfried Leibniz. Filósofo, político e matemático, Leibniz de- senvolveu o cálculo diferencial ao mesmo tempo que o físico inglês Isaac Newton, mas seguindo um caminho diferente. Ele também foi o primeiro a propor a criação de uma Lógica que se utilizasse de sím- bolos, a fim de avaliar as conclusões dos raciocínios por meio de uma espécie de cálculo, adequando os conteúdos (as afirmações que com- põem um raciocínio) a fórmulas prévias. Lógica: área da Filosofia que trata de métodos cap a- zes de fundamentar racionalmente a estrutura de u m discurso. Na Antiguidade, foi Aristóteles quem utiliz ou pela primeira vez o conceito de lógica formal, buscan do elaborar reflexões que se baseassem em argumen tos válidos e verdadeiros. D KO E st ú d io . 2 01 5. D ig ita l. 1.ª etapa: Não posso acolher como verdadeiro algo que eu não conheça evidentemente como tal. Não posso incluir nada em meus juízos de que eu não tenha certeza. 14 Volume 3 haura: retire das profundezas. Para ler e refletir Leibniz era um grande defensor do racionalismo e do inatismo, ou seja, afir- mava que certas ideias e determinados princípios existem em nós previamente, sendo provenientes da razão, e não dos sentidos. Assim, ele estabeleceu uma dis- tinção entre verdades de razão e verdades de fato. • Verdades de razão enunciam que uma coisa é, não podendo de modo algum ser diferente do que é e de como é. Um exemplo se encontra na Matemática: é impossível que o triângulo não tenha três lados e que a soma de seus ângulos não seja igual à soma de dois ângulos retos. Essas verdades são inatas, porque nascemos com as capacidades racionais pró- prias para conhecê-las, independentemente da experiência. • Verdades de fato são empíricas, porque se referem a coisas que poderiam ser diferentes do que são. Por exem- plo: quando observamos uma rosa vermelha, a cor vermelha não faz parte da definição da flor, a qual poderia ser branca ou amarela, entre outras. Esse tipo de verdade se estrutura no princípio de que tudo o que existe tem uma causa e pode ser conhecido pelos sentidos. Para Leibniz, as verdades de fato, por serem mutáveis e resultantes das particularidades abstraídas pela experiência, estavam abaixo das verdades de razão, que eram inatas e postulavam a verdade na sua essência. FRANCKE, Christoph Bernhard. Retrato de Gottfried Leibniz. [ca. 1700]. 1 óleo sobre tela, color., 81 cm × 66 cm. Herzog Anton Ulrich Museum, Braunschweig, Alemanha. 11 Orientações didáticas. Como você adquiriu os conhecimentos matemáticos que tem? Você aprendeu na escola tudo o que sabe sobre Matemática? Questionamentos como esses eram fundamentais para os filósofos racionalistas, entre os quais, Leibniz. Ele acreditava que tínhamos habilidades matemáticas inatas, como veremos a seguir. 12 Orientações didáticas. Verdades estranhas: ao mencionar essa express ão, Leibniz refere-se ao diálogo Mênon, no qual Sócra tes leva um jovem escravizado, que jamais havia estuda do Matemática, a oferecer respostas corretas para prob le- mas complexos de Geometria, utilizando como méto do uma sequência de perguntas logicamente encadead as. Seu objetivo era comprovar a Teoria da Reminiscênc ia, segundo a qual conhecer é, na verdade, recordar essê n- cias que a alma já conhece antes de nascer. Neste sentido deve-se dizer que toda a Aritmética e toda a Geometria são inatas, estando em nós de maneira virtual, de maneira que podemos encontrá-las em nós considerando aten- tamente e ordenando o que já temos no espírito, sem utilizar qualquer verdade aprendida por experiência ou pela tradição de outros, como demonstrou Platão em um diálogo, no qual intro- duz Sócrates conduzindo uma criança a verdades estranhas, simplesmente através de perguntas, sem ensinar-lhe nada. [...] Isto, porém, não impede que o espírito haura as verdades ne- cessárias de si mesmo. Vê-se também quão longe se pode ir sem H er zo g A n to n U lri ch M u se u m 30o 60o60o 30o L L L A 30o 60o 2AA√3 2 ℓ 2 ℓ 15Filosofia Reflexão em ação 13 Sugestões de respostas. Um sistema adotado durante muito tempo para medir e quan- tificar cereais no Sertão ainda é encontrado em Tacaratu. Essa cida- de fica a 453 quilômetros de Recife, capital do estado de Pernam- buco, e está em um vale ao sul da ribeira do Rio Moxotó, no alto da serra de mesmo nome. Tacaratu, na língua pindaé, significa “serras de muitas pontas ou cabeças”. Nessa cidade, é possível encontrar uma cuia, utilizada no comér- cio local como forma de quantificar grãos, comumente vendidos nas feiras livres do Nordeste, como feijão, milho e arroz e também outros produtos de consumo da alimentação do sertanejo, como a farinha de mandioca. Em vez de serem pesados, os produtos são medidos em re- cipientes padronizados e assim comercializados por toda a região. Essa prática remete a um saber matemático que recorre a medidas cúbicas, sem necessariamente valer-se de teorias matemáticas. Tacaratu – cidade de Pernambuco, ao sul da ribeira do Rio Moxotó qualquer auxílio alheio, por uma lógica e aritmética puramente naturais, como aquele menino sueco que, com a sua lógica e a sua aritmética, chega a fazer grandes cálculos de cabeça, sem ter aprendido a maneira comum de contar, nem mesmo a ler e a escrever, se bem recordo de quanto me contaram. É verdade que ele não consegue resolver problemas como os que exigem a extração de raízes. Isto não impede que possa conseguir também isto, haurindo do fundo do seu espírito mediante algum artifício. Isto demonstra apenas que existem graus na dificuldade e que temos de perceber o que está em nós. Existem princípios inatos que são comuns e muito fáceis a todos, existem teoremas que se descobrem com a mesma imediatez, e que compõem ciências naturais, que são mais compreendidos por uns do que por outros. Enfim, em um sentido mais vasto, que é bom empregar para ter noções mais compreensivas e mais determinadas, todas as verda- des, que podemos haurir dos conhecimentos inatos primitivos, podem denominar-se ainda inatas, pelo fato de o espírito poder hauri-las de seu fundo, embora isto por vezes não seja fácil. Todavia, se alguém atribui um sentido diferente às palavras, não quero discutir sobre os termos. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Novos ensaios sobre o entendimento humano. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 51-52. (Os pensadores). 1. Em O discurso do método, Descartes escreveu sua primeira conclusão sobre o papel da razão na busca do conheci- mento verdadeiro: Eu penso, logo existo. Conheça o raciocínio que o levou a essa afirmação. a) Elabore um resumo do raciocínio que levou Descartes a afirmar: Eu penso, logo existo. b) De acordo com Descartes, qual seria o papel da experiência na apreensão do conhecimento? 2. Leia o texto e responda às questões a seguir. a) Que tipo de saber os comerciantes locais de Tacaratu utilizam para quantificar os grãos vendidos? b) O conhecimento dos comerciantes de Tacaratu está de acordo com a forma como Leibniz concebia a Matemática? Justifique sua opinião. 3. Você concorda com a afirmação racionalista de que nascemos com ideias inatas? Argumente. © Ta ca ra tu .c om /J os é M an oe l Sugestão de atividades: questões de 4 a 6 da seção Hora de estudo. 16 Volume 3 Mundo do trabalho Empirismo Os filósofos de orientação empirista discordavam das teses defendidas pelos racionalistas.Apontavam a experiência como fonte do conhecimento, afirmando que este se constrói com base nas percepções dos sentidos, e não em decor- rência de princípios inatos – isto é, de noções primárias que fariam parte da essência da mente humana, sem depender de qualquer experiência para se formar. No século XVII, o inglês John Locke defendeu esse pensamento, o qual foi aprofundado e sistematizado, no século XVIII, pelo escocês David Hume. Locke afirmava que nada havia na mente que não tivesse sua origem nos sen- tidos. Para ele, a mente era como uma tábula rasa, ou seja, uma folha em branco, preenchida aos poucos com ideias simples, obtidas por meio da experiência, sendo possível ao entendimento humano relacioná-las de diferentes formas, por meio da reflexão, compondo, assim, ideias mais complexas e abstratas. © W ik im ed ia C om m on s/ Fr an ks Va lli KNELLER, Godfrey. Retrato de John Locke. 1697. 1 óleo sobre tela, color., 76 cm × 64 cm. Museu Estadual Hermitage, São Petersburgo. 14 Encaminhamento metodológico. © W ik im ed ia C om m on s/ Im m an u el G ie l O cientista é um profissional que trabalha em função do saber, uma vez que ele busca o conhecimento, por meio da aplicação de um método. A pesquisa e a experiência são fundamentais no ofício de um cientista. Entre as diversas ciências, encontra-se a Matemática, relacionada aos métodos de muitas outras. Nesta unidade, você se deparou com os filósofos modernos Descartes e Leibniz, que legaram importantes contri- buições à ciência matemática, como o plano cartesiano e o cálculo diferencial. Você também pôde observar a influên- cia da Matemática na obra filosófica desses autores, que se revela tanto na estrutura lógica dos seus textos quanto nas teorias que desenvolveram com o intuito de explicar a realidade. Outros exemplos semelhantes podem ser destacados no decorrer do tempo, como o de Pitágoras (570-496 a.C.) na Antiguidade e o de Bertrand Russel (1870-1972), que é recente. Isso demonstra a importância da atividade dos mate- máticos para a compreensão da realidade e também a importância da Filosofia para o desenvolvimento científico, não apenas no campo das ciências humanas, mas também no das ciências exatas. tábula rasa: tábula era a designação latina para as tábuas cobertas de cera utilizadas para se es- crever na Roma Antiga. Se a camada de cera fosse fina (rasa), isso indicava que a tábula ainda não havia recebido inscrições, pois a reutilização era feita aplicando-se uma nova camada de cera que cobria a anterior, apagando a escrita. 17Filosofia Para ler e refletir A respeito do que pensava John Locke sobre o conhecimento humano, encontramos na obra de Gaarder, O mundo de Sofia, o seguinte diálogo: Locke está convencido de que todos os nossos pensamentos e ideias são apenas um reflexo daquilo de que já tivemos sensações. Antes de sentirmos alguma coisa, a nossa consciência é como uma “tabula rasa” [...] — Antes de sentirmos alguma coisa, a nossa consciência está tão vazia como um quadro antes de o profes- sor entrar na sala de aula. Locke compara também a consciência a uma sala não mobiliada. Mas, depois, vêm as nossas sensações. Vemos o mundo à nossa volta, cheiramos, saboreamos, tateamos e ouvimos. E ninguém o faz de forma mais intensiva do que as crianças pequenas. Deste modo, surgem ideias simples. Mas a consciência não recebe estas impressões exteriores passiva- mente. Na consciência também sucede alguma coisa. As ideias simples são trabalhadas por meio de reflexão e meditação, crença e dúvida. Deste modo, surge aquilo a que Locke chama ideias reflexivas. Ele distingue, portanto, “sensação” e “reflexão”, porque a consciência não é apenas um receptor passivo. Ordena e trabalha todas as sensações que recebe. E é precisamente aqui que devemos estar alerta. — Alerta? — Locke sublinha que através dos sentidos recebemos unicamente “sensações simples”. Quando, por exemplo, como uma maçã, sinto toda a maçã numa única sensação simples. Na realidade, recebo toda uma No empirismo, a relação entre sujeito e obje- to é a base do conhecimento. Ressalte que o objeto pode variar: para o médico, será o cor- po humano; para o advogado, as leis; para o veterinário, os animais; e assim por diante. Locke também descrevia a ocorrência de percepções da mente sobre suas próprias operações, capacidade cha- mada de reflexão. Contudo, afirmava que mesmo a reflexão depende da experiência, por meio da qual a mente capta conhecimentos que, uma vez internalizados e inter-relacionados, possibilitam o pensamento abstrato. D KO E st ú d io . 2 01 5. D ig ita l. Aos sentidos, portanto, caberia a possibilidade de perceber os modos ou qualidades dos objetos sensíveis e trans- miti-los à mente. Por meio deles, seríamos capazes de perceber sensações, como quente, frio, doce e amargo, im- pressas em nossa mente como resultados da experiência. Logo, o conhecimento seria elaborado em duas etapas: a experiência externa e a percepção da mente sobre ela. Essas duas etapas encontram-se representadas a seguir. 18 Volume 3 Experiência x hábito Como você observou, a compreensão de que todo conhecimento tem sua origem na experiência aproxima os pensamentos de John Locke e David Hume. No entanto, Hume é considerado um filósofo cético, por duvidar da possibilidade de se obter um conhecimento completamente seguro. Hume acreditava que o conhe- cimento se estrutura em nossas mentes por meio de três catego- rias: associação, tempo-espaço e causalidade. Ao elaborar essa classificação, julgou superada a concepção da relação entre sujeito e objeto, segundo a qual o conhecimento seria um reflexo do mundo externo, representado na mente humana de forma idêntica à sua realidade. Isso porque, de acordo com o filósofo, ao observar um objeto, a refle- xão do sujeito internaliza sua imagem, condicionando essa imagem, entretanto, de acordo com suas próprias categorias. Cético: adepto do ceticismo, que surgiu na Antigui- dade com Pirro e teve continuadores na A cademia platônica. Os céticos da Antiguidade coloca vam em dúvida a possibilidade de se alcançar um c onheci- mento seguro da realidade, assim como Hu me veio a fazer, vários séculos mais tarde. RAMSAY, Allan. Retrato de David Hume. 1766. 1 óleo sobre tela, color., 76,2 cm × 63,5 cm. Scottish National Gallery, Edimburgo. GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da História da Filosofia. Tradução do norueguês de Leonardo Pinto Silva. 4. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 306-307. Você concorda com a teoria proposta por Locke, de que a mente é como uma tábula rasa? Justifique sua opinião. Pessoal. Espera-se que os alunos reflitam sobre a contraposição entre a tese das ideias inatas e a da tábula rasa, posicionem-se a favor de uma delas e exponham suas razões para essa escolha. © W ik im ed ia C om m on s/ H u er lis i série dessas sensações simples — que uma coisa é verde, cheira bem, é suculenta e tem um sabor ácido. Só depois de eu ter comido muitas maçãs é que penso: agora, estou a comer “uma maçã”. Locke afirma que nós formamos então uma “ideia complexa” de uma maçã. Quando éramos pequenos e comemos pela primeira vez uma maçã, não tínhamos essa ideia complexa. Mas víamos uma coisa verde, provávamos uma coisa fresca e suculenta, ... bom, também era um pouco ácida. A pouco e pouco, ligamos muitas sensações e formamos conceitos como “maçã”, “pera” e “laranja”. Mas deve- mos aos nossos sentidos todo o material para o nosso saber sobre o mundo. O conhecimento que não tem na origem impressões sensíveis simples é, portanto, falso conhecimento e deve ser rejeitado. — Pelo menos podemos ter a certeza de que aquilo que vemos e ouvimos, cheiramos e provamos é tal como o percebemos. — Sim e não. Essa é a segunda questão a que Locke procura dar resposta. Ele explicou em primeiro lugar de onde retiramos as nossas ideias e opiniões. Mas, emseguida, pergunta também se o mundo é realmente tal como o percebemos. É que isso não é nada evidente, Sofia. Não devemos precipitar-nos. É a única coisa proibida a um verdadeiro filósofo. 19Filosofia Para ler e refletir A crítica em relação ao princípio de causa e efeito é a chave de leitura para a epistemologia de Hume. No entanto, não parece evidente que, se jogarmos uma bola de bilhar em direção a outra, ela causará o movimento da segunda? Eis uma bola de bilhar pousada sobre a mesa, e outra que se move na direção da primeira, com rapi- dez. As bolas se chocam; e a que antes se encontrava em repouso adquire agora um movimento. Este é um exemplo tão perfeito da relação de causa e efeito como qualquer outro conhecido, seja pela sensação ou pela reflexão. Examinemo-lo, pois. É evidente que as duas bolas se tocaram antes que o movimento tivesse se comunicado, e que não houve intervalo entre o choque e o movimento. [...] É igualmente evidente que o movi- mento que foi a causa é anterior ao movimento que foi o efeito. [...]. Mas isso não é tudo. Se experimentarmos quaisquer outras bolas do mesmo tipo, em situação se- melhante, verificaremos sempre que o impulso de uma produz movimento na outra. [...] Essa é a inferência de causa a efeito; e dessa na- tureza são todos os nossos raciocínios na conduta da vida. Nisto se funda toda a nossa crença na história, e daí deriva toda a filosofia, excetuando-se apenas a Geometria e a Aritmética. [...] Se um homem fosse criado, como Adão, no pleno vigor do entendimento, sem experiência, jamais seria capaz de inferir o movimento da segunda bola, a partir do movimento e impulso da primeira. Não é algo que a razão enxergue na causa que nos faz inferir o efeito. Tal inferência, se fosse possível, equivaleria a uma demonstração, fundada meramente na compa- ração de ideias. Mas nenhuma inferência de causa a efeito equivale a uma demonstração. Disto temos uma prova evidente. A mente sempre pode conceber qualquer efeito seguindo-se a qualquer causa e, na verdade, qualquer acontecimento seguindo-se a outro. Geralmente acreditamos que, num jogo de bilhar, o deslocamento das bolas é um efeito do movimento da bola branca; no entanto, para Hume, essa crença decorre de um condicionamento psicológico, não de uma lei. © Sh u tt er st oc k/ Lo n el y 16 Orientações didáticas. O filósofo defendia a experiência como fonte de co- nhecimento, mas lembrava que esse último seria sem- pre limitado e preso aos hábitos. Não acreditava, por exemplo, que um fenômeno fosse causa ou efeito de outro. Dizia que o hábito de observar alguns fenôme- nos ocorrendo em sequência é que levava as pessoas a imaginar uma lei de causalidade entre eles. Portanto, o conhecimento resultante da experiência de que, após a noite, o Sol nasce e nos aquece não seria seguro, afinal de contas, nada poderia nos garantir isso, a não ser o hábito que nos condiciona a pressupor uma relação causal com base no tempo e no espaço. 15 Orientações didáticas. D KO E st ú d io . 2 01 5. D ig ita l. HUME, David. Resumo de um tratado da natureza humana. Tradução de Rachel Gutiérrez e José Sotero Caio. Florianópolis: Paraula, 1994. p. 55-63. 20 Volume 3 Criticismo Comparando as teses de racionalistas e empiristas sobre o conhecimento, é possível perceber que eles concorda- vam, pelo menos, em dois pontos: • a existência do sujeito conhecedor e do objeto conhecido – respectivamente, a mente (ou razão) e o mundo (ou realidade); • a noção de conhecimento como apreensão do objeto pelo sujeito. Considere o exemplo do nascer do Sol, apresentado na explicação sobre a filosofia de Hume. De acordo com ele, qual seria a limitação do nosso conhecimento? No olhar de Hume, a limitação do nosso conhecimento mostrava-se na forma como o concebemos, relacionando-o diretamente com princípios e tradições adquiridos pelo hábito, tal qual transpareceu no exemplo do nascer do Sol. O acúmulo de experiências de observação desse fenômeno após a noite nos faz acreditar que isso representa uma espécie de lei natural, tal qual defendia Bacon, o que, para Hume, não se verifica, uma vez que a ocorrência de um fenômeno não pressupõe necessariamente a de outro. Retrato de Helen Keller La tin st oc k/ C or b is /B et tm an n Basicamente, racionalistas e empiristas mantinham o objeto conhecido no centro da reflexão sobre o conhe- cimento como algo pronto, que o sujeito deveria apreender. A questão que os movia era a de encontrar o método mais adequado para garantir essa apreensão. Pesquise e conheça o caso de Helen Keller. Depois, responda à ques- tão: Você poderia ter algum tipo de conhecimento sem os cinco senti- dos? Justifique sua resposta. Pessoal. Espera-se que os alunos reflitam sobre a função de cada um dos sentidos e sobre o papel da razão na construção dos conhecimentos humanos. ConexõesConexões Sugestão de atividades: questões 7 e 8 da seção Hora de estudo. 21Filosofia No século XVIII, Kant identificou pontos válidos e questionáveis nos pensamentos de ambos, afirmando que o conhecimento se ad- quire pela experiência e pela razão. Essa conciliação, porém, resultou em algo que ele chamou de segunda revolução copernicana, pois Kant trouxe o sujeito conhecedor para o centro da reflexão sobre o conhecimento, mostrando que não é possível apreender a realida- de em si, mas é possível identificar o que se pode perceber e o modo como se pode percebê-lo, de acordo com as estruturas próprias da razão. Kant acreditava que a realidade não é assimilada pelo homem e sempre guarda mistérios, pois a mente participa de sua construção no ato de tentar conhecê-la. Sendo assim, a questão que movia o pensamento desse filósofo era a de avaliar a possibi- lidade do conhecimento pelo sujeito. A conclusão a que chegou foi a de que não é possível conhecer as coisas “em si”, apenas fenômenos, ou seja, as coisas tais como aparecem “para nós”. Além disso, ao contrário de Hume, ele acreditava na lei da causalidade, mas dizia que ela, assim como o espaço e o tempo, não está nas coisas, e sim na própria mente. No pensamento kantiano, as noções de espaço, de tempo, de causa e de efeito são estruturas próprias da razão, além de outras, como quanti- dade, qualidade, modo e relação. De acordo com o filósofo, essas estrutu- ras moldam a realidade que o indivíduo conhece. Sendo assim, apesar de ignorar como são as coisas em si, a razão pode identificar o modo como serão percebidas por qualquer pessoa. Com essas ideias, Kant inaugurou o criticismo – uma reflexão profunda sobre os limites e as possibilidades da razão. Observe, a seguir, um esquema que sintetiza a concepção kantiana do conhecimento. Revolução copernicana: o astrônomo Nicol au Copérnico (1473-1543) formulou a Teoria Hel io- cêntrica (planetas em volta do Sol), substituindo o modelo antigo, proposto por Aristóteles e Ptolome u, em que a Terra ocupava o centro do Universo. De maneira similar, Kant promoveu uma revolução ao substituir o objeto pelo sujeito no centro da reflex ão sobre o conhecimento, mostrando que a percepç ão do objeto é determinada pelas estruturas da ment e. RAAB, J. L. Immanuel Kant. 1791. 1 gravura. Propriedade da Totenkopfloge. 17 Orientações didáticas. As estruturas inatas (chamadas por Kant de categorias a priori, por serem anteriores à experiência) nos permitem a cognição, ou seja, a representação dos objetos externos em nossa mente, embora nos condicionem a conhecê-los de acordo com os limites estabelecidos por essas estruturas. D KO E st ú d io . 2 01 5. D ig ita l. © W ik im ed ia C om m on s A representação do objeto externo é resultante da interação da experiência com as categorias a priori da mente humana. Nesse processo, os conceitos obtidos de pirâmide ou de triângulo, por exemplo, são a posteriori, ou seja, posteriores à experiência. Os objetos externos,também chamados de coisas em si ou de nôumenon, são parcialmente acessíveis à mente humana, porque estamos condicionados a percebê- -los de acordo com as estruturas que constituem nossa mente. 22 Volume 3l 3 Para ler e refletir Ao desenvolver sua crítica sobre a capacidade humana de conhecer, Kant afirmou a existência de algumas cate- gorias, presentes em nossas mentes, anteriores à própria experiência, as quais, por sua vez, condicionariam os conhe- cimentos que adquirimos. Nesse sentido, você consegue pensar em algum objeto, sem utilizar-se da categoria do espaço? Ou ainda, consegue lembrar algum conhecimento desvinculado da noção de tempo? 18 Orientações didáticas. D KO E st ú d io . 2 01 5. D ig ita l. De acordo com o pensamento de Kant, o conhecimento é condicionado por categorias específicas da nossa mente. É como se utilizássemos uma espécie de “óculos da razão” para conhecer o mundo exterior a nós mesmos. – Não importa o que possamos ver, sempre perceberemos o que vemos, sobretudo como fenômenos no tempo e no espaço. Kant chamava o tempo e o espaço de “formas da sensibilidade”. E ele sublinhava que essas duas formas já existem em nossa consciência antes de qualquer experiência. Isso significa que podemos saber, antes de experimentar alguma coisa, que vamos experimentá-la como fenômeno no tempo e no espaço. Somos incapazes, por assim dizer, de tirar os óculos da razão. – Ele achava, portanto, que o fato de percebermos as coisas no tempo e no espaço era uma característica inata aos seres humanos? – De certa forma, sim. O que vemos depende de termos crescido na Índia ou na Groenlândia. Em toda a parte, porém, percebemos o mundo como algo no tempo e no espaço. E isto é uma coisa que podemos afirmar de antemão. – Quer dizer que o tempo e o espaço não existem fora de nós mesmos? – Não. Ou pelo menos isso não é o mais importante. Kant explica que o espaço e o tempo pertencem à condição humana. Tempo e espaço são, sobretudo, propriedades da nossa consciência, e não atributos do mundo físico. – Esta é uma visão totalmente nova. – A consciência não é, portanto, uma “placa” que só registra passivamente as impressões sensoriais vindas de fora. Ela também é criativa; é uma instância formadora. A própria consciência coloca sua marca no modo como percebemos o mundo. Talvez possamos comparar isso com o que acontece quando colocamos água num jarro de vidro. A água toma a forma do jarro. Do mesmo modo, as impressões dos sentidos se adaptam às nossas “formas de sensibilidade”. – Acho que entendo o que você quer dizer. – Kant afirma que não é apenas a consciência que se adapta às coisas. As coisas também se adaptam à consciência. O próprio Kant chama isto de “a virada de Copérnico” na questão do conhecimento humano. Com isto ele quer dizer que esta reflexão é tão nova e tão radical em relação à tradição quanto a afirmação de Copérnico de que a Terra gira em torno do Sol e não o contrário. – Agora entendo o que ele queria dizer quan- do afirmou que tanto os racionalistas quanto os empíricos estavam certos em parte. De certa for- ma, os racionalistas tinham esquecido a impor- tância da experiência dos sentidos, enquanto os empíricos não quiseram ver que a razão codeter- mina nossa concepção de mundo. – Para Kant, até a lei da causalidade, que, segundo Hume, o homem era incapaz de expe- rimentar, é elemento componente da razão hu- mana. – Explique um pouco melhor. 23Filosofia Reflexão em ação 1. (UFMG) Leia este trecho: Certa vez, segui um rastro de açúcar no chão de um supermercado, empurrando meu carrinho de um lado para o outro de uma estante, procurando o comprador com o saco de açúcar rasgado para lhe dizer que ele estava fazendo uma bagunça. A cada volta em torno da estante, o rastro ficava mais grosso. Parecia, no entanto, impossível pegá-lo. Finalmente, percebi que eu era o comprador que estava tentando alcançar. No início, acreditei que o comprador com o saco de açúcar rasgado estava fazendo uma bagunça. E estava certo. Eu não acreditava, no entanto, que eu estava fazendo uma bagunça. Isso parece ser algo em que passei a acreditar. Quando passei a acreditar nisto, parei de seguir o rastro em torno da estante e mudei a posição do saco rasgado no meu carrinho. PERRY, John. The problem of the essential indexical. The problem of the essential indexical and other essays. Stanford: CSLI Publications, 2000. p. 27. Com base na leitura desse trecho: a) identifique e caracterize as duas crenças do comprador no supermercado; b) explique a diferença entre essas duas crenças, relacionando-as ao comportamento do comprador. 2. Relacione a questão anterior com o impacto que a revolução copernicana teve na filosofia de Kant. 3. De acordo com Kant, como se caracterizava o conhecimento humano em relação ao nôumenon, também conhecido como “coisa em si”? 4. Observe novamente o esquema sobre a concepção kantiana de conhecimento (apresentado na página 22). Explique-o com suas palavras. – Você ainda se lembra de que, para Hume, era a força do hábito que nos fazia ver uma relação de causa entre os processos da natureza. Isto porque Hume achava que não podemos sentir que a bola preta de bilhar é a causa do início do movimento da bola branca. Por esta razão, não podemos provar que a bola preta sempre colocará em movimento a branca. – Ainda me lembro disso. – Mas Kant considera uma propriedade da razão humana exatamente isso que, para Hume, não pode ser provado. A lei de causalidade é eterna e absoluta, simplesmente porque a razão humana considera tudo o que acontece dentro de uma relação de causa e efeito. – E novamente eu diria que a lei de causalidade está na natureza e não em nós mesmos. – Kant diz que ela está dentro de nós. Ele concorda com Hume [...] que não podemos saber com certeza como o mundo é “em si”. Só podemos saber como o mundo é “para mim” e, portanto, para todos os homens. A diferença que Kant estabelece entre as coisas “em si” e as coisas “para nós” é a sua mais importante contri- buição para a Filosofia. Nunca seremos capazes de saber com toda a certeza como as coisas são “em si”. Só podemos saber como elas “se mostram” a nós. Em compensação, podemos dizer com certeza como as coisas serão percebidas pela razão humana. GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance e História da Filosofia. Tradução do norueguês de Leonardo Pinto Silva. 4. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 347-350. 19 Sugestões de respostas. Sugestão de atividades: questões 9 e 10 da seção Hora de estudo. 24 Volume 3 Releia o conteúdo desta unidade e registre, no quadro abaixo, os principais aspectos da concepção sobre o conhe- cimento de cada filósofo estudado. Filósofo Concepção sobre o conhecimento Francis Bacon Bacon afirmava que “saber é poder”, ou seja, que o conhecimento da natureza possibilitaria um domí- nio relativo sobre ela, a favor dos interesses humanos. Também defendia a superação de “ídolos” que limitavam o conhecimento e estabeleceu o método experimental, baseado em três etapas: afirmação, negação e comparação, realizadas por meio das tábuas de investigação. René Descartes Contrapondo a dúvida metódica às certezas provenientes dos sentidos e da tradição, Descartes de- monstrou a superioridade da razão. Ele distinguiu as verdades em: adventícias, fictícias e inatas, de- dicando-se às últimas, em busca de uma filosofia fundamentada em verdades sólidas, tal como a Matemática. Gottfried Leibniz Leibniz postulava o racionalismo e o inatismo, afirmando que certas ideias e princípios existiam em nós, anteriores a qualquer experiência provinda dos sentidos. Tendo diferentes graus de complexidade, alguns seriam mais fáceis que outros de suscitar pela mente. Ele distinguia “verdades de razão” e “verdades de fato”, concedendo superioridade às primeiras. John Locke Para o empirista John Locke, o conhecimento humano provinha unicamente da experiência. Elecompa- rava a mente a uma tábula rasa, similar a uma folha em branco, preenchida ao longo da vida, com base na experiência, isto é, nas percepções dos sentidos e no conhecimento decorrente delas. David Hume Empirista e cético, Hume afirmava que o conhecimento decorria da experiência, mas não acreditava que houvesse um conhecimento seguro. Ele negou a lei de causalidade, afirmando que a relação apa- rentemente necessária entre causa e efeito não passava de um hábito, baseado em experiência. Immanuel Kant Para Kant, não somos capazes de conhecer os objetos em si, externos a nós. Conhecemos apenas a representação deles, determinada por categorias cognitivas a priori (anteriores a qualquer experiência) e condicionantes de todo conhecimento a posteriori (proveniente dos sentidos). Organize as ideias 25Filosofia 1. (UEL – PR) Leia o seguinte texto: a) A submissão do saber ao conhecimento teórico, para o qual é irrelevante a aplicação prática dos co- nhecimentos adquiridos. b) A subordinação da razão humana à fé religiosa, com a defesa da concepção de verdade como re- velação. c) A primazia da análise das qualidades dos corpos em si mesmos, tais como cor, odor, tamanho e peso. X d) A valorização do saber experimental, que visa à apropriação, ao controle e à transformação da na- tureza. e) O predomínio da concepção de natureza hierarqui- zada, segundo uma ordem divina. 3. Assinale a crença que está de acordo com o pensa- mento de Francis Bacon: a) Não existe relação alguma entre o saber e o poder, uma vez que ambos estão sempre em oposição. X b) O conhecimento está ligado diretamente ao poder, daí a importância de se obter um conhecimento ri- goroso e seguro. c) O controle da natureza, inerente ao saber, possibilita poder incondicional a quem tem conhecimento. d) O saber tem valor em si mesmo, o que conduz, con- sequentemente, seu detentor ao poder. e) O saber é uma forma de alterarmos as leis da natu- reza e, com isso, seus fenômenos podem ser con- trolados, tendo em vista o benefício humano. 4. (PUCPR) Seguindo os preceitos descritos no Discurso do Método, pode-se afirmar que Descartes conduz seu intelecto: I. partindo dos dados fornecidos a ele pela sua fé. II. por meio de cálculos matemáticos. III. partindo das coisas mais simples e mais conheci- das para as menos conhecidas e mais complexas. IV. para um conhecimento seguro sem necessitar, para isto, fiar-se nos dogmas da fé. V. terminando sempre com uma dúvida. A filosofia está escrita neste imenso livro que continuamente está aberto diante de nossos olhos (estou falando do universo), mas que não se pode entender se primeiro não se aprende a entender sua língua e conhecer os caracteres em que está escrito. Ele está escrito em linguagem matemática e seus caracteres são círculos, triân- gulos e outras figuras geométricas, meios sem os quais é impossível entender humanamente suas palavras: sem tais meios, vagamos inutil- mente por um escuro labirinto. GALILEI, G. Il Saggiatore. Apud REALE, G. & ANTISERI, D. História da filosofia. São Paulo: Paulinas, 1990, v. 2, p. 281. Tendo em mente o texto acima e os conhecimentos so- bre o pensamento de Galileu acerca do método cientí- fico, considere as seguintes afirmativas. I. Galileu defende o desenvolvimento de uma ciência vol- tada para os aspectos objetivos e mensuráveis da na- tureza, em oposição à física qualitativa de Aristóteles. II. Para Galileu, é possível obter conhecimento científi- co sobre objetos matemáticos, tais como círculos e triângulos, mas não sobre objetos do mundo sensível. III. Galileu pensa que uma ciência quantitativa da na- tureza é possível graças ao fato de que a própria natureza está configurada de modo a exibir ordem e simetrias matemáticas. IV. Galileu considera que a observação não faz parte do método científico proposto por ele, uma vez que todo o conhecimento científico pode ser obtido por meio de demonstrações matemáticas. Assinale a alternativa que contém todas as afirmativas corretas, mencionadas anteriormente. X a) I e III. c) III e IV. e) II, III e IV. b) II e III. d) I, II e IV. 2. (UEL – PR) A Ciência moderna sofreu uma série de transformações em relação à Ciência antiga. Assinale a alternativa que apresenta uma das características da Ciência moderna resultante dessa transformação. 20 Gabaritos. Hora de estudo 26 Volume 3 X a) Apenas III e IV. b) Apenas I e II. c) Apenas II e III. d) Apenas IV e V. e) Todas. 5. (ENEM) Texto 1 e) encontrar ideias e pensamentos evidentes que dis- pensam ser questionados. 6. Sobre o inatismo e o saber matemático, Leibniz afir- mou: a) as pessoas têm uma capacidade inata de utilizar o raciocínio matemático, o que nega a existência de conhecimentos complexos na Matemática. b) as pessoas nascem desprovidas de raciocínio ma- temático, mas com uma estrutura cognitiva apta para alcançá-lo por meio da experiência. c) a mente possui todo tipo de conhecimento, de forma latente, logo, as pessoas podem utilizar facilmente qualquer conhecimento, se assim desejarem. X d) as pessoas têm conhecimentos inatos que se mani- festam com diferentes graus de complexidade, sen- do alguns mais difíceis de suscitar do que outros. e) apenas as verdades matemáticas mais rudimenta- res podem ser consideradas inatas. 7. (UFSJ – MG) Ao investigar as origens das ideias, di- versos filósofos fizeram interferências importantes no pensamento filosófico da humanidade. Dentre eles, destaca--se o pensamento de John Locke. Assinale a alternativa que expressa as origens das ideias para John Locke. a) “Quando analisamos nossos pensamentos ou ideias, por mais complexos e sublimes que sejam, sempre descobrimos que se resolvem em ideias simples que são cópias de uma sensação ou senti- mento anterior, calcado nas paixões.” b) “O que sou eu? Uma substância que pensa. O que é uma substância que pensa? É uma coisa que du- vida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina e que sente, uma ideia em movimento”. X c) “Afirmo que essas duas, a saber, as coisas mate- riais externas, como objeto da sensação, e as ope- rações de nossas próprias mentes, como objeto da reflexão, são, a meu ver, os únicos dados originais dos quais as ideias derivam.” d) “Não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com a experiência [...] mas embora todo o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso todo ele pode ser atribuído a esta, mas à imaginação e à ideia” Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas fal- sas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal as- segurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto. Era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente a fim de estabelecer um saber firme e inabalável. DESCARTES, R. Meditações concernentes à Primeira Filosofia. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Adaptado). É de caráter radical do que se procura que exige a radicalização do próprio processo de busca. Se todo o espaço for ocupado pela dú- vida, qualquer certeza que aparecer a partir daí terá sido de alguma forma gerada pela própria dúvida, e não será seguramente nenhuma da- quelas que foram anteriormente varridas por essa mesma dúvida. SILVA, F. L. Descartes: a metafísica da modernidade. São Paulo: Moderna, 2001 (Adaptado). Texto 2 A exposição e a análise do projeto cartesiano indicam que, para viabilizar a reconstrução radical do conheci- mento, deve-se: a) retomar o método da tradição para edificar a Ciên- cia com legitimidade. X b) questionar de forma ampla e profunda as antigas ideias e concepções. c) investigar os conteúdos da consciência dos homens menos esclarecidos. d) buscar uma via para eliminarda memória saberes antigos e ultrapassados. 27Filosofia 8. Leia o texto. Analise as afirmativas abaixo sobre essa “revolução”, que Kant teria causado na filosofia. 1. Tanto racionalistas quanto empiristas concentra- vam-se em questões referentes aos objetos do conhecimento. Kant inverte os termos e coloca a própria razão humana no centro, como ponto de partida do questionamento. 2. Em resposta à controvérsia entre racionalistas e empiristas, que tomavam como centro de suas ar- gumentações a própria razão humana, Kant revolu- ciona a Filosofia tomando como ponto de partida a realidade exterior. 3. O que Kant defendia é que o sujeito possui as con- dições de possibilidade de conhecer qualquer coisa, ou seja, possui as “regras” através das quais os ob- jetos podem ser reconhecidos. 4. O que o homem pode conhecer é profundamente marcado pela maneira – humana – pela qual co- nhecemos. 5. As leis do conhecimento, para Kant, estariam nos objetos do mundo, e não no próprio homem. Assinale a alternativa que indica todas as afirmativas corretas. a) São corretas apenas as afirmativas 1 e 2. b) São corretas apenas as afirmativas 2 e 5. c) São corretas apenas as afirmativas 1, 2 e 3. X d) São corretas apenas as afirmativas 1, 3 e 4. e) São corretas apenas as afirmativas 2, 4 e 5. 10. (UFG – GO) Qual das seguintes teses é sustentada por Kant em sua Crítica da Razão Pura? a) O homem comum não pode conhecer o que é a coisa em si, apenas o filósofo pode fazê-lo. b) Não se pode conhecer o que são as coisas nelas mesmas, dado que a verdade é sempre relativa à opinião particular de cada indivíduo. X c) Não se pode conhecer o que são as coisas nelas mesmas, isto é, as coisas pensadas como indepen- dentes de nós e de nossa mente. d) Não podemos conhecer o que são as coisas nelas mesmas, isto é, as coisas pensadas como inde- pendentes de um sistema linguístico ou cultura particular. Suponhamos agora que ela [tal pessoa] tenha adquirido mais experiência e vivido no mundo o bastante para observar que objetos ou acon- tecimentos semelhantes estão constantemente unidos uns aos outros. Qual é o resultado dessa experiência? O resultado é que essa pessoa pas- sa a inferir imediatamente a existência de um objeto a partir do aparecimento do outro. E, no entanto, com toda sua experiência, ela não terá adquirido nenhuma ideia ou conhecimento do poder secreto pelo qual o primeiro objeto pro- duz o segundo, e não é nenhum processo de raciocínio que a leva a realizar essa inferência. Ainda assim, ela se vê determinada a realizá-la [...] Há algum outro princípio que a faz chegar a essa conclusão. HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. São Paulo: Editora UNESP, 2004. p. 74. O princípio a que David Hume se refere acima diz respeito: X a) ao hábito e à experiência, porque operam na imagi- nação, contribuindo para considerarmos os objetos conforme eles aparecem à mente, formando ideias cuja relação causal iludimo-nos prever. b) ao conhecimento racional, o único realmente válido, pois se baseia em ideias inatas, como a de que a causalidade é uma lei da natureza. c) à capacidade segura que nossa mente tem de conhecer, porque infere a existência de um objeto como causa do aparecimento de outro. Nisto, per- cebemos leis que regem o mundo e que existem fora de nossas mentes. d) à relação entre sujeito e objeto de conhecimento que resulta na apreensão do objeto pelo sujeito, tal qual ele é na realidade. e) à valorização do hábito como fator que garante a validade dos conhecimentos, afinal de contas, são eles, resultantes de experiências acumuladas. 9. (UFFS – SC) Em sua obra Crítica da razão pura, o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) compara a revolu- ção copernicana com a mudança operada por ele próprio na relação entre sujeito e objeto no processo cognitivo. 28 Volume 3