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Legislação e Ética Profissional Dever e Consequências Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Américo Soares da Silva Revisão Textual: Profa. Esp. Kelciane da Rocha Campos 5 Nesta unidade, o tema abordado será: Dever e Consequências. O espaço filosófico é fértil na produção de diferentes abordagens sobre o mesmo tema, e assim também é com a ética. Dentre essas diferentes abordagens, destacamos a feita por Kant em torno da ideia do dever, com forte apelo à universalidade e ao rigor de princípio; e em complemento/oposição, a escola Utilitarista, originada na filosofia inglesa e articulada em torno do princípio de máxima felicidade a partir da avaliação das consequências das ações. Para um bom aproveitamento e desenvolvimento de seus estudos, é necessário começar com o acesso ao Material Didático. É lá que você poderá encontrar o Texto Teórico, cujo conteúdo corresponde à base das atividades desta unidade. Leia-o com bastante atenção. Você pode verificar se houve uma boa compreensão do tema ao responder as questões da Atividade de Sistematização. São questões sobre os principais aspectos abordados no texto. O aprofundamento da discussão será obtido através dos Materiais Complementares, da Apresentação Narrada e da Videoaula. Por fim, realize a Atividade de Aprofundamento da unidade; lá você encontrará dicas para aprimorar ainda mais seus conhecimentos sobre o tema Dever e Consequências. • Inserção no pensamento ético de Kant. • A noção de Boa Vontade. • O conceito de Imperativo Categórico. • Inserção no pensamento ético Utilitarista. • O princípio de Máxima Felicidade. • A busca pelo prazer e o afastamento da dor. Dever e Consequências · Dever e Consequências · Immanuel Kant e a Ética do Dever · Utilitarismo e a Ética das Consequências 6 Unidade: Dever e Consequências Contextualização “Podemos – devido a uma grande necessidade – fazer uma promessa sabendo que não iremos cumpri-la?” (Adaptado – Fundamentação de Metafísica dos Costumes. KANT, 2007, p. 31.) Thinkstock/Getty Images Pense • Quais as consequências desse tipo de conduta? • Ela seria moralmente aceitável? 7 Dever e Consequências Nosso itinerário nesta disciplina percorreu diferentes temas relevantes para discussão em torno dos temas que conectam cidadania e ética. Aprofundando-nos um pouco mais no pensamento filosófico, no que trata da moral, podemos recortar duas linhas de força que foram e ainda são muito importantes para a discussão sobre ética. De um lado a questão do dever, entendendo que nesse aspecto, uma ação, por exemplo, pode ser realizada de diferentes maneiras, mas ela deve ser executada de determinada maneira, o que deixa de lado todas as outras. Por que esse determinado caminho (linha de ação) é melhor do que os outros? Qual o critério? Quando tratamos de uma deontologia (ciência dos deveres), temos princípios, e é somente sob esses princípios que uma ação pode ser julgada como boa ou ruim. Portanto, uma ética que se atenha a um princípio previamente estabelecido pode não se curvar diante de uma situação inesperada, mesmo que os resultados não sejam favoráveis ao agente. Esse tipo de ética em que o princípio vem em primeiro lugar é fortemente identificada com o pensamento kantiano – do qual falaremos mais adiante. Outra linha de força pode ser vista ora como antagônica, ora como complementar – deixaremos para a sua própria reflexão assumir se ambas são ou não totalmente incompatíveis entre si quando se tratam das práticas cotidianas. Essa linha de força não teria um único autor, sendo mais como uma escola de pensamento, que tem o inglês Jeremy Bentham como seu fundador, mas que contou fortemente com a contribuição de outros pensadores, como o também inglês John Stuart Mill – sobre o qual falaremos adiante. Essencialmente, essa linha de pensamento avalia se uma ação é boa ou ruim com base nos resultados que essa possa produzir, ou seja, o critério, apesar de ser o de se buscar uma melhor ação possível, pode variar mais facilmente conforme a circunstância, tendo em vista os possíveis efeitos dessa ação. Como veremos, ambas as correntes têm seus méritos e seus aspectos problemáticos. Então comecemos! Immanuel Kant e a Ética do Dever O filósofo Kant (1724-1804) é, sem dúvida, um dos pensadores mais importantes do século XVIII; talvez o mais importante. Em qualquer cenário, é um dos autores protagonistas nos curso de filosofia, visitado em diferentes disciplinas. No campo da ética, articula de forma interessante a teoria em torno da questão do dever. Para esse filósofo, nascido em Königsberg (antigo território prussiano), toda ação que se pretenda pautada pela ética, toda ação que seja legitimamente moral, é uma ação segundo o dever. Para começar a entender a ideia kantiana de dever, podemos começar pelo que ele não é, nesse caso, ação por interesse. Aqui não se trata de ideia de interesse no sentido “de estar voltado para algo”, mas a discussão é sobre a motivação da ação. Como nos lembram diferentes 8 Unidade: Dever e Consequências autores (Conf. CHAUÍ, 2003), tomar determinada linha de ação para obter algum benefício (atender ao nosso interesse) pode ser visto como uma doutrina egoísta, ou melhor, uma linha de pensamento em que o critério para as minhas ações é o que essa ação pode resultar de bom para mim. Por exemplo, se auxilio um conhecido considerando que ele ficará “me devendo um favor”, estou guiando minha ação como uma espécie de investimento futuro; na verdade um “empréstimo de solidariedade” (não estamos nos referindo propriamente a dinheiro), o qual eu posso “resgatar” quando me for conveniente. Em alguns casos, o egoísta espera receber o “empréstimo da boa ação” acrescido de “juros”. Para o pensamento kantiano, esse tipo de conduta não tem nada de ético, pois, afinal, o que deveria ser o motivo da ação é uma causa, a priori, puramente racional, nada que seja derivado dos desejos, cobiça, lucro, fama ou quaisquer outras motivações externas à razão. Como assim motivações puramente racionais? O pensamento kantiano admite que somos pressionados pelas necessidades naturais (Idem, 2003). O corpo humano tem necessidades que são físicas, biológicas e químicas, das quais não podemos escapar. Basta lembrar que todo ser humano precisa dormir! Não é uma necessidade que possa simplesmente ser posta de lado (sim, estudante, há casos de pessoas que sofrem de insônia, mas isso indica apenas que ela tem dificuldades para dormir, não é o mesmo que nunca dormir, até porque em casos assim o indivíduo adoece). O mesmo se estende ao ato de comer ou beber. No entanto, algumas necessidades são parcialmente suprimidas (optar por fazer uma refeição mais cedo ou mais tarde) e outros impulsos podem ser ou não contidos, dependendo da escolha do agente (em um momento de desagrado, dirigir ou não palavras ofensivas para a outra pessoa). Pessoa firmando um acordo Pessoa dormindo Thinkstock/Getty Images Não se trata apenas das necessidades internas; também recebemos toda uma série de estímulos externos, sociais, que podem induzir nossa vontade. Imagine, estudante, agir de uma maneira que faça com que as outras pessoas gostem de você. No entanto, você faria 9 as mesmas coisas se soubesse de antemão que elas não lhe proporcionariam nenhuma popularidade? É essa a direção seguida por Kant no exame da moral. Para o filósofo de Königsberg, nossa vontade – que guia nossas ações - deve se identificar com aquilo que ele próprio definiu como boa vontade. Diálogo com o Autor “A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer, isto é, em si mesma, e, considerada em sim mesma, deve ser avaliada em um grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da somade todas as inclinações.” (KANT, 2007, p. 23.) Eis um ponto que merece bastante atenção: uma boa vontade só é boa pela sua forma de querer, um querer em si mesma. O que o filósofo estava tentando nos passar? Que esse “querer” deve seguir a si próprio e não influências, motivos, desejos ou outros estímulos externos. De onde vem um “querer em si mesmo”? Para Kant, o ser humano é dotado de vontade, mas atenção! Aqui é uma concepção da vontade que não corresponde à do senso comum, que muitas vezes equivale vontade com desejo, por exemplo: “o menino está com vontade (quer) de mais sorvete de chocolate” ou “a menina tem vontade (gostaria ou deseja) de uma boneca nova”. Segundo Kant, a “vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto seres racionais” (KANT, 2007, p. 93). Em outras palavras, uma motivação derivada da razão, cuja liberdade seria uma propriedade da mesma (Idem). Assim sendo, a fonte de uma boa vontade estaria em nossa vontade racional, que segundo Kant é universal. Essa universalidade diz respeito a todos os seres racionais. Agir por boa vontade também é agir segundo o dever (lei moral) formado pela nossa razão. Um ponto fundamental da ética kantiana é que ela não impõe conteúdos, não cria uma lista de coisas que são boas segundo a razão ou uma lista de coisas que não são. A estratégia de Kant está em permanecer na forma da razão, ou melhor, a racionalidade produz por coerência consigo mesma certo parâmetro, que por ser produzido racionalmente, é compatível com qualquer ser racional e, portanto, independente de cultura, época ou lugar - daí a universalidade do princípio. Mas, afinal, qual o parâmetro? Qual a regra? Considerando-se que seria uma regra sem conteúdo! Quando Aristóteles buscou o seu critério para uma ação boa, seguiu com a ideia de um “meio termo” entre os extremos; a virtude (ação boa) está longe do vício por excesso e longe do vício por ausência. A solução kantiana pode ser considerada até mais simples. O critério é a própria universalidade, via razão. 10 Unidade: Dever e Consequências Para uma ação ser moralmente válida, ela deve ser racional. E se ela (ação que se pretende moralmente válida) for realmente uma ação racional, será coerente com a atitude de qualquer ser racional; portanto será válida moralmente para todos os seres racionais. Mas esse, estudante, é o aspecto sutil da questão; a ação teria que ser possível de ser executada por todos não quando convém a cada um, mas por todos o tempo todo! Esse é o critério! Confuso? Imagine a mentira. Podemos imaginá-la como uma ação que seja universal? Não se trata de tolerar este ou aquele mentiroso, que quando lhe convém mente para seu próximo (seja para obter lucro, seja para se sobressair socialmente etc.). A pergunta seria: poderíamos viver em uma sociedade em que todos mintam? O médico mente ao paciente, que mente ao advogado, que mente ao juiz, que mente ao réu, que mente à família, e assim infinitamente. A própria comunicação mínima necessária para o convívio e organização da sociedade se tornaria inviável. Mas antes do passo seguinte, ainda um ponto que deve incomodar o estudante atento: como uma regra pode não ter conteúdo? Como ela pode ter apenas forma? Ajuda se raciocinarmos forma enquanto fórmula, e nesse caso chegamos ao célebre imperativo categórico. Diálogo com o Autor “O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.” (KANT, 2007, p. 59.) Partindo, então, da fórmula kantiana, o que temos é uma espécie de “teste de universalidade”, em que não está previamente estabelecido que esta ação em particular é boa ou ruim, mas devemos refletir sobre sua coerência racional, seguindo a ideia da universalidade. Se posso fazer com os outros e os outros também podem fazer comigo e entre eles, independentemente de circunstâncias que beneficiassem essa ou aquela pessoa, então essa é uma ação de acordo com a vontade racional, ou seja, atende a um imperativo da razão – portanto, um imperativo categórico, porque busca uma coerência universal e assume a forma de um dever. (Lembre que, como acabamos de mencionar, a mentira não atende a esse critério, porque não poderia ser elevada a um padrão de conduta corriqueiro, não poderia ser aceita como lei universal da razão). A ideia de uma lei universal, aplicada como sugere Kant, tem derivações interessantes apontadas pelo próprio filósofo, quando atentamos para a maneira como devemos tratar com os outros. Em palavras kantianas: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.” (KANT, 2007, p. 69). Ora, estudante, como a ideia é fazer ações que se tornem leis universais, sem dúvida utilizar as pessoas como meios para atingir outros fins não pode ser considerado um princípio eticamente válido. Você já deve ter ouvido a expressão “Aquela pessoa tem segundas intenções”. Esse é o caso que estamos examinando. Considerar “as outras pessoas como meios” significa tratá- las como “pontes” para alcançar outros interesses, seja como o bajulador que elogia ou se 11 mostra simpático a alguém em posição de poder (para obter vantagem futura), seja, como foi mencionado antes, como aquele que, em falsa solidariedade, auxilia o próximo com vistas a obter também alguma vantagem no futuro. Tanto em um caso como no outro não há um verdadeiro respeito pela dignidade da humanidade do outro indivíduo e, portanto, não poderiam ser elevados à condição de lei universal. Por fim, chamamos atenção novamente para o tema da liberdade. Kant defende que para chegarmos ao imperativo categórico, a autonomia da vontade está pressuposta. O indivíduo apenas pode agir moralmente se sua vontade visar apenas à boa vontade. Se essa ação decorre de influências ou pressões externas, então ela não se portou autonomamente. Isso levanta uma questão interessante no pensamento kantiano, que o faz distinguir a ação segundo a lei moral e a ação segundo a lei do Estado (no sentido jurídico). Por se tratar de um princípio que depende rigorosamente da racionalidade, quando o indivíduo age conforme a lei, ele está sendo moralmente correto? Para o filósofo de Königsberg, não necessariamente! Um indivíduo pode agir de acordo com as leis de seu país e estar sendo moralmente correto, pois as leis do Estado convergem para os ditames da vontade racional do mesmo indivíduo, ou seja, ele na verdade está obedecendo a suas convicções racionais em primeiro lugar (autonomia). Já em outro caso, o sujeito obedece às leis do Estado sem se preocupar se está ou não atendendo a um parâmetro universal da razão; a preocupação com a conformidade legal acontece por receio das sanções que receberia caso não atue de acordo. Nessa situação, embora o cidadão não tenha cometido nenhuma ilegalidade (respeitou as leis de trânsito, pagou seus impostos, etc.), segundo o critério kantiano ele não foi ainda verdadeiramente ético, uma vez que só agiu corretamente por pressão da punição que poderia receber (ser multado ou preso, dependendo da violação). Nesse caso, diria Kant, prevaleceu o imperativo hipotético, em que o sujeito age de determinada maneira pensando em conseguir (ou evitar) determinada consequência. Esse último ponto nos leva a uma reflexão. A proposta kantiana é um desafio pelo seu rigor racional, ao ponto de não autorizar que a simples conformidade legal (em relação às leis do Estado) assegure se tratar de um ato de moralidade, e de exigir, para tanto, a conformidade com a lei moral em nós (que é agir segundo a vontade racional). Podemos imaginar que uma sociedade que de fato alcançasse o nível de exigência da ética kantiana seria muito menos problemática do que uma sociedade em que seus cidadãos somente cumprem suas leis mediante intensa fiscalização e vigilância do poder público. A ausênciade uma solidariedade social verdadeira, a existência apenas de uma colaboração forçada, não levaria a um cenário por demais opressivo? As leis sociais só seriam obedecidas pela deformação da vontade mediante pressão do Estado. Nesse clima opressivo, a manutenção da ordem e os próprios vínculos sociais ficariam à mercê do uso de força. Mas o que aconteceria quando todo esse aparato de vigilância falhasse? Em um exemplo mais simples: e se o guarda de trânsito não estiver presente (e não houver câmeras filmando), a sinalização de trânsito seria obedecida? Se uma sociedade assumisse mais coletivamente (é provável que houvesse exceções e com elas crimes) os parâmetros da vontade racional, por acaso não tenderia que seus cidadãos cumprissem suas leis, por exemplo, de maneira mais espontânea? Com menor incidência de vigilância, não sobrariam mais recursos para aplicar em outros serviços públicos mais interessantes? Não seriam menores os casos de corrupção? Certamente é algo que merece reflexão. 12 Unidade: Dever e Consequências Utilitarismo e a Ética das Consequências O Utilitarismo enquanto corrente de pensamento contou com a contribuição de diferentes autores - Jeremy Bentham (1748-1832), John Stuart Mill (1806-1873), Peter Singer, entre outros. Como opção didática, escolhemos nos ater mais ao texto Utilitarismo, de Stuart Mill, que desde já indicamos a você, estudante, como material para leitura. Em linhas gerais, o utilitarismo corresponde a uma abordagem ética que muitas vezes também é chamado de consequencialismo. Assim como outras linhas de pensamento sobre o tema, o utilitarismo defende que a solução ao problema de “como devemos viver” passa pela busca da felicidade. A maneira de se buscar essa felicidade lhe é peculiar; deve-se procurar agir de modo a que as ações de um determinado agente promovam diretamente, ou ajudem a promover indiretamente, esse resultado de maior felicidade. Também aqui não se trata de uma solução simplesmente egoísta, que seria em realizar ações cujos resultados fossem bons para o agente. A discussão é mais complexa, pois o utilitarismo defende que se busque a felicidade em geral, o que passa a incluir os outros indivíduos, sendo ainda que os interesses dos outros devem ter o mesmo valor que os nossos. Pode-se dizer que “o utilitarista advoga uma estrita igualdade na consideração dos interesses.” (GALVÃO, 2005, p. 09). Diálogo com o Autor “O credo que aceita a utilidade, ou o Princípio da Maior Felicidade, como fundamento da moralidade, defende que as ações estão certas na medida em que tendem a promover a felicidade, erradas na medida em que tendem a produzir o reverso da felicidade. Por felicidade, entende-se o prazer e a ausência de dor; por infelicidade, a dor e a privação do prazer.” (MILL, 2005, p. 48.) Fique atento, estudante! Novamente nos deparamos com termos cujo significado filosófico vai além do uso no senso comum! Observemos o próprio termo “utilitarismo”. A palavra pode induzir erroneamente à ideia de utilidade simplória, quase mecânica, tal como são úteis uma ferramenta, um sapato, etc., e parecer descolada da ideia de útil para questões mais intangíveis, como a felicidade. Por outro lado, termos como “prazer” e “dor” no senso comum podem ter um uso por demais restrito: o prazer como associado ao prazer sensual (oriundo dos sentidos), sendo ainda, em muitos casos, algo passageiro e muito facilmente condenado por moralismos tradicionais; já a dor, associada apenas com sofrimento físico mais imediato (dor de dente, dor devida a uma pancada sofrida, dor de barriga etc.). 13 Stuart Mill, em seu texto Utilitarismo, passa algumas linhas desfazendo esse tipo de confusão, a qual atrai críticas indevidas ao utilitarismo enquanto doutrina ética. Um caminho que contribui para o entendimento da linha de pensamento do autor é considerar “prazer” e “dor” como termos que incluam “bem-estar” e “mal-estar” de uma forma mais ampla. Satisfação em alcançar uma meta profissional, por exemplo, entraria na categoria de “prazer”. Tristeza ou decepção podem ser incluídas na categoria utilitarista de “dor”. O estudante atento já desconfia que o utilitarismo pode muito bem criar uma hierarquia de prazeres, em que uns são mais elevados do que outros. A desconfiança procede. Stuart Mill reconhece que o princípio de utilidade é compatível com a distinção entre tipos de prazeres. “Seria absurdo supor que, enquanto que na avaliação de todas as outras coisas se considera tanto a qualidade como a quantidade, a avaliação dos prazeres dependesse apenas da quantidade.” (MILL, 2005, p. 49.) Quando se fala de uma teoria das consequências que privilegia a ação que produza o maior prazer possível não apenas para o agente, mas para a comunidade como um todo, um problema a ser considerado é: “como posso atingir esse máximo de prazer ou de felicidade?”. “Isso realmente é possível?”. No que se refere à possibilidade da felicidade, a réplica utilitarista é de que quando não for possível ampliar a felicidade, deve-se buscar evitar ou mitigar a infelicidade existente. Certamente um donativo dado em uma campanha de caridade não resolve de forma definitiva toda uma série de problemas sociais ligados à pobreza, porém seguindo o raciocínio dos utilitaristas, a ação auxilia ao menos a mitigar – ao mesmo que momentaneamente – a dor (situação de privação) na qual se encontra aquela pessoa ou grupo de pessoas, ou seja, para o utilitarismo a ação é moralmente válida. Há outro problema que costuma ser apresentado ao utilitarismo: o do cálculo das consequências. Jeremy Bentham falava mesmo em “cálculo para a felicidade”. O entendimento sóbrio e prático de Stuart Mill ironiza ao afirmar que um moralista cristão não precisa ler (ou reler) todo o antigo e o novo testamento a cada decisão que vá tomar (Conf. MILL, 2005). Para Stuart Mill, a cultura humana acumula uma longa sabedoria moral, a qual pode já servir de ponto de partida para qualquer um que queira agir corretamente em sociedade, não sendo necessário para cada caso do convívio em sociedade fazer uma “terra arrasada” e começar a questionar tudo do zero. Um exemplo lembrado pelo autor inglês é o princípio de “se cumprir aquilo que for prometido”. A sabedoria popular e o acúmulo de bons resultados com esse tipo de prática (resultados empíricos) ajudaram a construir a ideia de que cumprir as promessas seja algo sábio, bom, justo ou simplesmente o “certo a se fazer”. Ora, por que um utilitarista não faria uso dessa “sabedoria acumulada”? O espírito empírico de Stuart Mill leva a responder que sim, que essa é uma linha de ação moralmente correta, e quando analisada à luz dos parâmetros utilitaristas isso se confirma, pois pode-se imaginar o quão danoso seria para a sociedade instituir a prática contrária, ou seja, se as promessas jamais fossem cumpridas. O argumento de Mill é que não se faz necessário um imenso cálculo de consequências para cada decisão do cotidiano. Muitas vezes, seguir as leis e os costumes já parece atender às demandas éticas do homem comum. Na maioria dos casos, o alcance das ações de uma pessoa impacta mais fortemente sobre ela mesma e em seus entes queridos, e esse “cálculo” intuitivo não seria tão difícil de fazer. Mas, estejamos atentos, isso não priva o cidadão comum de ter responsabilidades 14 Unidade: Dever e Consequências ou preocupações com questões que dizem respeito ao conjunto da comunidade. Se pensarmos em termos mais contemporâneos, a preocupação com o meio ambiente, por exemplo, é algo cada vez mais presente no cotidiano do cidadão comum e é algo cujo impacto é pensado para a comunidade, tanto agora quanto no futuro, nas próximas gerações. O utilitarismo também nos lembra de que dependendo da posição de liderança junto à sociedade, as decisões de um indivíduo podem ter um alcance muito maior em termos de consequências. Aliás, esse é um ponto chave na distinção entre uma ética de tipo transcendental,como a ética kantiana, e uma ética de matriz consequencialista. Voltemos ao princípio de se cumprir uma promessa. Se tomarmos a lógica da ética do dever em Kant, cumprir a promessa atende aos requisitos do imperativo categórico e, portanto, é uma ação que deve ser elevada a lei universal. Nesse caso, é razoável que qualquer ser racional se veja obrigado por sua lei moral interior (racional) a cumprir sempre as suas promessas. Sempre existiria a possibilidade de não fazê-lo, mas tomando o sistema kantiano ao “pé da letra”, quebrar uma promessa sempre seria uma conduta imoral, incorreta. Paz Guerra T hinkstock/G etty Im ages Thinkstock/Getty Images Agora, estudante, imaginemos o seguinte cenário: um líder de um país fez uma promessa, mas, devido à conjuntura, manter essa promessa desencadearia uma guerra sangrenta com a possibilidade da morte de milhares de pessoas. Ele deveria honrar a promessa, pelo simples princípio de que “o prometido deve ser cumprido” ou ele quebraria o prometido, tendo em vista as consequências da sua ação (evitar um aumento imenso na dor da comunidade)? Não é uma situação simples, mas a saída, se pensada a partir de parâmetros utilitaristas, é quase imediata: evita-se a guerra. O entendimento da maioria dos utilitaristas é que a situação justifica a ação; assim, a liderança em questão teria agido de forma correta. Mas se tomarmos parâmetros kantianos, a questão se complica. Talvez a liderança em questão tivesse que renunciar diante do paradoxo ao qual estaria presa (teria perdido a legitimidade moral por não cumprir o prometido), mesmo tendo realizado uma ação que salvasse muitas vidas. O paradoxo não atinge apenas o modelo de Kant, atinge também o utilitarismo. Imaginemos outra circunstância: um indivíduo cruel, que já foi condenado pela justiça com todas as provas possíveis de seus crimes (assassinatos), contando inclusive com a confissão dos 15 mesmos. Poderia a comunidade exigir um apressamento da sua execução (caso fosse essa a sua penalidade) para que fosse aproveitado o máximo de órgãos para a doação? Com a variável que o prisioneiro não autorizou tal procedimento? Mas não seria de interesse público essa coleta de órgãos? Poderia se salvar e restituir a condição de membro produtivo da sociedade em pelo menos seis outros indivíduos honestos, com entes queridos, etc. Tomado o critério kantiano, a resposta seria negativa, seja por questões de dignidade humana, seja pelo respeito à autonomia do prisioneiro (pelo menos na questão de aceitar ou não fazer doação de órgãos). Já para o utilitarismo, se o princípio de máxima felicidade fosse aplicado de uma forma selvagem, o raciocínio de que o interesse da coletividade merece o sacrifício do indivíduo, o resultado poderia ser diferente. O que queremos mostrar é que seja pela linha do dever, seja pela linha da utilidade, ambos os modelos têm virtudes próprias e dificuldades quando submetidos a situações extremas. Para o modelo do dever estabelecer exceções em regras universais, é sempre um embaraço, a menos que sejam seguidas de regras que estabeleçam qual é a exceção. Isso na prática cria um subconjunto de regras que também podem ser pressionadas de forma a se ampliar a exceção anterior, e daí novo embaraço. O modelo das consequências pode sofrer com o excesso de flexibilidade. Em situações que coloquem os interesses de uma maioria em contraposição aos interesses de uma minoria, quais os limites éticos para a moralidade? Em alguns momentos a sociedade produz padrões que tendem a servir como limite. Quando o utilitarista recorre a esses padrões e os aceita como norma, está bem próximo de uma ética do dever. O ponto o qual precisamos deixar assinalado é que embora o modelo do dever ou o modelo das consequências pareça um se inspirar no outro, quando colocados em situações de encurralamento (o dever autorizar a exceção da regra e o consequencialista colocar uma regra limite a avaliar as consequências a partir dela), em ambos, assim como no modelo de uma ética da virtude nos moldes aristotélicos, sempre há um chamado: a razão. A maioria das doutrinas éticas ligadas à filosofia coloca a razão como a ferramenta que irá julgar as nossas ações. Em nenhum momento esses modelos racionalistas vão validar ou condenar uma linha de ação unicamente com base numa tradição, ou em um critério religioso, por exemplo. O corrupto não é imoral porque roubar é pecado; ele é imoral porque desviar recursos públicos, subornar ou receber suborno é algo que não consegue ser elevado à condição de lei universal (pois ele obtém vantagem prejudicando terceiros). Também pelo mesmo motivo é imoral uma ação que diminui a felicidade geral e contribui para o aumento da infelicidade (basta pensarmos em todos os não beneficiados daqueles serviços públicos que deixam de existir por faltar dinheiro de impostos para implementá-los, exatamente porque o dinheiro fora roubado) e, finalmente, almejar recursos que não são de sua propriedade e que ferem as leis vigentes afastam o corrupto da conduta virtuosa e o afogam no vício da cobiça. Dessa maneira, entendemos que a ética é uma disciplina viva. Muitas escolas de pensamento se debruçam sobre o tema, obtendo resultados diversos em muitos pontos e semelhantes em outros; o importante ao filósofo é estar sempre aberto à reflexão sobre o tema, de modo a contribuir para um debate sobre as constantes melhorias das formas de se viver e, por que não, quem sabe, abrir caminhos para a felicidade? 16 Unidade: Dever e Consequências Material Complementar A bibliografia complementar irá ajudá-lo(a) no aprofundamento dos seus estudos. Sugerimos iniciar sua pesquisa de aprofundamento a partir dos “manuais mais gerias” e depois dedicar sua leitura aos textos específicos. Indicamos também a leitura de algumas obras clássicas, como Fundamentação de Metafísica dos Costumes, de Kant e Utilitarismo, de John Stuart Mill. Também recomendamos a leitura de perspectivas contemporâneas sobre o tema da ética, como A sociedade pós-moralista, de Gilles Lipovetsky. Importante Importante também, estudante, é recorrer a um vocabulário filosófico. Essa abordagem facilita o movimento de investigação partindo dos textos mais introdutórios em direção aos mais complexos, o que permitirá ampliar a discussão principal da unidade, que envolve a temática em torno das ideias de Dever e de Consequências. Indicação de Filme: Para pensar a questão de uma ética que se cumpre apenas por meio das sanções, o dilema do “homem invisível”, sugerimos o filme: O homem sem-sombra. Direção de Paul Verhoeven. Estados Unidos/Alemanha. 2000 (Duração: 112 min.). 17 Referências CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 13ª edição. – São Paulo, SP: Editora Ática, 2003. FRANKENA, Willian K. Ética. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. – Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1969. GALVÃO, Pedro. Introdução. In: MILL, John Stuart. Utilitarismo. – Porto: Porto Editora, 2005. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. – Lisboa: Edições 70, 2007. MILL, John Stuart. Utilitarismo. Introdução, tradução e notas de Pedro Galvão. – Porto: Porto Editora, 2005. REALE, Giovani; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. 7ª edição – São Paulo, SP: Paulus, 2002. BITTAR, Eduardo C.B; ALMEIDA, Guilherme Assis. Curso de Filosofia do Direito. 10ª edição. – São Paulo, SP: Editora Atlas, 2012. GIANNETTI. Vícios privados, benefícios públicos?: a ética na riqueza das nações. – São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2007. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. – Lisboa: Edições 70, 2007. LIPOVESTSKY, Gilles. A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Tradução de Armando Braio Ara. – Barueri, SP: Manole, 2005. MILL, John Stuart. Utilitarismo. Introdução, tradução e notas de Pedro Galvão. – Porto:Porto Editora, 2005. REALE, Giovani; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. 7ª edição – São Paulo, SP: Paulus, 2002. 18 Unidade: Dever e Consequências Anotações