Buscar

SUICÍDIO NA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO: O que essas mortes denunciam?

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 66 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 66 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 66 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

1 
 
 Universidade do Estado do Rio de Janeiro 
 Instituto de Psicologia 
 Departamento de Psicologia Social e Institucional 
 Curso de Especialização em Psicologia Jurídica 
 
 
 
 
Emanuelle Silva Araújo 
 
 
 
 
SUICÍDIO NA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO: 
O que essas mortes denunciam? 
 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2017 
 
2 
 
Universidade do Estado do Rio de Janeiro 
Instituto de Psicologia 
Departamento de Psicologia Social e Institucional 
Curso de Especialização em Psicologia Jurídica 
 
 
 
 Emanuelle Silva Araújo 
 
 
 
 
SUICÍDIO NA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO: 
O que essas mortes denunciam? 
 
 
 
Monografia apresentada ao Curso de 
Especialização em Psicologia Jurídica da 
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob 
orientação da Profª Dra. Amana Rocha Mattos. 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2017 
3 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Aos que se foram e aos que ficaram com as 
lembranças, a dor e a saudade. 
Aos que lutam e aos que lutaram por uma 
vida digna de ser vivida. 
 
 
4 
 
AGRADECIMENTOS 
 
 
Em primeiro lugar, agradeço a minha mãe, Elaine, meu pai, Luiz, e minha avó, 
Iraneide, pela paciência infinita em se tratando da minha ausência e mau humor crônico. 
Meus poucos e bons amigos também podem ser incluídos no quesito ausência, uma vez que 
até do mau humor foram privados de compartilhar. 
Agradeço a todos os professores e colegas do Curso de Especialização em Psicologia 
Jurídica, em especial, à minha orientadora Amana Mattos, que sem a sua força, paciência e 
compreensão, eu jamais teria conseguido concluir este trabalho; e à Heliana Conde, minha 
eterna musa inspiradora e responsável por momentos instigantes e encantadores em sala de 
aula. Agradeço igualmente, ao Pedro Paulo Bicalho, por permitir minha presença como 
ouvinte em suas aulas, cujas discussões tanto contribuíram para a confecção deste trabalho. 
Agradeço à Dayse Miranda e a toda a equipe da pesquisa “Suicídio e Risco 
Ocupacional: O caso da Polícia Militar carioca” pela oportunidade de vivenciar momentos 
absolutamente realizadores e gratificantes. Meus agradecimentos ao Doriam Borges pela 
indicação para a vaga de psicóloga e pesquisadora no estudo, e também, pelo carinho e 
atenção que dispensa a todos em todas as ocasiões. 
Agradeço profundamente a todos os policiais militares e seus familiares que abriram 
as portas das suas casas e exibiram suas feridas ao longo do trabalho de campo. Agradeço a 
todos os membros da PMERJ que contribuíram para a realização da pesquisa supracitada. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
5 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Os amoladores de facas, à semelhança dos cortadores 
de membros, fragmentam a violência da cotidianidade, 
remetendo-a a particularidades, casos individuais. 
Estranhamento e individualidades são alguns dos 
produtos desses agentes. Onde estarão os amoladores 
de facas? 
 
 
Luis Antonio Baptista 
 
 
6 
 
SUMÁRIO 
 
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................7 
1 – CONTEXTUALIZANDO O SUICÍDIO.........................................................................12 
1.1 – O suicídio em números...........................................................................................13 
1.2 – Enquadramento histórico do suicídio...................................................................16 
2 – A POLÍCIA MILITAR NO RIO DE JANEIRO: POLÍCIA E POLÍTICA................24 
 2.1 – Polícia e política: a construção de um cataclismo.................................................24 
 2.2 – De que Rio de Janeiro estamos falando?...............................................................27 
2.3 – Breve história da Polícia Militar no Rio de Janeiro.............................................32 
 
3 – SUICÍDIO POLICIAL: A POLÍCIA QUE MAIS MATA TAMBÉM É A QUE 
MAIS MORRE..................................................................................................................38 
3.1 - Algumas considerações sobre o campo...................................................................40 
 3.1.1 – Palestras nos batalhões................................................................................40 
 3.1.2 – Entrevistas....................................................................................................46 
 3.1.3 – Autopsias psicológicas ou psicossociais......................................................50 
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................60 
REFERÊNCIAS......................................................................................................................63 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
7 
 
INTRODUÇÃO 
 
O interesse pelo tema suicídio surgiu através de minha participação na pesquisa 
sociológica: “Suicídio e Risco Ocupacional: O caso da Polícia Militar carioca”, vinculada ao 
Laboratório de Análises da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ao longo 
do ano de 2011. O convite para que eu integrasse a pesquisa partiu da ideia de se ter uma 
“psicóloga-pesquisadora” na equipe. “A Emanuelle é psicóloga e sabe fazer pesquisa”, disse 
a pessoa que me indicou. Surpresa de muitos pesquisadores que não imaginavam que eu fosse 
graduada em psicologia, após tantos anos trabalhando com pesquisa social e, principalmente, 
após o título de mestre em “Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais” (Mestrado situado na 
grande área de Ciências Sociais Aplicadas da CAPES1
O objetivo de se ter uma psicóloga na pesquisa seria o de facilitar a comunicação com 
os profissionais da área da saúde da Polícia Militar, especialmente psicólogos e psiquiatras. 
Partia-se do princípio de que o suicídio seria parte de um processo de adoecimento psíquico, 
considerando como ponto central o “Transtorno de Estresse Pós-traumático - TEPT”
, na Escola Nacional de Ciências 
Estatísticas – ENCE/IBGE). 
2
Com o início das atividades me vi diariamente sendo apresentada como “psicóloga”, o 
que me soava muito estranho. Mais estranho ainda era ser apresentada como “psicóloga 
responsável” (Responsável pelo quê???). Além disso, por várias vezes fui surpreendida 
apresentando a mim mesma da mesma forma: como psicóloga responsável. Após meses de 
experiência vi uma nova subjetividade se construindo, o desejo de seguir a carreira acadêmica 
na área da psicologia nascendo; a possibilidade de seguir minha formação nas ciências sociais 
foi-se distanciando cada vez mais. O encantamento vindo de autores que “descobri”, como 
Deleuze e Guattari, e autores que conhecia pouco, como Foucault, foi modificando a minha 
forma de olhar, perceber e sentir o mundo; o conhecimento da Análise Institucional e de 
. Soares 
et al. (2006) afirmam que a polícia está entre as ocupações que apresentam maior prevalência 
do TEPT, sendo que estimativas sugerem que nove em cada dez suicídios policiais se devem a 
este transtorno. 
 
1 Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. 
2 “A DEPT foi estudada inicialmente, em pessoas que viveram diretamente situações violentas, como soldados 
em guerras, vítimas de estupros; ou pessoas que estavam presentes em áreas atingidas por catástrofes, humanas 
ou naturais, como guerras – incluindo as civis - terremotos, furacões, tornados, erupções, etc. (...) Inicialmente, 
se falou em Acute Stress Syndrome e em Acute Stress Disorder; que seria intensa, mas duraria pouco. Porém, 
notaram que havia pessoas que permaneciam com alguns sintomas durante muito tempo e a duração dos 
sintomas passou a ser um critériopara caracterizar a DEPT” (Soares et al., 2007:27-28). Os autores traduziram o 
termo Post Trauma Stress Disorder como Desordem de Estresse Pós-Trauma (DEPT). 
8 
 
ferramentas/métodos e de possibilidades que não sabia que existiam; o estranhamento e 
questionamento das minhas práticas tão naturalizadas em meu cotidiano3
Na pesquisa supracitada, minhas tarefas consistiam no contato com profissionais de 
saúde da PMERJ (infindáveis reuniões); levantamento de dados sobre mortes violentas de 
policiais (suicídio, homicídio e acidente) no Grupo de Atendimento aos Familiares dos 
Policiais Militares Falecidos – GAFPMF; contato com os familiares dos policias falecidos e 
não falecidos; divulgação das palestras de apresentação da pesquisa que seriam direcionadas 
aos policiais militares e aos familiares dos policiais falecidos; apresentação das palestras nos 
batalhões; entrevistas com familiares de policiais falecidos
. 
4
Inicialmente, ao entrar em contato telefônico com os familiares de policiais mortos por 
causas violentas, dizia: “Sou Emanuelle, pesquisadora da UERJ”, a recepção não era das 
mais animadoras. Até que um dia arrisquei: “Sou Emanuelle, psicóloga do Laboratório de 
Análises da Violência da UERJ”, mudança radical no tratamento. A palavra mágica 
“psicóloga” abria um portal para outra dimensão que favorecia o diálogo com as pessoas. O 
que seria isto? Passei a questionar o lugar de “pesquisadora” e o de “psicóloga”, e de como 
cada lugar me afetava e afetava o outro. 
 e não falecidos e entrevistas com 
policiais amigos/colegas de policiais militares que cometeram o suicídio. 
Em termos práticos, a pesquisa na qual atuei teve por objetivo realizar um diagnóstico 
da Polícia Militar através do discurso dos próprios policiais e de seus familiares e, a partir daí, 
se sugerir ao comando geral da PMERJ uma série de ações preventivas relacionadas ao 
suicídio e risco ocupacional. Quem iria executar essas ações seriam os próprios profissionais 
da área da saúde da corporação, que teriam em mãos os dados e sugestões decorrentes dessa 
pesquisa5
 
3 Devo grande parte desses “descobrimentos” às leituras sugeridas e às trocas com professores e alunos durante 
as aulas de “Subjetividade e Processos de Criminalização”, no curso de especialização em Segurança Pública da 
UFRJ, ministrada pelo professor Pedro Paulo Bicalho; além da disciplina “Controle Social da Pobreza e 
Seletividade Penal”, no curso de Mestrado em Direito da UFRJ, ministrada pelos professores Pedro Paulo 
Bicalho e professora Miriam Guindani. Em ambas as aulas tive participação como ouvinte. 
. 
4 Como técnica de entrevista a familiares de policiais falecidos e amigos/colegas de policiais que cometeram o 
suicídio, optou-se pela “necropsia psicossocial” ou “autópsia psicológica” (dependendo do autor os termos se 
modificam, talvez um problema de tradução). “(...) com vistas a se aprimorar o entendimento sobre esse 
comportamento [suicida], Kovács ainda nos aponta que podemos realizar uma espécie de autópsia psicológica. 
Tal autópsia, que seria realizada a partir de estudos com a família do paciente, consta de uma série de temas que 
podem ser pensados” (Bastos, 2006:93). 
5 No total foram aplicados 224 questionários a policiais militares que se voluntariaram e, além disso, foram 
realizadas 290 entrevistas com PMs amigos/colegas de policiais que cometeram o suicídio; familiares de 
policiais falecidos e não falecidos; e entrevistas biográficas com policiais militares. 
9 
 
Por tratar-se de uma pesquisa sociológica, utilizou-se por sua idealizadora (Dra. Dayse 
Miranda, pesquisadora e bolsista de Pós-Doutorado CNPQ6) o conceito de suicídio proposto 
na obra clássica de Émile Durkheim Le Suicide: “Chama-se suicídio todo o caso de morte que 
resulta direta ou indiretamente de um ato, positivo ou negativo, realizado pela própria vítima e 
que ela sabia que produziria esse resultado” (Durkheim, 2004:14). Sendo a justificativa do 
projeto de pesquisa um lugar comum nos estudos sobre o tema na contemporaneidade: 
“Dados da Organização Mundial de Saúde (WHO) confirmam que o suicídio é um sério 
problema de saúde pública” (Miranda, 2010a:1). Esses dois elementos (conceito e 
justificativa) suscitaram uma série de questões pessoais que carreguei silenciosamente ao 
longo do meu trajeto: A morte biológica seria a única maneira possível de entender o 
suicídio? Que outras formas de ‘morte’ poderiam ser percebidas enquanto suicídio? De que 
maneira o suicídio passou a ser percebido socialmente como um problema? Como se 
constituiu enquanto grave problema de saúde pública? Quando e como o ato suicida se 
transformou em uma preocupação para o Estado e demais setores da sociedade? O 
comportamento suicida sempre foi concebido como consequência de transtornos mentais? O 
suicida sempre foi visto como vítima? A tentativa de suicídio sempre foi entendida como um 
grito de alerta (‘Cry for help’) por quem a comete? A família e os amigos dos suicidas sempre 
foram compreendidos como pessoas que precisariam de amparo dos profissionais de saúde e 
do serviço social? O ato suicida sempre foi compreendido como algo que precisa ser 
identificado, prevenido e controlado7
O ingresso no curso de Especialização em Psicologia Jurídica despertou em mim uma 
série de outras questões e me fez refletir sobre o papel do psicólogo com atuação na 
Segurança Pública. Percebi que são inúmeros os desafios que a Psicologia Jurídica nos tem 
apresentado. Não somente essa área específica do conhecimento, mas o campo da Psicologia e 
sua historicidade enquanto ciência legitimadora de normas sociais ou, ainda, “ortopédica”, 
como nos diz Foucault. A influência do positivismo e das ciências naturais no nascimento da 
psicologia marcou e ainda hoje marca a sua história e a práxis do psicólogo. Como nos diz 
Coimbra, “(...) a psicologia historicamente se forja como apolítica, neutra, científica e 
objetiva, em que as questões sociais são extremamente psicologizadas, ou seja, reduzidas em 
sua ‘essência’ a um plano psíquico” (Coimbra et al., 2008:28). 
? E, enfim, o que essas mortes voluntárias, no caso da 
Polícia Militar do Rio de Janeiro, denunciam? 
 
6 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 
7 De acordo com o relatório da OMS Preventing suicide: A resource for police, firefighters and other first line 
responders, comentado posteriormente. 
10 
 
Felix Guattari nos fala no quanto a prática dos profissionais “psi” pode ser policialesca 
por mais “inocentes” que sejam suas intenções. Menciona que em 68 costumavam se referir 
aos profissionais “psi” como “tiras”. Diz o autor: “Do ponto de vista micropolítico qualquer 
práxis pode ser ou não policialesca; nenhum corpo científico, nenhum corpo de referência 
tecnológica garante uma justa orientação” (Guattari; Rolnik, 2010:38). 
Por fim, percebi a importância do “implicar-se”, de o psicólogo analisar sua 
implicação no campo de atuação; bem como a eterna problematização do que está sendo posto 
no cotidiano do setor de psicologia. O questionar-se abre brechas preciosas em direção a 
pontos essenciais à prática psi, tais como: a recusa do lugar de quem sabe o que é melhor para 
o outro; a não legitimação de controles sociais vigentes; o entendimento de que o ser humano 
é produzido coletivamente e possuidor de suas singularidades; e que a prática do psicólogo 
pode - e deve - ser libertária. Como nos diz Verani, “Este é o sentido – que eu imagino – do 
encontro entre o Direito e a Psicologia: uma aliança em favor da dignidade da pessoa humana, 
em favor da cidadania, em favor da liberdade” (Verani, 1995:20). 
Netto (2013) comenta que os profissionais “psi” têm o hábito de reproduzir um 
“psicologismo” ao trabalhar a temática do suicídio, descontextualizando suas análises sobre o 
fenômeno, bemcomo “a atribuição a características individuais e psíquicas de fenômenos que 
são sociais e políticos” (p. 19). Nessa direção, na tentativa de promover uma discussão sobre o 
suicídio na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, com um olhar desnaturalizado e 
considerando o contexto histórico e social no qual ocorreram as “mortes voluntárias”, que 
surge a proposta deste trabalho. Parte do princípio que toda e qualquer morte denuncia algo 
sobre a sociedade em que ela acontece. Como nos diz o autor, 
Por que, então, previne-se o suicídio? Se, como disse, a princípio, as mortes trazem 
consigo denúncias ou manifestações de coisas que se dão no âmbito da vida e da 
saúde de uma determinada sociedade, essas mortes específicas, intencionalmente 
provocadas, também vão explicitar essas questões. O que então essas mortes 
voluntárias poderiam explicitar sobre a nossa sociedade? (Netto, 2013:20). 
 
Para tanto, propõe-se uma pesquisa bibliográfica acerca do suicídio, lançando mão 
eventualmente de reportagens publicadas em mídias virtuais e das minhas observações de 
campo na pesquisa “Suicídio e Risco Ocupacional: O caso da Polícia Militar carioca”. 
Todas as análises propostas foram realizadas com base em meus diários de campo da 
pesquisa sociológica e nas gravações das entrevistas realizadas por mim, além, das reflexões 
sobre a minha prática, que revisitei na elaboração deste trabalho. Busquei me debruçar sobre 
11 
 
as minhas indagações surgidas na ocasião da pesquisa, conduzindo a discussão para o campo 
da psicologia. Além das minhas anotações e gravações, também utilizo como recurso, os 
resultados da pesquisa reunidos no livro “Por que Policiais se Matam? Diagnóstico e 
prevenção do comportamento suicida na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro” 
(Miranda, 2016). 
Dessa forma, todo o material reunido em meus diários de campo e gravações foi 
novamente percorrido anos após a realização da pesquisa, no contexto de criação do meu 
próprio projeto de prevenção do suicídio e valorização da vida, chamado Espaço Desperta Psi. 
Projeto este, voltado para a promoção de grupos de estudos, cursos, oficinas e eventos 
relacionados à temática do suicídio. 
A proposta do Espaço Desperta Psi nasceu do desejo de provocar em psicólogos e 
estudantes de psicologia um despertar para a sua função política e social, partindo do 
princípio que estudar sobre a morte nos diz muito sobre a vida, e principalmente, a forma 
como se morre nos revela duramente a realidade em que estamos vivendo. Minhas 
experiências profissionais e acadêmicas anteriores reverberaram em todo o processo de 
idealização do projeto, especialmente a minha participação como psicóloga e pesquisadora na 
pesquisa “Suicídio e Risco Ocupacional: O caso da Polícia Militar carioca”, em 2011, onde 
teve início o meu despertar sobre as questões relacionadas ao suicídio. 
Por fim, o presente trabalho está estruturado da seguinte forma: no primeiro capítulo, 
busco contextualizar o suicídio em termos conceituais, estatísticos e históricos, com vistas a 
identificar as suas implicações sociais, culturais e legais ao longo do tempo. No segundo 
capítulo, procuro debater sobre as imbricações entre a instituição polícia, o contexto político a 
ela relacionado e o fenômeno do suicídio entre policiais militares, trazendo à tona 
acontecimentos que envolvem a história da polícia e o cenário político, econômico e social 
atrelado a ela. No terceiro capítulo, recorro às minhas incursões no campo visando entender a 
forma com que a Polícia do Estado do Rio de Janeiro lida com o suicídio dos seus membros; 
como o Estado enfrenta essas mortes; o quanto essas mortes importam para o sistema; e que 
valor cada vida perdida tem para a corporação. 
 
 
 
 
 
12 
 
1 – CONTEXTUALIZANDO O SUICÍDIO 
 
O termo “suicídio” é consideravelmente recente, surgido entre os séculos XVII e 
XVIII; é o nome que a modernidade designa à “morte voluntária”. Historicamente, esse termo 
começou a ser empregado em latim, na Inglaterra, em 1630. Alguns autores o identificam na 
língua francesa, utilizado pelo abade Desfontaines por volta de 1734, com o sentido de “o 
assassinato ou morte de si mesmo” (Sui = si mesmo; Caedes = ação de matar) (Ribeiro, 2004). 
Na literatura voltada à temática encontram-se os termos: violência autoinfligida, 
comportamento suicida fatal e autoassassinato; também é comum a denominação autocídio 
em peças jurídicas. Há ainda o termo para-suicídio ou comportamento para-suicida para 
designar um ato não fatal, no qual o indivíduo não possui intenção de morrer, mas que 
apresenta uma conduta de risco, como a ingestão excessiva de substâncias, comportamentos 
de auto-mutilação ou autoagressão. 
Encontra-se nos estudos dos especialistas no assunto uma série de classificações: 
comportamentos suicidas, como atos considerados de alto risco; personalidades suicidas, 
como as agressivas e impulsivas; e grupos potencialmente suicidas, como homens, população 
carcerária, jovens em conflito com a lei, pessoas com transtornos mentais e portadores de 
doenças degenerativas. 
Netto (2013) propõe uma reflexão acerca das terminologias utilizadas na atualidade e 
de como elas apresentam um viés negativo às “mortes voluntárias” e a quem comete o ato. 
Diz o autor: 
Com essas terminologias, costuma-se desqualificar o ato daqueles que tentam tirar a 
própria vida e daqueles que o conseguem fazê-lo. Ao desqualifica-lo, também se 
estigmatiza esses sujeitos como alguém que não pode estar são ou no controle da sua 
própria conduta e, com isso, acaba-se por amordaçar o indivíduo e impedir que tudo 
aquilo que sua morte poderia trazer a tona se manifeste. Há que se pensar que toda e 
qualquer morte traz à tona algo sobre a sociedade em que ela acontece (P17). 
 
Essa questão apresentada por Netto será discutida mais à frente e será considerada ao 
longo do trabalho. 
 
 
13 
 
1.1 – O suicídio em números 
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, aproximadamente um milhão de 
pessoas cometem suicídio a cada ano. Isso representaria uma morte a cada minuto, quase 3 
mil mortes a cada dia e uma tentativa de suicídio a cada três segundos. Há mais casos de 
mortes causados por suicídio do que por conflitos armados ou por acidentes de trânsito 
(WHO, 2009). 
Em muitos países, o suicídio é uma das três principais causas de mortes de 
adolescentes e de jovens adultos com idade entre 15 e 24 anos. Mundialmente, a taxa de 
suicídios aumentou em 60% na última metade do século XX. Para cada suicídio consumado, 
há 10 a 20 tentativas de suicídio (WHO, 2009)8
 O monitoramento estatístico das taxas mundiais de suicídio é consideravelmente 
recente; os países começaram a coletar dados sobre mortalidade a partir de 1950 com a 
criação da OMS. Contudo, as primeiras informações sobre as mortes no Brasil datam de 1980 
(Mello-Santos et al., 2005). Entre 1996 e 2000 foram registradas pelas Secretarias de Saúde 
brasileiras 33.953 mortes por suicídio (Soares et al., 2006). 
. A OMS estima que até o ano de 2020 a 
incidência mundial de suicídios se aproximará de 1.53 milhões de pessoas, e 10 a 20 vezes 
mais indivíduos irão cometer tentativas de suicídios (Mello-Santos et al., 2005). 
De acordo com dados do DATASUS, entre 1980 e 2000, a taxa de suicídios no Brasil 
subiu 21%; os homens suicidaram-se de 2 a 4 vezes a mais do que as mulheres; e os idosos 
com mais de 65 anos apresentaram as maiores taxas. O grupo etário de jovens entre 15 e 24 
anos foi o que apresentou maior crescimento: 1.900%. Esses resultados indicam que o Brasil 
segue a tendência mundial de crescimento nas taxas de suicídio, embora com menores 
proporções (Mello-Santos et al., 2005). Em 2007, de acordo com dados do Sistema de 
Informações sobre Mortalidade (SIM/DATASUS) do Ministério da Saúde, a taxa brasileira de 
suicídios era de 4.77 por 100.000 habitantes (Miranda, 2010b: 16). 
Atualmente, em todoo mundo o suicídio é percebido como um problema de saúde 
pública que deve ser identificado, prevenido e controlado. A OMS, em 1999 lançou o 
programa SEMPRE, “Preventing Suicide”, uma iniciativa mundial de prevenção do suicídio. 
Há uma rede mundial direcionada ao tema: a “WHO International Network for Suicide 
 
8 As estatísticas de suicídio são elaboradas com base nas informações que os países membros enviam à OMS. É 
importante ressaltar que nem todos os países enviam os seus dados e que nem todos os estados enviam as 
informações para o seu país. Isso significa que há uma subnotificação dos casos de suicídio. 
14 
 
Prevention”. Atualmente, há publicações elaboradas pelo Ministério da Saúde (2006, e várias 
outras em parceria com instituições de saúde)9
O suicídio, além de ser reconhecido como um problema de saúde pública pela OMS, 
também é visto como a maior fonte de mortes evitáveis em todo o mundo. De acordo com 
seus relatórios, como citado anteriormente, para cada pessoa que comete o suicídio, há 20 
pessoas ou mais que irão tentá-lo. O impacto emocional para a família e amigos em razão 
desses atos apresenta uma duração de longos anos (WHO, 2009). 
, pelo Conselho Federal de Psicologia (2013) e 
pela Associação Brasileira de Psiquiatria (2014). 
A partir do lançamento do programa SEMPRE, da OMS, uma série de relatórios nessa 
temática foi elaborada voltada para educadores, profissionais da segurança pública, assistentes 
sociais e profissionais da saúde. Em suas orientações, as respectivas instituições deveriam 
ajudar a reduzir o suicídio em suas comunidades, assegurando-se que seus profissionais sejam 
adequadamente treinados para reconhecer os sinais e sintomas de transtornos mentais; 
identificar os riscos de suicídio; compreender a legislação local sobre saúde mental e como 
usá-la nas comunidades para desenvolver, dessa forma, programas especializados para ajudar 
no manejo da saúde mental e as crises de suicídio em suas áreas, bem como auxiliar na 
criação de redes que facilitem o acesso aos locais de cuidados com a saúde física e mental. O 
Programa de Prevenção ao Suicídio inclui, ainda, zelos durante o contato com familiares e 
amigos do suicida ou da pessoa que tentou o suicídio, bem como a prevenção do suicídio em 
prisões e situações de encarceramento (WHO, 2009). 
Segundo Botega et al. (2006), o suicídio é visto não mais como uma tragédia pessoal, 
mas como um sério problema de saúde pública. Os autores comentam o impacto do 
comportamento suicida nos serviços de saúde: em 2002, calculou-se que 1,4% da carga global 
deveram-se às tentativas de suicídio. Quanto aos fatores de proteção ao suicídio, os autores 
comentam que pessoas vinculadas a grupos religiosos apresentam menores taxas, sendo a 
religiosidade um fator importante na superação de doenças graves. De acordo com a cultura 
de cada local, seus valores podem funcionar tanto como fatores de proteção quanto de risco, 
como as sociedades que valorizam a interdependência e as trocas, enquanto outras, por outro 
 
9 A Portaria nº 1.876, de 14 de agosto de 2006 “Institui Diretrizes Nacionais para Prevenção do Suicídio, a ser 
implantadas em todas as unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão”. Disponível 
em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2006/prt1876_14_08_2006.html>. 
 
15 
 
lado, julgam um pedido de ajuda como um ato de fraqueza. Nas mulheres, as taxas de suicídio 
são mais baixas quando estão grávidas ou possuem filhos pequenos, nos homens, quando 
estão empregados, sentindo-se produtivos. De uma forma geral, o sentimento de pertencer a 
um grupo (familiar, religioso, profissional) seria um fator de proteção ao suicídio. Em 
compensação, transtornos mentais, perdas, problemas familiares, personalidades impulsivas e 
agressivas, doenças incapacitantes e fácil acesso a meios letais seriam fatores de risco. 
A OMS (WHO, 2003) classifica outros fatores de risco, tais como: 1) Indivíduos do 
sexo masculino; 2) Faixa etária entre 15 e 35 anos ou acima de 75 anos; 3) Condições 
econômicas extremas (extremamente ricos ou extremamente pobres); 4) Moradores de áreas 
urbanas; 5) Desempregados; 6) Aposentados; 7) Ateus; 8) Solteiros; 9) Separados; e 10) 
Imigrantes. Nos anos de 2004, 2005, 2007 e 2009, a OMS lançou uma série de relatórios de 
prevenção do suicídio; alguns deles direcionados a públicos específicos, como profissionais 
do sistema prisional (WHO, 2007) e profissionais da segurança pública, como policiais e 
bombeiros (WHO, 2009). 
Durkheim no século XIX anuncia que “Cada sociedade está predisposta a fornecer um 
contingente determinado de mortes voluntárias” (2004:24), sendo que para cada nacionalidade 
haveria uma preferência por um tipo de morte e a ordem de preferência raramente mudava. Os 
russos elegiam o enforcamento; os ingleses e irlandeses a morte por envenenamento; os 
italianos, as armas de fogo; os americanos, as armas de fogo, envenenamento e gás de 
iluminação. Quanto aos emigrantes, estes, levavam os métodos comuns ao seu país de origem 
para onde quer que fossem, ao menos até assimilarem os costumes da nova cultura (Jamison, 
2002). 
Jamison (2002) comenta que às vésperas do ano 2000, várias pessoas nos Estados 
Unidos eram assassinadas por instigar policiais a matá-las, prática esta conhecida como 
Suicide-by-cop. Esta ação, na época, era responsável por aproximadamente 10% dos tiros 
fatais disparados por policiais. Outros estudos revelam o suicídio entre os próprios policiais, 
descrevendo o perfil do profissional mais propenso a esse ato e os fatores de risco 
relacionados. Segundo pesquisa realizada por Violanti (1995), os suicídios são mais comuns 
entre os policiais mais antigos, envolvidos com alcoolismo, portadores de alguma 
enfermidade ou próximos da aposentadoria. Como fatores de risco, o autor identifica: 1) Fácil 
acesso a armas de fogo; 2) Exposição contínua a risco de morte e ferimentos; 3) Tensão 
constante; 4) Contradições no âmbito do sistema da justiça criminal; 5) A percepção entre os 
16 
 
policiais de que a sua atividade representa uma imagem negativa perante a sociedade. Por 
último, o autor identifica uma maior propensão ao suicídio entre os homens, sexo dominante 
nessa profissão. 
Em relação ao suicídio ocupacional, estudos identificam os seguintes riscos que 
podem levar o profissional ao suicídio: 1) Exposição a substâncias químicas; 2) 
Conhecimento ou acesso a meios com os quais o suicídio possa ser realizado; 3) Exigências 
profissionais que propiciem a exposição a fatores de risco psicológicos, tais como burnout10
 
, 
isolamento ou exposição a eventos traumáticos (Mustard et al., 2010). 
 
1.2 – Enquadramento histórico do suicídio 
 
“As atitudes da sociedade, como são captadas em sua 
literatura, leis e sanções religiosas, fornecem uma 
janela para as nossas reações coletivas ao auto-
assassinato”. 
Jamison (2002:8) 
 
De acordo com Jamison (2002:9-13), na história da humanidade as atitudes em relação 
ao suicídio somente se acirraram após o cristianismo; até então, nenhum preceito cultural ou 
religioso se relacionava ao suicídio no Antigo Testamento. As mortes dos gregos antigos 
trazidas por Homero eram percebidas como questão de honra, para defender algum princípio 
religioso ou filosófico. Sócrates é um exemplo clássico, que bebeu cicuta para não abrir mão 
de suas verdades. Na Grécia Antiga, estóicos e epicuristas acreditavam que todos tinham o 
direito de eleger os métodos e a hora de sua morte. Em Tebas e Atenas, somente o homicídio 
era contra a lei; os assassinos eram privados dos ritos fúnebres e tinham a mão decepada. 
 Por outro lado, Aristóteles e Pitágoras entendiam o suicídio como uma ação covarde e 
um ato contra o Estado. Em Roma, o suicídio era reprimido, impedindo-seque os bens e as 
 
10 “A síndrome de burnout é consequente a prolongados níveis de estresse no trabalho e compreende exaustão 
emocional, distanciamento das relações pessoais e diminuição do sentimento de realização pessoal” (Trigo et al., 
2007:223). 
 
17 
 
propriedades do suicida fossem deixados para os herdeiros. A Igreja Católica desde sempre 
foi veementemente contra o suicídio; durante os séculos VI e VII excomungou e negou ritos 
fúnebres aos suicidas. De acordo com a cultura judaica, era proibido que se professasse 
orações fúnebres para qualquer pessoa que cometesse o suicídio, e o enterro era realizado em 
um setor isolado do cemitério. Na lei islâmica, o suicídio é considerado um crime mais grave 
que o homicídio. 
Na Finlândia, costumava-se isolar o corpo do suicida para que este não exercesse 
influência maligna sobre os vivos. Em muitos países, os corpos dos suicidas eram enterrados 
durante a noite e em encruzilhadas; montes de pedras eram descarregados na encruzilhada em 
que a pessoa foi enterrada. Além disso, costumava-se cravar uma estaca no coração do 
suicida. “Epiléticos, lunáticos e suicidas não eram lavados; pelo contrário, eram enterrados de 
bruços nas roupas que usavam quando morreram. Eram erguidos para o caixão com 
atiçadores, nunca com as mãos nuas, já que se temia que doenças e maldição pudessem pegar 
na família” (Jamison, 2002:11). 
 Na França, o corpo de quem tirava a própria vida era arrastado pelas ruas e depois 
pendurado em forcas. Além disso, a lei francesa do século XVII exigia que se jogasse o corpo 
do suicida no esgoto ou na lixeira da cidade. Na Alemanha, os corpos eram postos em barris, 
que deslizavam para o rio, de forma que não conseguissem voltar à sua cidade natal. Na 
Noruega, os cadáveres dos suicidas deveriam ser enterrados junto aos demais criminosos na 
floresta ou jogados na maré. 
 No século XVII, houve mudanças nos padrões relativos ao ato suicida na Inglaterra e 
nos Estados Unidos: um em cada dez vereditos de suicídio era classificado non compos 
mentis, ou seja, como decorrente de insanidade. Por volta de 1800, todos os casos de suicídio 
eram vistos da mesma forma: como insanidade. Porém, apesar de considerado como ato 
insano nos dois países, até 1961 na Inglaterra e no País de Gales o suicídio era considerado 
crime, e na Irlanda, até 1993. 
De acordo com Ribeiro (2004), a Revolução Francesa foi responsável pela primeira 
“desincriminação” do suicídio na Europa. O autor comenta que não há nenhuma referência 
desse ato no Código Penal Francês de 1791 ou no Código Napoleônico de 1810. Já durante a 
Revolução Industrial, com suas duras regras e proibições sociais, o suicídio passou a ser 
considerado um ato de vergonha, que causava resistência por ser considerado um vestígio de 
doença mental. 
18 
 
 Em 1830, o Código Criminal do Império do Brasil punia o auxílio ao suicídio, com 
pena de prisão por dois a seis anos. Dizia o artigo 196: "Ajudar alguém a suicidar-se, ou 
fornecer-lhe meios para esse fim com conhecimento de causa". Já nas primeiras décadas do 
século XIX, a legislação brasileira não incriminava o suicídio ou a tentativa deste (Roberti, 
s.d.). 
 No Código Penal brasileiro de 1890, o artigo 299 determinava a execução da pena de 
prisão por dois a seis anos para a pessoa que auxiliasse moral ou materialmente alguém a 
matar-se. Contudo, se o ato suicida não culminasse em morte, não se determinava a 
penalização para o seu cúmplice. 
 Na legislação brasileira vigente, de 1940, o suicídio ou a tentativa de suicídio seguem 
não sendo considerados crimes. De acordo com Ribeiro (2004): "... A pessoa que tenta o 
suicídio não pode ser responsabilizada criminalmente. Por medida de política criminal, o fato, 
que é ilícito por atingir bem indisponível, não é tipificado em nossa legislação”. Nosso 
Código Penal em vigor estabelece no artigo 122 o seguinte: “Induzimento, instigação ou 
auxílio ao suicídio. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o 
faça: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de 1 
(um) a 3 (três) anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave”. 
Roberti (s.d.) comenta que a legislação brasileira sempre se preocupou com o suicídio 
e não com a conduta da pessoa que o comete. Incriminam-se no Brasil quem de uma forma ou 
de outra induz outrem a tirar a própria vida. De acordo com a autora, a legislação do mundo 
todo aborda a “hipótese da instigação, do induzimento e do auxílio ao suicídio”. 
O que essa breve história sobre o suicídio nos apresenta? O que os sentidos atribuídos 
a essa ação ao longo da história da humanidade querem nos dizer: de ato de liberdade na 
Grécia Antiga a crime e pecado com o nascimento do cristianismo; o tratamento dispensado 
ao corpo do suicida; as sanções relativas aos seus familiares; as punições jurídicas ao suicida e 
aos seus “cúmplices”? Todos esses episódios até, por fim, o suicídio se converter em sério 
problema de saúde pública atrelado a transtornos mentais na contemporaneidade? 
Foucault (2009) relata que até o século XVII, na Europa, as penas físicas que levavam 
à morte os criminosos, i.e., os espetáculos dos suplícios faziam parte das práticas da época. 
Até mesmo as penas não corporais possuíam algo relacionado ao suplício: “exposição, roda, 
coleira de ferro, açoite, marcação com ferrete” (p.35); o poder soberano era traduzido em 
19 
 
“fazer morrer e deixar viver”, em que a vida e a morte dos súditos somente se tornariam 
direitos pela vontade soberana. A exibição pública do suplício seria uma técnica que serviria 
como exemplo à sociedade do que não se deveria fazer, e ao mesmo tempo, o suplício do 
corpo tinha a função de purgar os pecados da alma do criminoso, além, é claro, de ostentar o 
poder do soberano. O autor comenta que o suplício deveria ser “ostentoso”: “(...) os suplícios 
se prolongam ainda depois da morte: cadáveres queimados, cinzas jogadas ao vento, corpos 
arrastados na grade, expostos à beira das estradas. A justiça persegue o corpo além de 
qualquer sofrimento possível” (p.36). 
Na segunda metade do século XVIII os suplícios se tornam ultrajantes aos olhos de 
filósofos e teóricos do direito: seria necessário punir de outra forma. O suplício passa a ser 
visto como ato revoltante, vergonhoso, intolerável e perigoso: “É preciso que a justiça 
criminal puna em vez de se vingar”; a “humanidade” do criminoso deveria ser respeitada: “o 
castigo deve ter a ‘humanidade’ como ‘medida’” (Foucault, 2009:72). Há um remanejamento 
no poder de punir para que este seja mais bem distribuído. Houve uma reforma de dentro do 
aparato judiciário para que o poder não mais se concentrasse nas mãos do soberano. Surge 
uma nova estratégia de castigar os criminosos: “não punir menos, mas punir melhor” (p.79). 
Dessa forma, as infrações deveriam ser bem definidas, forjando uma pressão sobre as 
“ilegalidades” populares. É nesse contexto que surgem as prisões e com elas a concepção de 
delinquência, “em defesa da sociedade”. 
As disciplinas surgem como uma nova forma de controle social, um método que traria 
docilidade e utilidade aos corpos. Os corpos deveriam ser vigiados e controlados; os minutos 
e segundos contados em uma nova economia, que tornaria os homens obedientes e produtivos. 
Os detalhes passaram a ser percebidos como importantes, as disciplinas eram utilizadas 
enquanto técnicas que “definem um certo modo de investimento político e detalhado do 
corpo, uma nova ‘microfísica’ do poder” (Foucault, 2009:134). Há uma nova distribuição dos 
indivíduos nos espaços; um grande confinamento dos considerados miseráveis e vagabundos e 
outro tipo de distribuições nas escolas, nos quartéis, nas fábricas, nos hospitais, etc.: “Cada 
indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo” (p.138).Há um ordenamento dos 
indivíduos e dos espaços, a constituição de novas arquiteturas para que todos possam ser 
vistos: os prisioneiros, os estudantes, os enfermos, os operários. Dessa forma, os indivíduos 
passam de um “confinamento” a outro ao longo de sua existência na sociedade disciplinar. 
20 
 
Deleuze (2008) nos diz que já não estamos em sociedades exatamente disciplinares, 
mas em sociedades de controle. As disciplinas conheceriam uma crise, em favor de novas 
forças que se instalavam depois da Segunda Guerra Mundial. As sociedades de controle não 
funcionariam mais por confinamento (escola, quartel, hospital, fábrica, prisão...), mas por 
controle contínuo e comunicação instantânea, em que cada tipo de sociedade corresponderia a 
um tipo de máquina: as máquinas simples e dinâmicas para as sociedades de soberania; as 
máquinas energéticas para as de disciplina; as cibernéticas e computadores para as sociedades 
de controle. Para Deleuze, na sociedade disciplinar o poder é ao mesmo tempo massificante e 
individuante; nas sociedades de controle, não se está mais diante do par massa-indivíduo. O 
essencial não é mais uma assinatura e um número, mas uma senha. 
Na sociedade disciplinar, as técnicas de poder eram centradas no corpo individual, que 
deveria ser posto em vigilância, o que seria chamado de anátomo-política. A partir do séc. 
XIX, com o nascimento da biopolítica, o poder disciplinar de “fazer morrer e deixar viver” 
não seria substituído, mas complementado por uma nova tecnologia, que Foucault chamou de 
poder de regulamentação: o de “fazer viver e deixar morrer”. Essa nova técnica de poder, ou 
seja, o biopoder, se dirige à vida da espécie humana. Os processos de natalidade, mortalidade 
e longevidade, da segunda metade do século XVIII são “os primeiros objetos de saber e os 
primeiros alvos de controle dessa biopolítica” (Foucault, 2002:290). 
Além disso, no século XIX, Foucault (2002) afirma que é em relação a fenômenos 
como os acidentes, as enfermidades, as anomalias diversas que “essa biopolítica vai introduzir 
não somente instituições de assistência (...), mas mecanismos muito mais sutis, 
economicamente muito mais racionais do que a grande assistência, a um só tempo maciça e 
lacunar, que era essencialmente vinculada à Igreja” (p.291). Estabelece-se mecanismos 
reguladores para baixar a mortalidade, prolongar a vida e estimular a natalidade. Diz ele: 
(...) a morte, como termo da vida, é evidentemente o termo, o limite, a extremidade 
do poder. Ela está do lado de fora, em relação ao poder: é o que cai fora de seu 
domínio, e sobre o que o poder só terá domínio de modo geral, estatístico. Isso 
sobre o que o poder tem domínio não é a morte, é a mortalidade11
 
. E nessa 
medida, é normal que a morte, agora, passe para o âmbito do privado e do que há 
de mais privado. (...) o poder sobre a vida que consiste não só em organizar a vida, 
não só em fazer viver, mas, em suma, em fazer o indivíduo viver além de sua 
morte. (Foucault, 2002:295-296). 
 
11 Meus grifos. 
21 
 
Para gerenciar a vida da população, na biopolítica, são criados mecanismos, que vão se 
tratar principalmente de “previsões, de estimativas, estatísticas, de medições globais (...). Vai 
ser preciso modificar, baixar a morbidade; vai ser preciso encompridar a vida; vai ser preciso 
estimular a natalidade. E trata-se, sobretudo, de estabelecer mecanismos reguladores (...)” 
(Foucault, 2002:293). Dessa forma, como entender a própria concepção de suicídio no 
contemporâneo, onde a grande estratégia de poder deixa de ser a produção da morte para ser o 
gerenciamento da vida? 
É no âmbito dessa nova estratégia de poder, o biopoder, que a OMS se refere aos 
suicídios como mortes “evitáveis”. Profissionais no século XXI são treinados a reconhecer os 
sinais e sintomas de transtornos mentais; identificar os riscos de suicídio, como se houvesse 
uma espécie de “devir” suicida. O suicida não estaria de acordo com o modelo de saúde física 
e mental definido pela OMS e talvez nem conforme o modelo de felicidade alardeado por 
todos os meios de comunicação. Na contemporaneidade devemos ser saudáveis, longevos e 
felizes. 
Guattari e Rolnik (2010) nos falam sobre as subjetividades que são produzidas em 
massa no sistema capitalístico: 
Tais mutações da subjetividade não funcionam mais no registro das ideologias, mas 
no próprio coração dos indivíduos, em sua maneira de perceber o mundo, de se 
articular com o tecido urbano, com os processos maquínicos do trabalho e com a 
ordem social suporte dessas forças produtivas (p. 34). 
 
Prosseguem dizendo: “(...) a produção essencial do CMI12
Os estudos realizados e a vivência no campo ao longo da pesquisa na Policia Militar 
do Rio de Janeiro provocaram diversas questões, entre elas, que novas subjetividades vão se 
construindo nas relações no âmbito da PM? Na vivência que tive no campo durante a pesquisa 
sociológica ouvi, por exemplo, por diversas vezes esposas comentarem que a vida familiar do 
policial muda radicalmente com a sua entrada na corporação. Algumas diziam que perderam o 
marido “em vida”: maridos que se recusavam a circular publicamente com a família por 
 não é apenas a da 
representação, mas de uma modelização que diz respeito aos comportamentos, à 
sensibilidade, à percepção, à memória, às relações sociais, às relações sexuais, aos fantasmas 
imaginários, etc.” (p.36). Os autores comentam que atualmente no capitalismo a produção de 
subjetividade talvez seja mais importante do que qualquer outro tipo de produção. 
 
12 Guattari prefere utilizar o termo Capitalismo Mundial Integrado (CMI), ao invés de globalização. 
22 
 
medo; outros “arrumavam” amantes e filhos fora do casamento; outros começavam a beber, 
consumir drogas e/ou a ir para “farras” com os colegas de trabalho. 
Imperativo esclarecer que não tenho a intenção de fazer generalizações e, tampouco, 
apresentar resultados de análises com os relatos apresentados neste trabalho. O único objetivo 
é partir da fala dos entrevistados para levantar questões e problematizar as práticas policiais e 
seu cotidiano. Apenas um ponto de partida. 
Outra questão diz respeito à sutileza enquanto marca da biopolítica: que demais 
formas de morte podem ser concebidas como suicídio, que não necessariamente a morte 
biológica? O que poderia significar desistir da vida “em vida”? Em um dos encontros pelos 
corredores dos batalhões tive uma longa conversa com uma psicóloga da PMERJ, que 
comentava sobre a recusa dos policiais quanto ao uso do colete à prova de balas durante as 
operações. São infindáveis os exemplos sobre as práticas consideradas de “risco” entre 
policiais militares, tais como o não uso do cinto de segurança (inclusive nas folgas); 
desatenção durante as operações; dirigir em alta velocidade; dirigir com imprudência... A 
esposa de um policial assassinado, que era hipertenso, comentou que ele mesmo dizia: “Eu 
não vou morrer de pressão alta, eu vou morrer de tiro”. Ele costumava ficar lendo jornal 
sentado em frente a um DPO13
Tirar a própria vida pode ser uma ação percebida como uma forma de poder? Como 
isso se dá na Polícia Militar, dentro de um sistema também de poder? Que relações surgem 
daí? O suicídio seria uma forma de transgressão dentro da própria polícia? Que processos de 
normalização são criados? Foucault (2002:298) comenta que a polícia “é a um só tempo um 
aparelho de disciplina e um aparelho de Estado (o que prova que a disciplina nem sempre é 
institucional)”. Em uma das palestras, um policial relatou que tentou se matar dando um tiro 
no peito dentro da viatura; foi socorrido e internado em um hospital. Quando voltou às suas 
atividades ficou preso durante 6 dias por tentativa de suicídio. Dependendo do batalhão, os 
policiais que tentam o suicídio são punidose aos que cometem o suicídio não há permissão 
para que seus colegas da corporação estejam presentes durante o sepultamento, ou seja, não 
, local conhecido por já ter sido alvo de várias rajadas de 
metralhadoras. Ele dizia: “Eu não tenho nada a perder”. Após uma palestra, um policial 
comentou: “A senhora só se esqueceu de falar sobre os policiais que vão pra linha de tiro 
pra morrer”. Em entrevista posterior, esse mesmo policial deu nome a essa ação: “suicidas 
de combate”. 
 
13 Destacamento de Polícia Ofensiva. 
23 
 
há representantes da PM nesse tipo de funeral. Por fim, os familiares de policiais suicidas não 
recebem as mesmas gratificações e benefícios de policiais que morreram de outras formas. 
 Além disso, são obrigados a arcar com todas as despesas do sepultamento de seus 
entes, sendo que não é permitido o enterro do corpo do suicida em mesmo solo que os demais 
policiais. Como consequência, policiais confidenciaram que é uma prática entre eles, no 
momento da averiguação de um caso de suicídio policial, forjarem um assassinato ou um 
acidente para que a família do PM morto não sofra com as sanções mencionadas. Seria essa 
prática uma forma de resistência? 
Importante notar que, como é uma praxe forjar os suicídios de colegas policiais para 
que suas famílias não sejam prejudicadas, existe, por conseguinte, a questão da subnotificação 
dos casos de suicídio. Como há uma falsa baixa incidência observada nos dados oficiais, não 
são percebidas como urgentes as ações de prevenção do suicídio no meio policial. Se por um 
lado, nessa situação os familiares dos policiais suicidas deixam de ser prejudicados, de certa 
forma, não há grande respaldo dos dados indicando a importância das ações preventivas na 
PMERJ. 
Como a concepção de morte é construída dentro da polícia? No discurso dos policiais 
e familiares há quase que uma naturalização da morte por homicídio ou acidente, como parte 
da rotina da polícia, como algo esperado. O suicídio, ao contrário, produz estranhamento. O 
suicídio provoca um questionamento sobre a morte do policial; era comum que os 
entrevistados fizessem reflexões após o suicídio de um colega, até mesmo quando não havia 
proximidade entre eles. Quanto às famílias, muitas das vezes, a reação era de negação, 
preferiam acreditar que a pessoa foi assassinada, enquanto outras comentavam com 
ressentimento sobre o dia em que o familiar cometeu “aquela besteira”. Durante a pesquisa 
“Suicídio e Risco Ocupacional: O caso da Polícia Militar carioca” houve muitas desistências 
e recusas de entrevistas com familiares de policiais que cometeram o suicídio, foi um desafio 
enorme entrar em contato com essas famílias. 
Como questiona Bicalho (2005), em relação ao fazer/ser policial: “Como passamos a 
pensar? Como passamos a fazer? Como passamos a dizer? Como tais subjetividades se 
constroem e se organizam?” (p.19-20). Essas questões povoavam o meu olhar no trabalho de 
campo durante a pesquisa sociológica sobre suicídio policial e me faziam pensar em como as 
subjetividades dos policiais eram construídas em suas práticas e em seu cotidiano, e de que 
forma isso afetava a sua maneira de perceber o fenômeno do suicídio. 
24 
 
2 – A POLÍCIA MILITAR NO RIO DE JANEIRO: POLÍCIA E POLÍTICA 
 
A Psicologia Policial e das Forças Armadas é uma vertente da Psicologia Jurídica 
pouco conhecida no Brasil, e, da mesma forma, a produção acadêmica sobre essa área de 
atuação é notavelmente reduzida. De modo geral, o trabalho do psicólogo em instituições 
policiais concentra-se na seleção dos aprovados em concursos públicos, em ministrar aulas de 
Direitos Humanos e no atendimento clínico ao policial e seus familiares. Ou, de acordo com 
França (2004), as atribuições do psicólogo policial/militar resumem-se em: “treinamento e 
formação básica em Psicologia Policial, avaliação pericial em instituição militar, implantação 
do curso de direitos humanos para policiais civis e militares” (p.7). 
Proponho com este capítulo uma maior aproximação do campo, buscando 
compreender as imbricações entre a instituição polícia, o contexto político a ela relacionado e 
o fenômeno do suicídio entre policiais militares. De forma alguma intenciono esgotar as 
possibilidades do campo ou atribuir uma relação causal direta entre os fenômenos, mas lançar 
luz a acontecimentos que envolvem a história da polícia enquanto instituição consolidada e o 
cenário político, econômico e social a ela atrelado. 
Entendendo que o suicídio, inquestionavelmente, trata-se de um fenômeno 
multifacetado e de grande complexidade, a questão central que norteia esse trabalho é: O que 
as mortes voluntárias de policiais militares do Rio de Janeiro denunciam? É com base na 
crença de que todas as formas de mortes numa sociedade dizem algo sobre ela, que 
alicerçamos as bases deste estudo. 
 
 
2.1 – Polícia e política: a construção de um cataclismo 
 
 
 “Há de se salientar que no ano de 1995, quando o 
índice de suicídios na PMERJ foi recorde, foi marcado 
por uma grande transição de Comando e política 
governamental. Como dito anteriormente as mudanças 
de governo, já são marcadas por um aumento no 
número de suicídios, porém esta em especial marcou 
grandes transformações, o 1º ano do Governo Marcelo 
Alencar, marcou a transição de um Comandante Geral 
(CEL PM CERQUEIRA) com formação acadêmica em 
Filosofia e Psicologia, com uma visão voltada aos 
Direitos Humanos e a saúde física e mental do Policial 
25 
 
Militar, para uma Política Militarista, Comandada pelo 
General do Exército Brasileiro Nilton Cerqueira, na 
figura de Secretário de Segurança, onde houve o 
advento da gratificação faroeste e a política 
governamental de estimular os confrontos armados, 
culminando ainda com o ‘enfraquecimento’ do projeto 
RENASCER14
 
” (Moraes, 2007:58). 
 
 
Parte de um trabalho sobre suicídio elaborado por um membro da Polícia Militar do 
Rio de Janeiro, esse trecho nos apresenta uma série de elementos bons para pensar. Nos fala 
de uma conjuntura entre Estado e instituição-polícia que afeta diretamente a corporação no 
que concerne às estatísticas de suicídio. O autor relata que as mudanças de governo são 
marcadas por um aumento nas incidências de mortes voluntárias de policiais militares, 
especialmente agravadas no ano de 1995 por uma mudança drástica no comando da PMERJ. 
Na perspectiva do autor, é provável que a cada mudança haja um aumento do nível de estresse 
entre os policiais relacionado às incertezas quanto à política de Segurança Pública que será 
empregada e quanto a questões salariais. O autor ressalta, ainda, que no quadriênio 
1995/1998, a política governamental adotada foi a de “guerra ao crime organizado” e 
encorajamento ao “confronto armado”, incentivado pela gratificação chamada “faroeste” 
(Moraes, 2007:57). 
Em contraposição ao período supracitado, entre 1983 e 1998, em mandatos do 
governador Leonel Brizola e comando do Gen. PM Cerqueira, verificou-se o menor número 
de policiais vitimados (Moraes, 2007). 
Essas questões inevitavelmente nos remetem à imbricação entre polícia e política. 
Foucault (2012) nos conta que entre os séculos XVI e XVIII, desenvolveu-se uma série de 
tratados não mais em forma de conselhos aos príncipes, mas relativos à arte de governar. O 
problema do governo aparece como governo de si mesmo: “o problema de como ser 
governado, por quem, até que ponto, com qual objetivo, com que método, etc. Problemática 
geral do governo em geral” (p.408). 
As práticas de governar apresentam-se como múltiplas, uma vez que vários 
personagens poderiam governar: o pai de família, o pedagogo, o professor. Contudo, todas as 
 
14 O Projeto Renascer foi criado em 1992, com o intuito de recuperar policiais dependentes de álcool e outras 
substâncias químicas. A PMERJ foi a primeira instituiçãomilitar no país a adotar um projeto nesse sentido, cujas 
incidências do uso e abuso e álcool e outras drogas costumam ser preocupantes. “Segundo o Major PM Médico 
Jomar Rolland Braga Filho, responsável pelo Projeto RENASCER, no ano de 1997, o problema de alcoolismo 
em nossa Corporação, representava no referido ano, cerca de 10% de todo o efetivo (ativo e inativo)” (Moraes, 
2007:23). 
26 
 
formas de governo concentravam-se dentro do Estado. Nesse contexto, o poder de polícia 
apresenta-se, com um sentido radicalmente diferente dos dias de hoje, como fundamental à 
arte de governar. A polícia representava “o conjunto dos meios pelos quais é possível fazer as 
forças do estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo a boa ordem desse Estado” (Foucault, 
2008b:421). 
Quatro seriam os objetos da polícia: a quantidade de cidadãos; as necessidades da 
vida; o problema da saúde; e a circulação das mercadorias. O problema da saúde era central 
em uma lógica que operava na produção de homens ativos, que pudessem ocupar-se. Essa 
seria a lógica do mercantilismo: o maior número de homens trabalhando pelo menor salário 
possível. 
Em síntese, o objeto da polícia seria o bom uso das forças do Estado. Para tanto, a 
estatística torna-se um elemento fundamental: o saber do Estado sobre o Estado, relativo à 
população, aos recursos naturais, ao exército, à produção, ao comércio, etc. A boa qualidade 
do Estado dependia da boa qualidade dos homens que eram elementos desse Estado. Dessa 
forma, o conjunto de controles e de decisões tinham como objeto os próprios homens. 
Interessava ao Estado a utilidade desses homens, ou seja, a sua atividade ou ocupação. A 
partir do século XVII passou-se a considerar o número de habitantes em relação ao tamanho 
do território. Um Estado forte dependia da força de seus habitantes. Portanto, os homens 
deveriam ser numerosos, úteis economicamente e dóceis politicamente. 
Governar um Estado significará portanto estabelecer a economia no nível geral do 
Estado, isto é, ter em relação aos habitantes, às riquezas, aos comportamentos 
individuais e coletivos, uma forma de vigilância, de controle tão atenta quanto a do 
pai de família (Foucault, 2012:413). 
Na governamentalidade contemporânea se dá o nascimento da relação entre o poder, o 
saber, o governo e a ciência. Desenvolver-se-á saberes como a demografia, a estatística, a 
geografia, a medicina social, entre outros, para dar conta do problema da população. Os 
elementos da nova governamentalidade seriam a sociedade, a economia, a população e a 
liberdade (Foucault, 2008b). 
Uma nova governamentalidade nasce a partir dos economistas: a população deve ser 
numerosa, trabalhar e ganhar não mais o mínimo possível, conforme a lógica anterior, mas o 
suficiente para consumir. A governamentalidade dos economistas introduziria, na visão de 
Foucault, traços fundamentais da governamentalidade contemporânea. Passa-se a regular o 
governo não mais pela verdade, na qual deveria consistir a sabedoria do soberano, mas a 
27 
 
regulá-lo pela racionalidade, através do cálculo das forças, das riquezas, dos fatores de poder. 
Ou seja, o princípio de regulagem seria a racionalidade dos governados e não mais pela 
racionalidade do indivíduo soberano (Foucault, 2008a). 
O objetivo básico do poder seria “gerir a vida dos homens, controlá-los em suas ações 
para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e 
utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades” (Foucault, 
2012:20). 
Questões econômicas perpassam a ação suicida ao longo da história da humanidade. 
Ribeiro (s.d.) aponta que os escravos eram proibidos de tirar a própria vida, em razão do 
prejuízo que causariam aos seus senhores. Os soldados também não poderiam suicidar-se, por 
este ato enfraquecer o exército: “o suicídio equivalia à deserção, e o soldado que não lograsse 
matar-se, ele próprio (no que hoje chamaríamos de ‘tentativa’) era morto, pois essa a pena 
para o desertor!”. 
Todas essas questões nos fazem refletir sobre as condições de possibilidades que 
permitiram o nascimento da instituição-polícia e em que contextos ele se deu. A seguir, será 
realizado um recorte sobre o cenário político do Rio de Janeiro e suas relações com as 
políticas de Segurança Pública, e, por fim, uma breve passagem pela história da Polícia 
Militar no Rio de Janeiro. 
 
2.2 – De que Rio de Janeiro estamos falando? 
 
Historicamente, a cidade do Rio de Janeiro vive sob um regime que se aproxima 
fielmente a um Estado de Exceção, característico de um regime autoritário, distanciando-se do 
Estado Democrático de Direito, anunciado pela Constituição Federal de 1988. O Estado de 
Exceção seria a resposta imediata do poder estatal aos conflitos internos mais extremos 
(Aganben, 2004). No caso do Rio de Janeiro, esse conflito seria representado pelo tráfico de 
drogas nas favelas. Sob essa justificativa, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro viola 
direitos, invade domicílios, tortura, assassina, e tudo sob o olhar complacente de parte da 
sociedade. 
Batista (2003) nos conta que, em 1994, fabricou-se no Rio de Janeiro uma “crise de 
segurança pública”. A partir de um arrastão realizado por meninos pretos e pobres no caminho 
28 
 
à Zona Sul carioca no ano anterior, o medo foi instaurado na população. As grandes mídias 
alardeavam diariamente que o caos estava declarado e que algo deveria ser feito. De acordo 
com a autora, a disseminação do medo está sempre associada à chegada ao poder pelas forças 
populares, o que se deu na Ditadura Militar e em vários outros momentos históricos15
O resultado concreto da vitória do pacto sinistro
. Nesse 
caso específico, em 1996, culminou na derrota da então candidata do grupo popular à eleição 
municipal, Benedita da Silva para um candidato conservador (Luiz Paulo Conde). Além da 
vitória das forças conservadoras nas eleições, foi criada a Operação Rio, um convênio entre 
Estado e Governo Federal, com medidas de segurança para conter a violência. O foco 
principal das operações era o combate ao tráfico de drogas e de armas, nelas as Forças 
Armadas ocupavam as ruas e faziam incursões pelas favelas. Diz a autora: 
16
Anos mais tarde, em novembro de 2010, sob a “ameaça aterradora” do tráfico nas 
favelas e com o apoio do Governo Federal, o Complexo de Favelas do Alemão foi ocupado 
pela Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Federal e Forças Armadas, com 24 horas de 
cobertura midiática e grande apoio da população. Na mesma época, estava no auge o então 
herói nacional Capitão Nascimento, a personagem do policial do BOPE, do filme Tropa de 
Elite. Destaque para os aplausos efusivos nos cinemas durante as cenas de tortura aos 
bandidos na estreia do filme Tropa de Elite, em 2007, e entusiasmo da plateia em 2010, nas 
cenas de tortura a políticos corruptos no filme Tropa de Elite 2: O Inimigo agora é Outro. 
 é uma política econômica de 
exclusão (desemprego, fim de direitos trabalhistas etc.) e uma política de segurança 
pública que faz corar os saudosistas dos anos setenta: extermínio, opressão policial 
contra marginalizados do tipo camelôs e flanelinhas, perseguição a consumidores de 
drogas etc.. (Batista, 2003:20). 
A imagem de cada traficante preso que os grandes veículos anunciavam lembrava o 
espetáculo do suplício descrito por Foucault (2009) no livro “Vigiar e Punir” no que diz 
respeito à exposição do criminoso. Em alguns casos, os policiais seguravam a cabeça do 
traficante em direção às câmeras de televisão, impedindo que ele pudesse esconder o próprio 
rosto. Uma cena marcante foi a de um homem que, ao ser detido, se urinou. As câmeras 
focalizavam a bermuda manchada de urina e repetiam a imagem incessantemente. A 
 
15 Impossível não recordar a campanha em apoio ao candidato José Serra, realizada pela atriz ReginaDuarte, em 
2002, que dizia incontáveis vezes: “Eu tenho medo”. A atriz dizia ter medo de perder toda a estabilidade que 
havia sido conquistada pelo governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso, com dois mandatos 
sucessivos, e temia pela volta da inflação “desenfreada”. Imagens capturadas disponíveis em: < 
https://www.youtube.com/watch?v=jzdJ39Sf8IM>. 
16 A autora nomeia de “pacto sinistro” a união entre as forças conservadoras e a grande mídia no Rio de Janeiro. 
 
29 
 
população carioca sentia-se segura e satisfeita, a ponto de reeleger seus representantes, cujo 
carro-chefe seria a Segurança Pública. 
Em 2007, no ano de lançamento do filme Tropa de Elite, o então governador Sérgio 
Cabral concedeu uma entrevista afirmando que as taxas de fertilidade de mães faveladas 
seriam uma “fábrica de produzir marginal”, e por isso, defenderia o aborto como forma de 
“política pública” para “conter a violência”17
"Não tenho a menor dúvida de que o aborto [como política pública] pode conter a 
violência. Eu particularmente não sou a favor do aborto", declarou ontem em 
encontro de agentes de viagem na Barra da Tijuca. De acordo com Cabral, parte das 
mães moradoras de áreas carentes "estão produzindo crianças, sem estrutura, sem 
conforto familiar e material". 
: 
"Sou favorável ao direito da mulher de interromper uma gravidez indesejada. Sou 
cristão, católico, mas que visão é essa? Esses atrasos são muito graves. Não vejo a 
classe política discutir isso. Fico muito aflito. Tem tudo a ver com violência. Você 
pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e 
Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. 
Isso é uma fábrica de produzir marginal. O Estado não dá conta. Não tem oferta da 
rede pública para que essas meninas possam interromper a gravidez. Isso é uma 
maluquice só". 
As ações entre estado e município do Rio de Janeiro se alinhavam na mesma direção. 
Abaixo a descrição da “Operação Choque de Ordem” no portal da Prefeitura do Rio de 
Janeiro18
Um fim a desordem urbana. 
, lançada em 2009: 
 
A desordem urbana é o grande catalisador da sensação de insegurança pública e a 
geradora das condições propiciadoras à prática de crimes, de forma geral. Como 
uma coisa leva a outra, essas situações banem as pessoas e os bons princípios das 
ruas, contribuindo para a degeneração
 
Com o objetivo de pôr um fim à 
, desocupação desses logradouros e a redução 
das atividades econômicas. 
desordem urbana, combater os pequenos delitos nos 
principais corredores, contribuir decisivamente para a melhoria da qualidade de vida 
em nossa Cidade, foi criada a Operação Choque de Ordem. São operações realizadas 
pela recém criada Secretaria de Ordem Pública, que em um ano de existência vem 
conseguindo devolver à ordem à cidade19
 
. 
Em pleno século XXI, argumentos eugênicos e higienistas são evocados por 
representantes do poder público com total aceitação popular. Coimbra (2001:86) comenta o 
movimento eugênico adotado pelo darwinismo social na Europa em fins do século XIX: 
 
17 Cabral apoia aborto e diz que favela é fábrica de marginal. Disponível em: 
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2510200701.htm>. Acesso em: 10 ago 2013. 
18 Prefeitura do Rio de Janeiro. Choque de Ordem. Disponível em: 
< http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?article-id=87137 >. Acesso em: 24 ago 2013. 
19 Meus grifos. 
http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?article-id=87137�
30 
 
Conceitos como ‘prole malsã’, ‘herança degenerativa’, ‘degenerescência da espécie’, 
‘taras hereditárias’, ‘inferiorização da prole’, ‘procriação defeituosa’, ‘raça pura’, 
‘embranquecimento’, ‘aperfeiçoamento da espécie humana’, ‘purificação’ são 
comuns nos tratados de medicina, psiquiatria, antropologia e na jurisprudência do 
período que pregam, inclusive, a esterilização dos chamados ‘degenerados’ como 
profilaxia para os males sociais20
A socióloga Vera Malaguti Batista comenta as medidas adotadas pelos governantes do 
Rio de Janeiro: 
. 
Internação compulsória de usuários de crack defendido pelo presidente da OAB em 
nome da Saúde Pública, evocando o argumento higienista, enquanto o Conselho 
Regional de Psicologia e o Conselho Regional de Serviço Social protegendo os 
direitos constitucionais. Naturalização do crack, naturalização da ocupação, 
naturalização da matança do BOPE, a naturalização da caveira. Resistência à 
truculência policial, naturalização ao aplauso (através do filme Tropa de Elite). Isso 
está se expandindo para a área de saúde pública21
O deputado estadual Marcelo Freixo em debate sobre o filme Hannah Arendt
. 
22 faz o 
seguinte comentário: “A gente não fez a transição do regime democrático no âmbito da 
segurança pública. Polícia autoritária que continua em busca do inimigo interno, da 
eliminação do inimigo e da manutenção da ordem”. O deputado ilustrou sua fala com duas 
entrevistas concedidas por representantes da segurança pública do Rio de Janeiro. A primeira 
diz respeito ao secretário de segurança pública José Mariano Beltrame ao Jornal O Dia: “A 
gente nunca tinha enfrentado 300 mil pessoas nas ruas”. Em seguida, a fala do ex-
comandante da PMERJ, Erir Ribeiro Costa Filho: “Quando a gente tratava de uma 
manifestação sindical, era fácil. Quando a gente tratava de uma manifestação partidária, era 
fácil. Quando a gente trata desse movimento, é muito difícil porque eu não sei quem é o 
inimigo”23
O que teria acontecido após anos sob o mesmo regime autoritário do mesmo Governo 
de Estado que causou o repúdio da população? Como que por encanto os desaparecidos em 
apreensões policiais nas favelas passaram a ter visibilidade, através de campanhas como 
“Onde está o Amarildo?”, pedreiro morador da favela da Rocinha, que desapareceu após ser 
abordado por um policial da UPP
. 
24
 
20 Meus grifos. 
, e “Desaparecidos da Democracia: Pessoas reais, vítimas 
invisíveis”, organizada pela Ordem dos Advogados do Brasil/RJ. A truculência habitual da 
21 BATISTA, Vera Malaguti. Entrevista ao Jornal “A Nova Democracia”. Disponível em: 
<http://www.youtube.com/watch?v=peQ2F_DfK1w>. Acesso em: 20 ago 2013. 
22 FREIXO, Marcelo. Debate: “Brasil hoje, a atualidade da ‘Banalidade do Mal’”. Disponível em: 
<http://www.youtube.com/watch?v=5pW1fPU-6oo>. Acesso em: 17 ago 2013. 
23 Meus grifos. 
24 Unidade de Polícia Pacificadora. 
http://www.youtube.com/watch?v=peQ2F_DfK1w�
http://www.youtube.com/watch?v=5pW1fPU-6oo�
31 
 
polícia tornou-se algo abominável e o militarismo inadmissível em um Estado Democrático 
de Direito. 
Luiz Antônio Machado da Silva, sociólogo e professor do Instituto de Estudos Sociais 
e Políticos, em uma entrevista25
“Boa parte da revolta coletiva voltou-se contra ‘as polícias e o uso que os governos 
estaduais fazem delas’, entre outras questões. O que a classe média, que é o 
segmento mais representado nas manifestações, demanda não é exatamente uma 
ordem social igualitária e democrática; é, mais que isso, a manutenção da proteção 
policial à liberdade de ação e de ir e vir a que está acostumada. No fundo, a classe 
média demanda menos institucionalidade para si própria, não para toda a 
sociedade”. 
 diz que a classe média é a mais representada nas 
manifestações: 
 De acordo com o professor, “A classe média, de um modo geral, não admite tornar-se 
objeto da secular violência policial, como foi visto durante a reação aos excessos da 
ditadura”. Nesse cenário, balas de borracha, gás lacrimogêneo e spray de pimenta durante as 
manifestações são mais escandalosos do que as incontáveis mortes em favelas cariocas. Até 
mesmo durante as manifestações o tratamento era diferenciado de acordo com a localização 
dos protestos. Na Favela da Maré dez pessoas foram mortas durante as manifestações. Nas 
áreas pobres, a repressão policialera aparelhada com fuzis e blindados. 
Para Marcelo Freixo, “O inimigo é quem sobrou em uma sociedade de mercado, não é 
mais quem enfrenta o Estado. O Estado opera de maneira sistematizada com a 
criminalização da pobreza, de forma banalizada entre nós”26
(...) no seio desta sociedade tão civilizada existem ‘verdadeiras variedades’ (...) que 
não possuem nem a inteligência do dever, nem o sentimento da moralidade dos atos, 
e cujo espírito não é suscetível de ser esclarecido ou mesmo consolado por qualquer 
ideia de ordem religiosa. Qualquer uma destas variedades foram designadas sob o 
justo título de 
. O inimigo continua sendo as 
chamadas “classes perigosas”, tal como descrito no Tratado das Degenerescências (Borel 
Apud Coimbra, 2001:88): 
classes perigosas
 
25 “O efeito bumerangue da repressão policial – quatro perguntas para Luiz Antonio Machado da Silva”. 
Disponível em: 
 (...) constituindo para a sociedade um estado de 
perigo permanente. 
<http://www.blogdoims.com.br/ims/o-efeito-bumerangue-da-repressao-policial-%E2%80%93-quatro-perguntas-
para-luiz-antonio-machado-da-silva/>. Acesso em: 18 ago 2013. 
26 Ibid. 
http://www.blogdoims.com.br/ims/o-efeito-bumerangue-da-repressao-policial-%E2%80%93-quatro-perguntas-para-luiz-antonio-machado-da-silva/�
http://www.blogdoims.com.br/ims/o-efeito-bumerangue-da-repressao-policial-%E2%80%93-quatro-perguntas-para-luiz-antonio-machado-da-silva/�
32 
 
Freixo nos diz que “Não é a polícia que está militarizada. É o Estado que está 
militarizado. É a relação entre Estado e sociedade que está militarizada. Principalmente nos 
territórios mais pobres, mas de alguma maneira isso aflora pra toda a cidade”27
Em um regime de repressão no qual prevalece a crença no inimigo interno torna-se 
inviável a proteção da dignidade da pessoa humana em um Estado realmente de Direito. De 
acordo com Moraes: 
. 
(...) é na esfera política que, nos Estados democráticos, são reconhecidos os valores 
comuns da sociedade e estabelecidos os princípios fundamentais do ordenamento. O 
direito constitucional representa atualmente o conjunto de valores sobre os quais se 
constrói, na atualidade, o pacto de convivência coletiva (...). O direito é justamente 
isto, uma força de transformação da realidade. É a sua tarefa ‘civilizatória’, 
reconhecida através de uma intrínseca função promocional, a par da tradicional 
função repressiva, mantenedora do status quo (2010:75). 
 
Esta é somente uma breve exposição do cenário político e social em que opera a lógica 
do inimigo interno, exclusão, violência e quadro de guerra vivenciado cotidianamente por 
profissionais da Segurança Pública do Rio de Janeiro, e mais diretamente, por membros da 
Polícia Militar. A seguir uma história concisa do nascimento da instituição-polícia. 
 
 
2.3 – Breve história da Polícia Militar no Rio de Janeiro 
 
“Sem manter as massas em seu devido lugar, 
desempenhando papel servil ou subalterno, ou pelo 
menos obedientes e respeitosas e não atrapalhando, não 
podia haver elite” (Holloway, 1997:107) 
 
A história da polícia do Rio de Janeiro, na visão de Holloway (1997), acontece por 
meio da dialética de repressão e resistência. O autor traz à cena a conjuntura política e social 
do Rio de Janeiro no século XIX (1808-1889), período de independência política, formação 
do estado e formação da nação. Relata acontecimentos ocorridos na transição de um controle 
exercido através de hierarquias privadas para o poder exercido por meio das instituições 
públicas. Tempo esse marcado pela disseminação da ideologia liberal, que se destinava a 
aplicar mecanismos impessoais de opressão às grandes massas. 
 
27 Ibid. 
33 
 
As instituições policiais do tipo moderno surgiram na passagem do século XVIII para 
o século XIX. Nessa época, houve a transição da vontade do soberano para meios judiciais; da 
prática do suplício para o encarceramento dos ditos criminosos. Nesse contexto, a elite 
política brasileira seria a maior interessada no policiamento da capital da nação, cujas 
ameaças eram representadas pelas não-elites, os analfabetos e os marginalizados. Com a 
criação da polícia moderna, o Estado tomou para si a incumbência de proteger a propriedade, 
passando a exercer controle sobre o comportamento público. 
A polícia do Rio de Janeiro, no início de sua história, teve a intenção de adotar 
modelos da Europa e dos Estados Unidos. Os juízes de paz tomavam como exemplo o modelo 
da Inglaterra, a Guarda Nacional, da França, e os policiais civis, da Inglaterra e dos Estados 
Unidos. Por fim, essas instituições copiadas “acabaram sendo rejeitadas em favor de 
organizações e procedimentos desenvolvidos internamente” (Ibid., p.22). 
No Rio de Janeiro, o policiamento regular começou em 1808. Nesse contexto, as 
opiniões sobre a polícia dividiam-se: seus defensores viam a força policial como necessária 
para a execução da ordem e disciplina da população, enquanto que os seus críticos a 
consideravam como o braço autoritário e repressor do Estado (Ibid., p.23). 
Holloway traz à luz vestígios da gênese da realidade brasileira atual, cuja formação se 
deu por meio de um processo incompleto de modernização. O autor ressalta que, apesar de ser 
um período de difusão da ideologia liberal, havia contradições: “(...) o cidadão no Brasil está 
sujeito a leis impessoais e ao poder brutal da polícia, que o discrimina sistematicamente e o 
explora impiedosamente, tornando-o um ‘igual para baixo’, em clara perversão dos conceitos 
liberais” (Ibid., p.23). 
Também de forma contraditória, o sistema policial justificava suas práticas por meio 
de leis da época, mas muitas de suas ações eram realizadas sem nenhuma base legal. O autor 
cita o caso da capoeira, que somente se tornou ilegal em 1890, mas seu exercício já era punido 
tempos antes. À medida que algumas ações não se fundamentavam em leis, outras violavam 
as próprias leis: “A mesma hierarquia de instituições políticas, judiciais e policiais que 
prendia e punia os capoeiras, sem qualquer fundamento legal, favorecia a violação da lei que 
proibia o tráfico transatlântico de escravos” (Ibid., p.25). 
Não é difícil perceber que a seletividade penal sempre fez parte da história da 
instituição policial no Rio de Janeiro. Eram explícitos os alvos das ações policiais: 
34 
 
(...) a maior parte do tempo e das energias do sistema policial era empregada na 
repressão de comportamentos desse tipo, que incluíam vadiagem, mendicância, 
violação do toque de recolher, desacato à autoridade, insulto verbal, desordem em 
geral e embriaguez pública (Ibid., p.25). 
O autor ressalta que muitas dessas pessoas nunca haviam roubado ou matado, mas 
“apanhavam com o mesmo cassetete e eram jogados na mesma prisão” (Ibid., p26). 
Segundo Holloway, a criação de uma forma policial moderna foi fundamental para a 
transição do país de colônia à nação. No século XVIII, no Brasil colonial, 
Somente juízes reais podiam reunir e avaliar provas, decidindo quais eram 
relevantes e quais deviam ser excluídas, e a tortura judicial era um instrumento 
importante para extrair confissões. Os julgamentos punham juiz e promotor contra o 
acusado, que não tinha direitos; os processos podiam ser conduzidos em sigilo, se o 
juiz julgasse conveniente. E as punições legais incluíam mutilação física, marcação 
com ferro em brasa, esquartejamento e açoite (Ibid., p.44). 
 
A vigilância ficava a cargo dos “guardas”, vigilantes desarmados, contratados pelo 
conselho municipal da cidade. Os guardas faziam a ronda, e os “quadrilheiros”, designados 
pelos juízes, faziam a inspeção nos bairros. Nessa época, somente o Exército era profissional, 
portanto, quando era necessária a força armada, o juiz poderia convocar destacamentos de 
tropas do Exército, unidades de milícias ou reservas, denominadas ordenanças. As milícias