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1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto de Psicologia Departamento de Psicologia Social e Institucional Curso de Especialização em Psicologia Jurídica Emanuelle Silva Araújo SUICÍDIO NA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO: O que essas mortes denunciam? Rio de Janeiro 2017 2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto de Psicologia Departamento de Psicologia Social e Institucional Curso de Especialização em Psicologia Jurídica Emanuelle Silva Araújo SUICÍDIO NA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO: O que essas mortes denunciam? Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Psicologia Jurídica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob orientação da Profª Dra. Amana Rocha Mattos. Rio de Janeiro 2017 3 Aos que se foram e aos que ficaram com as lembranças, a dor e a saudade. Aos que lutam e aos que lutaram por uma vida digna de ser vivida. 4 AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, agradeço a minha mãe, Elaine, meu pai, Luiz, e minha avó, Iraneide, pela paciência infinita em se tratando da minha ausência e mau humor crônico. Meus poucos e bons amigos também podem ser incluídos no quesito ausência, uma vez que até do mau humor foram privados de compartilhar. Agradeço a todos os professores e colegas do Curso de Especialização em Psicologia Jurídica, em especial, à minha orientadora Amana Mattos, que sem a sua força, paciência e compreensão, eu jamais teria conseguido concluir este trabalho; e à Heliana Conde, minha eterna musa inspiradora e responsável por momentos instigantes e encantadores em sala de aula. Agradeço igualmente, ao Pedro Paulo Bicalho, por permitir minha presença como ouvinte em suas aulas, cujas discussões tanto contribuíram para a confecção deste trabalho. Agradeço à Dayse Miranda e a toda a equipe da pesquisa “Suicídio e Risco Ocupacional: O caso da Polícia Militar carioca” pela oportunidade de vivenciar momentos absolutamente realizadores e gratificantes. Meus agradecimentos ao Doriam Borges pela indicação para a vaga de psicóloga e pesquisadora no estudo, e também, pelo carinho e atenção que dispensa a todos em todas as ocasiões. Agradeço profundamente a todos os policiais militares e seus familiares que abriram as portas das suas casas e exibiram suas feridas ao longo do trabalho de campo. Agradeço a todos os membros da PMERJ que contribuíram para a realização da pesquisa supracitada. 5 Os amoladores de facas, à semelhança dos cortadores de membros, fragmentam a violência da cotidianidade, remetendo-a a particularidades, casos individuais. Estranhamento e individualidades são alguns dos produtos desses agentes. Onde estarão os amoladores de facas? Luis Antonio Baptista 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.........................................................................................................................7 1 – CONTEXTUALIZANDO O SUICÍDIO.........................................................................12 1.1 – O suicídio em números...........................................................................................13 1.2 – Enquadramento histórico do suicídio...................................................................16 2 – A POLÍCIA MILITAR NO RIO DE JANEIRO: POLÍCIA E POLÍTICA................24 2.1 – Polícia e política: a construção de um cataclismo.................................................24 2.2 – De que Rio de Janeiro estamos falando?...............................................................27 2.3 – Breve história da Polícia Militar no Rio de Janeiro.............................................32 3 – SUICÍDIO POLICIAL: A POLÍCIA QUE MAIS MATA TAMBÉM É A QUE MAIS MORRE..................................................................................................................38 3.1 - Algumas considerações sobre o campo...................................................................40 3.1.1 – Palestras nos batalhões................................................................................40 3.1.2 – Entrevistas....................................................................................................46 3.1.3 – Autopsias psicológicas ou psicossociais......................................................50 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................60 REFERÊNCIAS......................................................................................................................63 7 INTRODUÇÃO O interesse pelo tema suicídio surgiu através de minha participação na pesquisa sociológica: “Suicídio e Risco Ocupacional: O caso da Polícia Militar carioca”, vinculada ao Laboratório de Análises da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ao longo do ano de 2011. O convite para que eu integrasse a pesquisa partiu da ideia de se ter uma “psicóloga-pesquisadora” na equipe. “A Emanuelle é psicóloga e sabe fazer pesquisa”, disse a pessoa que me indicou. Surpresa de muitos pesquisadores que não imaginavam que eu fosse graduada em psicologia, após tantos anos trabalhando com pesquisa social e, principalmente, após o título de mestre em “Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais” (Mestrado situado na grande área de Ciências Sociais Aplicadas da CAPES1 O objetivo de se ter uma psicóloga na pesquisa seria o de facilitar a comunicação com os profissionais da área da saúde da Polícia Militar, especialmente psicólogos e psiquiatras. Partia-se do princípio de que o suicídio seria parte de um processo de adoecimento psíquico, considerando como ponto central o “Transtorno de Estresse Pós-traumático - TEPT” , na Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE). 2 Com o início das atividades me vi diariamente sendo apresentada como “psicóloga”, o que me soava muito estranho. Mais estranho ainda era ser apresentada como “psicóloga responsável” (Responsável pelo quê???). Além disso, por várias vezes fui surpreendida apresentando a mim mesma da mesma forma: como psicóloga responsável. Após meses de experiência vi uma nova subjetividade se construindo, o desejo de seguir a carreira acadêmica na área da psicologia nascendo; a possibilidade de seguir minha formação nas ciências sociais foi-se distanciando cada vez mais. O encantamento vindo de autores que “descobri”, como Deleuze e Guattari, e autores que conhecia pouco, como Foucault, foi modificando a minha forma de olhar, perceber e sentir o mundo; o conhecimento da Análise Institucional e de . Soares et al. (2006) afirmam que a polícia está entre as ocupações que apresentam maior prevalência do TEPT, sendo que estimativas sugerem que nove em cada dez suicídios policiais se devem a este transtorno. 1 Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. 2 “A DEPT foi estudada inicialmente, em pessoas que viveram diretamente situações violentas, como soldados em guerras, vítimas de estupros; ou pessoas que estavam presentes em áreas atingidas por catástrofes, humanas ou naturais, como guerras – incluindo as civis - terremotos, furacões, tornados, erupções, etc. (...) Inicialmente, se falou em Acute Stress Syndrome e em Acute Stress Disorder; que seria intensa, mas duraria pouco. Porém, notaram que havia pessoas que permaneciam com alguns sintomas durante muito tempo e a duração dos sintomas passou a ser um critériopara caracterizar a DEPT” (Soares et al., 2007:27-28). Os autores traduziram o termo Post Trauma Stress Disorder como Desordem de Estresse Pós-Trauma (DEPT). 8 ferramentas/métodos e de possibilidades que não sabia que existiam; o estranhamento e questionamento das minhas práticas tão naturalizadas em meu cotidiano3 Na pesquisa supracitada, minhas tarefas consistiam no contato com profissionais de saúde da PMERJ (infindáveis reuniões); levantamento de dados sobre mortes violentas de policiais (suicídio, homicídio e acidente) no Grupo de Atendimento aos Familiares dos Policiais Militares Falecidos – GAFPMF; contato com os familiares dos policias falecidos e não falecidos; divulgação das palestras de apresentação da pesquisa que seriam direcionadas aos policiais militares e aos familiares dos policiais falecidos; apresentação das palestras nos batalhões; entrevistas com familiares de policiais falecidos . 4 Inicialmente, ao entrar em contato telefônico com os familiares de policiais mortos por causas violentas, dizia: “Sou Emanuelle, pesquisadora da UERJ”, a recepção não era das mais animadoras. Até que um dia arrisquei: “Sou Emanuelle, psicóloga do Laboratório de Análises da Violência da UERJ”, mudança radical no tratamento. A palavra mágica “psicóloga” abria um portal para outra dimensão que favorecia o diálogo com as pessoas. O que seria isto? Passei a questionar o lugar de “pesquisadora” e o de “psicóloga”, e de como cada lugar me afetava e afetava o outro. e não falecidos e entrevistas com policiais amigos/colegas de policiais militares que cometeram o suicídio. Em termos práticos, a pesquisa na qual atuei teve por objetivo realizar um diagnóstico da Polícia Militar através do discurso dos próprios policiais e de seus familiares e, a partir daí, se sugerir ao comando geral da PMERJ uma série de ações preventivas relacionadas ao suicídio e risco ocupacional. Quem iria executar essas ações seriam os próprios profissionais da área da saúde da corporação, que teriam em mãos os dados e sugestões decorrentes dessa pesquisa5 3 Devo grande parte desses “descobrimentos” às leituras sugeridas e às trocas com professores e alunos durante as aulas de “Subjetividade e Processos de Criminalização”, no curso de especialização em Segurança Pública da UFRJ, ministrada pelo professor Pedro Paulo Bicalho; além da disciplina “Controle Social da Pobreza e Seletividade Penal”, no curso de Mestrado em Direito da UFRJ, ministrada pelos professores Pedro Paulo Bicalho e professora Miriam Guindani. Em ambas as aulas tive participação como ouvinte. . 4 Como técnica de entrevista a familiares de policiais falecidos e amigos/colegas de policiais que cometeram o suicídio, optou-se pela “necropsia psicossocial” ou “autópsia psicológica” (dependendo do autor os termos se modificam, talvez um problema de tradução). “(...) com vistas a se aprimorar o entendimento sobre esse comportamento [suicida], Kovács ainda nos aponta que podemos realizar uma espécie de autópsia psicológica. Tal autópsia, que seria realizada a partir de estudos com a família do paciente, consta de uma série de temas que podem ser pensados” (Bastos, 2006:93). 5 No total foram aplicados 224 questionários a policiais militares que se voluntariaram e, além disso, foram realizadas 290 entrevistas com PMs amigos/colegas de policiais que cometeram o suicídio; familiares de policiais falecidos e não falecidos; e entrevistas biográficas com policiais militares. 9 Por tratar-se de uma pesquisa sociológica, utilizou-se por sua idealizadora (Dra. Dayse Miranda, pesquisadora e bolsista de Pós-Doutorado CNPQ6) o conceito de suicídio proposto na obra clássica de Émile Durkheim Le Suicide: “Chama-se suicídio todo o caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato, positivo ou negativo, realizado pela própria vítima e que ela sabia que produziria esse resultado” (Durkheim, 2004:14). Sendo a justificativa do projeto de pesquisa um lugar comum nos estudos sobre o tema na contemporaneidade: “Dados da Organização Mundial de Saúde (WHO) confirmam que o suicídio é um sério problema de saúde pública” (Miranda, 2010a:1). Esses dois elementos (conceito e justificativa) suscitaram uma série de questões pessoais que carreguei silenciosamente ao longo do meu trajeto: A morte biológica seria a única maneira possível de entender o suicídio? Que outras formas de ‘morte’ poderiam ser percebidas enquanto suicídio? De que maneira o suicídio passou a ser percebido socialmente como um problema? Como se constituiu enquanto grave problema de saúde pública? Quando e como o ato suicida se transformou em uma preocupação para o Estado e demais setores da sociedade? O comportamento suicida sempre foi concebido como consequência de transtornos mentais? O suicida sempre foi visto como vítima? A tentativa de suicídio sempre foi entendida como um grito de alerta (‘Cry for help’) por quem a comete? A família e os amigos dos suicidas sempre foram compreendidos como pessoas que precisariam de amparo dos profissionais de saúde e do serviço social? O ato suicida sempre foi compreendido como algo que precisa ser identificado, prevenido e controlado7 O ingresso no curso de Especialização em Psicologia Jurídica despertou em mim uma série de outras questões e me fez refletir sobre o papel do psicólogo com atuação na Segurança Pública. Percebi que são inúmeros os desafios que a Psicologia Jurídica nos tem apresentado. Não somente essa área específica do conhecimento, mas o campo da Psicologia e sua historicidade enquanto ciência legitimadora de normas sociais ou, ainda, “ortopédica”, como nos diz Foucault. A influência do positivismo e das ciências naturais no nascimento da psicologia marcou e ainda hoje marca a sua história e a práxis do psicólogo. Como nos diz Coimbra, “(...) a psicologia historicamente se forja como apolítica, neutra, científica e objetiva, em que as questões sociais são extremamente psicologizadas, ou seja, reduzidas em sua ‘essência’ a um plano psíquico” (Coimbra et al., 2008:28). ? E, enfim, o que essas mortes voluntárias, no caso da Polícia Militar do Rio de Janeiro, denunciam? 6 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 7 De acordo com o relatório da OMS Preventing suicide: A resource for police, firefighters and other first line responders, comentado posteriormente. 10 Felix Guattari nos fala no quanto a prática dos profissionais “psi” pode ser policialesca por mais “inocentes” que sejam suas intenções. Menciona que em 68 costumavam se referir aos profissionais “psi” como “tiras”. Diz o autor: “Do ponto de vista micropolítico qualquer práxis pode ser ou não policialesca; nenhum corpo científico, nenhum corpo de referência tecnológica garante uma justa orientação” (Guattari; Rolnik, 2010:38). Por fim, percebi a importância do “implicar-se”, de o psicólogo analisar sua implicação no campo de atuação; bem como a eterna problematização do que está sendo posto no cotidiano do setor de psicologia. O questionar-se abre brechas preciosas em direção a pontos essenciais à prática psi, tais como: a recusa do lugar de quem sabe o que é melhor para o outro; a não legitimação de controles sociais vigentes; o entendimento de que o ser humano é produzido coletivamente e possuidor de suas singularidades; e que a prática do psicólogo pode - e deve - ser libertária. Como nos diz Verani, “Este é o sentido – que eu imagino – do encontro entre o Direito e a Psicologia: uma aliança em favor da dignidade da pessoa humana, em favor da cidadania, em favor da liberdade” (Verani, 1995:20). Netto (2013) comenta que os profissionais “psi” têm o hábito de reproduzir um “psicologismo” ao trabalhar a temática do suicídio, descontextualizando suas análises sobre o fenômeno, bemcomo “a atribuição a características individuais e psíquicas de fenômenos que são sociais e políticos” (p. 19). Nessa direção, na tentativa de promover uma discussão sobre o suicídio na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, com um olhar desnaturalizado e considerando o contexto histórico e social no qual ocorreram as “mortes voluntárias”, que surge a proposta deste trabalho. Parte do princípio que toda e qualquer morte denuncia algo sobre a sociedade em que ela acontece. Como nos diz o autor, Por que, então, previne-se o suicídio? Se, como disse, a princípio, as mortes trazem consigo denúncias ou manifestações de coisas que se dão no âmbito da vida e da saúde de uma determinada sociedade, essas mortes específicas, intencionalmente provocadas, também vão explicitar essas questões. O que então essas mortes voluntárias poderiam explicitar sobre a nossa sociedade? (Netto, 2013:20). Para tanto, propõe-se uma pesquisa bibliográfica acerca do suicídio, lançando mão eventualmente de reportagens publicadas em mídias virtuais e das minhas observações de campo na pesquisa “Suicídio e Risco Ocupacional: O caso da Polícia Militar carioca”. Todas as análises propostas foram realizadas com base em meus diários de campo da pesquisa sociológica e nas gravações das entrevistas realizadas por mim, além, das reflexões sobre a minha prática, que revisitei na elaboração deste trabalho. Busquei me debruçar sobre 11 as minhas indagações surgidas na ocasião da pesquisa, conduzindo a discussão para o campo da psicologia. Além das minhas anotações e gravações, também utilizo como recurso, os resultados da pesquisa reunidos no livro “Por que Policiais se Matam? Diagnóstico e prevenção do comportamento suicida na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro” (Miranda, 2016). Dessa forma, todo o material reunido em meus diários de campo e gravações foi novamente percorrido anos após a realização da pesquisa, no contexto de criação do meu próprio projeto de prevenção do suicídio e valorização da vida, chamado Espaço Desperta Psi. Projeto este, voltado para a promoção de grupos de estudos, cursos, oficinas e eventos relacionados à temática do suicídio. A proposta do Espaço Desperta Psi nasceu do desejo de provocar em psicólogos e estudantes de psicologia um despertar para a sua função política e social, partindo do princípio que estudar sobre a morte nos diz muito sobre a vida, e principalmente, a forma como se morre nos revela duramente a realidade em que estamos vivendo. Minhas experiências profissionais e acadêmicas anteriores reverberaram em todo o processo de idealização do projeto, especialmente a minha participação como psicóloga e pesquisadora na pesquisa “Suicídio e Risco Ocupacional: O caso da Polícia Militar carioca”, em 2011, onde teve início o meu despertar sobre as questões relacionadas ao suicídio. Por fim, o presente trabalho está estruturado da seguinte forma: no primeiro capítulo, busco contextualizar o suicídio em termos conceituais, estatísticos e históricos, com vistas a identificar as suas implicações sociais, culturais e legais ao longo do tempo. No segundo capítulo, procuro debater sobre as imbricações entre a instituição polícia, o contexto político a ela relacionado e o fenômeno do suicídio entre policiais militares, trazendo à tona acontecimentos que envolvem a história da polícia e o cenário político, econômico e social atrelado a ela. No terceiro capítulo, recorro às minhas incursões no campo visando entender a forma com que a Polícia do Estado do Rio de Janeiro lida com o suicídio dos seus membros; como o Estado enfrenta essas mortes; o quanto essas mortes importam para o sistema; e que valor cada vida perdida tem para a corporação. 12 1 – CONTEXTUALIZANDO O SUICÍDIO O termo “suicídio” é consideravelmente recente, surgido entre os séculos XVII e XVIII; é o nome que a modernidade designa à “morte voluntária”. Historicamente, esse termo começou a ser empregado em latim, na Inglaterra, em 1630. Alguns autores o identificam na língua francesa, utilizado pelo abade Desfontaines por volta de 1734, com o sentido de “o assassinato ou morte de si mesmo” (Sui = si mesmo; Caedes = ação de matar) (Ribeiro, 2004). Na literatura voltada à temática encontram-se os termos: violência autoinfligida, comportamento suicida fatal e autoassassinato; também é comum a denominação autocídio em peças jurídicas. Há ainda o termo para-suicídio ou comportamento para-suicida para designar um ato não fatal, no qual o indivíduo não possui intenção de morrer, mas que apresenta uma conduta de risco, como a ingestão excessiva de substâncias, comportamentos de auto-mutilação ou autoagressão. Encontra-se nos estudos dos especialistas no assunto uma série de classificações: comportamentos suicidas, como atos considerados de alto risco; personalidades suicidas, como as agressivas e impulsivas; e grupos potencialmente suicidas, como homens, população carcerária, jovens em conflito com a lei, pessoas com transtornos mentais e portadores de doenças degenerativas. Netto (2013) propõe uma reflexão acerca das terminologias utilizadas na atualidade e de como elas apresentam um viés negativo às “mortes voluntárias” e a quem comete o ato. Diz o autor: Com essas terminologias, costuma-se desqualificar o ato daqueles que tentam tirar a própria vida e daqueles que o conseguem fazê-lo. Ao desqualifica-lo, também se estigmatiza esses sujeitos como alguém que não pode estar são ou no controle da sua própria conduta e, com isso, acaba-se por amordaçar o indivíduo e impedir que tudo aquilo que sua morte poderia trazer a tona se manifeste. Há que se pensar que toda e qualquer morte traz à tona algo sobre a sociedade em que ela acontece (P17). Essa questão apresentada por Netto será discutida mais à frente e será considerada ao longo do trabalho. 13 1.1 – O suicídio em números Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, aproximadamente um milhão de pessoas cometem suicídio a cada ano. Isso representaria uma morte a cada minuto, quase 3 mil mortes a cada dia e uma tentativa de suicídio a cada três segundos. Há mais casos de mortes causados por suicídio do que por conflitos armados ou por acidentes de trânsito (WHO, 2009). Em muitos países, o suicídio é uma das três principais causas de mortes de adolescentes e de jovens adultos com idade entre 15 e 24 anos. Mundialmente, a taxa de suicídios aumentou em 60% na última metade do século XX. Para cada suicídio consumado, há 10 a 20 tentativas de suicídio (WHO, 2009)8 O monitoramento estatístico das taxas mundiais de suicídio é consideravelmente recente; os países começaram a coletar dados sobre mortalidade a partir de 1950 com a criação da OMS. Contudo, as primeiras informações sobre as mortes no Brasil datam de 1980 (Mello-Santos et al., 2005). Entre 1996 e 2000 foram registradas pelas Secretarias de Saúde brasileiras 33.953 mortes por suicídio (Soares et al., 2006). . A OMS estima que até o ano de 2020 a incidência mundial de suicídios se aproximará de 1.53 milhões de pessoas, e 10 a 20 vezes mais indivíduos irão cometer tentativas de suicídios (Mello-Santos et al., 2005). De acordo com dados do DATASUS, entre 1980 e 2000, a taxa de suicídios no Brasil subiu 21%; os homens suicidaram-se de 2 a 4 vezes a mais do que as mulheres; e os idosos com mais de 65 anos apresentaram as maiores taxas. O grupo etário de jovens entre 15 e 24 anos foi o que apresentou maior crescimento: 1.900%. Esses resultados indicam que o Brasil segue a tendência mundial de crescimento nas taxas de suicídio, embora com menores proporções (Mello-Santos et al., 2005). Em 2007, de acordo com dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM/DATASUS) do Ministério da Saúde, a taxa brasileira de suicídios era de 4.77 por 100.000 habitantes (Miranda, 2010b: 16). Atualmente, em todoo mundo o suicídio é percebido como um problema de saúde pública que deve ser identificado, prevenido e controlado. A OMS, em 1999 lançou o programa SEMPRE, “Preventing Suicide”, uma iniciativa mundial de prevenção do suicídio. Há uma rede mundial direcionada ao tema: a “WHO International Network for Suicide 8 As estatísticas de suicídio são elaboradas com base nas informações que os países membros enviam à OMS. É importante ressaltar que nem todos os países enviam os seus dados e que nem todos os estados enviam as informações para o seu país. Isso significa que há uma subnotificação dos casos de suicídio. 14 Prevention”. Atualmente, há publicações elaboradas pelo Ministério da Saúde (2006, e várias outras em parceria com instituições de saúde)9 O suicídio, além de ser reconhecido como um problema de saúde pública pela OMS, também é visto como a maior fonte de mortes evitáveis em todo o mundo. De acordo com seus relatórios, como citado anteriormente, para cada pessoa que comete o suicídio, há 20 pessoas ou mais que irão tentá-lo. O impacto emocional para a família e amigos em razão desses atos apresenta uma duração de longos anos (WHO, 2009). , pelo Conselho Federal de Psicologia (2013) e pela Associação Brasileira de Psiquiatria (2014). A partir do lançamento do programa SEMPRE, da OMS, uma série de relatórios nessa temática foi elaborada voltada para educadores, profissionais da segurança pública, assistentes sociais e profissionais da saúde. Em suas orientações, as respectivas instituições deveriam ajudar a reduzir o suicídio em suas comunidades, assegurando-se que seus profissionais sejam adequadamente treinados para reconhecer os sinais e sintomas de transtornos mentais; identificar os riscos de suicídio; compreender a legislação local sobre saúde mental e como usá-la nas comunidades para desenvolver, dessa forma, programas especializados para ajudar no manejo da saúde mental e as crises de suicídio em suas áreas, bem como auxiliar na criação de redes que facilitem o acesso aos locais de cuidados com a saúde física e mental. O Programa de Prevenção ao Suicídio inclui, ainda, zelos durante o contato com familiares e amigos do suicida ou da pessoa que tentou o suicídio, bem como a prevenção do suicídio em prisões e situações de encarceramento (WHO, 2009). Segundo Botega et al. (2006), o suicídio é visto não mais como uma tragédia pessoal, mas como um sério problema de saúde pública. Os autores comentam o impacto do comportamento suicida nos serviços de saúde: em 2002, calculou-se que 1,4% da carga global deveram-se às tentativas de suicídio. Quanto aos fatores de proteção ao suicídio, os autores comentam que pessoas vinculadas a grupos religiosos apresentam menores taxas, sendo a religiosidade um fator importante na superação de doenças graves. De acordo com a cultura de cada local, seus valores podem funcionar tanto como fatores de proteção quanto de risco, como as sociedades que valorizam a interdependência e as trocas, enquanto outras, por outro 9 A Portaria nº 1.876, de 14 de agosto de 2006 “Institui Diretrizes Nacionais para Prevenção do Suicídio, a ser implantadas em todas as unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão”. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2006/prt1876_14_08_2006.html>. 15 lado, julgam um pedido de ajuda como um ato de fraqueza. Nas mulheres, as taxas de suicídio são mais baixas quando estão grávidas ou possuem filhos pequenos, nos homens, quando estão empregados, sentindo-se produtivos. De uma forma geral, o sentimento de pertencer a um grupo (familiar, religioso, profissional) seria um fator de proteção ao suicídio. Em compensação, transtornos mentais, perdas, problemas familiares, personalidades impulsivas e agressivas, doenças incapacitantes e fácil acesso a meios letais seriam fatores de risco. A OMS (WHO, 2003) classifica outros fatores de risco, tais como: 1) Indivíduos do sexo masculino; 2) Faixa etária entre 15 e 35 anos ou acima de 75 anos; 3) Condições econômicas extremas (extremamente ricos ou extremamente pobres); 4) Moradores de áreas urbanas; 5) Desempregados; 6) Aposentados; 7) Ateus; 8) Solteiros; 9) Separados; e 10) Imigrantes. Nos anos de 2004, 2005, 2007 e 2009, a OMS lançou uma série de relatórios de prevenção do suicídio; alguns deles direcionados a públicos específicos, como profissionais do sistema prisional (WHO, 2007) e profissionais da segurança pública, como policiais e bombeiros (WHO, 2009). Durkheim no século XIX anuncia que “Cada sociedade está predisposta a fornecer um contingente determinado de mortes voluntárias” (2004:24), sendo que para cada nacionalidade haveria uma preferência por um tipo de morte e a ordem de preferência raramente mudava. Os russos elegiam o enforcamento; os ingleses e irlandeses a morte por envenenamento; os italianos, as armas de fogo; os americanos, as armas de fogo, envenenamento e gás de iluminação. Quanto aos emigrantes, estes, levavam os métodos comuns ao seu país de origem para onde quer que fossem, ao menos até assimilarem os costumes da nova cultura (Jamison, 2002). Jamison (2002) comenta que às vésperas do ano 2000, várias pessoas nos Estados Unidos eram assassinadas por instigar policiais a matá-las, prática esta conhecida como Suicide-by-cop. Esta ação, na época, era responsável por aproximadamente 10% dos tiros fatais disparados por policiais. Outros estudos revelam o suicídio entre os próprios policiais, descrevendo o perfil do profissional mais propenso a esse ato e os fatores de risco relacionados. Segundo pesquisa realizada por Violanti (1995), os suicídios são mais comuns entre os policiais mais antigos, envolvidos com alcoolismo, portadores de alguma enfermidade ou próximos da aposentadoria. Como fatores de risco, o autor identifica: 1) Fácil acesso a armas de fogo; 2) Exposição contínua a risco de morte e ferimentos; 3) Tensão constante; 4) Contradições no âmbito do sistema da justiça criminal; 5) A percepção entre os 16 policiais de que a sua atividade representa uma imagem negativa perante a sociedade. Por último, o autor identifica uma maior propensão ao suicídio entre os homens, sexo dominante nessa profissão. Em relação ao suicídio ocupacional, estudos identificam os seguintes riscos que podem levar o profissional ao suicídio: 1) Exposição a substâncias químicas; 2) Conhecimento ou acesso a meios com os quais o suicídio possa ser realizado; 3) Exigências profissionais que propiciem a exposição a fatores de risco psicológicos, tais como burnout10 , isolamento ou exposição a eventos traumáticos (Mustard et al., 2010). 1.2 – Enquadramento histórico do suicídio “As atitudes da sociedade, como são captadas em sua literatura, leis e sanções religiosas, fornecem uma janela para as nossas reações coletivas ao auto- assassinato”. Jamison (2002:8) De acordo com Jamison (2002:9-13), na história da humanidade as atitudes em relação ao suicídio somente se acirraram após o cristianismo; até então, nenhum preceito cultural ou religioso se relacionava ao suicídio no Antigo Testamento. As mortes dos gregos antigos trazidas por Homero eram percebidas como questão de honra, para defender algum princípio religioso ou filosófico. Sócrates é um exemplo clássico, que bebeu cicuta para não abrir mão de suas verdades. Na Grécia Antiga, estóicos e epicuristas acreditavam que todos tinham o direito de eleger os métodos e a hora de sua morte. Em Tebas e Atenas, somente o homicídio era contra a lei; os assassinos eram privados dos ritos fúnebres e tinham a mão decepada. Por outro lado, Aristóteles e Pitágoras entendiam o suicídio como uma ação covarde e um ato contra o Estado. Em Roma, o suicídio era reprimido, impedindo-seque os bens e as 10 “A síndrome de burnout é consequente a prolongados níveis de estresse no trabalho e compreende exaustão emocional, distanciamento das relações pessoais e diminuição do sentimento de realização pessoal” (Trigo et al., 2007:223). 17 propriedades do suicida fossem deixados para os herdeiros. A Igreja Católica desde sempre foi veementemente contra o suicídio; durante os séculos VI e VII excomungou e negou ritos fúnebres aos suicidas. De acordo com a cultura judaica, era proibido que se professasse orações fúnebres para qualquer pessoa que cometesse o suicídio, e o enterro era realizado em um setor isolado do cemitério. Na lei islâmica, o suicídio é considerado um crime mais grave que o homicídio. Na Finlândia, costumava-se isolar o corpo do suicida para que este não exercesse influência maligna sobre os vivos. Em muitos países, os corpos dos suicidas eram enterrados durante a noite e em encruzilhadas; montes de pedras eram descarregados na encruzilhada em que a pessoa foi enterrada. Além disso, costumava-se cravar uma estaca no coração do suicida. “Epiléticos, lunáticos e suicidas não eram lavados; pelo contrário, eram enterrados de bruços nas roupas que usavam quando morreram. Eram erguidos para o caixão com atiçadores, nunca com as mãos nuas, já que se temia que doenças e maldição pudessem pegar na família” (Jamison, 2002:11). Na França, o corpo de quem tirava a própria vida era arrastado pelas ruas e depois pendurado em forcas. Além disso, a lei francesa do século XVII exigia que se jogasse o corpo do suicida no esgoto ou na lixeira da cidade. Na Alemanha, os corpos eram postos em barris, que deslizavam para o rio, de forma que não conseguissem voltar à sua cidade natal. Na Noruega, os cadáveres dos suicidas deveriam ser enterrados junto aos demais criminosos na floresta ou jogados na maré. No século XVII, houve mudanças nos padrões relativos ao ato suicida na Inglaterra e nos Estados Unidos: um em cada dez vereditos de suicídio era classificado non compos mentis, ou seja, como decorrente de insanidade. Por volta de 1800, todos os casos de suicídio eram vistos da mesma forma: como insanidade. Porém, apesar de considerado como ato insano nos dois países, até 1961 na Inglaterra e no País de Gales o suicídio era considerado crime, e na Irlanda, até 1993. De acordo com Ribeiro (2004), a Revolução Francesa foi responsável pela primeira “desincriminação” do suicídio na Europa. O autor comenta que não há nenhuma referência desse ato no Código Penal Francês de 1791 ou no Código Napoleônico de 1810. Já durante a Revolução Industrial, com suas duras regras e proibições sociais, o suicídio passou a ser considerado um ato de vergonha, que causava resistência por ser considerado um vestígio de doença mental. 18 Em 1830, o Código Criminal do Império do Brasil punia o auxílio ao suicídio, com pena de prisão por dois a seis anos. Dizia o artigo 196: "Ajudar alguém a suicidar-se, ou fornecer-lhe meios para esse fim com conhecimento de causa". Já nas primeiras décadas do século XIX, a legislação brasileira não incriminava o suicídio ou a tentativa deste (Roberti, s.d.). No Código Penal brasileiro de 1890, o artigo 299 determinava a execução da pena de prisão por dois a seis anos para a pessoa que auxiliasse moral ou materialmente alguém a matar-se. Contudo, se o ato suicida não culminasse em morte, não se determinava a penalização para o seu cúmplice. Na legislação brasileira vigente, de 1940, o suicídio ou a tentativa de suicídio seguem não sendo considerados crimes. De acordo com Ribeiro (2004): "... A pessoa que tenta o suicídio não pode ser responsabilizada criminalmente. Por medida de política criminal, o fato, que é ilícito por atingir bem indisponível, não é tipificado em nossa legislação”. Nosso Código Penal em vigor estabelece no artigo 122 o seguinte: “Induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave”. Roberti (s.d.) comenta que a legislação brasileira sempre se preocupou com o suicídio e não com a conduta da pessoa que o comete. Incriminam-se no Brasil quem de uma forma ou de outra induz outrem a tirar a própria vida. De acordo com a autora, a legislação do mundo todo aborda a “hipótese da instigação, do induzimento e do auxílio ao suicídio”. O que essa breve história sobre o suicídio nos apresenta? O que os sentidos atribuídos a essa ação ao longo da história da humanidade querem nos dizer: de ato de liberdade na Grécia Antiga a crime e pecado com o nascimento do cristianismo; o tratamento dispensado ao corpo do suicida; as sanções relativas aos seus familiares; as punições jurídicas ao suicida e aos seus “cúmplices”? Todos esses episódios até, por fim, o suicídio se converter em sério problema de saúde pública atrelado a transtornos mentais na contemporaneidade? Foucault (2009) relata que até o século XVII, na Europa, as penas físicas que levavam à morte os criminosos, i.e., os espetáculos dos suplícios faziam parte das práticas da época. Até mesmo as penas não corporais possuíam algo relacionado ao suplício: “exposição, roda, coleira de ferro, açoite, marcação com ferrete” (p.35); o poder soberano era traduzido em 19 “fazer morrer e deixar viver”, em que a vida e a morte dos súditos somente se tornariam direitos pela vontade soberana. A exibição pública do suplício seria uma técnica que serviria como exemplo à sociedade do que não se deveria fazer, e ao mesmo tempo, o suplício do corpo tinha a função de purgar os pecados da alma do criminoso, além, é claro, de ostentar o poder do soberano. O autor comenta que o suplício deveria ser “ostentoso”: “(...) os suplícios se prolongam ainda depois da morte: cadáveres queimados, cinzas jogadas ao vento, corpos arrastados na grade, expostos à beira das estradas. A justiça persegue o corpo além de qualquer sofrimento possível” (p.36). Na segunda metade do século XVIII os suplícios se tornam ultrajantes aos olhos de filósofos e teóricos do direito: seria necessário punir de outra forma. O suplício passa a ser visto como ato revoltante, vergonhoso, intolerável e perigoso: “É preciso que a justiça criminal puna em vez de se vingar”; a “humanidade” do criminoso deveria ser respeitada: “o castigo deve ter a ‘humanidade’ como ‘medida’” (Foucault, 2009:72). Há um remanejamento no poder de punir para que este seja mais bem distribuído. Houve uma reforma de dentro do aparato judiciário para que o poder não mais se concentrasse nas mãos do soberano. Surge uma nova estratégia de castigar os criminosos: “não punir menos, mas punir melhor” (p.79). Dessa forma, as infrações deveriam ser bem definidas, forjando uma pressão sobre as “ilegalidades” populares. É nesse contexto que surgem as prisões e com elas a concepção de delinquência, “em defesa da sociedade”. As disciplinas surgem como uma nova forma de controle social, um método que traria docilidade e utilidade aos corpos. Os corpos deveriam ser vigiados e controlados; os minutos e segundos contados em uma nova economia, que tornaria os homens obedientes e produtivos. Os detalhes passaram a ser percebidos como importantes, as disciplinas eram utilizadas enquanto técnicas que “definem um certo modo de investimento político e detalhado do corpo, uma nova ‘microfísica’ do poder” (Foucault, 2009:134). Há uma nova distribuição dos indivíduos nos espaços; um grande confinamento dos considerados miseráveis e vagabundos e outro tipo de distribuições nas escolas, nos quartéis, nas fábricas, nos hospitais, etc.: “Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo” (p.138).Há um ordenamento dos indivíduos e dos espaços, a constituição de novas arquiteturas para que todos possam ser vistos: os prisioneiros, os estudantes, os enfermos, os operários. Dessa forma, os indivíduos passam de um “confinamento” a outro ao longo de sua existência na sociedade disciplinar. 20 Deleuze (2008) nos diz que já não estamos em sociedades exatamente disciplinares, mas em sociedades de controle. As disciplinas conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se instalavam depois da Segunda Guerra Mundial. As sociedades de controle não funcionariam mais por confinamento (escola, quartel, hospital, fábrica, prisão...), mas por controle contínuo e comunicação instantânea, em que cada tipo de sociedade corresponderia a um tipo de máquina: as máquinas simples e dinâmicas para as sociedades de soberania; as máquinas energéticas para as de disciplina; as cibernéticas e computadores para as sociedades de controle. Para Deleuze, na sociedade disciplinar o poder é ao mesmo tempo massificante e individuante; nas sociedades de controle, não se está mais diante do par massa-indivíduo. O essencial não é mais uma assinatura e um número, mas uma senha. Na sociedade disciplinar, as técnicas de poder eram centradas no corpo individual, que deveria ser posto em vigilância, o que seria chamado de anátomo-política. A partir do séc. XIX, com o nascimento da biopolítica, o poder disciplinar de “fazer morrer e deixar viver” não seria substituído, mas complementado por uma nova tecnologia, que Foucault chamou de poder de regulamentação: o de “fazer viver e deixar morrer”. Essa nova técnica de poder, ou seja, o biopoder, se dirige à vida da espécie humana. Os processos de natalidade, mortalidade e longevidade, da segunda metade do século XVIII são “os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle dessa biopolítica” (Foucault, 2002:290). Além disso, no século XIX, Foucault (2002) afirma que é em relação a fenômenos como os acidentes, as enfermidades, as anomalias diversas que “essa biopolítica vai introduzir não somente instituições de assistência (...), mas mecanismos muito mais sutis, economicamente muito mais racionais do que a grande assistência, a um só tempo maciça e lacunar, que era essencialmente vinculada à Igreja” (p.291). Estabelece-se mecanismos reguladores para baixar a mortalidade, prolongar a vida e estimular a natalidade. Diz ele: (...) a morte, como termo da vida, é evidentemente o termo, o limite, a extremidade do poder. Ela está do lado de fora, em relação ao poder: é o que cai fora de seu domínio, e sobre o que o poder só terá domínio de modo geral, estatístico. Isso sobre o que o poder tem domínio não é a morte, é a mortalidade11 . E nessa medida, é normal que a morte, agora, passe para o âmbito do privado e do que há de mais privado. (...) o poder sobre a vida que consiste não só em organizar a vida, não só em fazer viver, mas, em suma, em fazer o indivíduo viver além de sua morte. (Foucault, 2002:295-296). 11 Meus grifos. 21 Para gerenciar a vida da população, na biopolítica, são criados mecanismos, que vão se tratar principalmente de “previsões, de estimativas, estatísticas, de medições globais (...). Vai ser preciso modificar, baixar a morbidade; vai ser preciso encompridar a vida; vai ser preciso estimular a natalidade. E trata-se, sobretudo, de estabelecer mecanismos reguladores (...)” (Foucault, 2002:293). Dessa forma, como entender a própria concepção de suicídio no contemporâneo, onde a grande estratégia de poder deixa de ser a produção da morte para ser o gerenciamento da vida? É no âmbito dessa nova estratégia de poder, o biopoder, que a OMS se refere aos suicídios como mortes “evitáveis”. Profissionais no século XXI são treinados a reconhecer os sinais e sintomas de transtornos mentais; identificar os riscos de suicídio, como se houvesse uma espécie de “devir” suicida. O suicida não estaria de acordo com o modelo de saúde física e mental definido pela OMS e talvez nem conforme o modelo de felicidade alardeado por todos os meios de comunicação. Na contemporaneidade devemos ser saudáveis, longevos e felizes. Guattari e Rolnik (2010) nos falam sobre as subjetividades que são produzidas em massa no sistema capitalístico: Tais mutações da subjetividade não funcionam mais no registro das ideologias, mas no próprio coração dos indivíduos, em sua maneira de perceber o mundo, de se articular com o tecido urbano, com os processos maquínicos do trabalho e com a ordem social suporte dessas forças produtivas (p. 34). Prosseguem dizendo: “(...) a produção essencial do CMI12 Os estudos realizados e a vivência no campo ao longo da pesquisa na Policia Militar do Rio de Janeiro provocaram diversas questões, entre elas, que novas subjetividades vão se construindo nas relações no âmbito da PM? Na vivência que tive no campo durante a pesquisa sociológica ouvi, por exemplo, por diversas vezes esposas comentarem que a vida familiar do policial muda radicalmente com a sua entrada na corporação. Algumas diziam que perderam o marido “em vida”: maridos que se recusavam a circular publicamente com a família por não é apenas a da representação, mas de uma modelização que diz respeito aos comportamentos, à sensibilidade, à percepção, à memória, às relações sociais, às relações sexuais, aos fantasmas imaginários, etc.” (p.36). Os autores comentam que atualmente no capitalismo a produção de subjetividade talvez seja mais importante do que qualquer outro tipo de produção. 12 Guattari prefere utilizar o termo Capitalismo Mundial Integrado (CMI), ao invés de globalização. 22 medo; outros “arrumavam” amantes e filhos fora do casamento; outros começavam a beber, consumir drogas e/ou a ir para “farras” com os colegas de trabalho. Imperativo esclarecer que não tenho a intenção de fazer generalizações e, tampouco, apresentar resultados de análises com os relatos apresentados neste trabalho. O único objetivo é partir da fala dos entrevistados para levantar questões e problematizar as práticas policiais e seu cotidiano. Apenas um ponto de partida. Outra questão diz respeito à sutileza enquanto marca da biopolítica: que demais formas de morte podem ser concebidas como suicídio, que não necessariamente a morte biológica? O que poderia significar desistir da vida “em vida”? Em um dos encontros pelos corredores dos batalhões tive uma longa conversa com uma psicóloga da PMERJ, que comentava sobre a recusa dos policiais quanto ao uso do colete à prova de balas durante as operações. São infindáveis os exemplos sobre as práticas consideradas de “risco” entre policiais militares, tais como o não uso do cinto de segurança (inclusive nas folgas); desatenção durante as operações; dirigir em alta velocidade; dirigir com imprudência... A esposa de um policial assassinado, que era hipertenso, comentou que ele mesmo dizia: “Eu não vou morrer de pressão alta, eu vou morrer de tiro”. Ele costumava ficar lendo jornal sentado em frente a um DPO13 Tirar a própria vida pode ser uma ação percebida como uma forma de poder? Como isso se dá na Polícia Militar, dentro de um sistema também de poder? Que relações surgem daí? O suicídio seria uma forma de transgressão dentro da própria polícia? Que processos de normalização são criados? Foucault (2002:298) comenta que a polícia “é a um só tempo um aparelho de disciplina e um aparelho de Estado (o que prova que a disciplina nem sempre é institucional)”. Em uma das palestras, um policial relatou que tentou se matar dando um tiro no peito dentro da viatura; foi socorrido e internado em um hospital. Quando voltou às suas atividades ficou preso durante 6 dias por tentativa de suicídio. Dependendo do batalhão, os policiais que tentam o suicídio são punidose aos que cometem o suicídio não há permissão para que seus colegas da corporação estejam presentes durante o sepultamento, ou seja, não , local conhecido por já ter sido alvo de várias rajadas de metralhadoras. Ele dizia: “Eu não tenho nada a perder”. Após uma palestra, um policial comentou: “A senhora só se esqueceu de falar sobre os policiais que vão pra linha de tiro pra morrer”. Em entrevista posterior, esse mesmo policial deu nome a essa ação: “suicidas de combate”. 13 Destacamento de Polícia Ofensiva. 23 há representantes da PM nesse tipo de funeral. Por fim, os familiares de policiais suicidas não recebem as mesmas gratificações e benefícios de policiais que morreram de outras formas. Além disso, são obrigados a arcar com todas as despesas do sepultamento de seus entes, sendo que não é permitido o enterro do corpo do suicida em mesmo solo que os demais policiais. Como consequência, policiais confidenciaram que é uma prática entre eles, no momento da averiguação de um caso de suicídio policial, forjarem um assassinato ou um acidente para que a família do PM morto não sofra com as sanções mencionadas. Seria essa prática uma forma de resistência? Importante notar que, como é uma praxe forjar os suicídios de colegas policiais para que suas famílias não sejam prejudicadas, existe, por conseguinte, a questão da subnotificação dos casos de suicídio. Como há uma falsa baixa incidência observada nos dados oficiais, não são percebidas como urgentes as ações de prevenção do suicídio no meio policial. Se por um lado, nessa situação os familiares dos policiais suicidas deixam de ser prejudicados, de certa forma, não há grande respaldo dos dados indicando a importância das ações preventivas na PMERJ. Como a concepção de morte é construída dentro da polícia? No discurso dos policiais e familiares há quase que uma naturalização da morte por homicídio ou acidente, como parte da rotina da polícia, como algo esperado. O suicídio, ao contrário, produz estranhamento. O suicídio provoca um questionamento sobre a morte do policial; era comum que os entrevistados fizessem reflexões após o suicídio de um colega, até mesmo quando não havia proximidade entre eles. Quanto às famílias, muitas das vezes, a reação era de negação, preferiam acreditar que a pessoa foi assassinada, enquanto outras comentavam com ressentimento sobre o dia em que o familiar cometeu “aquela besteira”. Durante a pesquisa “Suicídio e Risco Ocupacional: O caso da Polícia Militar carioca” houve muitas desistências e recusas de entrevistas com familiares de policiais que cometeram o suicídio, foi um desafio enorme entrar em contato com essas famílias. Como questiona Bicalho (2005), em relação ao fazer/ser policial: “Como passamos a pensar? Como passamos a fazer? Como passamos a dizer? Como tais subjetividades se constroem e se organizam?” (p.19-20). Essas questões povoavam o meu olhar no trabalho de campo durante a pesquisa sociológica sobre suicídio policial e me faziam pensar em como as subjetividades dos policiais eram construídas em suas práticas e em seu cotidiano, e de que forma isso afetava a sua maneira de perceber o fenômeno do suicídio. 24 2 – A POLÍCIA MILITAR NO RIO DE JANEIRO: POLÍCIA E POLÍTICA A Psicologia Policial e das Forças Armadas é uma vertente da Psicologia Jurídica pouco conhecida no Brasil, e, da mesma forma, a produção acadêmica sobre essa área de atuação é notavelmente reduzida. De modo geral, o trabalho do psicólogo em instituições policiais concentra-se na seleção dos aprovados em concursos públicos, em ministrar aulas de Direitos Humanos e no atendimento clínico ao policial e seus familiares. Ou, de acordo com França (2004), as atribuições do psicólogo policial/militar resumem-se em: “treinamento e formação básica em Psicologia Policial, avaliação pericial em instituição militar, implantação do curso de direitos humanos para policiais civis e militares” (p.7). Proponho com este capítulo uma maior aproximação do campo, buscando compreender as imbricações entre a instituição polícia, o contexto político a ela relacionado e o fenômeno do suicídio entre policiais militares. De forma alguma intenciono esgotar as possibilidades do campo ou atribuir uma relação causal direta entre os fenômenos, mas lançar luz a acontecimentos que envolvem a história da polícia enquanto instituição consolidada e o cenário político, econômico e social a ela atrelado. Entendendo que o suicídio, inquestionavelmente, trata-se de um fenômeno multifacetado e de grande complexidade, a questão central que norteia esse trabalho é: O que as mortes voluntárias de policiais militares do Rio de Janeiro denunciam? É com base na crença de que todas as formas de mortes numa sociedade dizem algo sobre ela, que alicerçamos as bases deste estudo. 2.1 – Polícia e política: a construção de um cataclismo “Há de se salientar que no ano de 1995, quando o índice de suicídios na PMERJ foi recorde, foi marcado por uma grande transição de Comando e política governamental. Como dito anteriormente as mudanças de governo, já são marcadas por um aumento no número de suicídios, porém esta em especial marcou grandes transformações, o 1º ano do Governo Marcelo Alencar, marcou a transição de um Comandante Geral (CEL PM CERQUEIRA) com formação acadêmica em Filosofia e Psicologia, com uma visão voltada aos Direitos Humanos e a saúde física e mental do Policial 25 Militar, para uma Política Militarista, Comandada pelo General do Exército Brasileiro Nilton Cerqueira, na figura de Secretário de Segurança, onde houve o advento da gratificação faroeste e a política governamental de estimular os confrontos armados, culminando ainda com o ‘enfraquecimento’ do projeto RENASCER14 ” (Moraes, 2007:58). Parte de um trabalho sobre suicídio elaborado por um membro da Polícia Militar do Rio de Janeiro, esse trecho nos apresenta uma série de elementos bons para pensar. Nos fala de uma conjuntura entre Estado e instituição-polícia que afeta diretamente a corporação no que concerne às estatísticas de suicídio. O autor relata que as mudanças de governo são marcadas por um aumento nas incidências de mortes voluntárias de policiais militares, especialmente agravadas no ano de 1995 por uma mudança drástica no comando da PMERJ. Na perspectiva do autor, é provável que a cada mudança haja um aumento do nível de estresse entre os policiais relacionado às incertezas quanto à política de Segurança Pública que será empregada e quanto a questões salariais. O autor ressalta, ainda, que no quadriênio 1995/1998, a política governamental adotada foi a de “guerra ao crime organizado” e encorajamento ao “confronto armado”, incentivado pela gratificação chamada “faroeste” (Moraes, 2007:57). Em contraposição ao período supracitado, entre 1983 e 1998, em mandatos do governador Leonel Brizola e comando do Gen. PM Cerqueira, verificou-se o menor número de policiais vitimados (Moraes, 2007). Essas questões inevitavelmente nos remetem à imbricação entre polícia e política. Foucault (2012) nos conta que entre os séculos XVI e XVIII, desenvolveu-se uma série de tratados não mais em forma de conselhos aos príncipes, mas relativos à arte de governar. O problema do governo aparece como governo de si mesmo: “o problema de como ser governado, por quem, até que ponto, com qual objetivo, com que método, etc. Problemática geral do governo em geral” (p.408). As práticas de governar apresentam-se como múltiplas, uma vez que vários personagens poderiam governar: o pai de família, o pedagogo, o professor. Contudo, todas as 14 O Projeto Renascer foi criado em 1992, com o intuito de recuperar policiais dependentes de álcool e outras substâncias químicas. A PMERJ foi a primeira instituiçãomilitar no país a adotar um projeto nesse sentido, cujas incidências do uso e abuso e álcool e outras drogas costumam ser preocupantes. “Segundo o Major PM Médico Jomar Rolland Braga Filho, responsável pelo Projeto RENASCER, no ano de 1997, o problema de alcoolismo em nossa Corporação, representava no referido ano, cerca de 10% de todo o efetivo (ativo e inativo)” (Moraes, 2007:23). 26 formas de governo concentravam-se dentro do Estado. Nesse contexto, o poder de polícia apresenta-se, com um sentido radicalmente diferente dos dias de hoje, como fundamental à arte de governar. A polícia representava “o conjunto dos meios pelos quais é possível fazer as forças do estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo a boa ordem desse Estado” (Foucault, 2008b:421). Quatro seriam os objetos da polícia: a quantidade de cidadãos; as necessidades da vida; o problema da saúde; e a circulação das mercadorias. O problema da saúde era central em uma lógica que operava na produção de homens ativos, que pudessem ocupar-se. Essa seria a lógica do mercantilismo: o maior número de homens trabalhando pelo menor salário possível. Em síntese, o objeto da polícia seria o bom uso das forças do Estado. Para tanto, a estatística torna-se um elemento fundamental: o saber do Estado sobre o Estado, relativo à população, aos recursos naturais, ao exército, à produção, ao comércio, etc. A boa qualidade do Estado dependia da boa qualidade dos homens que eram elementos desse Estado. Dessa forma, o conjunto de controles e de decisões tinham como objeto os próprios homens. Interessava ao Estado a utilidade desses homens, ou seja, a sua atividade ou ocupação. A partir do século XVII passou-se a considerar o número de habitantes em relação ao tamanho do território. Um Estado forte dependia da força de seus habitantes. Portanto, os homens deveriam ser numerosos, úteis economicamente e dóceis politicamente. Governar um Estado significará portanto estabelecer a economia no nível geral do Estado, isto é, ter em relação aos habitantes, às riquezas, aos comportamentos individuais e coletivos, uma forma de vigilância, de controle tão atenta quanto a do pai de família (Foucault, 2012:413). Na governamentalidade contemporânea se dá o nascimento da relação entre o poder, o saber, o governo e a ciência. Desenvolver-se-á saberes como a demografia, a estatística, a geografia, a medicina social, entre outros, para dar conta do problema da população. Os elementos da nova governamentalidade seriam a sociedade, a economia, a população e a liberdade (Foucault, 2008b). Uma nova governamentalidade nasce a partir dos economistas: a população deve ser numerosa, trabalhar e ganhar não mais o mínimo possível, conforme a lógica anterior, mas o suficiente para consumir. A governamentalidade dos economistas introduziria, na visão de Foucault, traços fundamentais da governamentalidade contemporânea. Passa-se a regular o governo não mais pela verdade, na qual deveria consistir a sabedoria do soberano, mas a 27 regulá-lo pela racionalidade, através do cálculo das forças, das riquezas, dos fatores de poder. Ou seja, o princípio de regulagem seria a racionalidade dos governados e não mais pela racionalidade do indivíduo soberano (Foucault, 2008a). O objetivo básico do poder seria “gerir a vida dos homens, controlá-los em suas ações para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades” (Foucault, 2012:20). Questões econômicas perpassam a ação suicida ao longo da história da humanidade. Ribeiro (s.d.) aponta que os escravos eram proibidos de tirar a própria vida, em razão do prejuízo que causariam aos seus senhores. Os soldados também não poderiam suicidar-se, por este ato enfraquecer o exército: “o suicídio equivalia à deserção, e o soldado que não lograsse matar-se, ele próprio (no que hoje chamaríamos de ‘tentativa’) era morto, pois essa a pena para o desertor!”. Todas essas questões nos fazem refletir sobre as condições de possibilidades que permitiram o nascimento da instituição-polícia e em que contextos ele se deu. A seguir, será realizado um recorte sobre o cenário político do Rio de Janeiro e suas relações com as políticas de Segurança Pública, e, por fim, uma breve passagem pela história da Polícia Militar no Rio de Janeiro. 2.2 – De que Rio de Janeiro estamos falando? Historicamente, a cidade do Rio de Janeiro vive sob um regime que se aproxima fielmente a um Estado de Exceção, característico de um regime autoritário, distanciando-se do Estado Democrático de Direito, anunciado pela Constituição Federal de 1988. O Estado de Exceção seria a resposta imediata do poder estatal aos conflitos internos mais extremos (Aganben, 2004). No caso do Rio de Janeiro, esse conflito seria representado pelo tráfico de drogas nas favelas. Sob essa justificativa, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro viola direitos, invade domicílios, tortura, assassina, e tudo sob o olhar complacente de parte da sociedade. Batista (2003) nos conta que, em 1994, fabricou-se no Rio de Janeiro uma “crise de segurança pública”. A partir de um arrastão realizado por meninos pretos e pobres no caminho 28 à Zona Sul carioca no ano anterior, o medo foi instaurado na população. As grandes mídias alardeavam diariamente que o caos estava declarado e que algo deveria ser feito. De acordo com a autora, a disseminação do medo está sempre associada à chegada ao poder pelas forças populares, o que se deu na Ditadura Militar e em vários outros momentos históricos15 O resultado concreto da vitória do pacto sinistro . Nesse caso específico, em 1996, culminou na derrota da então candidata do grupo popular à eleição municipal, Benedita da Silva para um candidato conservador (Luiz Paulo Conde). Além da vitória das forças conservadoras nas eleições, foi criada a Operação Rio, um convênio entre Estado e Governo Federal, com medidas de segurança para conter a violência. O foco principal das operações era o combate ao tráfico de drogas e de armas, nelas as Forças Armadas ocupavam as ruas e faziam incursões pelas favelas. Diz a autora: 16 Anos mais tarde, em novembro de 2010, sob a “ameaça aterradora” do tráfico nas favelas e com o apoio do Governo Federal, o Complexo de Favelas do Alemão foi ocupado pela Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Federal e Forças Armadas, com 24 horas de cobertura midiática e grande apoio da população. Na mesma época, estava no auge o então herói nacional Capitão Nascimento, a personagem do policial do BOPE, do filme Tropa de Elite. Destaque para os aplausos efusivos nos cinemas durante as cenas de tortura aos bandidos na estreia do filme Tropa de Elite, em 2007, e entusiasmo da plateia em 2010, nas cenas de tortura a políticos corruptos no filme Tropa de Elite 2: O Inimigo agora é Outro. é uma política econômica de exclusão (desemprego, fim de direitos trabalhistas etc.) e uma política de segurança pública que faz corar os saudosistas dos anos setenta: extermínio, opressão policial contra marginalizados do tipo camelôs e flanelinhas, perseguição a consumidores de drogas etc.. (Batista, 2003:20). A imagem de cada traficante preso que os grandes veículos anunciavam lembrava o espetáculo do suplício descrito por Foucault (2009) no livro “Vigiar e Punir” no que diz respeito à exposição do criminoso. Em alguns casos, os policiais seguravam a cabeça do traficante em direção às câmeras de televisão, impedindo que ele pudesse esconder o próprio rosto. Uma cena marcante foi a de um homem que, ao ser detido, se urinou. As câmeras focalizavam a bermuda manchada de urina e repetiam a imagem incessantemente. A 15 Impossível não recordar a campanha em apoio ao candidato José Serra, realizada pela atriz ReginaDuarte, em 2002, que dizia incontáveis vezes: “Eu tenho medo”. A atriz dizia ter medo de perder toda a estabilidade que havia sido conquistada pelo governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso, com dois mandatos sucessivos, e temia pela volta da inflação “desenfreada”. Imagens capturadas disponíveis em: < https://www.youtube.com/watch?v=jzdJ39Sf8IM>. 16 A autora nomeia de “pacto sinistro” a união entre as forças conservadoras e a grande mídia no Rio de Janeiro. 29 população carioca sentia-se segura e satisfeita, a ponto de reeleger seus representantes, cujo carro-chefe seria a Segurança Pública. Em 2007, no ano de lançamento do filme Tropa de Elite, o então governador Sérgio Cabral concedeu uma entrevista afirmando que as taxas de fertilidade de mães faveladas seriam uma “fábrica de produzir marginal”, e por isso, defenderia o aborto como forma de “política pública” para “conter a violência”17 "Não tenho a menor dúvida de que o aborto [como política pública] pode conter a violência. Eu particularmente não sou a favor do aborto", declarou ontem em encontro de agentes de viagem na Barra da Tijuca. De acordo com Cabral, parte das mães moradoras de áreas carentes "estão produzindo crianças, sem estrutura, sem conforto familiar e material". : "Sou favorável ao direito da mulher de interromper uma gravidez indesejada. Sou cristão, católico, mas que visão é essa? Esses atrasos são muito graves. Não vejo a classe política discutir isso. Fico muito aflito. Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal. O Estado não dá conta. Não tem oferta da rede pública para que essas meninas possam interromper a gravidez. Isso é uma maluquice só". As ações entre estado e município do Rio de Janeiro se alinhavam na mesma direção. Abaixo a descrição da “Operação Choque de Ordem” no portal da Prefeitura do Rio de Janeiro18 Um fim a desordem urbana. , lançada em 2009: A desordem urbana é o grande catalisador da sensação de insegurança pública e a geradora das condições propiciadoras à prática de crimes, de forma geral. Como uma coisa leva a outra, essas situações banem as pessoas e os bons princípios das ruas, contribuindo para a degeneração Com o objetivo de pôr um fim à , desocupação desses logradouros e a redução das atividades econômicas. desordem urbana, combater os pequenos delitos nos principais corredores, contribuir decisivamente para a melhoria da qualidade de vida em nossa Cidade, foi criada a Operação Choque de Ordem. São operações realizadas pela recém criada Secretaria de Ordem Pública, que em um ano de existência vem conseguindo devolver à ordem à cidade19 . Em pleno século XXI, argumentos eugênicos e higienistas são evocados por representantes do poder público com total aceitação popular. Coimbra (2001:86) comenta o movimento eugênico adotado pelo darwinismo social na Europa em fins do século XIX: 17 Cabral apoia aborto e diz que favela é fábrica de marginal. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2510200701.htm>. Acesso em: 10 ago 2013. 18 Prefeitura do Rio de Janeiro. Choque de Ordem. Disponível em: < http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?article-id=87137 >. Acesso em: 24 ago 2013. 19 Meus grifos. http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?article-id=87137� 30 Conceitos como ‘prole malsã’, ‘herança degenerativa’, ‘degenerescência da espécie’, ‘taras hereditárias’, ‘inferiorização da prole’, ‘procriação defeituosa’, ‘raça pura’, ‘embranquecimento’, ‘aperfeiçoamento da espécie humana’, ‘purificação’ são comuns nos tratados de medicina, psiquiatria, antropologia e na jurisprudência do período que pregam, inclusive, a esterilização dos chamados ‘degenerados’ como profilaxia para os males sociais20 A socióloga Vera Malaguti Batista comenta as medidas adotadas pelos governantes do Rio de Janeiro: . Internação compulsória de usuários de crack defendido pelo presidente da OAB em nome da Saúde Pública, evocando o argumento higienista, enquanto o Conselho Regional de Psicologia e o Conselho Regional de Serviço Social protegendo os direitos constitucionais. Naturalização do crack, naturalização da ocupação, naturalização da matança do BOPE, a naturalização da caveira. Resistência à truculência policial, naturalização ao aplauso (através do filme Tropa de Elite). Isso está se expandindo para a área de saúde pública21 O deputado estadual Marcelo Freixo em debate sobre o filme Hannah Arendt . 22 faz o seguinte comentário: “A gente não fez a transição do regime democrático no âmbito da segurança pública. Polícia autoritária que continua em busca do inimigo interno, da eliminação do inimigo e da manutenção da ordem”. O deputado ilustrou sua fala com duas entrevistas concedidas por representantes da segurança pública do Rio de Janeiro. A primeira diz respeito ao secretário de segurança pública José Mariano Beltrame ao Jornal O Dia: “A gente nunca tinha enfrentado 300 mil pessoas nas ruas”. Em seguida, a fala do ex- comandante da PMERJ, Erir Ribeiro Costa Filho: “Quando a gente tratava de uma manifestação sindical, era fácil. Quando a gente tratava de uma manifestação partidária, era fácil. Quando a gente trata desse movimento, é muito difícil porque eu não sei quem é o inimigo”23 O que teria acontecido após anos sob o mesmo regime autoritário do mesmo Governo de Estado que causou o repúdio da população? Como que por encanto os desaparecidos em apreensões policiais nas favelas passaram a ter visibilidade, através de campanhas como “Onde está o Amarildo?”, pedreiro morador da favela da Rocinha, que desapareceu após ser abordado por um policial da UPP . 24 20 Meus grifos. , e “Desaparecidos da Democracia: Pessoas reais, vítimas invisíveis”, organizada pela Ordem dos Advogados do Brasil/RJ. A truculência habitual da 21 BATISTA, Vera Malaguti. Entrevista ao Jornal “A Nova Democracia”. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=peQ2F_DfK1w>. Acesso em: 20 ago 2013. 22 FREIXO, Marcelo. Debate: “Brasil hoje, a atualidade da ‘Banalidade do Mal’”. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=5pW1fPU-6oo>. Acesso em: 17 ago 2013. 23 Meus grifos. 24 Unidade de Polícia Pacificadora. http://www.youtube.com/watch?v=peQ2F_DfK1w� http://www.youtube.com/watch?v=5pW1fPU-6oo� 31 polícia tornou-se algo abominável e o militarismo inadmissível em um Estado Democrático de Direito. Luiz Antônio Machado da Silva, sociólogo e professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos, em uma entrevista25 “Boa parte da revolta coletiva voltou-se contra ‘as polícias e o uso que os governos estaduais fazem delas’, entre outras questões. O que a classe média, que é o segmento mais representado nas manifestações, demanda não é exatamente uma ordem social igualitária e democrática; é, mais que isso, a manutenção da proteção policial à liberdade de ação e de ir e vir a que está acostumada. No fundo, a classe média demanda menos institucionalidade para si própria, não para toda a sociedade”. diz que a classe média é a mais representada nas manifestações: De acordo com o professor, “A classe média, de um modo geral, não admite tornar-se objeto da secular violência policial, como foi visto durante a reação aos excessos da ditadura”. Nesse cenário, balas de borracha, gás lacrimogêneo e spray de pimenta durante as manifestações são mais escandalosos do que as incontáveis mortes em favelas cariocas. Até mesmo durante as manifestações o tratamento era diferenciado de acordo com a localização dos protestos. Na Favela da Maré dez pessoas foram mortas durante as manifestações. Nas áreas pobres, a repressão policialera aparelhada com fuzis e blindados. Para Marcelo Freixo, “O inimigo é quem sobrou em uma sociedade de mercado, não é mais quem enfrenta o Estado. O Estado opera de maneira sistematizada com a criminalização da pobreza, de forma banalizada entre nós”26 (...) no seio desta sociedade tão civilizada existem ‘verdadeiras variedades’ (...) que não possuem nem a inteligência do dever, nem o sentimento da moralidade dos atos, e cujo espírito não é suscetível de ser esclarecido ou mesmo consolado por qualquer ideia de ordem religiosa. Qualquer uma destas variedades foram designadas sob o justo título de . O inimigo continua sendo as chamadas “classes perigosas”, tal como descrito no Tratado das Degenerescências (Borel Apud Coimbra, 2001:88): classes perigosas 25 “O efeito bumerangue da repressão policial – quatro perguntas para Luiz Antonio Machado da Silva”. Disponível em: (...) constituindo para a sociedade um estado de perigo permanente. <http://www.blogdoims.com.br/ims/o-efeito-bumerangue-da-repressao-policial-%E2%80%93-quatro-perguntas- para-luiz-antonio-machado-da-silva/>. Acesso em: 18 ago 2013. 26 Ibid. http://www.blogdoims.com.br/ims/o-efeito-bumerangue-da-repressao-policial-%E2%80%93-quatro-perguntas-para-luiz-antonio-machado-da-silva/� http://www.blogdoims.com.br/ims/o-efeito-bumerangue-da-repressao-policial-%E2%80%93-quatro-perguntas-para-luiz-antonio-machado-da-silva/� 32 Freixo nos diz que “Não é a polícia que está militarizada. É o Estado que está militarizado. É a relação entre Estado e sociedade que está militarizada. Principalmente nos territórios mais pobres, mas de alguma maneira isso aflora pra toda a cidade”27 Em um regime de repressão no qual prevalece a crença no inimigo interno torna-se inviável a proteção da dignidade da pessoa humana em um Estado realmente de Direito. De acordo com Moraes: . (...) é na esfera política que, nos Estados democráticos, são reconhecidos os valores comuns da sociedade e estabelecidos os princípios fundamentais do ordenamento. O direito constitucional representa atualmente o conjunto de valores sobre os quais se constrói, na atualidade, o pacto de convivência coletiva (...). O direito é justamente isto, uma força de transformação da realidade. É a sua tarefa ‘civilizatória’, reconhecida através de uma intrínseca função promocional, a par da tradicional função repressiva, mantenedora do status quo (2010:75). Esta é somente uma breve exposição do cenário político e social em que opera a lógica do inimigo interno, exclusão, violência e quadro de guerra vivenciado cotidianamente por profissionais da Segurança Pública do Rio de Janeiro, e mais diretamente, por membros da Polícia Militar. A seguir uma história concisa do nascimento da instituição-polícia. 2.3 – Breve história da Polícia Militar no Rio de Janeiro “Sem manter as massas em seu devido lugar, desempenhando papel servil ou subalterno, ou pelo menos obedientes e respeitosas e não atrapalhando, não podia haver elite” (Holloway, 1997:107) A história da polícia do Rio de Janeiro, na visão de Holloway (1997), acontece por meio da dialética de repressão e resistência. O autor traz à cena a conjuntura política e social do Rio de Janeiro no século XIX (1808-1889), período de independência política, formação do estado e formação da nação. Relata acontecimentos ocorridos na transição de um controle exercido através de hierarquias privadas para o poder exercido por meio das instituições públicas. Tempo esse marcado pela disseminação da ideologia liberal, que se destinava a aplicar mecanismos impessoais de opressão às grandes massas. 27 Ibid. 33 As instituições policiais do tipo moderno surgiram na passagem do século XVIII para o século XIX. Nessa época, houve a transição da vontade do soberano para meios judiciais; da prática do suplício para o encarceramento dos ditos criminosos. Nesse contexto, a elite política brasileira seria a maior interessada no policiamento da capital da nação, cujas ameaças eram representadas pelas não-elites, os analfabetos e os marginalizados. Com a criação da polícia moderna, o Estado tomou para si a incumbência de proteger a propriedade, passando a exercer controle sobre o comportamento público. A polícia do Rio de Janeiro, no início de sua história, teve a intenção de adotar modelos da Europa e dos Estados Unidos. Os juízes de paz tomavam como exemplo o modelo da Inglaterra, a Guarda Nacional, da França, e os policiais civis, da Inglaterra e dos Estados Unidos. Por fim, essas instituições copiadas “acabaram sendo rejeitadas em favor de organizações e procedimentos desenvolvidos internamente” (Ibid., p.22). No Rio de Janeiro, o policiamento regular começou em 1808. Nesse contexto, as opiniões sobre a polícia dividiam-se: seus defensores viam a força policial como necessária para a execução da ordem e disciplina da população, enquanto que os seus críticos a consideravam como o braço autoritário e repressor do Estado (Ibid., p.23). Holloway traz à luz vestígios da gênese da realidade brasileira atual, cuja formação se deu por meio de um processo incompleto de modernização. O autor ressalta que, apesar de ser um período de difusão da ideologia liberal, havia contradições: “(...) o cidadão no Brasil está sujeito a leis impessoais e ao poder brutal da polícia, que o discrimina sistematicamente e o explora impiedosamente, tornando-o um ‘igual para baixo’, em clara perversão dos conceitos liberais” (Ibid., p.23). Também de forma contraditória, o sistema policial justificava suas práticas por meio de leis da época, mas muitas de suas ações eram realizadas sem nenhuma base legal. O autor cita o caso da capoeira, que somente se tornou ilegal em 1890, mas seu exercício já era punido tempos antes. À medida que algumas ações não se fundamentavam em leis, outras violavam as próprias leis: “A mesma hierarquia de instituições políticas, judiciais e policiais que prendia e punia os capoeiras, sem qualquer fundamento legal, favorecia a violação da lei que proibia o tráfico transatlântico de escravos” (Ibid., p.25). Não é difícil perceber que a seletividade penal sempre fez parte da história da instituição policial no Rio de Janeiro. Eram explícitos os alvos das ações policiais: 34 (...) a maior parte do tempo e das energias do sistema policial era empregada na repressão de comportamentos desse tipo, que incluíam vadiagem, mendicância, violação do toque de recolher, desacato à autoridade, insulto verbal, desordem em geral e embriaguez pública (Ibid., p.25). O autor ressalta que muitas dessas pessoas nunca haviam roubado ou matado, mas “apanhavam com o mesmo cassetete e eram jogados na mesma prisão” (Ibid., p26). Segundo Holloway, a criação de uma forma policial moderna foi fundamental para a transição do país de colônia à nação. No século XVIII, no Brasil colonial, Somente juízes reais podiam reunir e avaliar provas, decidindo quais eram relevantes e quais deviam ser excluídas, e a tortura judicial era um instrumento importante para extrair confissões. Os julgamentos punham juiz e promotor contra o acusado, que não tinha direitos; os processos podiam ser conduzidos em sigilo, se o juiz julgasse conveniente. E as punições legais incluíam mutilação física, marcação com ferro em brasa, esquartejamento e açoite (Ibid., p.44). A vigilância ficava a cargo dos “guardas”, vigilantes desarmados, contratados pelo conselho municipal da cidade. Os guardas faziam a ronda, e os “quadrilheiros”, designados pelos juízes, faziam a inspeção nos bairros. Nessa época, somente o Exército era profissional, portanto, quando era necessária a força armada, o juiz poderia convocar destacamentos de tropas do Exército, unidades de milícias ou reservas, denominadas ordenanças. As milícias