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Uma editora integrante do GEN | Grupo Editorial Nacional Reservados todos os direitos. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição na internet ou outros), sem permissão expressa da editora. Travessa do Ouvidor, 11 Rio de Janeiro, RJ − CEP 20040-040 Tels.: 21-3543-0770 / 11-5080-0770 Fax: 21-3543-0896 faleconosco@grupogen.com.br www.grupogen.com.br Designer de capa: Rejane Megale Figueiredo Imagem de capa: ©Archive PL / Alamy Banco de imagens Produção digital: Ozone CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ R613d 2. ed. Rodrigues Jr., Otavio Luiz Direito civil contemporâneo : estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais / Otavio Luiz Rodrigues Jr. - 2. ed., rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2019. ; 23 cm. Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-309-8737-4 1. Direito Civil - Brasil. 2. Direito Constitucional – Brasil. 3. Direitos fundamentais – Brasil. I. Título. 19-57429 CDU: 347(81) Vanessa Mafra Xavier Salgado - Bibliotecária - CRB-7/6644 CAPÍTULO QUARTO A “DISTINÇÃO SISTEMÁTICA”: PERMANÊNCIA, UTILIDADE E FUNDAMENTOS SUMÁRIO. § 19. Autonomia e diferenciação do Direito Priva do: entre a permanência e a utilidade nas relações jurídicas contemporâneas. 19.1. A organização da jurisdição e a dife renciação específica. 19.2. A “distinção sistemática” e a forma ção jurídica. 19.3. A “distinção sistemática” no universo das relações privadas. § 20. A recodificação do Direito Civil e os espaços normativos do Direito Privado. § 21. Fatores culturais, teóricos, práticos e significativoideológicos. § 22. Objeções e fundamentos contemporâneos para a manutenção da “distin ção sistemática”. § 23. Conclusões parciais da Primeira Parte. §19. 19.1. AUTONOMIA E DIFERENCIAÇÃO DO DIREITO PRIVADO: ENTRE A PERMANÊNCIA E A UTILIDADE NAS RELAÇÕES JURÍDICAS CONTEMPORÂNEAS A organização da jurisdição e a diferenciação específica Em 2016, o STJ julgou 8.932 processos na Primeira Seção, responsável pelas matérias de Direito Público, excluídas as de caráter criminal. A Segunda Seção, competente para as matérias de Direito Privado, decidiu e julgou 17.510 processos. O número de julgamentos em Direito Penal, matéria da Terceira Seção, foi de 458, entre colegiados e monocráticos.377 Esses dados refletem os resultados das estatísticas sobre a Alemanha, apresentadas por Franz Bydlinski e que demonstravam a desproporção entre o número de questões judiciais de Direito Privado (muito maiores) e de Direito Público.378 A estatística brasileira tem um diferencial: a responsabilidade do Estado como um dos grandes litigantes da justiça do país, segundo dados do CNJ de 2011.379 Ainda assim, os conflitos privados sobrexcedem seus equivalentes públicos. As Leis de Organização Judiciária, de modo usual, dividem suas unidades em varas cíveis, de família e sucessões, da infância e adolescência, falimentares, de execuções fiscais, de fazenda pública, criminais e de execuções penais. Em alguns Estados, há uma maior especialização interna, como varas empresariais, de conflitos fundiários, ambientais, de acidentes de trânsito, previdenciárias, de crime organizado ou até mesmo em questões de saúde. Sempre há novas demandas por especialização, em nome de uma maior celeridade ou de um julgamento qualitativamente melhor, dado que o magistrado manteria o foco em assuntos muito específicos, favorecendo o conhecimento verticalizado dos temas afeitos a sua vara. É verdade que também se podem identificar efeitos colaterais, como a criação de quistos ideológicos em relação a determinadas matérias que foram objeto de especialização. A própria matriz externa da justiça brasileira é influenciada por essas divisões. A Justiça Federal é predominantemente voltada para questões de 19.2. Direito Público. A Justiça Estadual é mais abrangente em termos de competência material, contudo, há nítida preponderância de questões de Direito Privado. As Justiças do Trabalho, Militar da União (e dos Estados, quando neles existente) e Eleitoral são voltadas, em caráter quase universal, a conflitos disciplinados pelo Direito Privado ou pelo Direito Público. As diferenciações específicas firmadas na Constituição, nas leis processuais e de organização judiciária tiveram impacto na especialização profissional no âmbito do Direito. As atividades desenvolvidas por advogados, juízes, membros do Ministério Público, registradores, notários e advogados públicos terminaram por se preordenar a partir de tais escolhas legislativas, que levaram em conta a “grande dicotomia”. Evidentemente que essa hipótese – a correlação entre a divisão jurisdicional e as diferenciações de habilidades e competências profissionais – não se baseia em explicações sociológicas ou antropológicas, dado não ser este o objeto de uma tese de Direito. Observados os limites de uma interpretação jurídica, a hipótese não é susceptível de escrutínio. As atribuições profissionais, marcadas por divisões de competência material, exigiram pessoas com conhecimentos especializados em Direito Público e Direito Privado, ainda que, em muitos dos casos, houvesse inúmeros pontos de contato entre essas áreas. Esses indivíduos, seja para se habilitarem às provas de seleção profissional, seja para bem desempenharem essas atribuições, ainda adquiriram ou conservaram conhecimentos compartimentalizados, posto que muitos possuam habilidades interdisciplinares. A educação dos juristas, portanto, é um campo a ser explorado autonomamente. A “distinção sistemática” e a formação jurídica As referidas especializações criaram nichos profissionais no âmbito privado, a se observar pelas demandas dos clientes. As matrizes curriculares das faculdades de Direito e suas próprias estruturas administrativas mantiveram essa “distinção sistemática”, com disciplinas ou departamentos de Direito Público e de Direito Privado, em suas subdivisões clássicas. 19.3. Essa é uma tradição que remonta às origens das faculdades de Direito no Brasil, quando o imperador D. Pedro I, por lei de 11 de agosto de 1827, criou os cursos de “Ciências Jurídicas e Sociais” nas cidades de São Paulo e Olinda, com 5 anos de duração e divididos em 9 cadeiras. O Direito Público ocupava o primeiro e o segundo anos. O Direito Privado dividia o terceiro ano com o Direito Penal e o Direito Processual Penal. No quarto ano, figurava novamente Direito Civil, acompanhado do Direito Comercial Terrestre e Marítimo. No quinto e último ano, havia cadeiras de Economia Política e Direito Processual Civil.380 Essa matriz, inspirada nos Estatutos do Visconde da Cachoeira, manteve-se na estrutura provisória de1827 e depois no Estatuto de Regulamentação dos Cursos Jurídicos de 1831.381 Na Resolução CNE/CES 5/2018, documento que regula atualmente as diretrizes curriculares nacionais dos cursos jurídicos, encontram-se as disciplinas obrigatórias em seu art. 5o, inciso II, reservando-se espaços para as vinculadas ao Direito Privado e ao Direito Público.382 Mesmo Direitos mais recentes são agrupados nessas áreas, salvo quando postos em grupos híbridos, metajurídicos ou metadogmáticos. A “distinção sistemática” no universo das relações privadas Abstraindo-se o “direito nos tribunais”, o “direito dos professores” e o “direito dos profissionais jurídicos” e ocupando-se da realidade não judicializada, que é muito mais rica e próxima do que efetivamente ocorre na vida das pessoas, encontrar-se-ão idênticos padrões de diferenciação do Direito. Em uma sociedade capitalista, tanto a produção da vida imediata, a produção dos meios de existência, que compreende alimentos, habitação e instrumentos para tal fim, quanto a reprodução da vida imediata, a produção humana em si, a continuação da espécie, para se valer de categorias marxianas, dependem de vários atos que se podem enquadrar perfeitamente no conceito de “atos da vida civil”. O nascimento e a morte, fatos jurídicos em si considerados, produzem ou extinguem relações jurídico-privadas. Esses efeitos estão há tempos previstos na legislação civil brasileira, assim como na maior parte do mundo. De entre outras consequências, o nascimento: a) com vida, dá início à personalidade (art. 2o, CC/2002);383 b) com ou sem vida, demanda o registro público no ofício das pessoas naturais (art. 9o, inciso I, CC/2002, c/c arts. 50 e 53, Lei no 6.015/1973); c) cria o direito ao nome e o dever de sua atribuição (art. 54, Lei no 6.015/1973);384 d) com vida do herdeiro esperado, implicará ser-lhe “deferida a sucessão, com os frutos e rendimentos relativos à deixa, a partir da morte do testador” (art. 1.800, § 3o, CC/2002). A morte, por sua vez, além de outras hipóteses, implica: a) o fim da existência da pessoa natural (art. 6o, CC/2002), ressalvados alguns efeitos em relação aos direitos da personalidade (art. 12, parágrafo único, CC/2002);385 b) a extinção do contrato de prestação de serviços, se esta recair sobre qualquer das partes (art. 607);386 c) a supressão da ação paralisante sobre o direito ao benefício estipulado em contrato de seguro de vida; d) a liquidação da quota do sócio falecido, com as ressalvas dos incisos do art. 1028, CC/2002;387 e) a transferência do direito de superfície, em razão do falecimento do superficiário, a seus herdeiros (art. 1.372, caput, CC/2002); f) se do usufrutuário, a extinção do usufruto (art. 1.410); g) a extinção da sociedade conjugal (art. 1.571) e do casamento válido (art. 1.571, § 1o, CC/2002); h) dos pais ou do filho, a extinção do poder familiar (art. 1.635, CC/2002); i) a abertura da sucessão (art. 1.784, CC/2002).388 Todas essas situações desenvolvem-se no âmbito de um sistema normativo que se convencionou denominar, a depender do marco histórico escolhido (Roma, Alta Idade Média, Renascimento ou século XIX), de “sistema de Direito Privado”. Franz Bydlinski demonstra a razão pela qual o Direito Privado é tão ou mais significativo nos dias atuais do que no passado. Em seu entendimento, na verdade, por efeito de uma relativa melhoria do bem-estar econômico das gentes, pode-se até dizer que sua importância nunca foi tanta para milhões de pessoas.389 Antes de se passar à descrição de Bydlinski sobre o alcance inimaginável do Direito Privado na vida quotidiana atual, é preciso pôr ênfase em uma crítica que em geral é feita, mais particularmente, ao Direito Civil do século XIX e às respectivas codificações: era um Direito para classes produtoras e não para as classes proletárias, a se fazer recordação do livro do “catedrático socialista” Anton Menger von Wolfensgrün (1841-1906).390 Ou, nas palavras de Reinhard Zimmermann, “um mundo no qual a regulação de enxames de abelhas era vista como mais importante do que uma sobre as condições gerais dos contratos (ou cláusulas contratuais gerais)”, sendo que “o cidadão típico para o BGB não era o trabalhador fabril, mas antes o empresário endinheirado, o proprietário de terras ou o servidor público”.391 Sobre isso, parece que já é o suficiente. Não é necessário mais para se alimentar a imagem do século XIX como um ambiente de “excessos liberais”, embora todas essas descrições possam ser paradoxalmente localizadas em países agrários e atrasados economicamente, como foram o Brasil, a Áustria e a Alemanha, esta última só até a unificação em 1871 e o doloroso processo de industrialização maciça levado a efeito por Otto von Bismarck e, posteriormente, para fazer frente à corrida armamentista do final dos anos 1890.392 Se era esse o “século do Direito Privado”,393 os homens e as mulheres do Oitocentos tinham pouco o que fazer além de trabalhar (em linguagem marxista, produzir sua existência material) ou ter filhos (idem, reproduzir a existência humana). Os tempos de hoje cambiaram de tal modo essas questões, a ponto de os autores marxistas ou neomarxistas procurarem um lugar para o lazer e tentarem explicar a ocupação do tempo livre da classe trabalhadora, na medida em que este só seria possível com os excedentes de produção. Tais excedentes, ao menos na visão marxiana dos séculos XIX e XX, seriam apropriáveis exclusivamente pelas classes burguesas. Os seres humanos – e volte-se a Franz Bydlinski e sua elegante narrativa – iniciam sua vida profissional com a celebração de um contrato de trabalho (ressalvandose, é claro, a minoria que a começa sob o regime estatutário) ou com a constituição ou o gerenciamento de uma empresa, o que implica, no geral, celebrar-se um contrato de sociedade. A empresa é um centro de imputação de negócios da mais variada ordem e com múltiplas pessoas naturais ou jurídicas envolvidas. As pessoas “casam-se e têm filhos; alugam e compram um apartamento ou uma casa, móveis, carros ou máquinas”, tendo de conservá-los ou consertá-los. E para tudo isso, que é parte corriqueira de uma vida humana, seja em uma grande cidade ou em uma vila interiorana, às vezes, cele-bram-se contratos de mútuo para fazer frente à aquisição de bens e serviços aos quais não se teria acesso sem o recurso a tais expedientes creditícios.394 Não se esqueça das associações,395 que tanto podem servir para congregar os veteranos em países com tradições bélicas quanto os torcedores de um time de futebol, para os que não as possuem. No Brasil, até à vigência da Lei no 10.825, de 22 de dezembro de 2003, que alterou o art. 44, CC/2002, com a introdução de seu inciso IV e seu § 1o,396 igrejas e ordens religiosas haviam de se organizar como associações ou fundações. Desde então, pelos excessos intervencionistas no regime legal das associações, até por pressão das Igrejas, elas passaram a assumir a forma de “organizações religiosas”, permanecendo, a despeito disso, no sistema de Direito Privado.397 A vida moderna tem sido definida como a expressão de uma “sociedade de consumo”. No século XIX e início do século XX, o camponês da Alta Silésia ou das fazendas de café do interior de São Paulo teria muita sorte se conseguisse comprar e manter um par de sapatos para cada um de seus filhos assistirem às missas dominicais. Nos dias de hoje, porém, o trabalhador urbano ou rural, o profissional liberal ou o capitalista não mais se identificam por signos exteriores de classe, como as roupas, a linguagem ou o sotaque, o acesso a determinados “prazeres burgueses” como o esporte, os concertosmusicais ou as viagens.398 Na verdade, explica Ulrich Beck, a antiga diferenciação de “classe” é substituída por distintos “padrões de consumo”.399 No século XXI, um professor de fonética como a personagem Henry Higgins teria muita dificuldade em encontrar uma Eliza Doolittle, uma simples vendedora de flores, com sotaque característico da periferia de Londres, e transformá-la em uma dama da alta-roda, como Sir George Bernard Shaw fantasia em Pigmalião, sua peça de 1913, da qual resultou o filme My fair lady (1964). Dificilmente o professor encontraria uma mulher londrina envergonhada de seu sotaque e não faria muita diferença qual seu acento, caso ela tivesse (ou aparentasse ter) dinheiro. Não que as desigualdades sociais tenham diminuído sensivelmente, mas as relações de classe mudaram no sistema capitalista a ponto de mascarar as assimetrias profundas na distribuição de renda por meio de um acesso fácil ao crédito e ao consumo. A quantidade de contratos que um ser humano celebra diariamente é incomparável com qualquer outro período histórico. O agricultor, o pequeno comerciário, o fazendeiro, o militar e o sacerdote dos fins da Belle Époque nem sonhavam que seus descendentes precisariam contratar com tal intensidade um século depois da chegada dos cavaleiros do Apocalipse em 1914.400 Na atualidade, inúmeros são os contratos que se substituíram os tradicionais instrumentos particulares por tickets, correspondências eletrônicas, imagens na Internet ou por atos puramente mecânicos, reservando-se os instrumentos públicos para atos mais solenes e aparentemente representativos de objetos mais valiosos. Aparentemente porque milhões são negociados em bolsas de valores por meros atos mímicos (os gestos dos operadores bursáteis) ou toques em um computador. Quanto às formas mais simplificadas, nem por isso deixaram de imprimir nas pessoas o respeito aos contratos. Direitos da personalidade e seus reflexos patrimoniais também se sujeitaram ao ambiente negocial. Imagem, voz, criações literárias ou puramente artísticas cons-tituem-se na base de uma indústria de proporções mundiais, capaz de movimentar bilhões de divisas.401 O velho contrato de prestação de serviços, praticamente restrito a vínculos entre pessoas jurídicas ou a um círculo privilegiado de pessoas naturais, recobrou importância nas últimas décadas, seja pelo dramático processo de flexibilização das relações de trabalho, seja pelo surgimento de novos arranjos colaborativos (muitos deles meros biombos para uma exploração capitalista “tecnológica”) inerentes à 4a Revolução Industrial. No século XIX, as ferrovias transformaram os meios de transporte terrestre, que se mantiveram quase inalterados desde antes de Cristo. Na atualidade, as opções multiplicaram-se.402 Do carro, adquirido por um contrato de compra e venda com alienação fiduciária, aos ônibus, metrôs, aviões e navios. Desses transportes, decorrem uma série de danos, os quais se reproduziram em escala exponencial, a ponto de gerar câmbios profundos no Direito. As primícias ocorreram na jurisprudência, depois as mudanças vieram pela via legislativa, como o Decreto no 2.681, de 7 de dezembro de 1912, que regula a responsabilidade civil nas estradas de ferro. Por fim, deu-se a evolução na teoria do Direito Civil, com a sistematização da responsabilidade objetiva fundada no risco, posteriormente generalizada no art. 927, parágrafo único, CC/2002. A propriedade, mesmo extremamente limitada por restrições administrativas,403 ambientais ou tributárias, ainda é uma categoria central no sistema de Direito Privado. Os direitos vicinais apresentam novas externalidades ligadas à proteção ambiental. Em paralelo, ocorrem rápidas transformações no campo da organização horizontal das moradias, das novas formas condominiais e do compartilhamento do uso das coisas. A multipropriedade é um exemplo da força criativa da autonomia privada, que punha em causa, segundo parte da doutrina, a própria tipicidade dos direitos reais,404 até que a Lei no 13.777, de 20 de dezembro de 2018, instituísse o condomínio em multipropriedade, o que, na prática, significou sua positivação legislativa. A História do Direito Privado é plena de exemplos de negócios jurídicos concebidos no âmbito dos usos e das práticas do povo que foram tipificados legalmente após longo tempo de bem- sucedida experiência social. A junção dessas mudanças no perfil dos institutos com a chegada das novas tecnologias determinou o surgimento de um contrato de locação de espaços em propriedades urbanas, por meio eletrônico, conhecido internacionalmente pelo nome da empresa pioneira no setor (Airbnb). Alguém interessado em visitar uma cidade, por meio de seleção de ofertas em aplicativo da Internet, contrata por prazo determinado o compartilhamento de espaços na habitação de outrem, com ou sem direito a refeições e outras comodidades. Esse negócio eletrônico tem posto em causa a violação ou não de normas e posturas municipais, regras tributárias e até mesmo concorrenciais, dada a identidade parcial de objeto com os hotéis e a assimetria regulatória em favor do Airbnb. Em França, há uma tentativa de se reelaborar teoricamente os direitos de garantia, que se tornariam uma província autônoma dentro do Direito Civil, a ser aprovada a regulação proposta por Michel Grimaldi.405 Famílias são constituídas de formas inteiramente novas. O casamento fundado na legitimidade passou a coexistir com a união estável. Os pactos antenupciais, que eram exclusivamente dotados de conteúdo econômico, avançaram sobre questões morais.406 Preocupações anteriormente restritas a pessoas de alta renda são hoje comuns a nubentes de classe média, que se preocupam com a administração do patrimônio, o que tem levado ao crescimento na adoção do regime de separação convencional de bens. O Direito de Família passou a se interessar por temas como a reparação de danos por abandono afetivo407 e a violação de deveres conjugais.408 As holdings familiares surgem como forma alternativa de resolver problemas patrimoniais anteriormente limitados ao Direito de Família.409 A morte cada vez mais se dessacraliza e converte-se em algo a ser evitado a todo custo. Os cuidados com a saúde tornaram o esporte e a ginástica uma obsessão coletiva no final do século XX, algo que não conhece diferenças de classe. A privatização dos seguros-saúde substituiu a centralidade dos serviços públicos, mesmo para setores da classe trabalhadora. Embora não se tenha experimentado uma mudança sensível nos hábitos do povo brasileiro quanto ao testamento, o Direito das Sucessões voltou a ganhar vitalidade, especialmente na Europa, onde ele tem criado espaços comuns com o Direito Societário.410 A compra e venda de imóveis passou a se utilizar da morte para se calcular a depreciação de um bem e transformar o direito de propriedade em direito de usufruto. Em todas essas subdivisões do Direito Civil, surge a necessidade de proteção dos direitos no âmbito judicial. A posse turbada e a propriedade invadida demandam o recurso a meios processuais cabíveis. Atravessa-se rapidamente a ponte e chega-se ao Direito Público, mas é o Direito Civil quem fornece os elementos conceituais sobre esbulho, turbação e reivindicação. Os credores exercem suas pretensões em face dos devedores a partir de conceitos como mora e inadimplemento. As vítimas de delitos civis postulam em juízo a fim de obter reparações, pensionamentos ou cominações de caráter inibitório e preventivo. O fator tempo é determinante para o exercício dessas prerrogativas jurídicas. A prescrição ea decadência, dois institutos tipicamente civis, regulam essa matéria.411 A diferenciação de prazos prescricionais relativos ao Direito Público é objeto de centenas de decisões judiciais,412 que demarcam a incidência ou não do art. 1o do Decreto no 20.910, de 6 de janeiro de 1932, com o prazo quinquenal idêntico ao previsto no CC/1916, com a interrupção da prescrição limitada a uma única vez e sua nova fluência “passaria a ser da metade apenas daquele prazo”.413 A prescrição no Direito Tributário, embora conserve os elementos essenciais da prescrição no Direito Civil, apresenta notórias diferenças quanto a esta, em razão do regime jurídico publicístico ao qual está subordinada.414 §20. A RECODIFICAÇÃO DO DIREITO CIVIL E OS ESPAÇOS NORMATIVOS DO DIREITO PRIVADO Todos os exemplos aqui oferecidos dizem respeito a espaços típicos do Direito Privado e do Direito Civil, consideradas as fronteiras desenhadas pelos códigos oitocentistas e pelas codificações tardias. Em geral, salvo situações muito particulares como o Direito do Consumidor, não houve ampliação dos espaços normativos e sim dilatação ou transformação das hipóteses fáticas anteriormente coloridas por aquelas regras. O Direito Civil, com sua tradição histórico-romanística e sua condição de um produto da cultura e do humanismo, teve capacidade para se adaptar e oferecer soluções a novos problemas com base em institutos não tão modernos.415 Sob o aspecto estritamente normativo, uma distinção quanto ao modo de se organizarem as regras e os princípios de Direito Privado e de Direito Público também se mostra perceptível com alguma facilidade. O sistema de Direito Privado encontrou nas codificações dos séculos XIX, XX e XXI sua natural forma de expressão. Os vaticínios sobre o fim da “era das codificações”, originalmente encontrados na obra de Natalino Irti, mostraram-se falhos.416 Mesmo sob críticas severas, de catedráticos dos mais respeitados, que assinalavam a desnecessidade ou o caráter anacrônico do projeto que se converteria no CC/2002, o novo código terminou por se concretizar e hoje boa parte das restrições a ele foram substituídas por um discurso, às vezes, até efusivo.417 No Direito Comparado, nos últimos 40 anos,418 a codificação (especialmente nos países da Europa do Leste) e a recodificação419 mostraram sinais de fecundidade. A mera observação empírica serve para expor essa tendência, ao estilo dos seguintes novos códigos civis: a) Nepal (2017, em vigor desde 2018); b) Argentina (2015, que passou a tratar de matéria comercial); c) República Checa (em vigor desde 2014, aprovado em 2012, revogou quase uma centena de leis e recodificou o Direito Internacional Privado); d) Romênia (em vigor desde 2011, embora aprovado em 2009, que substituiu o Código Civil de 1865, o Código Comercial de 1887 e o Código de Família de 1954); e) Timor- Leste (2011); f) Rússia (2008, quando entrou em vigor a Parte IV, sobre propriedade intelectual, embora sua Parte I seja datada de 1994, em vigor em 1995); g) Brasil (2002); h) Lituânia (2000); i) Macau (1999); j) Quebec (1994, substituiu o Código Civil do Baixo Canadá, de 1865). Registrem-se ainda a anunciada elaboração de um código civil para a República Popular da China e os debates sobre a necessidade de um código civil para a Índia. As reformas dos códigos da Holanda (1992), da Alemanha (2002) e da França (2016) são exemplos da vitalidade do modelo de organização e sistematização das normas de Direito Civil na contemporaneidade.420 §21. FATORES CULTURAIS, TEÓRICOS, PRÁTICOS E significativo- ideológicos Os elementos descritivos e normativos apresentados neste § 21 correspondem, com maior ou menor simetria, aos fatores culturais, teóricos, práticos e significativoideológicos, desenvolvidos por António Menezes Cordeiro para comprovar o caráter sistemático da divisão entre Direito Público e Direito Privado.421 Os fatores culturais levam à recondução da normatividade privada ao modelo dos códigos, diferentemente do que se deu no âmbito do Direito Público, que, embora disponha de um texto constitucional como seu vértice e de códigos setoriais (tributário, penal, processual penal), não encontrou um modelo equivalente no plano ordinário para o Direito Administrativo. Os fatores teóricos relacionam-se ao que se expôs em relação às diversas construções teoréticas que procuraram explicar os fundamentos da “distinção sistemática”. Os fatores práticos radicam-se no “perfil acadêmico, literário, jurisprudencial ou profissional”, que levou à “repartição das disciplinas jurídicas, as literaturas especializadas, as jurisdições e as próprias profissões dos juristas”.422 Os fatores significativo-ideológicos resultam no espaço de proteção dos particulares, “evitando intromissões arbitrárias e dando corpo a estruturas que facultem um mínimo de previsibilidade dentro do espaço jurídico-social”.423 Sobre este último grupo de fatores, é de se reforçar o que se disse sobre a oposição histórica dos regimes autoritários ou totalitários à summa divisio e à autonomia do Direito Privado. As codificações civis aprovadas durante esses regimes ressentiram-se dessa invasão de fronteiras e da baixa proteção aos indivíduos, o que levou a reformas ou a um processo de decadência do Direito Privado como agente autárquico de proteção das liberdades individuais e pela atribuição desse papel às constituições, como terminou por ocorrer, por exemplo, na Itália. §22. OBJEÇÕES E FUNDAMENTOS CONTEMPORÂNEOS PARA A MANUTENÇÃO DA “DISTINÇÃO SISTEMÁTICA” Não seria suficiente a exposição desse conjunto de fatores para justificar a persistência contemporânea da “grande dicotomia”. Importa examinar algumas das objeções que se lhe fazem e é disso que se ocupará este § 22. Cada objeção refutada produz um fundamento à preservação da “grande dicotomia”. a) Publicização do Direito Privado. Foi amplamente comprovada a ampliação dos espaços de incidência normativa do Direito Civil em face de uma pluralidade de novos suportes fáticos e eventos da vida social. Os mesmos artigos codificados em 1916 e reproduzidos (ou parcialmente alterados) em 2002 passaram a reger um número impressionante de novas situações ou a atingir milhares de novos destinatários, cujos antepassados jamais sonharam com a possibilidade de nelas tomar parte. Como já assinalado, há uma ampla variedade de leis, regimes jurídicos e matérias de Direito Público que passaram (i) a incorporar ou usar institutos, categorias ou conceitos de Direito Privado; (ii) a ceder espaço à incidência ou à regulação do Direito Privado; (iii) por um processo de reversão de influência sobre o Direito Privado, que se reduziu em vez de se dilatar, como indicavam os prognósticos tão firmes dos anos 1930-1950. Na era da Quarta Revolução Industrial, nota-se a tendência cada vez maior de avanço do Direito Privado sobre as relações jurídicas que têm surgido sob o influxo da pós-digitalização. A proteção de dados pessoais, por exemplo, não pode ser nem mais referida como uma “nova fronteira” do Direito Privado, considerando-se a edição da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei de Proteção de Dados).424 Em muito breve, com a popularização da internet das coisas (IoT),425 será necessária a regulação da proteção de “dados das coisas”: uma máquina de lavar ou uma televisão, submetidas aos processos tecnológicos do ambiente da IoT, funcionarão autonomamente no horário mais propício ao menor consumo de energia elétrica, calcularão a quantidade adequada de água e sabão para o tipo de roupa (sem comando humano), selecionarão programasde interesse do usuário de modo muito mais preciso que os algoritmos atuais. Tudo isso gerará um número fabuloso de informações sobre as coisas, que, porém, indiretamente, revelarão os hábitos, os desejos e a localização das pessoas. Na era dos dados,426 esses elementos informacionais valerão fortunas. Dito de outro modo, a Economia da Quarta Revolução Industrial centrar-se-á no valor atribuível aos dados, o qual será exponencialmente maior a cada ano.427 Dados monetizáveis, eis um elemento novo em uma discussão antiga sobre o conceito e as funções de privacy, que não corresponde tão somente à “esfera mais nuclear da vida privada” (acepção franco-alemã) nem ao espaço das “relações íntimas entre as pessoas” ou do right to be left alone (o direito de ser deixado em paz), as duas apresentadas como acepções norte-americanas. A nova privacy insere-se no acesso e no fluxo de dados pessoais,428 que se desdobra em: a) controle de acesso e uso dos dados que “constituem sua identidade pessoal e permitem o livre desenvolvimento de sua personalidade”; b) o conteúdo desses dados açambarca elementos como “opinião política, convicções religiosas, vida sexual, dados de saúde e dados genéticos”.429 O consentimento do acesso a dados pessoais, que é tratado de modo displicente pelos usuários da Internet, será colocado em outro patamar quando a IoT se difundir como padrão na indústria automobilística, de eletrônicos e eletrodomésticos. A regulação da proteção de dados era outro exemplo típico de uma atribuição primária do Direito Civil, embora houvesse sérias dúvidas sobre sua base legislativa imediata,430 o que implicava, por exemplo, discutir se era suficiente o recurso a normas já vigentes, como o CDC.431 Não se pode negar que o CC/2002, no que se refere aos direitos da personalidade, possuía a primazia no tratamento dessa questão.432 Com a edição da Lei nº 13.709/2018, o Brasil passou a contar com uma legislação especial de proteção de dados pessoais, ainda em vacatio legis. A Lei de Proteção de Dados também possui normas que veiculam conteúdos típicos de direitos da personalidade, o que remete ao Código Civil o papel de fonte complementar nesse âmbito. Não se pretende obviamente reforçar o discurso, que já apresenta sinais de fadiga, da publicização do Direito Privado (ou do Direito Civil) e da privatização (ou civilização) do Direito Público. Ele está hoje mais próximo de um slogan, muito eficaz e sonante, reconheça-se, do que de um conceito operacional. A descrição histórica, fática e da evolução normativa serviu a um propósito: negar atualidade e serventia ao discurso da publicização. Ele é historicamente datado, atendeu a propósitos ideológicos, de variada matriz, e a diferentes senhores, inclusive regimes políticos, não sendo mais comprovável empiricamente. Ele também é pouco útil como argumento axiomático sobre as “transformações do Direito Civil”. Franz Bydlinski, a esse respeito, merece nova menção. Em seu texto de 1994, ele era um observador privilegiado do fim da experiência do socialismo real na Europa do Leste. Era um momento de euforia para muitos dos europeus, mas que, rapidamente, conheceram a face oculta do sistema capitalista, após setenta anos de proteção sob o regime comunista. Bydlinski, que não se deixa empolgar por aquele momento histórico, toca em um ponto central para este capítulo da tese: o caráter irracional, imprevisível e incontrolável dos processos históricos. Como ele afirmou, “as coisas ocorrem de forma contraditória e fortuita”.433 A Europa pós-comunista submeteu-se a um processo radical de liberalização, desestatização e de quebra do aparato social dos Estados nacionais. A Europa Ocidental, fundada nas bases da Comunidade Europeia e, depois do Tratado de Maastricht, na União Europeia, tornou-se “uma espécie de Super- Estado”,434 com a burocracia de Bruxelas a se contagiar por uma doença legisferante – a nomomania -, com diretivas sobre tudo e os mais diversos campos da vida pública e privada dos europeus, o que conduziu a uma sucessiva contestação quanto ao déficit democrático dessa forma de governança. Não é sem motivo que haja reações tão fortes hoje no Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte (já consubstanciada no Brexit), em França, Alemanha e Holanda, para se limitar aos países mais ricos do bloco. Não é mais sustentável defender a publicização com base em argumentos de meados do século XX. Muito menos é correto falar em uma privatização do Direito Público como efeito de um avanço da ideologia neoliberal. Haverá contingências históricas em um ou em outro sentido. O importante é que, mesmo com essas ondas a se esbater nos rochedos, o fundamento histórico não é suficiente para se eliminar a divisão sistemática. Menos ainda é útil ou coerente partir para soluções sincréticas, que não tragam respostas para alguns dos conflitos que se verificam nas fímbrias entre as duas grandes áreas do Direito. b) Problemas de delimitação e retroalimentação de conceitos, institutos e categorias jurídicas. Há um bloco de matérias, relações jurídicas e normas de Direito Privado, cujas características autárquicas se mantiveram e cujos espaços até se dilataram nas últimas décadas. A maior parte dos críticos da diferenciação específica entre Direito Privado e Direito Público louvam-se nos problemas de delimitação nas zonas de fronteira. Como também já foi ressaltado, não se pode destruir a “grande dicotomia” com base nos conflitos ocorridos em uma “terra de ninguém” existente nos limites de qualquer disciplina jurídica. Tais contingências sempre existiram e sempre ocorrerão. Nem por isso elas são suficientes para apagar todos os rumos e borrar os marcos entre essas áreas. Eliminar a summa divisio por causa dessas “sobreposições e aproximações” é substituir um critério multissecular pelo arbítrio da escolha ad hoc e retirar validade aos fundamentos nos quais descansam tanto o Direito Público quanto o Direito Privado. É preferível manter-se a divisão, com pequenas escaramuças de fronteira, a vê-la ser levantada por questões ligadas a interesses ideológicos ou pelas vantagens do casuísmo generalizado na aplicação das regras jurídicas, cujos efeitos já se fazem sentir por toda a ordem jurídica em vários sentidos e em diversos campos.435 O Direito sempre trabalhou com tais conflitos vicinais ou com a retroalimentação conceitual, categorial ou institucional entre o Direito Público e o Direito Privado. Um dos exemplos mais conhecidos, embora não associado aos conflitos vicinais envolvendo essas áreas, é a independência relativa de instância (art. 935, CC/2002; art. 315, CPC/2015; arts. 63-68, CPP). Um mesmo ato ilícito pode ser colorido por normas de Direito Civil, Direito Penal e Direito Administrativo (no caso de prática por servidores estatutários e que possam vir a responder processo administrativo-disciplinar pelo mesmo ato),436 o que demanda a solução de problemas de qualificação jurídica e a necessidade de se controlar a ação paralisante sobre o exercício de pretensões punitivas pelo Estado (no juízo criminal e pela Administração) ou de pretensões privadas (de caráter ressarcitório). Em momento algum se questiona haver ruptura das divisões sistemáticas, muito menos uma privatização ou publicização das respectivas áreas. Outro exemplo, agora de retroalimentação, está no controle de constitucionalidade das leis, que é uma variante dos juízos privatísticos de nulidade dos atos, e da interpretação conforme sem redução do texto normativo, que corresponde a uma forma publicística da conversão substancial do negócio jurídico, desenvolvida noMedievo pelos antigos notários e registradores.437 c) Problemas de qualificação.438 Se a “grande dicotomia” não foi abalada, como explicar a situação dos contratos de seguro, seguro-saúde e de planos de assistência médica, de previdência complementar, de transporte aeronáutico, marítimo ou terrestre, de serviços de telecomunicações ou os contratos bancários, que se submetem a um incomparável nível de intervenção regulatória? Desde os anos 1990, o Brasil criou agências reguladoras para esses setores (Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL, Agência Nacional de Aviação Civil - ANAC, Agência Nacional de Transportes Terrestres - ANTT, Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ, Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, Superintendência de Seguros Privados - SUSEP), sem que se esqueça da antiga função regulatória do Banco Central do Brasil e do CMN, órgãos que sucederam o Banco do Brasil e a Superintendência da Moeda e do Crédito- SUMOC nesses misteres.439 Essas agências, com maior ou menor poder regulatório, atuam em espaços de deslegalização total ou parcial, permitindo que exerçam funções tipicamente normativas, decisórias e executivas. Diante desse cenário, qual o espaço para o Direito Civil e, por consequência, o Direito Privado? Todos esses contratos não deixaram de ser civis ou comerciais. Em todos eles permanecem os elementos, os requisitos e os fatores eficaciais previstos na legislação ordinária geral ou especial, em cujo âmbito foram criados (a se valer da imagem da criação dos negócios jurídicos pela sociedade antes de sua “entrada” para o mundo dos tipos440) e, posteriormente, normatizados, tipificados e generalizados. Um contrato de transporte ou um contrato de seguro encontrarão tais elementos, requisitos e fatores no Código Civil. Durante boa parte do século XX, não apenas no Brasil, parcela desses contratos foi afetada pelo Direito Público por causa da introdução de um sujeito de direito público (órgãos, autarquias ou fundações) ou de direito privado de caráter paraestatal (sociedades de economia mista ou empresas públicas) na relação jurídica. Nos anos 1950, em muitos países, eram estatais as companhias ferroviárias, as companhias telefônicas, as empresas de transporte coletivo, as companhias de navegação aérea e marítima, e até mesmo bancos (lembrar-se do modelo socialista francês pós-1981) operavam em regime de monopólio ou de concessões, permissões e autorizações. Segundo as teorias subjetivas, seria até mesmo possível discutir se os negócios jurídicos celebrados com esses entes ou órgãos seriam contratos administrativos ou contratos privados com sujeitos públicos. Em uma ou outra hipótese, seria inevitável a utilização de institutos ou princípios próprios do Direito Público. No atual cenário, de ampla privatização desses serviços na maior parte do mundo, a definição, a partir do sujeito, sobre qual a natureza da relação jurídico-contratual tornou-se menos relevante. A substituição do Estado por agentes privados na oferta ou na prestação direta ou indireta desses bens e serviços deu lugar ao modelo de regulação, que prepondera nas Américas e na Europa desde os anos 1980-1990. Com isso, a análise desses negócios jurídicos exige do contratante ou do intérprete (judicial ou administrativo) a necessidade de resolver problemas de qualificação jurídica. Esse tipo de expediente não é algo novo. O Direito Privado com ele já convive há tempos, com maior ou menor sucesso. Se duas partes celebrassem, em 1995, um contrato de compra e venda de uma escultura, uma caneta-tinteiro ou um ar- condicionado e o comprador identificasse um vício redibitório em quaisquer desses objetos, qual o prazo para se pretender a devolução da coisa ou o abatimento do preço? Seria de 10 dias, se a relação fosse qualificada como comercial.441 Poderia ser de 15 dias, no entanto, se qualificada como de Direito Civil,442 ou de 30 dias, se de Direito do Consumidor.443 Com a revogação da Parte Primeira do CCom/1850 pelo art. 2.045 do CC/2002, essa questão ficou limitada aos prazos do Código Civil e do CDC. Somente em 10 de novembro de 2004, após mais de uma década de dissídio jurisprudencial, o STJ definiu um critério para essas qualificações, adotando a tese minimalista ou subjetiva moderada para as relações de consumo, no julgamento do REsp 541.867/BA.444 Embora, até hoje, “com certa frequência, os rigores da aplicação da teoria finalista têm sido atenuados em julgados nos quais se admite a incidência do Código de Defesa do Consumidor em relações jurídicas envolvendo consumidores profissionais, quando comprovada sua vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica”.445 Se é válido resolver problemas dessa natureza por meio da qualificação jurídica, sê-lo-á com maior interesse e eficácia em relação aos conflitos sobre qual (ou quais) regime(s) jurídico(s) deve ser aplicável a um determinado contrato (ou a partes dele) submetido(s) à regulação. A jurisprudência do STJ, nos anos 2000, demonstrou essa possibilidade e serve para se comprovar praticamente a utilidade desse mecanismo. É emblemático o exemplo do grupo de casos sobre a cobrança de assinatura básica dos usuários do Serviço Telefônico Fixo Comutado, que, à época, era preponderante no sistema de telecomunicações do Brasil. Na prática, o usuário teria de pagar um valor fixo mensal à companhia de telecomunicações, utilizando ou não aquele serviço. Na raiz da questão, estava o seguinte conflito: qual o regime jurídico que deveria prevalecer? O regulatório-administrativo ou o privatístico, particularmente o do CDC? As empresas cobravam essa assinatura básica por efeito do contrato de concessão do STFC e por resolução da ANATEL. Por essa razão, não lhes interessava que o contrato, nessa parte, fosse considerado um negócio jurídico de Direito Privado. Ao passo que as associações de defesa dos consumidores defendiam a incidência do CDC e de princípios peculiares ao Direito Civil, como o da equivalência material das prestações (sinalagma) e a onerosidade excessiva. Por que se pagar pela assinatura básica quando não havia correlação entre o valor e o benefício? No STJ, prevaleceu a tese da subordinação dessa cláusula do contrato às regras do Direito Administrativo Regulador. O caso-líder foi o REsp no 911.802- RS, que posteriormente resultou na edição da Súmula STJ 356,446 julgado na Primeira Seção do STJ.447 Não é relevante para esta tese a descrição pormenorizada do caso e quais os fundamentos utilizados pelo tribunal. É suficiente saber que o STJ procedeu à qualificação jurídica do contrato e não entendeu que deveriam prevalecer sobre as leis e resoluções de Direito Administrativo Regulador, na espécie, as regras do CDC e do CC/2002 sobre cláusulas abusivas, equilíbrio material das prestações e vedação ao enriquecimento sem causa. O problema era de qualificação e, naquele feixe de relações jurídicas, prevaleciam as normas regulatórias por efeito da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 (Lei de Concessões de Serviços Públicos), cujo art. 9o determina que a tarifa do serviço público concedido será fixada pelo preço da proposta vencedora da licitação. Exigir o pagamento da assinatura básica era uma demanda peculiar ao equilíbrio econômicofinanceiro da concessão. Como reforço argumentativo, o STJ recordou que também havia julgado um grupo de casos no qual se debatia se os usuários de companhias de abastecimento de água poderiam ser obrigados a pagar uma tarifa mensal mínima. Por identidade de razão, o STJ entendeu que seria lícita tal exigência, “cuja natureza jurídicaé a mesma da ora discutida, a qual garante ao assinante o uso de, no máximo, 90 pulsos, sem nenhum acréscimo ao valor mensal. O consumidor só pagará pelos serviços utilizados que ultrapassarem essa quantificação”.448 O voto do min. Humberto Martins, que tomou parte nesse julgamento, ao se referir ao capítulo recursal no qual se alegava a incidência do CDC nessa relação jurídica, foi mais preciso teoricamente do que o voto do relator do acórdão, o que recomenda sua transcrição literal, com as escusas por sua extensão, mas que se justifica pela importância de seu conteúdo para esta tese: “Finalmente, tem-se o problema da aplicação do Código de Defesa do Consumidor e da teoria da onerosidade excessiva (art. 51, § 1o, II, do CDC). O relator, em uma aproximação de figuras jurídicas, afastou essa argumentação e comparou a assinatura básica à tarifação mínima no serviço de fornecimento de água, que é amplamente aceita por esta Corte. (...) Sobre esse capítulo do recurso, creio que é necessário estabelecer uma premissa antecedente. Há, neste Tribunal e em diversos juízos brasileiros, uma pletora de ações que tocam o problema do tensionamento das regras de Direito do Consumidor e as regras de outras províncias jurídicas, como o Direito Administrativo ou o Direito Civil. No campo da regulação de serviços de telecomunicações, a questão assume contornos ainda mais perturbadores. Em grande medida, a responsabilidade por essa zona cinzenta é atribuível à doutrina especializada. Por se dedicar ao estudo de uma área com grandes interesses econômicos imediatos, as Telecomunicações, a dogmática setorial mantém-se alheia a problemáticas mais sensíveis, como a Metodologia Jurídica, a Filosofia do Direito e a Teoria do Direito. Esses temas só frequentam os livros sobre regulação como berloques ou enfeites, que conferem algum verniz ao estudo publicado. Nada, porém, de se definir tecnicamente pontos essenciais como se há estatuto científico próprio ao Direito das Telecomunicações ou se existem princípios especiais e afetos a esse Direito. Ora, se essa matéria fosse analisada com o rigorismo científico, não se chegaria ao absurdo de se confrontar as normas de Direito do Consumidor com as regras fundadas no Direito das Telecomunicações, como as ora debatidas neste recurso especial. A cobrança de assinatura básica é tema alheio às relações de consumo, quando se observa que seu fundamento é o regime tarifário advindo da delegação normativa à ANATEL, por força da Constituição, e concretizado em regulamentos, editais de licitação e em contratos de concessão. A empresa operadora do STFC - Serviço de Telefonia Fixa Comutada não exige esses quantitativos com base em direito seu, mas, como decorrência da equação econô-mico-financeira que lastreia seu vínculo com a Administração Pública. O Direito do Consumidor qualifica as relações jurídicas entre usuários e operadoras naquilo que não for objeto de regulação ou quando a regulação extrapolar os limites científicos do Direito das Telecomunicações e passar a invadir a órbita daquela província. A cobrança indevida de ligações não efetuadas é questão nitidamente consumerista. A exigência da assinatura básica, por seu turno, é tema específico da regulação dos serviços de telecomunicações."449 O voto sintetizou com precisão o problema: o contrato entre a companhia concessionária e o consumidor não deixa de se regular pelo Direito Privado. Mas ele também se submete ao Direito Administrativo Regulador e ao Direito das Telecomunicações. Haveria três ou quatro regimes jurídicos a disputar sua incidência sobre o contrato ou parte dele. Não se perde a natureza privada do contrato, mas há partes dele que vão se deixar qualificar juridicamente de modo diverso das previsões do Código Civil ou do CDC. Não se pode admitir que se confunda essa solução, tão bem fixada no voto do min. Humberto Martins, com sincretismo metodológico, publicização do Direito Privado ou natureza híbrida do contrato. Essas contingências, ligadas ao processo de qualificação, acham-se presentes em várias modalidades contratuais, particularmente aquelas reguladas. Nos contratos bancários, outra modalidade fortemente regulada pelo BACEN e pelo CMN, o STJ decidiu-se pela incidência do CDC nessas espécies contratuais,450 ainda que o tribunal haja reservado espaços de aplicação das normas dos agentes reguladores do sistema financeiro nacional.451 Veja-se agora a imensidão de contratos de Direito Privado celebrados quotidianamente no Brasil e em todo mundo, que envolve os serviços over-the- top-contents (OTT’s). Quem baixa um aplicativo em seu telefone celular ou em seu computador pessoal, como Viber, Skype, Whatsapp, Netflix ou Waze subordinar-se-á a normas de Direito Administrativo? Esse ato é associado a uma contratação de um serviço, em geral não oneroso ou com preços relativamente módicos, posto que o utilizador remunere indiretamente a empresa com o uso de seus dados pessoais, a cessão de informações a terceiros sobre seus hábitos de consumo ou a visualização compulsória de publicidade. Esses serviços não se sujeitam – até agora – a normas regulatórias da ANATEL. Em mais uma demonstração da vitalidade do sistema privado, essas relações formam-se e extinguem-se no plano exclusivamente civil ou de consumo, a depender da qualificação jurídica dada ao negócio, após sua submissão à teoria finalista moderada. A natureza privada da relação tem gerado contestações por parte das empresas autorizadas a prestar serviços de telecomunicações, que se submetem ao peso do regime administrativo- regulatório. A eficiência da solução criada na entropia e no caráter acidental do mundo privado, contudo, tem colocado em xeque tais argumentos, até pelo comparativamente baixo índice de infrações às normas de Direito do Consumidor, provavelmente em razão do modelo de negócios que permite a resilição unilateral a qualquer tempo pelo contratante. Outros serviços, como o Uber, são mais complexos porque apresentam sérios “conflitos de fronteiras” com o Direito Administrativo Regulador, se comparados com o serviço de transporte individual clássico, o táxi. A existência de “conflitos de fronteira”, como se nota, é inerente à “grande dicotomia”. A ampliação da autonomia privada e de seus efeitos formativos no plano negocial dará ensejo a que os espaços do Direito Privado também se dilatem. Em paralelo, essas mesmas áreas poderão despertar o interesse estatal tributário, regulatório ou administrativo em sentido estrito (exercício do poder de polícia). Haverá, então, a necessidade de se rever as zonas limítrofes, com maior ou menor restrição aos espaços de ambas as faixas fronteiriças. De modo a comprovar tal hipótese, veja-se que, após a primeira edição desta tese haver sido publicada, o Congresso Nacional aprovou a Lei no 13.640, de 26 de março de 2018, que regulamentou o transporte remunerado privado individual de passageiros, de modo a normatizar o serviço de “realização de viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede” (nova redação do art. 4o, inciso X, da Lei no 12.587, de 3 de janeiro de 2012). É natural que determinadas atividades econômicas, por sua importância ou por seu impacto na sociedade, mais cedo ou mais tarde, entrem na alça de mira do legislador ou do administrador. Desde então, haverá normas legais ou administrativas para tipificar as criações da autonomia privada, desde que atendam aos pressupostos de generalizaçãoe de aceitação social, ou, em casos mais extremos, para restringir a autonomia privada por meio de um emaranhado de regras públicas nos diversos setores de interesse do Estado. Nada disso é novo. Nada disso diminui o Direito Privado, colo-niza-o ou derrui sua posição autárquica. Muito menos é confundível com um mélange entre sistemas jurídicos, uma mixagem de normas ou um diálogo de fontes.452 d) A insuficiência das teorias sobre a diferenciação sistemática. O estudo das teorias sobre a summa divisio do Direito Público e do Direito Público é marcado por um repasse crítico de seus principais fundamentos, findando com o repúdio a todas elas, a escolha de uma teoria ou a combinação de duas ou mais para se chegar a um fundamento menos lacunoso. Esse proceder, que é praticamente universal, termina por incutir no leitor um ceticismo, quando não uma postura cínica,453 ante a capacidade dessas teorias conferirem segurança argumentativa no debate sobre a permanência da diferenciação sistêmica. A respeito das teorias e sua recepção ao longo dos séculos, António Menezes Cordeiro recorda que o tema da “contraposição entre Direito público e Direito privado, em termos modernos, tem vindo a ocupar” a doutrina portuguesa há mais de 200 anos: “cerca de 10 gerações de juristas”. Nesse processo, percebe-se que “a contraposição iniciou-se pela doutrina do sujeito; regressou a material, com diversos elementos de síntese”.454 As teorias, por conseguinte, têm sido prestigiadas ou descartadas, conforme as tendências históricas, políticas e a evolução econômica. Não que isso as desacredite ou as torne dispensáveis. Adotar tal ou qual teoria sobre a diferenciação sistêmica implica admitir alguns pressupostos ideológicos ou teóricos. A variação de fundamentos teóricos é algo natural no Direito Civil. Vejam- se as teorias sobre o negócio jurídico e sua diversidade, bem como a prevalência de teorias voluntaristas no século XIX e teorias preceptivas no século XX.455 Não é possível dissociar as últimas do momento autoritário no qual foram concebidas ou postas em prática. Chegou-se mesmo a decretar a morte do negócio jurídico como categoria operacional do Direito Civil. Nada disso, porém, afetou a valência prática do negócio jurídico e a impediu a continuidade de estudos doutrinários de alto nível sobre esse tópico nuclear da Teoria Geral do Direito Civil.456 Ao se referir ao sentido romanístico da “grande dicotomia”, Guido Alpa adverte os “juristas de hoje” sobre a investigação das “fronteiras entre o Direito Público e o Direito Privado”: se é que ela existe, deve ser buscada exclusivamente na “realidade concreta” e não “no renascimento de fórmulas obsoletas”.457 A exclusiva vinculação à “realidade concreta” parece um tanto exagerada. Mas o abandono de “fórmulas obsoletas” é de ser considerado. A despeito disso, quando se estuda a “grande dicotomia”, há de se considerar que o problema não está na insuficiência das teorias, afinal quase todas possuem lacunas ou contradições. Diga-se mais, com Hans Julius Wolff, Otto Bachof e Rolf Stober, que dessas insuficiências não é possível negar a existência autônoma do Direito Privado.458 Mais grave do que tais limitações é a falta de coerência epistemológica em sua utilização. E essa incoerência radica-se em dois aspectos: a identificação com o monismo jurídico e a postura ideológica perante o Direito Privado. e) O monismo jurídico e unidade do sistema jurídico. Na sequência do item anterior, ver-se-á com maior nitidez o referido problema da coerência epistemológica. Na abertura do Capítulo Primeiro, pôs-se a necessária ênfase na determinante influência de Hans Kelsen para o combate da diferenciação sistemática. Sem sua tese de livre-docência de 1911 e os posteriores desenvolvimentos teóricos de sua obra, dificilmente os ataques à distinção do Direito Público e do Direito Privado teriam sido tão exitosos.459 Ocorre que os maiores críticos contemporâneos à “grande dicotomia” jamais se reconheceram como kelsenianos ou positivistas, em quaisquer de suas divisões internas. O estatalismo jurídico é uma visão do ordenamento que remonta, ao menos em termos mais organizados teoricamente, a Georg Jellinek e sua teoria da subordina-ção-coordenação. Com Kelsen, uma forma mais extrema de estatalismo ganhou corpo e é sintetizável pela fórmula “todo Direito é Direito Público”.460 Não se confundam os termos do problema: a produção do Direito é unicamente pública e, por consequência, também sua natureza. Poder-se-ia argumentar que até o Direito Privado, como produto do legislador, tem origem pública. Mas essa afirmação ignora o fato de que a máxima de Kelsen vai além dessa trivialidade: “todo Direito é Direito Público” significa a inexistência de um Direito Privado essencialmente distinto do Direito Púbico, dotado de autonomia e de unidade de princípios. O sentido finalístico do estatalismo, por sua vez, apresenta-se de outro modo, expressável por uma famosa máxima do Direito Administrativo italiano, de autoria de Oreste Ranelletti: “É público tudo aquilo que, direta ou indiretamente, é do Estado”.461 Os ecos desse pensamento também chegaram ao Brasil, como se observa deste trecho de Afonso Arinos de Melo Franco: “Mesmo para o jurista a distinção é irrelevante, se êle se colocar na observação da gênese do Direito, porque provindo sempre, para êle, o direito do Estado, pouca diferença faz que se trate de Direito privado ou público, uma vez que, genèticamente, todo o Direito é estatal e, por isto, público”.462 A melhor crítica a essa maneira de configurar o Direito Privado deve-se a Konrad Hesse: “Importância decisiva do Direito Constitucional para o Direito Privado: isso não significa, no entanto, que a Constituição hoje se tornou fundamento de todo o Direito e por ele também do ordenamento ju-rídico-privado. A Constituição não é, para se valer de uma observação irônica de Ernst Forsthoff, ‘o ovo do mundo, a célula jurídica germinal da qual tudo procede’. Certamente, estão no centro do Direito Constitucional e do Direito Privado os mesmos homens, em ambos os casos se trata de alcançar uma ordem justa para a convivência humana. Mas, como mostra uma simples olhada na História, o Direito Privado deriva em maior medida de outras fontes que do Direito Constitucional. Inclusive se já não encarna em um sistema fechado, isolado das demais partes do ordenamento jurídico, segue sendo um setor jurídico autônomo. E a Constituição é certamente a ordem jurídica fundamental da Coletividade. Mas, de forma alguma, regula tudo, senão apenas singulares aspectos – em geral particularmente importantes – da vida estatal e social, abandonando o resto da configuração aos poderes estatais por ela constituídos, em particular ao legislador democrático.”463 A citação de Ernst Forsthoff tornou-se famosa por sintetizar ironicamente uma visão do ordenamento jurídico na qual, em suas palavras, é suficiente olhar para a Constituição, deixando-se de lado o direito ordinário, afinal, ela é o “ovo do mundo jurídico, a partir do qual tudo procede, do Código Penal à lei de fabricação de termômetros clínicos”.464 Não há problema em ser kelseniano e defender o fim ou a mitigação radical da “grande dicotomia”. É necessário tão somente que se assumam as consequências dessa vinculação teórica. f) Ideologia autoritária e o combate à “distinção sistemática”. A publicização do Direito Privado, durante o Estado Novo, foi uma parte importante do discurso oficial e serviu de elemento pragmático e ideológico para fundamentar a reforma dos códigos nos anos1940, especialmente com a criação de códigos setoriais.465 Na Europa, no mesmo período, o fim da diferenciação sistemática assumiu contornos radicalmente mais profundos e com outra pauta ideológica, que uniu juristas italianos e alemães, representativos das correntes jurídicas de inspiração fascista e nazista, ao exemplo da comissão ítalo-alemã, constituída no final da década de 1930, que registrou posição majoritária em favor do fim da autonomia do Direito Privado e da recondução a um Direito único, sem distinções público- privado.466 Durante o período nacional-socialista, empreendeu-se uma luta contra a categoria “direito subjetivo”, que passou a ser considerada ultrapassada e substituída pela “situação jurídica subjetiva”. Ele seria um conceito de tradição liberal-burguesa, que deveria ceder espaço ante o “conceito concreto e impregnante de órgão da comunidade do povo”.467 Para esse fim, tornou-se indispensável apagar as linhas divisórias entre Direito Público e Direito Privado e a própria ideia de Direito Privado como uma parte diferenciada do ordenamento jurídico, que se pautava pela autonomia sistêmica.468 Karl Larenz foi o líder desse processo de desconstrução da dicotomia, pois, a seu entender, “um sistema autônomo de Direito Privado”, com tais características, “não é conciliável com nosso ordenamento de vida popular”. A autonomia do sistema de Direito Privado era incompatível com a “völkischen Lebensordnung”, a ordem jurídica völkische, um dos postulados mais importantes do Direito nazista.469 As razões para esse ataque à diferenciação e à autonomia do Direito Privado recaem sobre três causas: a) o Direito Privado como núcleo de um sistema essencialmente autônomo e distinto do Direito Público referenda a existência de uma “esfera de relações nas quais o interesse meramente privado prevalece, em contraste com o princípio na-cional-socialista da absoluta, permanente e penetrante superioridade do interesse geral sobre o interesse particular”; b) a diferenciação confronta-se com o núcleo da doutrina jurídica nacional-socialista na própria conceituação de dever jurídico, entendido pela visão clássica como um dever em relação a um indivíduo. Para o Direito nacional-socialis-ta, o dever jurídico corresponde essencialmente a um dever em relação à comunidade. A partir de agora, ao se vincular juridicamente, o indivíduo não o faz somente em relação a outrem, mas em relação à sociedade; c) o Direito Privado não pode mais ser um sistema autônomo e independente das demais áreas do Direito. Segundo Larenz, a ordem nacional-socialista tende “a subordinar cada âmbito jurídico a princípios de Direito Público, e a identificar estes com os princípios de uma concreta moral e de uma concreta ideologia e prática política, quer dizer, com os princípios do nacional-socialismo”.470 É importante assinalar o significado dos conceitos de unidade do Direito e de liberdade contratual como função social no regime nacional-socialista. Quanto a este último, segundo Larenz, a liberdade contratual existiria “só na medida em que o ordenamento social e econômico em seu conjunto deixa-lhe um espaço, e pode ser exercida como deveres que derivam para o particular das tarefas e da responsabilidade social”. O exemplo dessa concepção de autonomia contratual como função social desenvolvida pelo particular estaria no caso de um comerciante de alimentos, que é o único fornecedor da região. Pela doutrina clássica do Direito Civil, ele poderia se recusar a vender a alguém. Mas, pelos princípios sociais do nacional-socialismo e da autonomia privada condicionada pela função social, ele seria obrigado a vender os alimentos para todos. Larenz concebe a dicotomia público-privado como um óbice à unidade do Direito como “ordenamento da vida nacional”.471 No regime fascista italiano, pode-se somar mais uma razão: o fim da dicotomia apresentava-se como uma justificação para que o poder interventivo do Estado não encontrasse limites. Era a oportunidade para uma regulação total da vida privada.472 É óbvio que se pode defender o fim da separação Direito Público-Direito Privado com argumentos não ideológicos e metodologicamente consistentes, como o positivismo jurídico kelseniano. Mas, não se admite a utilização de argumentos ao estilo dos propostos por Karl Larenz para defender uma solução que arruíne as fronteiras e a autonomia do Direito Privado. Infelizmente, é mais comum do que se imagina encontrar tais argumentos em textos jurídicos de absoluta boa-fé, que ignoram as raízes mais profundas (e mais abjetas) dessa maneira de se encarar a relação do Direito Privado com outras áreas. g) O terceiro setor. É recente a formulação de uma nova divisão de interesses, de serviços e de pessoas jurídicas. Haveria o interesse privado, o público e o estatal, sendo que a espécie intermediária (interesse público) não necessariamente guardaria a natureza pública. Aproveitando-se de uma linguagem sociológica, passou-se a utilizar também a terminologia terceiro setor, no qual se conformariam variadas espécies, como: a) organização social;473 b) organização da sociedade civil de interesse público (OSCI-P);474 c) fundação privada e associação, nelas compreendidas as entidades dotadas de certificados de filantropia ou de interesse público; d) serviço social autônomo. Em sendo personalizados, e a quase totalidade deles o são, tais plexos assumem a natureza de pessoa jurídica de direito privado, de entre as previstas no art. 44, incisos I a V, CC/2002. O termo “terceiro setor” é altamente equívoco, pois retrata um espaço de atuação que seria distinto dos outros dois setores (o mercado e o Estado). Tendo origem nos Estados Unidos da América, na década de 1970, o “terceiro setor” designa uma experiência muito diversa daquela compreendida no Brasil a partir do chamado “marco legal do terceiro setor”, que surgiu no âmbito do PDRAE, sobretudo com a Lei no 9.790, de 23 de março de 1999, e da Lei no 9.637, de 15 de maio de 1998. O marco legal do terceiro setor brasileiro, em última análise, qualificaria pessoas jurídicas de direito privado para receber recursos públicos em sentido amplo. Nesse marco legislativo, segundo Rodrigo Xavier Leonardo, haveria “uma qualificação que capacita pessoas jurídicas de direito privado a contratar com a administração pública para, por meio dessa relação jurídica, receber recursos, que podem ser monetários, podem ser bens móveis ou imóveis ou, inclusive, a cessão de funcionários para o desenvolvimento de atividades da entidade”. O Direito brasileiro, nesse aspecto, deu conformação funcionalista ao conceito de terceiro setor, o que afasta o problema da “distinção sistemática”. Isso se justifica por que “tal qualificação, e também os benefícios dela consequentes, não retiram o caráter de direito privado de tais entidades”. Não se pode confundir os efeitos jurídicos da percepção de recursos públicos e a eventual submissão aos órgãos de controle e a exigências de prestação de contas com a modificação da natureza jurídica dos entes que operam sob o “terno” do terceiro setor. Essa condição de entidades que giram dinheiro público tão somente as “insere em um regime jurídico especial, que convive com a estrutura e a função de direito privado”.475 h) Os microssistemas e as interpenetrações. A ideia de microssistemas é resultante de uma construção teórica dos anos 1960, elaborada na Itália por Natalino Irti. Para ele, o crescimento da nomogênese de leis extravagantes, após a redemocratização italiana no final da década de 1940, implicou uma alteração no eixo gravitacional da ordem jurídica: acentralidade dos códigos e a acessoriedade dessas leis extravagantes invertia-se. A setorização do sistema jurídico apresentava-se com tal intensidade que elas perdiam o caráter residual e temporário. As leis especiais, segundo ele, apropria-ram-se de matérias anteriormente confinadas aos códigos e, com o passar do tempo, desenvolveram “lógica autônoma” e “princípios orgânicos” próprios. Em um primeiro momento, esses princípios se contrapõem “àqueles fixados no Código Civil” e, ao final, logram “suplantá-los de todo”. Passa-se de uma fase de conflito para um “estágio final” de “prevalência e substituição”.476 Era essa uma das faces do processo de descodificação, a respeito de que já se comentou nesta Primeira Parte. Ricardo Luís Lorenzetti popularizou uma metáfora a respeito dessa nova realidade no sistema de fontes: os códigos comparavam-se aos velhos centros das metrópoles. Cada vez mais os citadinos afastam-se dos centros e transferem- se para bairros afastados, com seus modernos centros de compras e as facilidades dos projetos urbanísticos modernos. Abandonam, então, os centros históricos e lá só voltam esporadicamente para resolver algum problema.477 A teoria dos microssistemas foi recepcionada no Brasil em um dos últimos trabalhos de Orlando Gomes. Esse texto insere-se na desilusão de Gomes com as codificações. À altura, ele já não mais acreditava nos códigos, particularmente no projeto Reale, que seria aprovado em 1984 na Câmara dos Deputados.478 A despeito de ser praticamente desconhecida fora da Itália, em especial na Alemanha, França e Reino Unido, a teoria dos microssistemas adquiriu uma influência sem precedentes no Brasil. Seu campo mais fecundo na atualidade é o Direito do Consumidor. Não há praticamente um trabalho sobre o CDC ou seus princípios que não reforce a particularidade do Direito do Consumidor como um microssistema jurídico, o que demandaria um tratamento interdisciplinar da matéria. Não é objetivo da tese examinar o conceito de microssistema e seus fundamentos, embora se prefira a solução de Frank Bydlinski para a especificidade normativa do que ele chama de “regulação privada especial”.479 Mas a teoria dos microssistemas interessa à dicotomia público-privado quando é usada para contestá-la. E isso tem ocorrido em duas vertentes: (i) o caráter multidisciplinar de alguns microssistemas, particularmente o Direito do Consumidor; (ii) a comprovação de que um microssistema pode assumir caráter híbrido e, como tal, existir à margem da “distinção sistemática”. É ordinário haver disciplinas ou códigos que conjuguem normas oriundas do Direito Público com normas do Direito Privado. O CC/2002 ou o CPC/2015 são exemplos clássicos dessa combinação normativa, conquanto haja evidente preponderância de normas privatísticas no primeiro e de normas publicísticas no segundo. A Lei de Falências e Recuperação Judicial (Lei no 11.101, de 9 de fevereiro de 2005), que é o núcleo normativo do Direito Falimentar e Recuperacional, também pode ser referida como exemplo de um diploma com regras pertencentes ao Direito Público e ao Direito Privado, embora com um nível de preponderância muito menor do último em relação ao primeiro. Nenhum exemplo, porém, se aproxima do Direito do Consumidor, daí ser ele referido permanentemente como o exemplo de microssistema. Na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, v.g., essa é uma disciplina interdepartamental (Direito Civil, Direito Processual e Direito Penal), o que acentua esse caráter. Se a multiplicidade de normas com vinculações distintas em uma mesma lei não é algo invulgar, em que afetaria a diferenciação público-privado o conceito de microssistema? Se ele for entendido como um espaço híbrido, no qual não há como se alocar um direito específico nos campos do Direito Público ou do Direito Privado, tem-se aí um problema. A multidisciplinariedade em si não afeta a “grande dicotomia”. Se é certo que o CDC tem essa natureza, porque comporta “questões que se acham inseridas nos Direitos Constitucional, Civil, Penal, Processuais Civil e Penal, Administrativo”,480 não se pode, exclusivamente por essa razão, argumentar que o Direito do Consumidor, como espécie de um microssistema jurídico, é uma objeção permanente à distinção sistemática. Em outras palavras, a coexistência, em um dado microssistema, de campos distintos, não é um reforço apriorístico que sirva à comprovação do fim da distinção. Corresponde, pelo contrário, a uma acomodação de regras que, de algum modo, acabam por se reconduzir a diferentes ramos jurídicos. i) Direito de Família e sua natureza especial. Dois argumentos, de caráter complementar, são muito utilizados para se justificar o enfraquecimento ou o fim da distinção entre o Direito Público e o Direito Privado: a) a publicização do Direito de Família;481 b) que seria comprovável por sua crescente autonomização como disciplina que não mais teria conexão epistemológica com o Direito Civil. É importante examinar o primeiro argumento em conexão. Para isso, faz-se uma síntese das principais ideias de Bernardo B. Queiroz de Moraes sobre as relações entre o Direito de Família e o Direito Civil, que guardam estreita conexão com os postulados defendidos nesta tese: a) o Direito de Família é um dos ramos do Direito Civil que mais “tardiamente tiveram reconhecida sua autonomia (ao interno do sistema dos Códigos)”, o que decorria a absorção da matéria pelo Direito Canônico; b) a passagem do Direito de Família para as codificações modernas ocorreu de modo pouco sistemático, com avanços e recuos, tendo importância nesse processo as obras de Kant e Savigny, especialmente este último que desenvolveu o conceito de “relação de família”, de entre as espécies de relações jurídicas, e de Direito de Família, como o “conjunto de institutos jurídicos (aos quais essas relações se referem)”; c) essa evolução implicou uma mudança no Direito de Família: no século XVIII, “os temas centrais do direito de família vinham mesclados com temas típicos do direito público (como a previsão de crimes)”, ao passo em que, no século XX, “havia apenas uma ênfase no papel da família para a sociedade em geral, não uma crítica à sua natureza preponderantemente privada”; d) no Direito dos países socialistas, destacou-se a tendência a codificações setoriais no Direito de Família, o que seria uma “consequência do reconhecimento de uma característica supranacional da família e da tentativa de delineação da sociedade pelo Estado (enfatizando o seu viés público)”. Esse modelo soviético de Direito de Família justificava-se pela preponderância da “função educativa” da família, dada a “necessidade de formação de uma nova consciência popular, pautada em uma suposta superioridade moral desse direito”.482 O Direito de Família, ao menos com esse nome, foi substancialmente alterado após as invasões napoleônicas, com o perdão do trocadilho, aos territórios ocupados tradicionalmente pela Igreja, seja ela católica ou protestante, nas relações familiares, no estado das pessoas (nacionalidade, registro civil e matérias correlatas, como estado civil, reconhecimento da capacidade civil, filiação) ou no tratamento dispensado aos mortos. Deu-se a transposição para o Direito estatal de matérias secularmente mantidas sob o Direito Canônico ou o Direito Eclesiástico, que, em alguns países, por conveniência ou por interesse recíproco, também figuravam, de modo parcial ou total, em leis positivas dos Estados medievais e em seus sucessores Estados nacionais. Tal indistinção pode ser notada até aos dias