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RODRIGUES JR, Otavio Luiz Direito Civil Contemporâneo_ Estatuto epistemológico, Constituição e Direitos Fundamentais

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Produção	digital:	Ozone
CIP-BRASIL.	CATALOGAÇÃO	NA	PUBLICAÇÃO
SINDICATO	NACIONAL	DOS	EDITORES	DE	LIVROS,	RJ
R613d
2.	ed.
Rodrigues	Jr.,	Otavio	Luiz
Direito	civil	 contemporâneo	 :	 estatuto	epistemológico,	constituição	e	direitos	 fundamentais	 /	Otavio	Luiz
Rodrigues	Jr.	-	2.	ed.,	rev.,	atual.	e	ampl.	-	Rio	de	Janeiro	:	Forense	Universitária,	2019.
;	23	cm.
Inclui	bibliografia	e	índice
ISBN	978-85-309-8737-4
1.	Direito	Civil	-	Brasil.	2.	Direito	Constitucional	–	Brasil.	3.	Direitos	fundamentais	–	Brasil.	I.	Título.
19-57429
CDU:	347(81)
Vanessa	Mafra	Xavier	Salgado	-	Bibliotecária	-	CRB-7/6644
CAPÍTULO	QUARTO
A	“DISTINÇÃO	SISTEMÁTICA”:	PERMANÊNCIA,
UTILIDADE	E	FUNDAMENTOS
SUMÁRIO.	 §	19.	Autonomia	e	diferenciação	do	Direito	Priva	do:	 entre	 a
permanência	e	a	utilidade	nas	relações	jurídicas	contemporâneas.	19.1.	A
organização	da	jurisdição	e	a	dife	renciação	específica.	19.2.	A	“distinção
sistemática”	 e	 a	 forma	 ção	 jurídica.	 19.3.	 A	 “distinção	 sistemática”	 no
universo	das	relações	privadas.	§	20.	A	recodificação	do	Direito	Civil	e	os
espaços	normativos	do	Direito	Privado.	§	21.	 Fatores	 culturais,	 teóricos,
práticos	 e	 significativoideológicos.	 §	 22.	 Objeções	 e	 fundamentos
contemporâneos	 para	 a	 manutenção	 da	 “distin	 ção	 sistemática”.	 §	 23.
Conclusões	parciais	da	Primeira	Parte.
§19.
19.1.
AUTONOMIA	 E	 DIFERENCIAÇÃO	 DO	 DIREITO	 PRIVADO:	 ENTRE	 A
PERMANÊNCIA	 E	 A	 UTILIDADE	 NAS	 RELAÇÕES	 JURÍDICAS
CONTEMPORÂNEAS
A	organização	da	jurisdição	e	a	diferenciação	específica
Em	 2016,	 o	 STJ	 julgou	 8.932	 processos	 na	 Primeira	 Seção,	 responsável
pelas	matérias	de	Direito	Público,	excluídas	as	de	caráter	criminal.	A	Segunda
Seção,	competente	para	as	matérias	de	Direito	Privado,	decidiu	e	julgou	17.510
processos.	 O	 número	 de	 julgamentos	 em	 Direito	 Penal,	 matéria	 da	 Terceira
Seção,	 foi	de	458,	 entre	colegiados	e	monocráticos.377	Esses	dados	 refletem	os
resultados	das	estatísticas	sobre	a	Alemanha,	apresentadas	por	Franz	Bydlinski	e
que	 demonstravam	 a	 desproporção	 entre	 o	 número	 de	 questões	 judiciais	 de
Direito	Privado	 (muito	maiores)	e	de	Direito	Público.378	A	estatística	brasileira
tem	 um	 diferencial:	 a	 responsabilidade	 do	 Estado	 como	 um	 dos	 grandes
litigantes	da	justiça	do	país,	segundo	dados	do	CNJ	de	2011.379	Ainda	assim,	os
conflitos	privados	sobrexcedem	seus	equivalentes	públicos.
As	Leis	de	Organização	Judiciária,	de	modo	usual,	dividem	suas	unidades
em	varas	cíveis,	de	família	e	sucessões,	da	infância	e	adolescência,	falimentares,
de	execuções	 fiscais,	de	 fazenda	pública,	criminais	e	de	execuções	penais.	Em
alguns	Estados,	há	uma	maior	especialização	interna,	como	varas	empresariais,
de	conflitos	fundiários,	ambientais,	de	acidentes	de	trânsito,	previdenciárias,	de
crime	organizado	ou	até	mesmo	em	questões	de	saúde.
Sempre	 há	 novas	 demandas	 por	 especialização,	 em	 nome	 de	 uma	maior
celeridade	ou	de	um	julgamento	qualitativamente	melhor,	dado	que	o	magistrado
manteria	 o	 foco	 em	 assuntos	 muito	 específicos,	 favorecendo	 o	 conhecimento
verticalizado	 dos	 temas	 afeitos	 a	 sua	 vara.	 É	 verdade	 que	 também	 se	 podem
identificar	efeitos	colaterais,	como	a	criação	de	quistos	ideológicos	em	relação	a
determinadas	matérias	que	foram	objeto	de	especialização.
A	 própria	 matriz	 externa	 da	 justiça	 brasileira	 é	 influenciada	 por	 essas
divisões.	 A	 Justiça	 Federal	 é	 predominantemente	 voltada	 para	 questões	 de
19.2.
Direito	Público.	A	Justiça	Estadual	é	mais	abrangente	em	termos	de	competência
material,	contudo,	há	nítida	preponderância	de	questões	de	Direito	Privado.	As
Justiças	do	Trabalho,	Militar	da	União	(e	dos	Estados,	quando	neles	existente)	e
Eleitoral	são	voltadas,	em	caráter	quase	universal,	a	conflitos	disciplinados	pelo
Direito	Privado	ou	pelo	Direito	Público.
As	 diferenciações	 específicas	 firmadas	 na	 Constituição,	 nas	 leis
processuais	 e	 de	 organização	 judiciária	 tiveram	 impacto	 na	 especialização
profissional	no	âmbito	do	Direito.	As	atividades	desenvolvidas	por	advogados,
juízes,	 membros	 do	 Ministério	 Público,	 registradores,	 notários	 e	 advogados
públicos	terminaram	por	se	preordenar	a	partir	de	tais	escolhas	legislativas,	que
levaram	 em	 conta	 a	 “grande	 dicotomia”.	Evidentemente	 que	 essa	 hipótese	 –	 a
correlação	 entre	 a	 divisão	 jurisdicional	 e	 as	 diferenciações	 de	 habilidades	 e
competências	 profissionais	 –	 não	 se	 baseia	 em	 explicações	 sociológicas	 ou
antropológicas,	dado	não	ser	este	o	objeto	de	uma	tese	de	Direito.	Observados	os
limites	de	uma	interpretação	jurídica,	a	hipótese	não	é	susceptível	de	escrutínio.
As	 atribuições	 profissionais,	 marcadas	 por	 divisões	 de	 competência
material,	 exigiram	 pessoas	 com	 conhecimentos	 especializados	 em	 Direito
Público	e	Direito	Privado,	ainda	que,	em	muitos	dos	casos,	houvesse	 inúmeros
pontos	de	contato	entre	essas	áreas.	Esses	indivíduos,	seja	para	se	habilitarem	às
provas	de	seleção	profissional,	seja	para	bem	desempenharem	essas	atribuições,
ainda	 adquiriram	 ou	 conservaram	 conhecimentos	 compartimentalizados,	 posto
que	muitos	possuam	habilidades	interdisciplinares.
A	 educação	 dos	 juristas,	 portanto,	 é	 um	 campo	 a	 ser	 explorado
autonomamente.
A	“distinção	sistemática”	e	a	formação	jurídica
As	 referidas	 especializações	 criaram	 nichos	 profissionais	 no	 âmbito
privado,	a	se	observar	pelas	demandas	dos	clientes.	As	matrizes	curriculares	das
faculdades	de	Direito	e	suas	próprias	estruturas	administrativas	mantiveram	essa
“distinção	sistemática”,	com	disciplinas	ou	departamentos	de	Direito	Público	e
de	Direito	Privado,	em	suas	subdivisões	clássicas.
19.3.
Essa	é	uma	 tradição	que	remonta	às	origens	das	 faculdades	de	Direito	no
Brasil,	quando	o	imperador	D.	Pedro	I,	por	lei	de	11	de	agosto	de	1827,	criou	os
cursos	de	“Ciências	Jurídicas	e	Sociais”	nas	cidades	de	São	Paulo	e	Olinda,	com
5	anos	de	duração	e	divididos	em	9	cadeiras.
O	Direito	Público	ocupava	o	primeiro	e	o	segundo	anos.	O	Direito	Privado
dividia	 o	 terceiro	 ano	 com	 o	 Direito	 Penal	 e	 o	 Direito	 Processual	 Penal.	 No
quarto	 ano,	 figurava	 novamente	 Direito	 Civil,	 acompanhado	 do	 Direito
Comercial	 Terrestre	 e	 Marítimo.	 No	 quinto	 e	 último	 ano,	 havia	 cadeiras	 de
Economia	Política	e	Direito	Processual	Civil.380
Essa	matriz,	inspirada	nos	Estatutos	do	Visconde	da	Cachoeira,	manteve-se
na	 estrutura	 provisória	 de1827	 e	 depois	 no	 Estatuto	 de	 Regulamentação	 dos
Cursos	 Jurídicos	 de	 1831.381	 Na	 Resolução	 CNE/CES	 5/2018,	 documento	 que
regula	 atualmente	 as	 diretrizes	 curriculares	 nacionais	 dos	 cursos	 jurídicos,
encontram-se	as	disciplinas	obrigatórias	em	seu	art.	5o,	 inciso	II,	 reservando-se
espaços	 para	 as	 vinculadas	 ao	Direito	 Privado	 e	 ao	Direito	 Público.382	Mesmo
Direitos	 mais	 recentes	 são	 agrupados	 nessas	 áreas,	 salvo	 quando	 postos	 em
grupos	híbridos,	metajurídicos	ou	metadogmáticos.
A	“distinção	sistemática”	no	universo	das	relações	privadas
Abstraindo-se	 o	 “direito	 nos	 tribunais”,	 o	 “direito	 dos	 professores”	 e	 o
“direito	 dos	 profissionais	 jurídicos”	 e	 ocupando-se	 da	 realidade	 não
judicializada,	 que	 é	muito	mais	 rica	 e	 próxima	 do	 que	 efetivamente	 ocorre	 na
vida	das	pessoas,	encontrar-se-ão	idênticos	padrões	de	diferenciação	do	Direito.
Em	 uma	 sociedade	 capitalista,	 tanto	 a	 produção	 da	 vida	 imediata,	 a
produção	 dos	 meios	 de	 existência,	 que	 compreende	 alimentos,	 habitação	 e
instrumentos	 para	 tal	 fim,	 quanto	 a	 reprodução	 da	 vida	 imediata,	 a	 produção
humana	em	si,	a	continuação	da	espécie,	para	se	valer	de	categorias	marxianas,
dependem	de	vários	atos	que	se	podem	enquadrar	perfeitamente	no	conceito	de
“atos	da	vida	civil”.
O	nascimento	e	a	morte,	fatos	 jurídicos	em	si	considerados,	produzem	ou
extinguem	relações	jurídico-privadas.	Esses	efeitos	estão	há	tempos	previstos	na
legislação	civil	brasileira,	assim	como	na	maior	parte	do	mundo.	De	entre	outras
consequências,	 o	 nascimento:	 a)	 com	 vida,	 dá	 início	 à	 personalidade	 (art.	 2o,
CC/2002);383	 b)	 com	 ou	 sem	 vida,	 demanda	 o	 registro	 público	 no	 ofício	 das
pessoas	naturais	(art.	9o,	inciso	I,	CC/2002,	c/c	arts.	50	e	53,	Lei	no	6.015/1973);
c)	 cria	 o	 direito	 ao	 nome	 e	 o	 dever	 de	 sua	 atribuição	 (art.	 54,	 Lei	 no
6.015/1973);384	d)	com	vida	do	herdeiro	esperado,	implicará	ser-lhe	“deferida	a
sucessão,	 com	 os	 frutos	 e	 rendimentos	 relativos	 à	 deixa,	 a	 partir	 da	morte	 do
testador”	(art.	1.800,	§	3o,	CC/2002).
A	 morte,	 por	 sua	 vez,	 além	 de	 outras	 hipóteses,	 implica:	 a)	 o	 fim	 da
existência	 da	pessoa	natural	 (art.	 	 6o,	CC/2002),	 ressalvados	 alguns	 efeitos	 em
relação	aos	direitos	da	personalidade	(art.	12,	parágrafo	único,	CC/2002);385	b)	a
extinção	do	contrato	de	prestação	de	serviços,	se	esta	recair	sobre	qualquer	das
partes	(art.	607);386	c)	a	supressão	da	ação	paralisante	sobre	o	direito	ao	benefício
estipulado	 em	 contrato	 de	 seguro	 de	 vida;	 d)	 a	 liquidação	 da	 quota	 do	 sócio
falecido,	 com	 as	 ressalvas	 dos	 incisos	 do	 art.	 1028,	 CC/2002;387	 e)	 a
transferência	do	direito	de	superfície,	em	razão	do	falecimento	do	superficiário,
a	seus	herdeiros	(art.	1.372,	caput,	CC/2002);	f)	se	do	usufrutuário,	a	extinção	do
usufruto	 (art.	 1.410);	 g)	 a	 extinção	 da	 sociedade	 conjugal	 (art.	 1.571)	 e	 do
casamento	válido	(art.	1.571,	§	1o,	CC/2002);	h)	dos	pais	ou	do	filho,	a	extinção
do	 poder	 familiar	 (art.	 1.635,	 CC/2002);	 i)	 a	 abertura	 da	 sucessão	 (art.	 1.784,
CC/2002).388	 Todas	 essas	 situações	 desenvolvem-se	 no	 âmbito	 de	 um	 sistema
normativo	 que	 se	 convencionou	 denominar,	 a	 depender	 do	 marco	 histórico
escolhido	(Roma,	Alta	Idade	Média,	Renascimento	ou	século	XIX),	de	“sistema
de	Direito	Privado”.
Franz	 Bydlinski	 demonstra	 a	 razão	 pela	 qual	 o	Direito	 Privado	 é	 tão	 ou
mais	significativo	nos	dias	atuais	do	que	no	passado.	Em	seu	entendimento,	na
verdade,	por	efeito	de	uma	relativa	melhoria	do	bem-estar	econômico	das	gentes,
pode-se	até	dizer	que	sua	importância	nunca	foi	tanta	para	milhões	de	pessoas.389
Antes	de	se	passar	à	descrição	de	Bydlinski	sobre	o	alcance	inimaginável
do	Direito	Privado	na	vida	quotidiana	atual,	é	preciso	pôr	ênfase	em	uma	crítica
que	em	geral	é	feita,	mais	particularmente,	ao	Direito	Civil	do	século	XIX	e	às
respectivas	 codificações:	 era	 um	Direito	 para	 classes	 produtoras	 e	 não	 para	 as
classes	 proletárias,	 a	 se	 fazer	 recordação	 do	 livro	 do	 “catedrático	 socialista”
Anton	Menger	von	Wolfensgrün	 (1841-1906).390	Ou,	nas	palavras	de	Reinhard
Zimmermann,	“um	mundo	no	qual	a	regulação	de	enxames	de	abelhas	era	vista
como	mais	 importante	do	que	uma	sobre	as	condições	gerais	dos	contratos	(ou
cláusulas	contratuais	gerais)”,	sendo	que	“o	cidadão	típico	para	o	BGB	não	era	o
trabalhador	fabril,	mas	antes	o	empresário	endinheirado,	o	proprietário	de	terras
ou	o	servidor	público”.391
Sobre	 isso,	 parece	 que	 já	 é	 o	 suficiente.	 Não	 é	 necessário	 mais	 para	 se
alimentar	 a	 imagem	do	 século	XIX	como	um	ambiente	de	 “excessos	 liberais”,
embora	todas	essas	descrições	possam	ser	paradoxalmente	localizadas	em	países
agrários	 e	 atrasados	 economicamente,	 como	 foram	 o	 Brasil,	 a	 Áustria	 e	 a
Alemanha,	 esta	 última	 só	 até	 a	 unificação	 em	 1871	 e	 o	 doloroso	 processo	 de
industrialização	maciça	levado	a	efeito	por	Otto	von	Bismarck	e,	posteriormente,
para	fazer	frente	à	corrida	armamentista	do	final	dos	anos	1890.392	Se	era	esse	o
“século	do	Direito	Privado”,393	os	homens	e	as	mulheres	do	Oitocentos	 tinham
pouco	 o	 que	 fazer	 além	 de	 trabalhar	 (em	 linguagem	 marxista,	 produzir	 sua
existência	material)	ou	ter	filhos	(idem,	reproduzir	a	existência	humana).
Os	 tempos	de	hoje	cambiaram	de	 tal	modo	essas	questões,	a	ponto	de	os
autores	marxistas	ou	neomarxistas	procurarem	um	lugar	para	o	lazer	e	tentarem
explicar	 a	 ocupação	 do	 tempo	 livre	 da	 classe	 trabalhadora,	 na	medida	 em	que
este	só	seria	possível	com	os	excedentes	de	produção.	Tais	excedentes,	ao	menos
na	visão	marxiana	dos	 séculos	XIX	e	XX,	 seriam	apropriáveis	 exclusivamente
pelas	classes	burguesas.
Os	seres	humanos	–	e	volte-se	a	Franz	Bydlinski	e	sua	elegante	narrativa	–
iniciam	 sua	 vida	 profissional	 com	 a	 celebração	 de	 um	 contrato	 de	 trabalho
(ressalvandose,	é	claro,	a	minoria	que	a	começa	sob	o	regime	estatutário)	ou	com
a	 constituição	 ou	 o	 gerenciamento	 de	 uma	 empresa,	 o	 que	 implica,	 no	 geral,
celebrar-se	um	contrato	de	sociedade.	A	empresa	é	um	centro	de	imputação	de
negócios	da	mais	variada	ordem	e	com	múltiplas	pessoas	naturais	ou	 jurídicas
envolvidas.	 As	 pessoas	 “casam-se	 e	 têm	 filhos;	 alugam	 e	 compram	 um
apartamento	ou	uma	casa,	móveis,	carros	ou	máquinas”,	 tendo	de	conservá-los
ou	consertá-los.	E	para	tudo	isso,	que	é	parte	corriqueira	de	uma	vida	humana,
seja	em	uma	grande	cidade	ou	em	uma	vila	 interiorana,	às	vezes,	cele-bram-se
contratos	de	mútuo	para	fazer	frente	à	aquisição	de	bens	e	serviços	aos	quais	não
se	teria	acesso	sem	o	recurso	a	tais	expedientes	creditícios.394
Não	se	esqueça	das	associações,395	que	tanto	podem	servir	para	congregar
os	veteranos	em	países	com	tradições	bélicas	quanto	os	torcedores	de	um	time	de
futebol,	para	os	que	não	as	possuem.	No	Brasil,	até	à	vigência	da	Lei	no	10.825,
de	22	de	dezembro	de	2003,	que	alterou	o	art.	44,	CC/2002,	com	a	introdução	de
seu	 inciso	 IV	 e	 seu	 §	 1o,396	 igrejas	 e	 ordens	 religiosas	 haviam	de	 se	 organizar
como	associações	ou	 fundações.	Desde	 então,	 pelos	 excessos	 intervencionistas
no	 regime	 legal	 das	 associações,	 até	 por	 pressão	 das	 Igrejas,	 elas	 passaram	 a
assumir	a	 forma	de	“organizações	 religiosas”,	permanecendo,	a	despeito	disso,
no	sistema	de	Direito	Privado.397
A	vida	moderna	tem	sido	definida	como	a	expressão	de	uma	“sociedade	de
consumo”.	No	século	XIX	e	início	do	século	XX,	o	camponês	da	Alta	Silésia	ou
das	 fazendas	de	café	do	 interior	de	São	Paulo	 teria	muita	 sorte	 se	conseguisse
comprar	e	manter	um	par	de	sapatos	para	cada	um	de	seus	filhos	assistirem	às
missas	 dominicais.	Nos	 dias	 de	 hoje,	 porém,	 o	 trabalhador	 urbano	 ou	 rural,	 o
profissional	liberal	ou	o	capitalista	não	mais	se	identificam	por	signos	exteriores
de	classe,	como	as	roupas,	a	 linguagem	ou	o	sotaque,	o	acesso	a	determinados
“prazeres	burgueses”	como	o	esporte,	os	concertosmusicais	ou	as	viagens.398	Na
verdade,	 explica	Ulrich	 Beck,	 a	 antiga	 diferenciação	 de	 “classe”	 é	 substituída
por	distintos	“padrões	de	consumo”.399
No	 século	 XXI,	 um	 professor	 de	 fonética	 como	 a	 personagem	 Henry
Higgins	teria	muita	dificuldade	em	encontrar	uma	Eliza	Doolittle,	uma	simples
vendedora	 de	 flores,	 com	 sotaque	 característico	 da	 periferia	 de	 Londres,	 e
transformá-la	 em	 uma	 dama	 da	 alta-roda,	 como	 Sir	 George	 Bernard	 Shaw
fantasia	em	Pigmalião,	sua	peça	de	1913,	da	qual	resultou	o	filme	My	fair	lady
(1964).	Dificilmente	o	professor	encontraria	uma	mulher	londrina	envergonhada
de	seu	sotaque	e	não	faria	muita	diferença	qual	seu	acento,	caso	ela	tivesse	(ou
aparentasse	 ter)	 dinheiro.	Não	 que	 as	 desigualdades	 sociais	 tenham	 diminuído
sensivelmente,	mas	as	relações	de	classe	mudaram	no	sistema	capitalista	a	ponto
de	mascarar	as	assimetrias	profundas	na	distribuição	de	 renda	por	meio	de	um
acesso	fácil	ao	crédito	e	ao	consumo.
A	 quantidade	 de	 contratos	 que	 um	 ser	 humano	 celebra	 diariamente	 é
incomparável	 com	 qualquer	 outro	 período	 histórico.	 O	 agricultor,	 o	 pequeno
comerciário,	o	fazendeiro,	o	militar	e	o	sacerdote	dos	fins	da	Belle	Époque	nem
sonhavam	que	seus	descendentes	precisariam	contratar	com	tal	 intensidade	um
século	depois	da	chegada	dos	cavaleiros	do	Apocalipse	em	1914.400
Na	 atualidade,	 inúmeros	 são	 os	 contratos	 que	 se	 substituíram	 os
tradicionais	 instrumentos	 particulares	 por	 tickets,	 correspondências	 eletrônicas,
imagens	 na	 Internet	 ou	 por	 atos	 puramente	 mecânicos,	 reservando-se	 os
instrumentos	públicos	para	atos	mais	solenes	e	aparentemente	representativos	de
objetos	mais	valiosos.	Aparentemente	porque	milhões	são	negociados	em	bolsas
de	 valores	 por	 meros	 atos	 mímicos	 (os	 gestos	 dos	 operadores	 bursáteis)	 ou
toques	em	um	computador.	Quanto	às	formas	mais	simplificadas,	nem	por	isso
deixaram	de	imprimir	nas	pessoas	o	respeito	aos	contratos.
Direitos	 da	 personalidade	 e	 seus	 reflexos	 patrimoniais	 também	 se
sujeitaram	ao	ambiente	negocial.	Imagem,	voz,	criações	literárias	ou	puramente
artísticas	cons-tituem-se	na	base	de	uma	indústria	de	proporções	mundiais,	capaz
de	movimentar	bilhões	de	divisas.401	O	velho	contrato	de	prestação	de	serviços,
praticamente	 restrito	 a	 vínculos	 entre	 pessoas	 jurídicas	 ou	 a	 um	 círculo
privilegiado	de	pessoas	naturais,	recobrou	importância	nas	últimas	décadas,	seja
pelo	 dramático	 processo	 de	 flexibilização	 das	 relações	 de	 trabalho,	 seja	 pelo
surgimento	de	novos	 arranjos	 colaborativos	 (muitos	deles	meros	biombos	para
uma	exploração	capitalista	“tecnológica”)	inerentes	à	4a	Revolução	Industrial.
No	 século	 XIX,	 as	 ferrovias	 transformaram	 os	 meios	 de	 transporte
terrestre,	 que	 se	 mantiveram	 quase	 inalterados	 desde	 antes	 de	 Cristo.	 Na
atualidade,	 as	opções	multiplicaram-se.402	Do	 carro,	 adquirido	por	 um	contrato
de	compra	e	venda	com	alienação	fiduciária,	aos	ônibus,	metrôs,	aviões	e	navios.
Desses	transportes,	decorrem	uma	série	de	danos,	os	quais	se	reproduziram	em
escala	exponencial,	a	ponto	de	gerar	câmbios	profundos	no	Direito.	As	primícias
ocorreram	 na	 jurisprudência,	 depois	 as	 mudanças	 vieram	 pela	 via	 legislativa,
como	 o	 Decreto	 no	 2.681,	 de	 7	 de	 dezembro	 de	 1912,	 que	 regula	 a
responsabilidade	civil	nas	estradas	de	ferro.	Por	fim,	deu-se	a	evolução	na	teoria
do	Direito	Civil,	com	a	sistematização	da	responsabilidade	objetiva	fundada	no
risco,	posteriormente	generalizada	no	art.	927,	parágrafo	único,	CC/2002.
A	 propriedade,	 mesmo	 extremamente	 limitada	 por	 restrições
administrativas,403	 ambientais	 ou	 tributárias,	 ainda	 é	 uma	 categoria	 central	 no
sistema	de	Direito	Privado.	Os	direitos	vicinais	apresentam	novas	externalidades
ligadas	 à	 proteção	 ambiental.	Em	paralelo,	 ocorrem	 rápidas	 transformações	 no
campo	da	organização	horizontal	das	moradias,	das	novas	formas	condominiais
e	do	compartilhamento	do	uso	das	coisas.	A	multipropriedade	é	um	exemplo	da
força	 criativa	 da	 autonomia	 privada,	 que	 punha	 em	 causa,	 segundo	 parte	 da
doutrina,	a	própria	tipicidade	dos	direitos	reais,404	até	que	a	Lei	no	13.777,	de	20
de	dezembro	de	2018,	instituísse	o	condomínio	em	multipropriedade,	o	que,	na
prática,	 significou	 sua	 positivação	 legislativa.	A	História	 do	Direito	 Privado	 é
plena	de	exemplos	de	negócios	 jurídicos	concebidos	no	âmbito	dos	usos	e	das
práticas	 do	 povo	 que	 foram	 tipificados	 legalmente	 após	 longo	 tempo	 de	 bem-
sucedida	experiência	 social.	A	 junção	dessas	mudanças	no	perfil	dos	 institutos
com	a	chegada	das	novas	tecnologias	determinou	o	surgimento	de	um	contrato
de	locação	de	espaços	em	propriedades	urbanas,	por	meio	eletrônico,	conhecido
internacionalmente	 pelo	 nome	 da	 empresa	 pioneira	 no	 setor	 (Airbnb).	Alguém
interessado	em	visitar	uma	cidade,	por	meio	de	seleção	de	ofertas	em	aplicativo
da	 Internet,	 contrata	por	prazo	determinado	o	compartilhamento	de	espaços	na
habitação	de	outrem,	com	ou	sem	direito	a	refeições	e	outras	comodidades.	Esse
negócio	eletrônico	tem	posto	em	causa	a	violação	ou	não	de	normas	e	posturas
municipais,	 regras	 tributárias	 e	 até	 mesmo	 concorrenciais,	 dada	 a	 identidade
parcial	de	objeto	com	os	hotéis	e	a	assimetria	regulatória	em	favor	do	Airbnb.
Em	França,	há	uma	 tentativa	de	 se	 reelaborar	 teoricamente	os	direitos	de
garantia,	que	se	tornariam	uma	província	autônoma	dentro	do	Direito	Civil,	a	ser
aprovada	a	regulação	proposta	por	Michel	Grimaldi.405
Famílias	 são	 constituídas	 de	 formas	 inteiramente	 novas.	 O	 casamento
fundado	 na	 legitimidade	 passou	 a	 coexistir	 com	 a	 união	 estável.	 Os	 pactos
antenupciais,	 que	 eram	 exclusivamente	 dotados	 de	 conteúdo	 econômico,
avançaram	 sobre	 questões	 morais.406	 Preocupações	 anteriormente	 restritas	 a
pessoas	 de	 alta	 renda	 são	 hoje	 comuns	 a	 nubentes	 de	 classe	 média,	 que	 se
preocupam	com	a	administração	do	patrimônio,	o	que	tem	levado	ao	crescimento
na	adoção	do	regime	de	separação	convencional	de	bens.	O	Direito	de	Família
passou	 a	 se	 interessar	 por	 temas	 como	 a	 reparação	 de	 danos	 por	 abandono
afetivo407	 e	 a	 violação	 de	 deveres	 conjugais.408	 As	 holdings	 familiares	 surgem
como	 forma	 alternativa	 de	 resolver	 problemas	 patrimoniais	 anteriormente
limitados	ao	Direito	de	Família.409
A	morte	cada	vez	mais	se	dessacraliza	e	converte-se	em	algo	a	ser	evitado
a	 todo	 custo.	 Os	 cuidados	 com	 a	 saúde	 tornaram	 o	 esporte	 e	 a	 ginástica	 uma
obsessão	 coletiva	 no	 final	 do	 século	XX,	 algo	 que	 não	 conhece	 diferenças	 de
classe.	A	privatização	dos	 seguros-saúde	 substituiu	 a	 centralidade	dos	 serviços
públicos,	 mesmo	 para	 setores	 da	 classe	 trabalhadora.	 Embora	 não	 se	 tenha
experimentado	uma	mudança	sensível	nos	hábitos	do	povo	brasileiro	quanto	ao
testamento,	o	Direito	das	Sucessões	voltou	a	ganhar	vitalidade,	especialmente	na
Europa,	 onde	 ele	 tem	 criado	 espaços	 comuns	 com	 o	 Direito	 Societário.410	 A
compra	 e	 venda	 de	 imóveis	 passou	 a	 se	 utilizar	 da	 morte	 para	 se	 calcular	 a
depreciação	 de	 um	 bem	 e	 transformar	 o	 direito	 de	 propriedade	 em	 direito	 de
usufruto.
Em	 todas	 essas	 subdivisões	 do	 Direito	 Civil,	 surge	 a	 necessidade	 de
proteção	 dos	 direitos	 no	 âmbito	 judicial.	 A	 posse	 turbada	 e	 a	 propriedade
invadida	 demandam	 o	 recurso	 a	 meios	 processuais	 cabíveis.	 Atravessa-se
rapidamente	a	ponte	e	chega-se	ao	Direito	Público,	mas	é	o	Direito	Civil	quem
fornece	os	elementos	conceituais	sobre	esbulho,	turbação	e	reivindicação.
Os	 credores	 exercem	 suas	 pretensões	 em	 face	 dos	 devedores	 a	 partir	 de
conceitos	como	mora	e	inadimplemento.	As	vítimas	de	delitos	civis	postulam	em
juízo	 a	 fim	 de	 obter	 reparações,	 pensionamentos	 ou	 cominações	 de	 caráter
inibitório	 e	 preventivo.	 O	 fator	 tempo	 é	 determinante	 para	 o	 exercício	 dessas
prerrogativas	jurídicas.
A	prescrição	ea	decadência,	dois	institutos	tipicamente	civis,	regulam	essa
matéria.411	A	diferenciação	de	prazos	prescricionais	relativos	ao	Direito	Público
é	objeto	de	centenas	de	decisões	judiciais,412	que	demarcam	a	incidência	ou	não
do	art.	1o	do	Decreto	no	20.910,	de	6	de	janeiro	de	1932,	com	o	prazo	quinquenal
idêntico	ao	previsto	no	CC/1916,	com	a	interrupção	da	prescrição	limitada	a	uma
única	vez	e	sua	nova	fluência	“passaria	a	ser	da	metade	apenas	daquele	prazo”.413
A	prescrição	no	Direito	Tributário,	embora	conserve	os	elementos	essenciais	da
prescrição	no	Direito	Civil,	apresenta	notórias	diferenças	quanto	a	esta,	em	razão
do	regime	jurídico	publicístico	ao	qual	está	subordinada.414
§20. A	RECODIFICAÇÃO	DO	DIREITO	CIVIL	E	OS	ESPAÇOS	NORMATIVOS
DO	DIREITO	PRIVADO
Todos	 os	 exemplos	 aqui	 oferecidos	 dizem	 respeito	 a	 espaços	 típicos	 do
Direito	Privado	e	do	Direito	Civil,	consideradas	as	 fronteiras	desenhadas	pelos
códigos	 oitocentistas	 e	 pelas	 codificações	 tardias.	 Em	 geral,	 salvo	 situações
muito	 particulares	 como	 o	 Direito	 do	 Consumidor,	 não	 houve	 ampliação	 dos
espaços	 normativos	 e	 sim	 dilatação	 ou	 transformação	 das	 hipóteses	 fáticas
anteriormente	 coloridas	 por	 aquelas	 regras.	 O	 Direito	 Civil,	 com	 sua	 tradição
histórico-romanística	e	sua	condição	de	um	produto	da	cultura	e	do	humanismo,
teve	capacidade	para	se	adaptar	e	oferecer	soluções	a	novos	problemas	com	base
em	institutos	não	tão	modernos.415
Sob	o	aspecto	estritamente	normativo,	uma	distinção	quanto	ao	modo	de	se
organizarem	 as	 regras	 e	 os	 princípios	 de	Direito	 Privado	 e	 de	Direito	 Público
também	 se	 mostra	 perceptível	 com	 alguma	 facilidade.	 O	 sistema	 de	 Direito
Privado	 encontrou	 nas	 codificações	 dos	 séculos	 XIX,	 XX	 e	 XXI	 sua	 natural
forma	 de	 expressão.	 Os	 vaticínios	 sobre	 o	 fim	 da	 “era	 das	 codificações”,
originalmente	 encontrados	 na	 obra	 de	 Natalino	 Irti,	 mostraram-se	 falhos.416
Mesmo	 sob	 críticas	 severas,	 de	 catedráticos	 dos	 mais	 respeitados,	 que
assinalavam	 a	 desnecessidade	 ou	 o	 caráter	 anacrônico	 do	 projeto	 que	 se
converteria	no	CC/2002,	o	novo	código	terminou	por	se	concretizar	e	hoje	boa
parte	 das	 restrições	 a	 ele	 foram	 substituídas	 por	 um	 discurso,	 às	 vezes,	 até
efusivo.417
No	 Direito	 Comparado,	 nos	 últimos	 40	 anos,418	 a	 codificação
(especialmente	 nos	 países	 da	Europa	 do	Leste)	 e	 a	 recodificação419	mostraram
sinais	 de	 fecundidade.	 A	 mera	 observação	 empírica	 serve	 para	 expor	 essa
tendência,	ao	estilo	dos	seguintes	novos	códigos	civis:	a)	Nepal	(2017,	em	vigor
desde	2018);	b)	Argentina	(2015,	que	passou	a	 tratar	de	matéria	comercial);	c)
República	Checa	(em	vigor	desde	2014,	aprovado	em	2012,	revogou	quase	uma
centena	de	 leis	e	recodificou	o	Direito	Internacional	Privado);	d)	Romênia	(em
vigor	desde	2011,	embora	aprovado	em	2009,	que	substituiu	o	Código	Civil	de
1865,	o	Código	Comercial	de	1887	e	o	Código	de	Família	de	1954);	e)	Timor-
Leste	 (2011);	 f)	 Rússia	 (2008,	 quando	 entrou	 em	 vigor	 a	 Parte	 IV,	 sobre
propriedade	 intelectual,	 embora	 sua	 Parte	 I	 seja	 datada	 de	 1994,	 em	 vigor	 em
1995);	g)	Brasil	(2002);	h)	Lituânia	(2000);	 i)	Macau	(1999);	 j)	Quebec	(1994,
substituiu	 o	 Código	 Civil	 do	 Baixo	 Canadá,	 de	 1865).	 Registrem-se	 ainda	 a
anunciada	elaboração	de	um	código	civil	para	a	República	Popular	da	China	e	os
debates	 sobre	 a	necessidade	de	um	código	 civil	 para	 a	 Índia.	As	 reformas	dos
códigos	 da	 Holanda	 (1992),	 da	 Alemanha	 (2002)	 e	 da	 França	 (2016)	 são
exemplos	da	vitalidade	do	modelo	de	organização	e	sistematização	das	normas
de	Direito	Civil	na	contemporaneidade.420
§21. FATORES	 CULTURAIS,	 TEÓRICOS,	 PRÁTICOS	 E	 significativo-
ideológicos
Os	 elementos	 descritivos	 e	 normativos	 apresentados	 neste	 §	 21
correspondem,	 com	 maior	 ou	 menor	 simetria,	 aos	 fatores	 culturais,	 teóricos,
práticos	 e	 significativoideológicos,	 desenvolvidos	 por	 António	 Menezes
Cordeiro	para	comprovar	o	caráter	sistemático	da	divisão	entre	Direito	Público	e
Direito	Privado.421
Os	 fatores	 culturais	 levam	 à	 recondução	 da	 normatividade	 privada	 ao
modelo	dos	códigos,	diferentemente	do	que	se	deu	no	âmbito	do	Direito	Público,
que,	embora	disponha	de	um	texto	constitucional	como	seu	vértice	e	de	códigos
setoriais	 (tributário,	 penal,	 processual	 penal),	 não	 encontrou	 um	 modelo
equivalente	no	plano	ordinário	para	o	Direito	Administrativo.	Os	fatores	teóricos
relacionam-se	ao	que	se	expôs	em	relação	às	diversas	construções	teoréticas	que
procuraram	 explicar	 os	 fundamentos	 da	 “distinção	 sistemática”.	 Os	 fatores
práticos	 radicam-se	 no	 “perfil	 acadêmico,	 literário,	 jurisprudencial	 ou
profissional”,	 que	 levou	 à	 “repartição	 das	 disciplinas	 jurídicas,	 as	 literaturas
especializadas,	as	jurisdições	e	as	próprias	profissões	dos	juristas”.422	Os	fatores
significativo-ideológicos	 resultam	 no	 espaço	 de	 proteção	 dos	 particulares,
“evitando	 intromissões	 arbitrárias	 e	 dando	 corpo	 a	 estruturas	 que	 facultem	um
mínimo	de	previsibilidade	dentro	do	espaço	jurídico-social”.423	Sobre	este	último
grupo	de	fatores,	é	de	se	reforçar	o	que	se	disse	sobre	a	oposição	histórica	dos
regimes	 autoritários	 ou	 totalitários	 à	 summa	 divisio	 e	 à	 autonomia	 do	 Direito
Privado.	As	 codificações	 civis	 aprovadas	 durante	 esses	 regimes	 ressentiram-se
dessa	 invasão	 de	 fronteiras	 e	 da	 baixa	 proteção	 aos	 indivíduos,	 o	 que	 levou	 a
reformas	 ou	 a	 um	 processo	 de	 decadência	 do	 Direito	 Privado	 como	 agente
autárquico	de	proteção	das	 liberdades	 individuais	e	pela	atribuição	desse	papel
às	constituições,	como	terminou	por	ocorrer,	por	exemplo,	na	Itália.
§22. OBJEÇÕES	 E	 FUNDAMENTOS	 CONTEMPORÂNEOS	 PARA	 A
MANUTENÇÃO	DA	“DISTINÇÃO	SISTEMÁTICA”
Não	seria	suficiente	a	exposição	desse	conjunto	de	fatores	para	justificar	a
persistência	 contemporânea	 da	 “grande	 dicotomia”.	 Importa	 examinar	 algumas
das	objeções	que	se	lhe	fazem	e	é	disso	que	se	ocupará	este	§	22.	Cada	objeção
refutada	produz	um	fundamento	à	preservação	da	“grande	dicotomia”.
a)	 Publicização	 do	 Direito	 Privado.	 Foi	 amplamente	 comprovada	 a
ampliação	dos	espaços	de	incidência	normativa	do	Direito	Civil	em	face	de	uma
pluralidade	 de	 novos	 suportes	 fáticos	 e	 eventos	 da	 vida	 social.	 Os	 mesmos
artigos	codificados	em	1916	e	reproduzidos	(ou	parcialmente	alterados)	em	2002
passaram	 a	 reger	 um	 número	 impressionante	 de	 novas	 situações	 ou	 a	 atingir
milhares	 de	 novos	 destinatários,	 cujos	 antepassados	 jamais	 sonharam	 com	 a
possibilidade	de	nelas	tomar	parte.
Como	 já	assinalado,	há	uma	ampla	variedade	de	 leis,	 regimes	 jurídicos	e
matérias	 de	 Direito	 Público	 que	 passaram	 (i)	 a	 incorporar	 ou	 usar	 institutos,
categorias	ou	conceitos	de	Direito	Privado;	(ii)	a	ceder	espaço	à	incidência	ou	à
regulação	 do	Direito	 Privado;	 (iii)	 por	 um	 processo	 de	 reversão	 de	 influência
sobre	o	Direito	Privado,	que	se	reduziu	em	vez	de	se	dilatar,	como	indicavam	os
prognósticos	tão	firmes	dos	anos	1930-1950.
Na	era	da	Quarta	Revolução	Industrial,	nota-se	a	tendência	cada	vez	maior
de	avanço	do	Direito	Privado	sobre	as	relações	jurídicas	que	têm	surgido	sob	o
influxo	 da	 pós-digitalização.	 A	 proteção	 de	 dados	 pessoais,	 por	 exemplo,	 não
pode	 ser	 nem	 mais	 referida	 como	 uma	 “nova	 fronteira”	 do	 Direito	 Privado,
considerando-se	 a	 edição	 da	 Lei	 nº	 13.709,	 de	 14	 de	 agosto	 de	 2018	 (Lei	 de
Proteção	 de	 Dados).424	 Em	muito	 breve,	 com	 a	 popularização	 da	 internet	 das
coisas	 (IoT),425	 será	 necessária	 a	 regulação	 da	 proteção	 de	 “dados	 das	 coisas”:
uma	máquina	de	lavar	ou	uma	televisão,	submetidas	aos	processos	tecnológicos
do	 ambiente	 da	 IoT,	 funcionarão	 autonomamente	 no	 horário	mais	 propício	 ao
menor	consumo	de	energia	elétrica,	calcularão	a	quantidade	adequada	de	água	e
sabão	para	o	tipo	de	roupa	(sem	comando	humano),	selecionarão	programasde
interesse	do	usuário	de	modo	muito	mais	preciso	que	os	algoritmos	atuais.	Tudo
isso	 gerará	 um	 número	 fabuloso	 de	 informações	 sobre	 as	 coisas,	 que,	 porém,
indiretamente,	 revelarão	os	hábitos,	os	desejos	e	a	 localização	das	pessoas.	Na
era	dos	dados,426	esses	elementos	informacionais	valerão	fortunas.	Dito	de	outro
modo,	 a	 Economia	 da	 Quarta	 Revolução	 Industrial	 centrar-se-á	 no	 valor
atribuível	aos	dados,	o	qual	será	exponencialmente	maior	a	cada	ano.427
Dados	monetizáveis,	eis	um	elemento	novo	em	uma	discussão	antiga	sobre
o	conceito	e	as	funções	de	privacy,	que	não	corresponde	tão	somente	à	“esfera
mais	 nuclear	 da	 vida	 privada”	 (acepção	 franco-alemã)	 nem	 ao	 espaço	 das
“relações	íntimas	entre	as	pessoas”	ou	do	right	to	be	left	alone	(o	direito	de	ser
deixado	em	paz),	as	duas	apresentadas	como	acepções	norte-americanas.	A	nova
privacy	insere-se	no	acesso	e	no	fluxo	de	dados	pessoais,428	que	se	desdobra	em:
a)	controle	de	acesso	e	uso	dos	dados	que	“constituem	sua	identidade	pessoal	e
permitem	o	livre	desenvolvimento	de	sua	personalidade”;	b)	o	conteúdo	desses
dados	açambarca	elementos	como	“opinião	política,	convicções	religiosas,	vida
sexual,	dados	de	saúde	e	dados	genéticos”.429	O	consentimento	do	acesso	a	dados
pessoais,	 que	 é	 tratado	 de	 modo	 displicente	 pelos	 usuários	 da	 Internet,	 será
colocado	em	outro	patamar	quando	a	IoT	se	difundir	como	padrão	na	indústria
automobilística,	de	eletrônicos	e	eletrodomésticos.
A	 regulação	 da	 proteção	 de	 dados	 era	 outro	 exemplo	 típico	 de	 uma
atribuição	primária	do	Direito	Civil,	embora	houvesse	sérias	dúvidas	sobre	sua
base	 legislativa	 imediata,430	 o	 que	 implicava,	 por	 exemplo,	 discutir	 se	 era
suficiente	o	recurso	a	normas	já	vigentes,	como	o	CDC.431
Não	 se	 pode	 negar	 que	 o	 CC/2002,	 no	 que	 se	 refere	 aos	 direitos	 da
personalidade,	possuía	a	primazia	no	tratamento	dessa	questão.432	Com	a	edição
da	Lei	nº	13.709/2018,	o	Brasil	passou	a	contar	com	uma	legislação	especial	de
proteção	de	dados	pessoais,	ainda	em	vacatio	legis.	A	Lei	de	Proteção	de	Dados
também	 possui	 normas	 que	 veiculam	 conteúdos	 típicos	 de	 direitos	 da
personalidade,	 o	 que	 remete	 ao	 Código	 Civil	 o	 papel	 de	 fonte	 complementar
nesse	âmbito.
Não	se	pretende	obviamente	reforçar	o	discurso,	que	já	apresenta	sinais	de
fadiga,	da	publicização	do	Direito	Privado	(ou	do	Direito	Civil)	e	da	privatização
(ou	civilização)	do	Direito	Público.	Ele	está	hoje	mais	próximo	de	um	slogan,
muito	eficaz	e	sonante,	reconheça-se,	do	que	de	um	conceito	operacional.
A	 descrição	 histórica,	 fática	 e	 da	 evolução	 normativa	 serviu	 a	 um
propósito:	 negar	 atualidade	 e	 serventia	 ao	 discurso	 da	 publicização.	 Ele	 é
historicamente	datado,	atendeu	a	propósitos	ideológicos,	de	variada	matriz,	e	a
diferentes	 senhores,	 inclusive	 regimes	 políticos,	 não	 sendo	 mais	 comprovável
empiricamente.	Ele	 também	é	pouco	útil	 como	argumento	axiomático	 sobre	 as
“transformações	do	Direito	Civil”.
Franz	 Bydlinski,	 a	 esse	 respeito,	merece	 nova	menção.	 Em	 seu	 texto	 de
1994,	 ele	 era	um	observador	privilegiado	do	 fim	da	 experiência	do	 socialismo
real	na	Europa	do	Leste.	Era	um	momento	de	euforia	para	muitos	dos	europeus,
mas	 que,	 rapidamente,	 conheceram	 a	 face	 oculta	 do	 sistema	 capitalista,	 após
setenta	 anos	de	proteção	 sob	o	 regime	comunista.	Bydlinski,	 que	não	 se	deixa
empolgar	 por	 aquele	 momento	 histórico,	 toca	 em	 um	 ponto	 central	 para	 este
capítulo	da	tese:	o	caráter	irracional,	imprevisível	e	incontrolável	dos	processos
históricos.	 Como	 ele	 afirmou,	 “as	 coisas	 ocorrem	 de	 forma	 contraditória	 e
fortuita”.433	 A	 Europa	 pós-comunista	 submeteu-se	 a	 um	 processo	 radical	 de
liberalização,	desestatização	e	de	quebra	do	aparato	social	dos	Estados	nacionais.
A	Europa	Ocidental,	 fundada	nas	bases	da	Comunidade	Europeia	 e,	 depois	do
Tratado	 de	Maastricht,	 na	 União	 Europeia,	 tornou-se	 “uma	 espécie	 de	 Super-
Estado”,434	 com	 a	 burocracia	 de	 Bruxelas	 a	 se	 contagiar	 por	 uma	 doença
legisferante	 –	 a	 nomomania	 -,	 com	 diretivas	 sobre	 tudo	 e	 os	 mais	 diversos
campos	da	vida	pública	e	privada	dos	europeus,	o	que	conduziu	a	uma	sucessiva
contestação	 quanto	 ao	 déficit	 democrático	 dessa	 forma	 de	 governança.	 Não	 é
sem	motivo	que	haja	reações	tão	fortes	hoje	no	Reino	Unido	da	Grã-Bretanha	e
Irlanda	 do	 Norte	 (já	 consubstanciada	 no	 Brexit),	 em	 França,	 Alemanha	 e
Holanda,	para	se	limitar	aos	países	mais	ricos	do	bloco.
Não	é	mais	sustentável	defender	a	publicização	com	base	em	argumentos
de	meados	do	século	XX.	Muito	menos	é	correto	falar	em	uma	privatização	do
Direito	 Público	 como	 efeito	 de	 um	 avanço	 da	 ideologia	 neoliberal.	 Haverá
contingências	históricas	em	um	ou	em	outro	sentido.	O	importante	é	que,	mesmo
com	 essas	 ondas	 a	 se	 esbater	 nos	 rochedos,	 o	 fundamento	 histórico	 não	 é
suficiente	para	se	eliminar	a	divisão	sistemática.	Menos	ainda	é	útil	ou	coerente
partir	 para	 soluções	 sincréticas,	 que	 não	 tragam	 respostas	 para	 alguns	 dos
conflitos	que	se	verificam	nas	fímbrias	entre	as	duas	grandes	áreas	do	Direito.
b)	Problemas	de	delimitação	e	retroalimentação	de	conceitos,	institutos	e
categorias	 jurídicas.	Há	um	bloco	de	matérias,	 relações	 jurídicas	 e	 normas	de
Direito	Privado,	cujas	características	autárquicas	se	mantiveram	e	cujos	espaços
até	se	dilataram	nas	últimas	décadas.
A	maior	parte	dos	críticos	da	diferenciação	específica	entre	Direito	Privado
e	 Direito	 Público	 louvam-se	 nos	 problemas	 de	 delimitação	 nas	 zonas	 de
fronteira.	 Como	 também	 já	 foi	 ressaltado,	 não	 se	 pode	 destruir	 a	 “grande
dicotomia”	 com	 base	 nos	 conflitos	 ocorridos	 em	 uma	 “terra	 de	 ninguém”
existente	nos	 limites	de	qualquer	disciplina	 jurídica.	Tais	contingências	sempre
existiram	 e	 sempre	 ocorrerão.	 Nem	 por	 isso	 elas	 são	 suficientes	 para	 apagar
todos	os	rumos	e	borrar	os	marcos	entre	essas	áreas.	Eliminar	a	summa	divisio
por	 causa	 dessas	 “sobreposições	 e	 aproximações”	 é	 substituir	 um	 critério
multissecular	pelo	arbítrio	da	escolha	ad	hoc	e	retirar	validade	aos	fundamentos
nos	 quais	 descansam	 tanto	 o	 Direito	 Público	 quanto	 o	 Direito	 Privado.	 É
preferível	manter-se	a	divisão,	com	pequenas	escaramuças	de	fronteira,	a	vê-la
ser	levantada	por	questões	ligadas	a	interesses	ideológicos	ou	pelas	vantagens	do
casuísmo	 generalizado	 na	 aplicação	 das	 regras	 jurídicas,	 cujos	 efeitos	 já	 se
fazem	 sentir	 por	 toda	 a	 ordem	 jurídica	 em	 vários	 sentidos	 e	 em	 diversos
campos.435
O	 Direito	 sempre	 trabalhou	 com	 tais	 conflitos	 vicinais	 ou	 com	 a
retroalimentação	conceitual,	categorial	ou	institucional	entre	o	Direito	Público	e
o	Direito	Privado.	Um	dos	exemplos	mais	conhecidos,	embora	não	associado	aos
conflitos	 vicinais	 envolvendo	 essas	 áreas,	 é	 a	 independência	 relativa	 de
instância	(art.	935,	CC/2002;	art.	315,	CPC/2015;	arts.	63-68,	CPP).	Um	mesmo
ato	ilícito	pode	ser	colorido	por	normas	de	Direito	Civil,	Direito	Penal	e	Direito
Administrativo	(no	caso	de	prática	por	servidores	estatutários	e	que	possam	vir	a
responder	 processo	 administrativo-disciplinar	 pelo	 mesmo	 ato),436	 o	 que
demanda	a	solução	de	problemas	de	qualificação	jurídica	e	a	necessidade	de	se
controlar	 a	 ação	 paralisante	 sobre	 o	 exercício	 de	 pretensões	 punitivas	 pelo
Estado	 (no	 juízo	criminal	e	pela	Administração)	ou	de	pretensões	privadas	 (de
caráter	 ressarcitório).	 Em	 momento	 algum	 se	 questiona	 haver	 ruptura	 das
divisões	 sistemáticas,	 muito	 menos	 uma	 privatização	 ou	 publicização	 das
respectivas	áreas.
Outro	 exemplo,	 agora	 de	 retroalimentação,	 está	 no	 controle	 de
constitucionalidade	 das	 leis,	 que	 é	 uma	 variante	 dos	 juízos	 privatísticos	 de
nulidade	dos	atos,	e	da	interpretação	conforme	sem	redução	do	texto	normativo,
que	corresponde	a	uma	forma	publicística	da	conversão	substancial	do	negócio
jurídico,	desenvolvida	noMedievo	pelos	antigos	notários	e	registradores.437
c)	Problemas	de	qualificação.438	Se	a	“grande	dicotomia”	não	foi	abalada,
como	explicar	a	situação	dos	contratos	de	seguro,	seguro-saúde	e	de	planos	de
assistência	 médica,	 de	 previdência	 complementar,	 de	 transporte	 aeronáutico,
marítimo	 ou	 terrestre,	 de	 serviços	 de	 telecomunicações	 ou	 os	 contratos
bancários,	 que	 se	 submetem	 a	 um	 incomparável	 nível	 de	 intervenção
regulatória?
Desde	os	anos	1990,	o	Brasil	criou	agências	reguladoras	para	esses	setores
(Agência	 Nacional	 de	 Telecomunicações	 -	 ANATEL,	 Agência	 Nacional	 de
Aviação	Civil	 -	ANAC,	Agência	Nacional	 de	Transportes	 Terrestres	 -	ANTT,
Agência	Nacional	de	Transportes	Aquaviários	-	ANTAQ,	Agência	Nacional	de
Saúde	 Suplementar	 –	 ANS,	 Superintendência	 de	 Seguros	 Privados	 -	 SUSEP),
sem	que	se	esqueça	da	antiga	função	regulatória	do	Banco	Central	do	Brasil	e	do
CMN,	órgãos	que	sucederam	o	Banco	do	Brasil	e	a	Superintendência	da	Moeda
e	do	Crédito-	SUMOC	nesses	misteres.439	Essas	agências,	com	maior	ou	menor
poder	 regulatório,	 atuam	 em	 espaços	 de	 deslegalização	 total	 ou	 parcial,
permitindo	 que	 exerçam	 funções	 tipicamente	 normativas,	 decisórias	 e
executivas.	 Diante	 desse	 cenário,	 qual	 o	 espaço	 para	 o	 Direito	 Civil	 e,	 por
consequência,	o	Direito	Privado?
Todos	esses	contratos	não	deixaram	de	ser	civis	ou	comerciais.	Em	todos
eles	permanecem	os	elementos,	os	requisitos	e	os	fatores	eficaciais	previstos	na
legislação	ordinária	geral	ou	especial,	em	cujo	âmbito	foram	criados	(a	se	valer
da	 imagem	 da	 criação	 dos	 negócios	 jurídicos	 pela	 sociedade	 antes	 de	 sua
“entrada”	para	o	mundo	dos	tipos440)	e,	posteriormente,	normatizados,	tipificados
e	 generalizados.	 Um	 contrato	 de	 transporte	 ou	 um	 contrato	 de	 seguro
encontrarão	tais	elementos,	requisitos	e	fatores	no	Código	Civil.
Durante	 boa	 parte	 do	 século	 XX,	 não	 apenas	 no	 Brasil,	 parcela	 desses
contratos	foi	afetada	pelo	Direito	Público	por	causa	da	introdução	de	um	sujeito
de	 direito	 público	 (órgãos,	 autarquias	 ou	 fundações)	 ou	 de	 direito	 privado	 de
caráter	 paraestatal	 (sociedades	 de	 economia	 mista	 ou	 empresas	 públicas)	 na
relação	jurídica.	Nos	anos	1950,	em	muitos	países,	eram	estatais	as	companhias
ferroviárias,	 as	 companhias	 telefônicas,	 as	 empresas	 de	 transporte	 coletivo,	 as
companhias	de	navegação	aérea	e	marítima,	e	até	mesmo	bancos	(lembrar-se	do
modelo	 socialista	 francês	pós-1981)	operavam	em	 regime	de	monopólio	ou	de
concessões,	permissões	e	autorizações.
Segundo	 as	 teorias	 subjetivas,	 seria	 até	 mesmo	 possível	 discutir	 se	 os
negócios	 jurídicos	 celebrados	 com	 esses	 entes	 ou	 órgãos	 seriam	 contratos
administrativos	ou	contratos	privados	com	sujeitos	públicos.	Em	uma	ou	outra
hipótese,	 seria	 inevitável	 a	 utilização	 de	 institutos	 ou	 princípios	 próprios	 do
Direito	 Público.	 No	 atual	 cenário,	 de	 ampla	 privatização	 desses	 serviços	 na
maior	parte	do	mundo,	a	definição,	a	partir	do	sujeito,	sobre	qual	a	natureza	da
relação	jurídico-contratual	tornou-se	menos	relevante.
A	 substituição	 do	Estado	 por	 agentes	 privados	 na	 oferta	 ou	 na	 prestação
direta	ou	indireta	desses	bens	e	serviços	deu	lugar	ao	modelo	de	regulação,	que
prepondera	 nas	Américas	 e	 na	 Europa	 desde	 os	 anos	 1980-1990.	Com	 isso,	 a
análise	desses	negócios	jurídicos	exige	do	contratante	ou	do	intérprete	(judicial
ou	administrativo)	a	necessidade	de	resolver	problemas	de	qualificação	jurídica.
Esse	tipo	de	expediente	não	é	algo	novo.	O	Direito	Privado	com	ele	já	convive
há	tempos,	com	maior	ou	menor	sucesso.	Se	duas	partes	celebrassem,	em	1995,
um	contrato	de	compra	e	venda	de	uma	escultura,	uma	caneta-tinteiro	ou	um	ar-
condicionado	 e	 o	 comprador	 identificasse	 um	 vício	 redibitório	 em	 quaisquer
desses	 objetos,	 qual	 o	 prazo	 para	 se	 pretender	 a	 devolução	 da	 coisa	 ou	 o
abatimento	 do	 preço?	 Seria	 de	 10	 dias,	 se	 a	 relação	 fosse	 qualificada	 como
comercial.441	Poderia	ser	de	15	dias,	no	entanto,	se	qualificada	como	de	Direito
Civil,442	ou	de	30	dias,	se	de	Direito	do	Consumidor.443
Com	 a	 revogação	 da	 Parte	 Primeira	 do	 CCom/1850	 pelo	 art.	 	 2.045	 do
CC/2002,	 essa	 questão	 ficou	 limitada	 aos	 prazos	 do	 Código	 Civil	 e	 do	 CDC.
Somente	 em	 10	 de	 novembro	 de	 2004,	 após	mais	 de	 uma	 década	 de	 dissídio
jurisprudencial,	 o	STJ	 definiu	 um	 critério	 para	 essas	 qualificações,	 adotando	 a
tese	 minimalista	 ou	 subjetiva	 moderada	 para	 as	 relações	 de	 consumo,	 no
julgamento	do	REsp	541.867/BA.444	Embora,	até	hoje,	“com	certa	frequência,	os
rigores	da	aplicação	da	teoria	finalista	têm	sido	atenuados	em	julgados	nos	quais
se	 admite	 a	 incidência	 do	 Código	 de	 Defesa	 do	 Consumidor	 em	 relações
jurídicas	 envolvendo	 consumidores	 profissionais,	 quando	 comprovada	 sua
vulnerabilidade	técnica,	jurídica	ou	econômica”.445
Se	 é	 válido	 resolver	 problemas	 dessa	 natureza	 por	 meio	 da	 qualificação
jurídica,	 sê-lo-á	 com	maior	 interesse	 e	 eficácia	 em	 relação	 aos	 conflitos	 sobre
qual	 (ou	 quais)	 regime(s)	 jurídico(s)	 deve	 ser	 aplicável	 a	 um	 determinado
contrato	 (ou	a	partes	dele)	 submetido(s)	 à	 regulação.	A	 jurisprudência	do	STJ,
nos	 anos	 2000,	 demonstrou	 essa	 possibilidade	 e	 serve	 para	 se	 comprovar
praticamente	a	utilidade	desse	mecanismo.
É	 emblemático	 o	 exemplo	 do	 grupo	 de	 casos	 sobre	 a	 cobrança	 de
assinatura	 básica	 dos	 usuários	 do	 Serviço	 Telefônico	 Fixo	 Comutado,	 que,	 à
época,	era	preponderante	no	sistema	de	telecomunicações	do	Brasil.	Na	prática,
o	usuário	teria	de	pagar	um	valor	fixo	mensal	à	companhia	de	telecomunicações,
utilizando	ou	não	aquele	serviço.	Na	raiz	da	questão,	estava	o	seguinte	conflito:
qual	o	regime	jurídico	que	deveria	prevalecer?	O	regulatório-administrativo	ou	o
privatístico,	particularmente	o	do	CDC?	As	empresas	cobravam	essa	assinatura
básica	 por	 efeito	 do	 contrato	 de	 concessão	 do	 STFC	 e	 por	 resolução	 da
ANATEL.	Por	essa	razão,	não	lhes	interessava	que	o	contrato,	nessa	parte,	fosse
considerado	 um	 negócio	 jurídico	 de	 Direito	 Privado.	 Ao	 passo	 que	 as
associações	 de	 defesa	 dos	 consumidores	 defendiam	a	 incidência	 do	CDC	e	 de
princípios	 peculiares	 ao	 Direito	 Civil,	 como	 o	 da	 equivalência	 material	 das
prestações	 (sinalagma)	 e	 a	 onerosidade	 excessiva.	 Por	 que	 se	 pagar	 pela
assinatura	básica	quando	não	havia	correlação	entre	o	valor	e	o	benefício?
No	STJ,	 prevaleceu	 a	 tese	da	 subordinação	dessa	 cláusula	do	 contrato	 às
regras	do	Direito	Administrativo	Regulador.	O	caso-líder	foi	o	REsp	no	911.802-
RS,	 que	 posteriormente	 resultou	 na	 edição	 da	 Súmula	 STJ	 356,446	 julgado	 na
Primeira	Seção	do	STJ.447
Não	é	relevante	para	esta	tese	a	descrição	pormenorizada	do	caso	e	quais	os
fundamentos	 utilizados	 pelo	 tribunal.	É	 suficiente	 saber	 que	o	STJ	procedeu	 à
qualificação	jurídica	do	contrato	e	não	entendeu	que	deveriam	prevalecer	sobre
as	 leis	e	 resoluções	de	Direito	Administrativo	Regulador,	na	espécie,	as	 regras
do	 CDC	 e	 do	 CC/2002	 sobre	 cláusulas	 abusivas,	 equilíbrio	 material	 das
prestações	e	vedação	ao	enriquecimento	sem	causa.
O	 problema	 era	 de	 qualificação	 e,	 naquele	 feixe	 de	 relações	 jurídicas,
prevaleciam	as	normas	regulatórias	por	efeito	da	Lei	no	8.987,	de	13	de	fevereiro
de	1995	(Lei	de	Concessões	de	Serviços	Públicos),	cujo	art.	9o	determina	que	a
tarifa	do	serviço	público	concedido	será	fixada	pelo	preço	da	proposta	vencedora
da	licitação.	Exigir	o	pagamento	da	assinatura	básica	era	uma	demanda	peculiar
ao	equilíbrio	econômicofinanceiro	da	concessão.	Como	reforço	argumentativo,	o
STJ	recordou	que	também	havia	julgado	um	grupo	de	casos	no	qual	se	debatia	se
os	usuários	de	companhias	de	abastecimento	de	água	poderiam	ser	obrigados	a
pagar	uma	 tarifa	mensal	mínima.	Por	 identidade	de	 razão,	o	STJ	entendeu	que
seria	 lícita	 tal	 exigência,	 “cuja	natureza	 jurídicaé	 a	mesma	da	ora	discutida,	 a
qual	 garante	 ao	 assinante	 o	 uso	 de,	 no	 máximo,	 90	 pulsos,	 sem	 nenhum
acréscimo	 ao	 valor	mensal.	 O	 consumidor	 só	 pagará	 pelos	 serviços	 utilizados
que	ultrapassarem	essa	quantificação”.448
O	voto	do	min.	Humberto	Martins,	que	tomou	parte	nesse	julgamento,	ao
se	 referir	 ao	 capítulo	 recursal	 no	 qual	 se	 alegava	 a	 incidência	 do	 CDC	 nessa
relação	 jurídica,	 foi	 mais	 preciso	 teoricamente	 do	 que	 o	 voto	 do	 relator	 do
acórdão,	 o	 que	 recomenda	 sua	 transcrição	 literal,	 com	 as	 escusas	 por	 sua
extensão,	mas	que	se	justifica	pela	importância	de	seu	conteúdo	para	esta	tese:
“Finalmente,	 tem-se	 o	 problema	 da	 aplicação	 do	 Código	 de	 Defesa	 do
Consumidor	e	da	teoria	da	onerosidade	excessiva	(art.	51,	§	1o,	II,	do	CDC).	O
relator,	em	uma	aproximação	de	figuras	 jurídicas,	afastou	essa	argumentação	e
comparou	a	assinatura	básica	à	tarifação	mínima	no	serviço	de	fornecimento	de
água,	que	é	amplamente	aceita	por	esta	Corte.	(...)
Sobre	 esse	 capítulo	 do	 recurso,	 creio	 que	 é	 necessário	 estabelecer	 uma
premissa	antecedente.
Há,	neste	Tribunal	e	em	diversos	 juízos	brasileiros,	uma	pletora	de	ações
que	tocam	o	problema	do	tensionamento	das	regras	de	Direito	do	Consumidor	e
as	 regras	 de	 outras	 províncias	 jurídicas,	 como	 o	 Direito	 Administrativo	 ou	 o
Direito	Civil.
No	campo	da	regulação	de	serviços	de	telecomunicações,	a	questão	assume
contornos	ainda	mais	perturbadores.
Em	grande	medida,	a	responsabilidade	por	essa	zona	cinzenta	é	atribuível	à
doutrina	 especializada.	 Por	 se	 dedicar	 ao	 estudo	 de	 uma	 área	 com	 grandes
interesses	 econômicos	 imediatos,	 as	 Telecomunicações,	 a	 dogmática	 setorial
mantém-se	alheia	a	problemáticas	mais	sensíveis,	como	a	Metodologia	Jurídica,
a	Filosofia	do	Direito	e	a	Teoria	do	Direito.	Esses	temas	só	frequentam	os	livros
sobre	 regulação	 como	 berloques	 ou	 enfeites,	 que	 conferem	 algum	 verniz	 ao
estudo	 publicado.	 Nada,	 porém,	 de	 se	 definir	 tecnicamente	 pontos	 essenciais
como	 se	 há	 estatuto	 científico	 próprio	 ao	Direito	 das	 Telecomunicações	 ou	 se
existem	princípios	especiais	e	afetos	a	esse	Direito.
Ora,	 se	 essa	 matéria	 fosse	 analisada	 com	 o	 rigorismo	 científico,	 não	 se
chegaria	ao	absurdo	de	se	confrontar	as	normas	de	Direito	do	Consumidor	com
as	 regras	 fundadas	 no	 Direito	 das	 Telecomunicações,	 como	 as	 ora	 debatidas
neste	recurso	especial.	A	cobrança	de	assinatura	básica	é	tema	alheio	às	relações
de	consumo,	quando	se	observa	que	seu	fundamento	é	o	regime	tarifário	advindo
da	delegação	normativa	à	ANATEL,	por	 força	da	Constituição,	e	concretizado
em	 regulamentos,	 editais	de	 licitação	e	 em	contratos	de	 concessão.	A	empresa
operadora	 do	 STFC	 -	 Serviço	 de	 Telefonia	 Fixa	 Comutada	 não	 exige	 esses
quantitativos	 com	 base	 em	 direito	 seu,	 mas,	 como	 decorrência	 da	 equação
econô-mico-financeira	que	lastreia	seu	vínculo	com	a	Administração	Pública.
O	Direito	 do	Consumidor	 qualifica	 as	 relações	 jurídicas	 entre	 usuários	 e
operadoras	 naquilo	 que	 não	 for	 objeto	 de	 regulação	 ou	 quando	 a	 regulação
extrapolar	 os	 limites	 científicos	 do	 Direito	 das	 Telecomunicações	 e	 passar	 a
invadir	 a	 órbita	 daquela	 província.	 A	 cobrança	 indevida	 de	 ligações	 não
efetuadas	é	questão	nitidamente	consumerista.	A	exigência	da	assinatura	básica,
por	 seu	 turno,	 é	 tema	 específico	 da	 regulação	 dos	 serviços	 de
telecomunicações."449
O	voto	sintetizou	com	precisão	o	problema:	o	contrato	entre	a	companhia
concessionária	e	o	consumidor	não	deixa	de	se	regular	pelo	Direito	Privado.	Mas
ele	 também	 se	 submete	 ao	Direito	Administrativo	Regulador	 e	 ao	Direito	 das
Telecomunicações.	 Haveria	 três	 ou	 quatro	 regimes	 jurídicos	 a	 disputar	 sua
incidência	 sobre	 o	 contrato	 ou	 parte	 dele.	Não	 se	 perde	 a	 natureza	 privada	 do
contrato,	mas	há	partes	dele	que	vão	se	deixar	qualificar	juridicamente	de	modo
diverso	das	previsões	do	Código	Civil	ou	do	CDC.
Não	se	pode	admitir	que	se	confunda	essa	solução,	tão	bem	fixada	no	voto
do	 min.	 Humberto	 Martins,	 com	 sincretismo	 metodológico,	 publicização	 do
Direito	Privado	ou	natureza	híbrida	do	contrato.	Essas	contingências,	ligadas	ao
processo	de	qualificação,	acham-se	presentes	em	várias	modalidades	contratuais,
particularmente	aquelas	reguladas.
Nos	 contratos	 bancários,	 outra	 modalidade	 fortemente	 regulada	 pelo
BACEN	e	pelo	CMN,	o	STJ	decidiu-se	pela	incidência	do	CDC	nessas	espécies
contratuais,450	 ainda	 que	 o	 tribunal	 haja	 reservado	 espaços	 de	 aplicação	 das
normas	dos	agentes	reguladores	do	sistema	financeiro	nacional.451
Veja-se	 agora	 a	 imensidão	 de	 contratos	 de	 Direito	 Privado	 celebrados
quotidianamente	no	Brasil	e	em	todo	mundo,	que	envolve	os	serviços	over-the-
top-contents	(OTT’s).	Quem	baixa	um	aplicativo	em	seu	telefone	celular	ou	em
seu	 computador	 pessoal,	 como	 Viber,	 Skype,	 Whatsapp,	 Netflix	 ou	 Waze
subordinar-se-á	a	normas	de	Direito	Administrativo?	Esse	ato	é	associado	a	uma
contratação	de	um	serviço,	em	geral	não	oneroso	ou	com	preços	 relativamente
módicos,	posto	que	o	utilizador	remunere	indiretamente	a	empresa	com	o	uso	de
seus	dados	pessoais,	a	cessão	de	 informações	a	 terceiros	 sobre	seus	hábitos	de
consumo	 ou	 a	 visualização	 compulsória	 de	 publicidade.	 Esses	 serviços	 não	 se
sujeitam	–	até	agora	–	a	normas	regulatórias	da	ANATEL.
Em	 mais	 uma	 demonstração	 da	 vitalidade	 do	 sistema	 privado,	 essas
relações	 formam-se	 e	 extinguem-se	 no	 plano	 exclusivamente	 civil	 ou	 de
consumo,	 a	 depender	 da	 qualificação	 jurídica	 dada	 ao	 negócio,	 após	 sua
submissão	à	teoria	finalista	moderada.	A	natureza	privada	da	relação	tem	gerado
contestações	 por	 parte	 das	 empresas	 autorizadas	 a	 prestar	 serviços	 de
telecomunicações,	 que	 se	 submetem	 ao	 peso	 do	 regime	 administrativo-
regulatório.
A	eficiência	da	solução	criada	na	entropia	e	no	caráter	acidental	do	mundo
privado,	 contudo,	 tem	 colocado	 em	 xeque	 tais	 argumentos,	 até	 pelo
comparativamente	 baixo	 índice	 de	 infrações	 às	 normas	 de	 Direito	 do
Consumidor,	 provavelmente	 em	 razão	 do	 modelo	 de	 negócios	 que	 permite	 a
resilição	unilateral	a	qualquer	 tempo	pelo	contratante.	Outros	serviços,	como	o
Uber,	 são	 mais	 complexos	 porque	 apresentam	 sérios	 “conflitos	 de	 fronteiras”
com	 o	 Direito	 Administrativo	 Regulador,	 se	 comparados	 com	 o	 serviço	 de
transporte	individual	clássico,	o	táxi.
A	existência	de	“conflitos	de	fronteira”,	como	se	nota,	é	inerente	à	“grande
dicotomia”.	A	ampliação	da	autonomia	privada	e	de	seus	efeitos	formativos	no
plano	 negocial	 dará	 ensejo	 a	 que	 os	 espaços	 do	 Direito	 Privado	 também	 se
dilatem.	Em	paralelo,	essas	mesmas	áreas	poderão	despertar	o	 interesse	estatal
tributário,	regulatório	ou	administrativo	em	sentido	estrito	(exercício	do	poder	de
polícia).	Haverá,	então,	a	necessidade	de	se	rever	as	zonas	limítrofes,	com	maior
ou	 menor	 restrição	 aos	 espaços	 de	 ambas	 as	 faixas	 fronteiriças.	 De	 modo	 a
comprovar	tal	hipótese,	veja-se	que,	após	a	primeira	edição	desta	tese	haver	sido
publicada,	 o	Congresso	Nacional	 aprovou	a	Lei	no	 13.640,	 de	26	de	março	de
2018,	 que	 regulamentou	 o	 transporte	 remunerado	 privado	 individual	 de
passageiros,	 de	 modo	 a	 normatizar	 o	 serviço	 de	 “realização	 de	 viagens
individualizadas	 ou	 compartilhadas	 solicitadas	 exclusivamente	 por	 usuários
previamente	 cadastrados	 em	aplicativos	ou	outras	plataformas	de	 comunicação
em	rede”	(nova	redação	do	art.	4o,	inciso	X,	da	Lei	no	12.587,	de	3	de	janeiro	de
2012).
É	natural	que	determinadas	atividades	econômicas,	por	sua	importância	ou
por	seu	impacto	na	sociedade,	mais	cedo	ou	mais	tarde,	entrem	na	alça	de	mira
do	 legislador	 ou	 do	 administrador.	 Desde	 então,	 haverá	 normas	 legais	 ou
administrativas	 para	 tipificar	 as	 criações	 da	 autonomia	 privada,	 desde	 que
atendam	aos	pressupostos	de	generalizaçãoe	de	aceitação	social,	ou,	em	casos
mais	extremos,	para	restringir	a	autonomia	privada	por	meio	de	um	emaranhado
de	 regras	 públicas	 nos	 diversos	 setores	 de	 interesse	 do	 Estado.	 Nada	 disso	 é
novo.	Nada	disso	diminui	o	Direito	Privado,	colo-niza-o	ou	derrui	 sua	posição
autárquica.	 Muito	 menos	 é	 confundível	 com	 um	 mélange	 entre	 sistemas
jurídicos,	uma	mixagem	de	normas	ou	um	diálogo	de	fontes.452
d)	A	insuficiência	das	teorias	sobre	a	diferenciação	sistemática.	O	estudo
das	 teorias	 sobre	 a	 summa	 divisio	 do	 Direito	 Público	 e	 do	 Direito	 Público	 é
marcado	por	um	repasse	crítico	de	seus	principais	fundamentos,	findando	com	o
repúdio	a	todas	elas,	a	escolha	de	uma	teoria	ou	a	combinação	de	duas	ou	mais
para	 se	 chegar	 a	 um	 fundamento	 menos	 lacunoso.	 Esse	 proceder,	 que	 é
praticamente	universal,	 termina	por	 incutir	no	 leitor	um	ceticismo,	quando	não
uma	 postura	 cínica,453	 ante	 a	 capacidade	 dessas	 teorias	 conferirem	 segurança
argumentativa	no	debate	sobre	a	permanência	da	diferenciação	sistêmica.
A	 respeito	 das	 teorias	 e	 sua	 recepção	 ao	 longo	 dos	 séculos,	 António
Menezes	Cordeiro	recorda	que	o	tema	da	“contraposição	entre	Direito	público	e
Direito	 privado,	 em	 termos	 modernos,	 tem	 vindo	 a	 ocupar”	 a	 doutrina
portuguesa	 há	 mais	 de	 200	 anos:	 “cerca	 de	 10	 gerações	 de	 juristas”.	 Nesse
processo,	 percebe-se	 que	 “a	 contraposição	 iniciou-se	 pela	 doutrina	 do	 sujeito;
regressou	a	material,	com	diversos	elementos	de	síntese”.454
As	teorias,	por	conseguinte,	têm	sido	prestigiadas	ou	descartadas,	conforme
as	 tendências	 históricas,	 políticas	 e	 a	 evolução	 econômica.	 Não	 que	 isso	 as
desacredite	 ou	 as	 torne	 dispensáveis.	 Adotar	 tal	 ou	 qual	 teoria	 sobre	 a
diferenciação	 sistêmica	 implica	 admitir	 alguns	 pressupostos	 ideológicos	 ou
teóricos.
A	variação	de	fundamentos	teóricos	é	algo	natural	no	Direito	Civil.	Vejam-
se	as	teorias	sobre	o	negócio	jurídico	e	sua	diversidade,	bem	como	a	prevalência
de	 teorias	 voluntaristas	 no	 século	 XIX	 e	 teorias	 preceptivas	 no	 século	 XX.455
Não	 é	 possível	 dissociar	 as	 últimas	 do	 momento	 autoritário	 no	 qual	 foram
concebidas	 ou	 postas	 em	 prática.	 Chegou-se	 mesmo	 a	 decretar	 a	 morte	 do
negócio	 jurídico	 como	 categoria	 operacional	 do	 Direito	 Civil.	 Nada	 disso,
porém,	afetou	a	valência	prática	do	negócio	jurídico	e	a	impediu	a	continuidade
de	estudos	doutrinários	de	alto	nível	sobre	esse	 tópico	nuclear	da	Teoria	Geral
do	Direito	Civil.456
Ao	 se	 referir	 ao	 sentido	 romanístico	 da	 “grande	 dicotomia”,	Guido	Alpa
adverte	os	“juristas	de	hoje”	sobre	a	investigação	das	“fronteiras	entre	o	Direito
Público	 e	 o	 Direito	 Privado”:	 se	 é	 que	 ela	 existe,	 deve	 ser	 buscada
exclusivamente	 na	 “realidade	 concreta”	 e	 não	 “no	 renascimento	 de	 fórmulas
obsoletas”.457	 A	 exclusiva	 vinculação	 à	 “realidade	 concreta”	 parece	 um	 tanto
exagerada.	Mas	 o	 abandono	 de	 “fórmulas	 obsoletas”	 é	 de	 ser	 considerado.	 A
despeito	disso,	quando	se	estuda	a	“grande	dicotomia”,	há	de	se	considerar	que	o
problema	 não	 está	 na	 insuficiência	 das	 teorias,	 afinal	 quase	 todas	 possuem
lacunas	ou	 contradições.	Diga-se	mais,	 com	Hans	 Julius	Wolff,	Otto	Bachof	 e
Rolf	 Stober,	 que	 dessas	 insuficiências	 não	 é	 possível	 negar	 a	 existência
autônoma	do	Direito	Privado.458	Mais	grave	do	que	 tais	 limitações	é	 a	 falta	de
coerência	epistemológica	em	sua	utilização.	E	essa	incoerência	radica-se	em	dois
aspectos:	a	identificação	com	o	monismo	jurídico	e	a	postura	ideológica	perante
o	Direito	Privado.
e)	O	monismo	 jurídico	 e	 unidade	 do	 sistema	 jurídico.	 Na	 sequência	 do
item	 anterior,	 ver-se-á	 com	 maior	 nitidez	 o	 referido	 problema	 da	 coerência
epistemológica.	Na	abertura	do	Capítulo	Primeiro,	pôs-se	a	necessária	ênfase	na
determinante	 influência	 de	 Hans	 Kelsen	 para	 o	 combate	 da	 diferenciação
sistemática.	 Sem	 sua	 tese	 de	 livre-docência	 de	 1911	 e	 os	 posteriores
desenvolvimentos	 teóricos	 de	 sua	 obra,	 dificilmente	 os	 ataques	 à	 distinção	 do
Direito	Público	e	do	Direito	Privado	 teriam	sido	 tão	exitosos.459	Ocorre	que	os
maiores	críticos	contemporâneos	à	“grande	dicotomia”	jamais	se	reconheceram
como	kelsenianos	ou	positivistas,	em	quaisquer	de	suas	divisões	internas.
O	estatalismo	jurídico	é	uma	visão	do	ordenamento	que	remonta,	ao	menos
em	 termos	 mais	 organizados	 teoricamente,	 a	 Georg	 Jellinek	 e	 sua	 teoria	 da
subordina-ção-coordenação.	 Com	 Kelsen,	 uma	 forma	 mais	 extrema	 de
estatalismo	ganhou	 corpo	 e	 é	 sintetizável	 pela	 fórmula	 “todo	Direito	 é	Direito
Público”.460	Não	se	confundam	os	termos	do	problema:	a	produção	do	Direito	é
unicamente	 pública	 e,	 por	 consequência,	 também	 sua	 natureza.	 Poder-se-ia
argumentar	que	até	o	Direito	Privado,	como	produto	do	legislador,	 tem	origem
pública.	Mas	essa	afirmação	ignora	o	fato	de	que	a	máxima	de	Kelsen	vai	além
dessa	trivialidade:	“todo	Direito	é	Direito	Público”	significa	a	inexistência	de	um
Direito	Privado	essencialmente	distinto	do	Direito	Púbico,	dotado	de	autonomia
e	 de	 unidade	 de	 princípios.	 O	 sentido	 finalístico	 do	 estatalismo,	 por	 sua	 vez,
apresenta-se	 de	 outro	 modo,	 expressável	 por	 uma	 famosa	 máxima	 do	 Direito
Administrativo	italiano,	de	autoria	de	Oreste	Ranelletti:	“É	público	tudo	aquilo
que,	direta	ou	indiretamente,	é	do	Estado”.461	Os	ecos	desse	pensamento	também
chegaram	 ao	Brasil,	 como	 se	 observa	 deste	 trecho	 de	Afonso	Arinos	 de	Melo
Franco:	 “Mesmo	 para	 o	 jurista	 a	 distinção	 é	 irrelevante,	 se	 êle	 se	 colocar	 na
observação	da	gênese	do	Direito,	porque	provindo	sempre,	para	êle,	o	direito	do
Estado,	pouca	diferença	faz	que	se	trate	de	Direito	privado	ou	público,	uma	vez
que,	genèticamente,	todo	o	Direito	é	estatal	e,	por	isto,	público”.462
A	melhor	crítica	a	essa	maneira	de	configurar	o	Direito	Privado	deve-se	a
Konrad	Hesse:
“Importância	decisiva	do	Direito	Constitucional	para	o	Direito	Privado:	isso	não
significa,	 no	 entanto,	 que	 a	Constituição	hoje	 se	 tornou	 fundamento	de	 todo	o
Direito	e	por	ele	também	do	ordenamento	ju-rídico-privado.	A	Constituição	não
é,	para	se	valer	de	uma	observação	irônica	de	Ernst	Forsthoff,	‘o	ovo	do	mundo,
a	célula	jurídica	germinal	da	qual	tudo	procede’.	Certamente,	estão	no	centro	do
Direito	Constitucional	 e	 do	Direito	Privado	 os	mesmos	 homens,	 em	 ambos	 os
casos	 se	 trata	 de	 alcançar	 uma	 ordem	 justa	 para	 a	 convivência	 humana.	Mas,
como	mostra	uma	simples	olhada	na	História,	o	Direito	Privado	deriva	em	maior
medida	 de	 outras	 fontes	 que	 do	 Direito	 Constitucional.	 Inclusive	 se	 já	 não
encarna	 em	 um	 sistema	 fechado,	 isolado	 das	 demais	 partes	 do	 ordenamento
jurídico,	segue	sendo	um	setor	jurídico	autônomo.	E	a	Constituição	é	certamente
a	 ordem	 jurídica	 fundamental	 da	 Coletividade.	Mas,	 de	 forma	 alguma,	 regula
tudo,	senão	apenas	singulares	aspectos	–	em	geral	particularmente	importantes	–
da	 vida	 estatal	 e	 social,	 abandonando	 o	 resto	 da	 configuração	 aos	 poderes
estatais	por	ela	constituídos,	em	particular	ao	legislador	democrático.”463
A	citação	de	Ernst	Forsthoff	 tornou-se	famosa	por	sintetizar	 ironicamente
uma	visão	do	ordenamento	jurídico	na	qual,	em	suas	palavras,	é	suficiente	olhar
para	a	Constituição,	deixando-se	de	lado	o	direito	ordinário,	afinal,	ela	é	o	“ovo
do	 mundo	 jurídico,	 a	 partir	 do	 qual	 tudo	 procede,	 do	 Código	 Penal	 à	 lei	 de
fabricação	de	termômetros	clínicos”.464
Não	há	problema	em	ser	kelseniano	e	defender	o	fim	ou	a	mitigação	radical
da	 “grande	 dicotomia”.	 É	 necessário	 tão	 somente	 que	 se	 assumam	 as
consequências	dessa	vinculação	teórica.
f)	 Ideologia	 autoritária	 e	 o	 combate	 à	 “distinção	 sistemática”.	 A
publicização	 do	 Direito	 Privado,	 durante	 o	 Estado	 Novo,	 foi	 uma	 parte
importante	do	discurso	oficial	e	serviu	de	elemento	pragmático	e	ideológico	para
fundamentar	a	reforma	dos	códigos	nos	anos1940,	especialmente	com	a	criação
de	códigos	setoriais.465
Na	Europa,	no	mesmo	período,	o	fim	da	diferenciação	sistemática	assumiu
contornos	radicalmente	mais	profundos	e	com	outra	pauta	ideológica,	que	uniu
juristas	italianos	e	alemães,	representativos	das	correntes	jurídicas	de	inspiração
fascista	e	nazista,	 ao	 exemplo	da	 comissão	 ítalo-alemã,	 constituída	no	 final	 da
década	de	1930,	que	registrou	posição	majoritária	em	favor	do	fim	da	autonomia
do	Direito	Privado	e	da	recondução	a	um	Direito	único,	sem	distinções	público-
privado.466
Durante	 o	 período	 nacional-socialista,	 empreendeu-se	 uma	 luta	 contra	 a
categoria	 “direito	 subjetivo”,	 que	 passou	 a	 ser	 considerada	 ultrapassada	 e
substituída	pela	“situação	jurídica	subjetiva”.	Ele	seria	um	conceito	de	tradição
liberal-burguesa,	 que	 deveria	 ceder	 espaço	 ante	 o	 “conceito	 concreto	 e
impregnante	 de	 órgão	 da	 comunidade	 do	 povo”.467	 Para	 esse	 fim,	 tornou-se
indispensável	apagar	as	linhas	divisórias	entre	Direito	Público	e	Direito	Privado
e	 a	 própria	 ideia	 de	 Direito	 Privado	 como	 uma	 parte	 diferenciada	 do
ordenamento	 jurídico,	que	se	pautava	pela	autonomia	sistêmica.468	Karl	Larenz
foi	o	 líder	desse	processo	de	desconstrução	da	dicotomia,	pois,	a	seu	entender,
“um	 sistema	 autônomo	 de	 Direito	 Privado”,	 com	 tais	 características,	 “não	 é
conciliável	com	nosso	ordenamento	de	vida	popular”.	A	autonomia	do	sistema
de	 Direito	 Privado	 era	 incompatível	 com	 a	 “völkischen	 Lebensordnung”,	 a
ordem	 jurídica	 völkische,	 um	 dos	 postulados	 mais	 importantes	 do	 Direito
nazista.469
As	 razões	 para	 esse	 ataque	 à	 diferenciação	 e	 à	 autonomia	 do	 Direito
Privado	 recaem	 sobre	 três	 causas:	 a)	 o	 Direito	 Privado	 como	 núcleo	 de	 um
sistema	 essencialmente	 autônomo	 e	 distinto	 do	 Direito	 Público	 referenda	 a
existência	de	uma	“esfera	de	relações	nas	quais	o	 interesse	meramente	privado
prevalece,	 em	 contraste	 com	 o	 princípio	 na-cional-socialista	 da	 absoluta,
permanente	 e	 penetrante	 superioridade	 do	 interesse	 geral	 sobre	 o	 interesse
particular”;	 b)	 a	 diferenciação	 confronta-se	 com	 o	 núcleo	 da	 doutrina	 jurídica
nacional-socialista	 na	 própria	 conceituação	 de	 dever	 jurídico,	 entendido	 pela
visão	 clássica	 como	 um	 dever	 em	 relação	 a	 um	 indivíduo.	 Para	 o	 Direito
nacional-socialis-ta,	o	dever	jurídico	corresponde	essencialmente	a	um	dever	em
relação	 à	 comunidade.	 A	 partir	 de	 agora,	 ao	 se	 vincular	 juridicamente,	 o
indivíduo	não	o	faz	somente	em	relação	a	outrem,	mas	em	relação	à	sociedade;
c)	o	Direito	Privado	não	pode	mais	ser	um	sistema	autônomo	e	independente	das
demais	áreas	do	Direito.	Segundo	Larenz,	a	ordem	nacional-socialista	 tende	“a
subordinar	cada	âmbito	 jurídico	a	princípios	de	Direito	Público,	e	a	 identificar
estes	 com	os	 princípios	 de	 uma	 concreta	moral	 e	 de	 uma	 concreta	 ideologia	 e
prática	política,	quer	dizer,	com	os	princípios	do	nacional-socialismo”.470
É	importante	assinalar	o	significado	dos	conceitos	de	unidade	do	Direito	e
de	 liberdade	 contratual	 como	 função	 social	 no	 regime	 nacional-socialista.
Quanto	 a	 este	 último,	 segundo	 Larenz,	 a	 liberdade	 contratual	 existiria	 “só	 na
medida	 em	que	 o	 ordenamento	 social	 e	 econômico	 em	 seu	 conjunto	 deixa-lhe
um	espaço,	e	pode	ser	exercida	como	deveres	que	derivam	para	o	particular	das
tarefas	e	da	responsabilidade	social”.	O	exemplo	dessa	concepção	de	autonomia
contratual	 como	 função	 social	desenvolvida	pelo	particular	 estaria	 no	 caso	de
um	comerciante	de	alimentos,	que	é	o	único	fornecedor	da	região.	Pela	doutrina
clássica	do	Direito	Civil,	ele	poderia	se	 recusar	a	vender	a	alguém.	Mas,	pelos
princípios	sociais	do	nacional-socialismo	e	da	autonomia	privada	condicionada
pela	função	social,	ele	seria	obrigado	a	vender	os	alimentos	para	todos.	Larenz
concebe	a	dicotomia	público-privado	como	um	óbice	à	unidade	do	Direito	como
“ordenamento	da	vida	nacional”.471
No	 regime	 fascista	 italiano,	 pode-se	 somar	 mais	 uma	 razão:	 o	 fim	 da
dicotomia	apresentava-se	como	uma	 justificação	para	que	o	poder	 interventivo
do	Estado	não	encontrasse	limites.	Era	a	oportunidade	para	uma	regulação	total
da	vida	privada.472
É	óbvio	que	se	pode	defender	o	 fim	da	separação	Direito	Público-Direito
Privado	 com	 argumentos	 não	 ideológicos	 e	 metodologicamente	 consistentes,
como	 o	 positivismo	 jurídico	 kelseniano.	 Mas,	 não	 se	 admite	 a	 utilização	 de
argumentos	ao	estilo	dos	propostos	por	Karl	Larenz	para	defender	uma	solução
que	arruíne	as	fronteiras	e	a	autonomia	do	Direito	Privado.	Infelizmente,	é	mais
comum	 do	 que	 se	 imagina	 encontrar	 tais	 argumentos	 em	 textos	 jurídicos	 de
absoluta	 boa-fé,	 que	 ignoram	 as	 raízes	 mais	 profundas	 (e	 mais	 abjetas)	 dessa
maneira	de	se	encarar	a	relação	do	Direito	Privado	com	outras	áreas.
g)	 O	 terceiro	 setor.	 É	 recente	 a	 formulação	 de	 uma	 nova	 divisão	 de
interesses,	 de	 serviços	 e	 de	 pessoas	 jurídicas.	 Haveria	 o	 interesse	 privado,	 o
público	 e	 o	 estatal,	 sendo	 que	 a	 espécie	 intermediária	 (interesse	 público)	 não
necessariamente	 guardaria	 a	 natureza	 pública.	 Aproveitando-se	 de	 uma
linguagem	 sociológica,	 passou-se	 a	 utilizar	 também	 a	 terminologia	 terceiro
setor,	no	qual	se	conformariam	variadas	espécies,	como:	a)	organização	social;473
b)	organização	da	sociedade	civil	de	interesse	público	(OSCI-P);474	c)	fundação
privada	e	associação,	nelas	compreendidas	as	entidades	dotadas	de	certificados
de	 filantropia	 ou	 de	 interesse	 público;	 d)	 serviço	 social	 autônomo.	 Em	 sendo
personalizados,	e	a	quase	totalidade	deles	o	são,	tais	plexos	assumem	a	natureza
de	pessoa	jurídica	de	direito	privado,	de	entre	as	previstas	no	art.	44,	incisos	I	a
V,	CC/2002.
O	 termo	“terceiro	setor”	é	altamente	equívoco,	pois	 retrata	um	espaço	de
atuação	que	seria	distinto	dos	outros	dois	setores	(o	mercado	e	o	Estado).	Tendo
origem	nos	Estados	Unidos	da	América,	na	década	de	1970,	o	“terceiro	 setor”
designa	uma	experiência	muito	diversa	daquela	compreendida	no	Brasil	a	partir
do	chamado	“marco	legal	do	terceiro	setor”,	que	surgiu	no	âmbito	do	PDRAE,
sobretudo	com	a	Lei	no	9.790,	de	23	de	março	de	1999,	e	da	Lei	no	9.637,	de	15
de	maio	de	1998.	O	marco	legal	do	terceiro	setor	brasileiro,	em	última	análise,
qualificaria	 pessoas	 jurídicas	 de	 direito	 privado	 para	 receber	 recursos	 públicos
em	sentido	amplo.
Nesse	marco	legislativo,	segundo	Rodrigo	Xavier	Leonardo,	haveria	“uma
qualificação	que	capacita	pessoas	jurídicas	de	direito	privado	a	contratar	com	a
administração	 pública	 para,	 por	 meio	 dessa	 relação	 jurídica,	 receber	 recursos,
que	podem	ser	monetários,	podem	ser	bens	móveis	ou	 imóveis	ou,	 inclusive,	a
cessão	 de	 funcionários	 para	 o	 desenvolvimento	 de	 atividades	 da	 entidade”.	 O
Direito	brasileiro,	nesse	aspecto,	deu	conformação	funcionalista	ao	conceito	de
terceiro	 setor,	 o	 que	 afasta	 o	 problema	 da	 “distinção	 sistemática”.	 Isso	 se
justifica	 por	 que	 “tal	 qualificação,	 e	 também	 os	 benefícios	 dela	 consequentes,
não	 retiram	 o	 caráter	 de	 direito	 privado	 de	 tais	 entidades”.	 Não	 se	 pode
confundir	 os	 efeitos	 jurídicos	 da	 percepção	 de	 recursos	 públicos	 e	 a	 eventual
submissão	aos	órgãos	de	controle	e	a	exigências	de	prestação	de	contas	com	a
modificação	da	natureza	jurídica	dos	entes	que	operam	sob	o	“terno”	do	terceiro
setor.	 Essa	 condição	 de	 entidades	 que	 giram	 dinheiro	 público	 tão	 somente	 as
“insere	em	um	regime	jurídico	especial,	que	convive	com	a	estrutura	e	a	função
de	direito	privado”.475
h)	Os	microssistemas	e	as	 interpenetrações.	A	 ideia	de	microssistemas	é
resultante	 de	 uma	 construção	 teórica	 dos	 anos	 1960,	 elaborada	 na	 Itália	 por
Natalino	Irti.	Para	ele,	o	crescimento	da	nomogênese	de	leis	extravagantes,	após
a	redemocratização	italiana	no	final	da	década	de	1940,	implicou	uma	alteração
no	 eixo	 gravitacional	 da	 ordem	 jurídica:	 acentralidade	 dos	 códigos	 e	 a
acessoriedade	 dessas	 leis	 extravagantes	 invertia-se.	 A	 setorização	 do	 sistema
jurídico	apresentava-se	com	tal	intensidade	que	elas	perdiam	o	caráter	residual	e
temporário.	 As	 leis	 especiais,	 segundo	 ele,	 apropria-ram-se	 de	 matérias
anteriormente	confinadas	aos	códigos	e,	com	o	passar	do	tempo,	desenvolveram
“lógica	autônoma”	e	“princípios	orgânicos”	próprios.	Em	um	primeiro	momento,
esses	 princípios	 se	 contrapõem	 “àqueles	 fixados	 no	Código	Civil”	 e,	 ao	 final,
logram	 “suplantá-los	 de	 todo”.	 Passa-se	 de	 uma	 fase	 de	 conflito	 para	 um
“estágio	 final”	 de	 “prevalência	 e	 substituição”.476	 Era	 essa	 uma	 das	 faces	 do
processo	 de	 descodificação,	 a	 respeito	 de	 que	 já	 se	 comentou	 nesta	Primeira
Parte.
Ricardo	Luís	Lorenzetti	 popularizou	 uma	metáfora	 a	 respeito	 dessa	 nova
realidade	 no	 sistema	 de	 fontes:	 os	 códigos	 comparavam-se	 aos	 velhos	 centros
das	metrópoles.	Cada	vez	mais	os	citadinos	afastam-se	dos	centros	e	transferem-
se	 para	 bairros	 afastados,	 com	 seus	 modernos	 centros	 de	 compras	 e	 as
facilidades	 dos	 projetos	 urbanísticos	modernos.	Abandonam,	 então,	 os	 centros
históricos	 e	 lá	 só	 voltam	 esporadicamente	 para	 resolver	 algum	 problema.477	 A
teoria	 dos	 microssistemas	 foi	 recepcionada	 no	 Brasil	 em	 um	 dos	 últimos
trabalhos	de	Orlando	Gomes.	Esse	texto	insere-se	na	desilusão	de	Gomes	com	as
codificações.	À	altura,	 ele	 já	não	mais	 acreditava	nos	códigos,	particularmente
no	projeto	Reale,	que	seria	aprovado	em	1984	na	Câmara	dos	Deputados.478
A	despeito	de	ser	praticamente	desconhecida	fora	da	Itália,	em	especial	na
Alemanha,	 França	 e	 Reino	 Unido,	 a	 teoria	 dos	 microssistemas	 adquiriu	 uma
influência	sem	precedentes	no	Brasil.	Seu	campo	mais	fecundo	na	atualidade	é	o
Direito	do	Consumidor.	Não	há	praticamente	um	trabalho	sobre	o	CDC	ou	seus
princípios	que	não	reforce	a	particularidade	do	Direito	do	Consumidor	como	um
microssistema	 jurídico,	 o	 que	 demandaria	 um	 tratamento	 interdisciplinar	 da
matéria.
Não	 é	 objetivo	 da	 tese	 examinar	 o	 conceito	 de	 microssistema	 e	 seus
fundamentos,	 embora	 se	 prefira	 a	 solução	 de	 Frank	 Bydlinski	 para	 a
especificidade	normativa	 do	que	 ele	 chama	de	 “regulação	privada	 especial”.479
Mas	a	teoria	dos	microssistemas	interessa	à	dicotomia	público-privado	quando	é
usada	 para	 contestá-la.	 E	 isso	 tem	 ocorrido	 em	 duas	 vertentes:	 (i)	 o	 caráter
multidisciplinar	 de	 alguns	 microssistemas,	 particularmente	 o	 Direito	 do
Consumidor;	(ii)	a	comprovação	de	que	um	microssistema	pode	assumir	caráter
híbrido	e,	como	tal,	existir	à	margem	da	“distinção	sistemática”.
É	ordinário	haver	disciplinas	ou	códigos	que	conjuguem	normas	oriundas
do	Direito	Público	com	normas	do	Direito	Privado.	O	CC/2002	ou	o	CPC/2015
são	 exemplos	 clássicos	 dessa	 combinação	 normativa,	 conquanto	 haja	 evidente
preponderância	de	normas	privatísticas	no	primeiro	e	de	normas	publicísticas	no
segundo.	 A	 Lei	 de	 Falências	 e	 Recuperação	 Judicial	 (Lei	 no	 11.101,	 de	 9	 de
fevereiro	 de	 2005),	 que	 é	 o	 núcleo	 normativo	 do	 Direito	 Falimentar	 e
Recuperacional,	 também	pode	 ser	 referida	 como	exemplo	de	um	diploma	com
regras	 pertencentes	 ao	 Direito	 Público	 e	 ao	 Direito	 Privado,	 embora	 com	 um
nível	 de	 preponderância	 muito	 menor	 do	 último	 em	 relação	 ao	 primeiro.
Nenhum	 exemplo,	 porém,	 se	 aproxima	 do	Direito	 do	Consumidor,	 daí	 ser	 ele
referido	permanentemente	como	o	exemplo	de	microssistema.	Na	Faculdade	de
Direito	do	Largo	de	São	Francisco,	v.g.,	essa	é	uma	disciplina	interdepartamental
(Direito	Civil,	Direito	Processual	e	Direito	Penal),	o	que	acentua	esse	caráter.
Se	a	multiplicidade	de	normas	com	vinculações	distintas	 em	uma	mesma
lei	 não	 é	 algo	 invulgar,	 em	 que	 afetaria	 a	 diferenciação	 público-privado	 o
conceito	 de	microssistema?	 Se	 ele	 for	 entendido	 como	 um	 espaço	 híbrido,	 no
qual	não	há	como	se	alocar	um	direito	específico	nos	campos	do	Direito	Público
ou	do	Direito	Privado,	 tem-se	aí	um	problema.	A	multidisciplinariedade	 em	 si
não	afeta	a	“grande	dicotomia”.	Se	é	certo	que	o	CDC	tem	essa	natureza,	porque
comporta	 “questões	 que	 se	 acham	 inseridas	 nos	Direitos	Constitucional,	Civil,
Penal,	 Processuais	 Civil	 e	 Penal,	 Administrativo”,480	 não	 se	 pode,
exclusivamente	por	essa	razão,	argumentar	que	o	Direito	do	Consumidor,	como
espécie	 de	 um	microssistema	 jurídico,	 é	 uma	 objeção	 permanente	 à	 distinção
sistemática.	Em	outras	palavras,	a	coexistência,	em	um	dado	microssistema,	de
campos	distintos,	não	é	um	reforço	apriorístico	que	sirva	à	comprovação	do	fim
da	distinção.	Corresponde,	pelo	contrário,	a	uma	acomodação	de	regras	que,	de
algum	modo,	acabam	por	se	reconduzir	a	diferentes	ramos	jurídicos.
i)	Direito	de	Família	e	sua	natureza	especial.	Dois	argumentos,	de	caráter
complementar,	são	muito	utilizados	para	se	justificar	o	enfraquecimento	ou	o	fim
da	 distinção	 entre	 o	Direito	 Público	 e	 o	Direito	 Privado:	 a)	 a	 publicização	 do
Direito	de	Família;481	b)	que	seria	comprovável	por	sua	crescente	autonomização
como	disciplina	que	não	mais	teria	conexão	epistemológica	com	o	Direito	Civil.
É	importante	examinar	o	primeiro	argumento	em	conexão.	Para	isso,	faz-se
uma	 síntese	 das	 principais	 ideias	 de	Bernardo	B.	Queiroz	 de	Moraes	 sobre	 as
relações	 entre	 o	 Direito	 de	 Família	 e	 o	 Direito	 Civil,	 que	 guardam	 estreita
conexão	com	os	postulados	defendidos	nesta	tese:	a)	o	Direito	de	Família	é	um
dos	 ramos	 do	 Direito	 Civil	 que	 mais	 “tardiamente	 tiveram	 reconhecida	 sua
autonomia	 (ao	 interno	do	sistema	dos	Códigos)”,	o	que	decorria	a	absorção	da
matéria	 pelo	 Direito	 Canônico;	 b)	 a	 passagem	 do	 Direito	 de	 Família	 para	 as
codificações	 modernas	 ocorreu	 de	 modo	 pouco	 sistemático,	 com	 avanços	 e
recuos,	 tendo	 importância	 nesse	 processo	 as	 obras	 de	 Kant	 e	 Savigny,
especialmente	este	último	que	desenvolveu	o	conceito	de	“relação	de	 família”,
de	 entre	 as	 espécies	 de	 relações	 jurídicas,	 e	 de	 Direito	 de	 Família,	 como	 o
“conjunto	de	 institutos	 jurídicos	 (aos	quais	essas	 relações	se	 referem)”;	c)	essa
evolução	 implicou	 uma	mudança	 no	Direito	 de	 Família:	 no	 século	XVIII,	 “os
temas	 centrais	 do	 direito	 de	 família	 vinham	 mesclados	 com	 temas	 típicos	 do
direito	público	(como	a	previsão	de	crimes)”,	ao	passo	em	que,	no	século	XX,
“havia	 apenas	 uma	 ênfase	 no	papel	 da	 família	 para	 a	 sociedade	 em	geral,	 não
uma	 crítica	 à	 sua	 natureza	 preponderantemente	 privada”;	 d)	 no	 Direito	 dos
países	socialistas,	destacou-se	a	tendência	a	codificações	setoriais	no	Direito	de
Família,	 o	 que	 seria	 uma	 “consequência	 do	 reconhecimento	 de	 uma
característica	supranacional	da	família	e	da	tentativa	de	delineação	da	sociedade
pelo	Estado	(enfatizando	o	seu	viés	público)”.	Esse	modelo	soviético	de	Direito
de	Família	justificava-se	pela	preponderância	da	“função	educativa”	da	família,
dada	a	“necessidade	de	formação	de	uma	nova	consciência	popular,	pautada	em
uma	suposta	superioridade	moral	desse	direito”.482
O	 Direito	 de	 Família,	 ao	 menos	 com	 esse	 nome,	 foi	 substancialmente
alterado	 após	 as	 invasões	 napoleônicas,	 com	 o	 perdão	 do	 trocadilho,	 aos
territórios	ocupados	tradicionalmente	pela	Igreja,	seja	ela	católica	ou	protestante,
nas	 relações	 familiares,	 no	 estado	 das	 pessoas	 (nacionalidade,	 registro	 civil	 e
matérias	 correlatas,	 como	 estado	 civil,	 reconhecimento	 da	 capacidade	 civil,
filiação)	ou	no	tratamento	dispensado	aos	mortos.	Deu-se	a	transposição	para	o
Direito	estatal	de	matérias	secularmente	mantidas	sob	o	Direito	Canônico	ou	o
Direito	 Eclesiástico,	 que,	 em	 alguns	 países,	 por	 conveniência	 ou	 por	 interesse
recíproco,	 também	 figuravam,	 de	modo	 parcial	 ou	 total,	 em	 leis	 positivas	 dos
Estados	medievais	e	em	seus	sucessores	Estados	nacionais.	Tal	indistinção	pode
ser	 notada	 até	 aos	 dias