Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
A África que fala português [...] Para sermos homens desocupamos o silêncio e com um firmamento de esperança cobrimos o rosto ferido da nossa Pátria [...] COUTO, Mia. Eles. Raiz de orvalho e outros poemas. 2. ed. Lisboa: Caminho, 1999. p. 34. (Fragmento). Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. São cinco os países africanos que têm o português como sua língua oficial. A história de cada um deles registra uma trajetória de resistência e luta. Resistência contra a colonização e luta para conquistar a tão sonhada independência. Quando esses países conseguiram se libertar da máquina colonial portuguesa, era hora de começar o lento processo de definição de uma identidade autônoma, que não se confundisse com as imposições culturais dos colonizadores. Uma pergunta, porém, precisava ser enfrentada: como saber quais são as marcas da verdadeira identidade de um povo, se sua história se confunde com a de seus dominadores? A literatura foi um dos espaços escolhidos para bus- car uma resposta e a poesia foi o ponto de partida dessa jornada literária. A língua portuguesa na África OCEANO PACÍFICO ATLÂNTICO OCEANO OCEANO SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE 157 mil MOÇAMBIQUE 20,5 milhões ANGOLA 16,9 milhões CABO VERDE 530 mil GUINÉ-BISSAU 1,7 milhão ÍNDICO N S O L 1.070 km Fonte: Almanaque Abril, 2008. 34. ed. São Paulo: Abril, 2008. 14 60 14 44 -14 46 14 70 14 83 14 56 Diogo Gomes descobre outras ilhas do arquipélago. Duas expedições, uma liderada por Nuno Tristão, outra por Álvaro Fernandes, chegam à Guiné-Bissau. No dia de São Tomé (21/12), Pero Escobar e João de Santarém descobrem o arquipélago de São Tomé e Príncipe. 14 98 18 76 Descoberta das primeiras ilhas do arquipélago de Cabo Verde pelo navegador veneziano Luís de Cadamosto, a serviço do Infante D. Henrique. Vasco da Gama, navegando em direção às Índias, chega ao litoral de Moçambique. Abolida a escravidão em Cabo Verde. Diogo Cão alcança a foz do rio Congo e o padrão português é colocado em terras angolanas. Tem início o tráfico de escravos. Entreposto de São Jorge. s.d. Autor desconhecido. 14 15 D. João I, o mestre de Avis, desembarca em Ceuta; início da conquista dos territórios africanos pelos portugueses. RODRIGUES, M. V. D. João I, Mestre d'Aviz. 1861. Litografia, 11,8 3 12,5 cm. 724 S eç ão e sp ec ia l R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_especial1_C.indd 724 11/11/10 5:29:29 PM Minha língua é minha pátria? Os quase quinhentos anos de assimilação de uma cultura imposta deixa- ram marcas visíveis nos povos africanos. A principal delas é a consciência de que uma literatura de expressão portuguesa sempre refletirá a tensão entre dois mundos: a sociedade colonial europeia, transposta para a África junto com os conquistadores, e a sociedade africana, multifacetada, com vários conflitos internos a serem resolvidos. A opção de escrever em português representou, para muitos autores, uma derrota simbólica: tratava-se, afinal, da língua do conquistador. A esse respeito, o escritor Mia Couto faz uma significativa revelação sobre como o contato com a produção literária brasileira ajudou os autores africanos a começarem a se apropriar da língua portuguesa como marca de sua identidade. [...] No outro lado do mundo, se revelava a possibilidade de um outro lado da nossa língua. Na altura, nós carecíamos de um português sem Portugal, de um idioma que, sendo do Outro, nos ajudasse a encontrar uma identidade própria. Até se dar o encontro com o português brasileiro, nós faláva- mos uma língua que não nos falava. E ter uma língua assim, apenas por metade, é um outro modo de viver calado. [...] COUTO, Mia. ... e fazer do nosso sonho uma casa. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 5 abr. 2008. Caderno 2. O dilema explicitado pelo moçambicano é real. E os textos dos autores brasileiros levaram para o outro lado do Atlântico a possibilidade de pro- mover, também na língua portuguesa, um processo de mestiçagem que garantisse a diferenciação, pelas estruturas e pelo léxico, entre coloniza- dores e colonizados. Ao reconhecer a importância do contato com textos de brasileiros como Jorge Amado para a definição dos caminhos literários a serem trilhados pelos africanos, Mia Couto revela uma irmandade literária ainda pouco conhecida entre nós. [...] Havia pois uma outra nação que era longínqua mas não nos era exterior. E nós precisávamos desse Brasil como quem carece de um sonho que nunca antes soubéramos ter. Podia ser um Brasil tipificado e mistificado, mas era um espaço mágico onde nos renasciam os criadores de histórias e produtores de felicidade. Descobríamos essa nação num momento histórico em que nos faltava ser nação. O Brasil — tão cheio de África, tão cheio da nossa língua e da nossa religiosidade — nos entregava essa margem que nos faltava para sermos rio. [...] COUTO, Mia. ... e fazer do nosso sonho uma casa. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 5 abr. 2008. Caderno 2. Como povo que precisou definir a própria identidade após proclamar sua independência, os brasileiros tinham muito a ensinar aos “irmãos” africanos. A primeira lição foi, talvez, a mais significativa para a produção literária: a língua é de quem a usa e, nesse sentido, sempre será a expres- são da cultura desse povo, ainda que, no passado, também tenha sido um instrumento de dominação. Definida essa margem, o rio literário podia fluir mais livremente. 18 90 19 24 19 32 19 51 19 36 18 85 Ultimatum (11/1): a Inglaterra exige que Portugal retire suas forças militares entre Angola e Moçambique, lá desde a Conferência de Berlim. Fundação, por Pedro Cardoso, do jornal Manduco, que valorizava o crioulo falado em Cabo Verde. Publicação do Folclore cabo-verdiano, uma compilação de música e poesias. Na tentativa de preservar seu império intercontinental, Portugal passa a considerar os territórios africanos como províncias ultramarinas (ex-colônias). Apresentação do Mapa Cor-de-rosa, na Conferência de Berlim. Portugal pretendia criar uma faixa de terra ligando as colônias de Angola e Moçambique (ver p. 471). 19 61 Lançamento em Mindelo (Cabo Verde) do 1o número da revista Claridade, integrada por Baltasar Lopes, Jorge Barbosa, Manuel Lopes, Jaime Figueiredo e José Lopes. Capa da revista Claridade, n. 9, 1960. Surgem, em Angola, dois partidos que se dedicam à luta armada: o Movimento Pela Libertação de Angola (MPLA) e a União dos Povos de Angola (UPA); a ONU aprova moção contra Portugal. Bandeira de Angola. 725 A p o es ia a fr ic an a d e lín g u a p o rt u g u es a R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_especial1_C.indd 725 11/11/10 5:29:30 PM O caminho da poesia Boa parte da população dos países lusófonos da África não teve acesso à educação formal durante os séculos que permaneceram como colônia portuguesa. Na verdade, a instrução quase sempre era a condição para a mobilidade social em países como Cabo Verde, que contava com mais de 70% de analfabetos. O impacto de uma cultura fortemente associada à oralidade também repercute nas primeiras tentativas de produção literária independente: a poesia parecia ser, nesse contexto específico, o caminho mais seguro a ser inicialmente percorrido. A tentativa de construir um panorama mais abrangente da produção poética destes países esbarra em uma dificuldade aparentemente intrans- ponível. Embora tenham sido todos dominados pela mesma metrópole, viveram diferentes processos de independência social, política, econômica e cultural. Quando consideramos, porém, os principais temas que inspiram a poesia de seus autores, constatamos alguns momentos (ou fases) bemdelineados e que talvez traduzam os principais pontos do caminho de um povo em busca da sua independência cultural. De modo esquemático, esses momentos podem ser assim represen- tados: Alienação em relação à própria condição Fase de assimilação O escritor não leva em consideração sua condição no momento de produção literária. Por estar em estado quase absoluto de alienação, seus textos poderiam ser criados em qualquer outra parte do mundo. Percepção da realidade Fase de resistência Surgem os primeiros sinais de um sentimento nacional que se anuncia nos temas abordados (a dor de ser negro, o indigenismo). Consciência de colonizado Fase de construção da identidade africana Consolida-se o processo de desalienação. Uma vez consciente de sua condição de colonizado, o escritor pode voltar sua produção para o meio sociocultural e geográfico em que vive. Fase histórica da independência Fase de definição da independência literária Reconstituição da individualidade autoral: o texto é produzido com liberda- de e começam a surgir tópicos próprios da produção literária africana (o mestiço, a identificação com a África como “terra- -mãe”, etc.). 19 73 19 74 19 70 19 74 19 75 19 63 19 62 A Guiné-Bissau se declara independente de Portugal (24/9). Houve reconhecimento internacional, mas não do governo português. Portugal reconhece a independência da Guiné-Bissau (10/9). Morre, em Lisboa, António de Oliveira Salazar (27/7). Marcelo Caetano dá continuidade à ditadura. Fundação da Frente de Libertação de Moçambique, Frelimo (25/7); seu primeiro presidente é o antropólogo Eduardo Chivambo Mondlane. Moçambique (25/6) e Angola (11/11) conquistam suas independências. Agostinho Neto, líder do MPLA e primeiro presidente de Angola, 1975. O Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) abre frente de batalha na Guiné-Bissau. Guerrilheiros na batalha em Guiné-Bissau, c. 1970. A Revolução dos Cravos põe fim, de modo pacífico, à ditadura do Estado Novo, que havia dominado Portugal por 41 anos. Soldado português com cravo na mão, 1974. 726 S eç ão e sp ec ia l R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_especial1_C.indd 726 11/11/10 5:29:35 PM
Compartilhar