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Para que se possa formar uma visão de conjunto da poesia africana de língua portuguesa é necessário considerar esses marcos do longo processo de definição de uma voz literária própria. Uma vez construída a identidade literária coletiva, os autores passam a se dedicar à definição de um trajeto literário próprio, estabelecendo de modo mais definido seus estilos individuais. Alguns deles, como Mia Couto, alcançam uma maturidade literária plena, que faz com que suas obras, mesmo ao tratar da realidade africana, toquem em questões de natureza mais universais. Segundo um conhecido estudioso da literatura africana, Manuel Ferreira, algumas publicações específicas também devem ser consideradas quando procuramos identificar momentos significativos da produção literária dos países africanos lusófonos. [...] Os fundamentos irrecusáveis de uma literatura africana de expressão portu- guesa vão definir-se com precisão, deste modo: a) em Cabo Verde a partir da revista Claridade (1936-1960); b) em São Tomé e Príncipe com o livro de poemas Ilha de nome santo (1943), Francisco José Tenreiro; c) em Angola com a revista Mensagem (1951-1952); d) em Moçambique com a revista Msaho (1952); e) na Guiné-Bissau com a antologia Mantenhas para quem luta! (1977). [...] FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa I. Lisboa: ICP, 1977. p. 34. COSTA, José Francisco. Poesia africana de língua portuguesa. Disponível em: <http://www.crono- pios.com.br/site/ensaios.asp?id=1208>. Acesso em: 11 fev. 2010. Conheceremos, a seguir, alguns dos poetas que enfrentaram o desafio de encontrar uma voz verdadeiramente africana na língua do colonizador. Cabo Verde: olhos voltados para a imensidão do mar Dos seios da ilha ao corpo da África O mar é ventre E umbigo maduro E o arquipélago cresce FORTES, Corsino. Raiz e rosto. In: Árvore & tambor. Lisboa: Dom Quixote, 1986. p. 36. Disponível em: <http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=1208>. Acesso em: 11 fev. 2010. No início do século XX, já era possível identificar, em Cabo Verde, a presença de uma elite local consciente dos principais problemas da população das ilhas que constituem o arquipélago. São intelectuais (professo- res e jornalistas) e comerciantes que, concentrados principalmente em São Nicolau, Santo Antão e São Vicente, mantêm-se em contato com os principais movimentos literários portugueses. A principal influência, porém, será exercida pelos modernistas brasileiros. Poetas como Jorge de Lima, Manuel Bandeira, romancistas como Graciliano Ramos e Jorge Amado, além do sociólogo Gilberto Freyre, animam os escritores cabo-verdianos a retratarem aspectos da realidade local em seus textos. O lançamento da revista Claridade, em 1936, criou um importante espaço para que poetas como Baltasar Lopes, Jorge Barbosa e Manuel Lopes divulgassem poemas em que os signos locais ganhassem uma roupagem mais lírica. Observe. Barcos no porto em São Vicente, Cabo Verde, 2010. Pessoas celebram a independência de Guiné-Bissau em manifestação organizada pelo PAIGC (Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo Verde), 27 set. 1974. 727 A p o es ia a fr ic an a d e lín g u a p o rt u g u es a R ep ro du •‹ o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C —d ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_especial1_D.indd 727 11/12/10 7:15 PM Poema do mar O drama do Mar, o desassossego do Mar, sempre sempre dentro de nós! O Mar! cercando prendendo as nossas Ilhas, desgastando as rochas das nossas Ilhas! Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores, roncando nas areias das nossas praias, batendo a sua voz de encontro aos montes, baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas... O Mar! pondo rezas nos lábios, deixando nos olhos dos que ficaram a nostalgia resignada de países distantes que chegam até nós nas estampas das ilustrações nas fitas de cinema e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros quando desembarcam para ver a pobreza da terra! O Mar! a esperança na carta de longe que talvez não chegue mais!... O Mar! saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados, histórias da baleia que uma vez virou a canoa... de bebedeiras, de rixas, de mulheres, nos portos estrangeiros... O Mar! dentro de nós todos, no canto da Morna, no corpo das raparigas morenas, nas coxas ágeis das pretas, no desejo da viagem que fica em sonhos de muita gente! Este convite de toda a hora que o Mar nos faz para a evasão! Este desespero de querer partir e ter que ficar! BARBOSA, Jorge. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 125-126. O mar que se estende no horizonte, símbolo de aprisionamento e de liberdade, é um elemento inseparável da vida de um povo insular. Em seus versos, Jorge Barbosa se vale da onipresença do mar para evocar outros símbolos da identidade cabo-verdiana, como a sensualidade de suas Morna: música típica de Cabo Verde, cantada em ritmo lento ou moderado, acompanhada por instrumentos de corda como violão, violino, viola e cavaquinho. Barcos de pesca se transformam em mercado de peixes quando os pescadores retornam, em Santo Antão, Cabo Verde, c. 2004. 728 S eç ão e sp ec ia l R ep ro du •‹ o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C —d ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_especial1_D.indd 728 11/12/10 6:49 PM mulheres ou o canto da Morna. Autor mais descritivo e intimista, Jorge Bar- bosa ainda não encontra solução para os dilemas dos seus compatriotas que não seja a evasão do mundo conhecido. Em António Nunes, poeta da geração seguinte aos claridosos, vamos encontrar a releitura poética das marcas da exploração sofrida durante o período colonial, bem como a consciência de que as consequências desse período produziram chagas sociais difíceis de serem apagadas. Ritmo de pilão Bate, pilão, bate, que o teu som é o mesmo desde o tempo dos navios negreiros, de morgados, das casas-grandes, e meninos ouvindo a negra escrava contando histórias de florestas, de bichos, de encantadas... Bate, pilão, bate que o teu som é o mesmo e a casa-grande perdeu-se, o branco deu aos negros cartas de alforria mas eles ficaram presos à terra por raízes de suor... Bate, pilão, bate que o teu som é o mesmo desde o tempo antigo dos navios negreiros... (Ai os sonhos perdidos lá longe! Ai o grito saído do fundo de nós todos ecoando nos vales e nos montes, transpondo tudo... Grito que nos ficou de traços de chicote, da luta dia a dia, e que em canções se reflecte, tristes...) Bate, pilão, bate que o teu som é o mesmo e em nosso músculo está nossa vida de hoje feita de revoltas!... Bate, pilão, bate!... NUNES, António. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 143-144. Passado o momento de retomar, poeticamente, as marcas da exploração e do sofrimento, muitas vozes cabo-verdianas começaram a buscar uma expressão lírica mais independente. Mário Fonseca, por exemplo, atribui novo sentido ao campo semântico da fome, fortemente associado aos sofrimentos históricos. Veja como o sentido dos termos associados a esse campo é expandido pelo poeta. Moçambicana usa pilão para socar arroz, c. 1999. Morgados: bens inalienáveis e indivisíveis que, em função do falecimento de quem os possuía, eram destinados ao primogênito. 729 A p o es ia a fr ic an a d e lín g u a p o rt u g u es a R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_especial1_C.indd 729 11/11/10 5:29:42 PM
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