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A tradição filosófica tende a encarar o mal de uma perspectiva metafísica ou teodiceia, o que não permite considerar sua positividade. A ideia de um ser maligno é rejeitada, mas isso não significa negar a possibilidade do mal como uma realidade existencial. É importante repensar o mal dentro de contextos secularizados de sociabilidade, indo além das perspectivas moral e religiosa. A perda de evidência dos valores morais e religiosos na sociedade contemporânea enfraqueceu sua capacidade de barrar ações malignas. Isso destaca a necessidade de encontrar novas formas de legitimidade que promovam a convivência humana e limitem a propagação do mal. É crucial reconhecer que as ações associadas ao mal hoje muitas vezes carecem do componente da maldade intrínseca, destacando a complexidade dessa questão. O mal é uma questão complexa e multifacetada, difícil de conceituar de forma abstrata. Em vez disso, parece ser mais uma questão de experiência do que uma abstração conceitual. Em sua essência, está relacionado à provocação de dor e morte aos seres sencientes, ou seja, aqueles capazes de sentir. O mal é visto como um aumento do sofrimento que pode levar à morte física ou à anulação da transcendência humana e da subjetividade. Na tradição grega, a pergunta sobre a origem do mal ("Pothen to kakon") questionava as respostas mitológicas baseadas em um destino inelutável. A resposta metafísica tradicional associa o mal à dimensão sensível e animal do homem, sendo pensado como privação ou imperfeição. Quanto mais os seres se afastam da dimensão espiritual, mais propensos estão ao mal. Santo Agostinho avançou nesse debate ao combinar o horizonte metafísico com a Teodicéia, que busca reconciliar a bondade de Deus com a existência do mal. Agostinho entende o mal como uma falta ou privação do bem, não possuindo ser próprio, mas emergindo das escolhas humanas e da impulsividade sensitiva. Escolher esse lugar de degradação é se afastar da natureza espiritual e se tornar vulnerável ao mal. Schelling, em seu texto sobre "A Essência da Liberdade Humana", estabelece uma conexão entre liberdade e razão, inaugurando uma linha de pensamento adotada posteriormente no idealismo alemão, especialmente por Kant em "A Religião nos Limites da Simples Razão". Diferentemente da tradição metafísica, o mal não é associado à matéria, às paixões ou aos sentidos, mas é situado na própria liberdade humana, como algo arraigado na capacidade espiritual mais elevada dos seres humanos: a razão. Essa capacidade para a liberdade revela a potência para a manifestação do mal positivo, conhecido como mal radical. Este mal é considerado radical porque não pode ser explicado pela maldade; de alguma forma, emerge da essência mesma do homem: sua liberdade espiritual. Assim, o mal é visto como uma positividade, implicando uma resistência consciente ao bem. Essa abordagem transcende uma linha de pensamento também presente em Kant, na qual o mal está ligado à instrumentalização do homem, ao tratá-lo como meio e não como fim em si mesmo. O mal radical vai além disso, implicando na destruição da própria humanidade do homem. Kant acredita que prevalecerá a lei moral universal, o bem, mas Arendt, influenciada por essa discussão, apresenta sua compreensão do mal no contexto político-filosófico, especialmente após testemunhar os horrores dos campos de concentração nazistas. Ela utiliza a expressão "mal radical" de Kant para pensar o mal para além das visões metafísicas e teológicas, possibilitando considerá-lo como uma realidade positiva, sem necessidade de recorrer à ideia de um ser maligno. Desta feita, o mal radical é uma categoria que ultrapassa a dimensão moral, âmbito no qual o mal vinha sendo pensado e adquire um estatuto político. Vale dizer, o mal radical aponta para um tipo de mal que não está relacionado à transgressão, a algo relacionado à arbitrariedade e à lei. Arendt destaca a ausência de teorias políticas capazes de dar conta desse fenômeno, ressaltando que o totalitarismo pressupõe a descartabilidade dos seres humanos. A obra de Arendt adquire uma dimensão ética peculiar, enfatizando uma ética da singularização e da pluralidade como resistência ao mal radical. Ela introduz o conceito de "banalidade do mal" após observar o julgamento de Eichmann em Jerusalém, onde percebe que o mal pode ser perpetrado por indivíduos comuns, presos às pressões cotidianas e vazios de pensamento. O texto discute a concepção de Hannah Arendt sobre o "mal banal", relacionando-o ao vazio de pensamento nas sociedades contemporâneas. Arendt sugere que o mal radical se manifesta na forma da banalidade do mal, onde os perpetradores não têm noção da maldade de seus atos, agindo como engrenagens de uma máquina do mal. Eles renunciam à capacidade de julgar e pensar, agindo de forma condicionada e mecânica. Essa banalidade do mal é típica de sociedades massificadas e anônimas, onde a secularização e a falta de um sentido transcendente tornam urgente o exercício do julgamento individual. A falta de julgamento pode levar ao espraiamento do mal, especialmente em sociedades onde predominam conformismo, adesão cega e identificações incondicionais. Arendt destaca a importância do pensamento e do julgamento como uma defesa contra o mal, promovendo um diálogo interno que permite o distanciamento de posturas conformistas. Para ela, pensar e julgar são últimos recursos afirmadores da humanidade em tempos sombrios. Arendt propõe a categoria do mal banal como uma maneira de compreender o mal nas sociedades secularizadas sem recorrer a uma entidade maligna. Isso destaca a positividade do mal sem a necessidade de um ser maligno, alertando para as consequências desumanizadoras do mal em nossa época. Essa concepção ressalta a importância do julgamento individual como uma defesa contra o espraiamento do mal, mesmo em contextos onde a legitimidade do mundo público está em questão.