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Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda Políticas Públicas Princípios, Propósitos e Processos Circulação Interna Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 0 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda SUMÁRIO SUMÁRIO UNIDADE 1: O conceito de política pública................................................................................................ 2 Exercícios de Síntese.............................................................................................................. 50 UNIDADE 2: As estruturas de governança pública................................................................................. 51 Exercícios de Síntese............................................................................................................. 73 UNIDADE 3: Planejamento e políticas públicas....................................................................................... 74 Exercícios de Síntese............................................................................................................. 97 UNIDADE 4: As políticas públicas e a responsabilidade social.............................................................. 98 Exercícios de Síntese............................................................................................................. 123 REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 124 EXERCÍCIOS AVALIATIVOS.......................................................................................... 132 Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 1 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda UNIDADE 1 O conceito de política pública “A política é a arte de unir os homens entre si para estabelecer vida social comum, cultivá-la e conservá-la.” (Johannes Althusius, 1603). Neste capítulo são abordados alguns conceitos fundamentais para o entendimento do significado das políticas públicas. Entre os temas destacados se encontram: a política, Estado, a ideia de público, o bem comum e seus desdobramentos principais. As políticas públicas são definidas de várias formas, e identificados seus pontos em comum. Sua conceituação está identificada como uma ação empreendida a partir do Estado, pelas instâncias do governo. Algumas tipologias e suas características principais são descritas. Finalizando, se introduz a temática das novas políticas públicas emergentes. A concepção de política Na abordagem do objeto de estudo deste livro há, de início, um problema terminológico com respeito ao uso da palavra políticas. Deve ser levado em consideração que tanto a política como as políticas públicas estão relacionadas com o poder social. Mas enquanto a política é um conceito amplo, relacionado com o poder de modo geral, as políticas públicas correspondem a soluções específicas de como manejar os assuntos públicos. No idioma inglês, distinguem-se claramente dois termos: politics epolicies. O termo politics refere-se ao conjunto de interações que definem múltiplas estratégias entre atores para melhorar seu rendimento e alcançar certos objetivos. Refere-se à política entendida como a construção do consenso e luta pelo poder. Desse modo, podemos nos referir à política de uma organização, de uma empresa, de um clube, de uma família ou de um grupo social específico. Também pode se referir à carreira profissional de um político, que por suas atitudes busca obter e ampliar sua influência. A dedicação à política, nesse sentido, remete a uma atividade que tem regras de jogo específicas (dinâmica partidária e eleitoral) e um estilo próprio (interesse pelo público e atributos de liderança). Já o termo policy (cujo plural é policies) é entendido como ação do governo. Constitui atividade social que se propõe a assegurar, por meio da coerção física, baseada no direito, a segurança externa e a solidariedade interna de um território específico, garantindo a ordem e providenciando ações que visam atender às necessidades da sociedade. A política, nesse sentido, é executada por uma autoridade legitimada que busca efetuar uma realocação dos recursos escassos da sociedade. Nesse caso, a política pode ser adjetivada em função do campo de sua atuação ou de especialização da agência governamental encarregada de executá-la. Desse modo, podemos nos referir à política de educação, saúde, assistência social, agrícola, fiscal etc., ou seja, produtos de ações que têm efeitos no sistema político e social. Na língua portuguesa existe somente um termo para referir-se ao, conjunto de todas essas atividades descritas pelos dois termos anglo-saxões, em função disso se adota a tradução do termo policy por “políticas públicas” para referir-se ao conjunto de atividades que dizem respeito à ação do governo. No que diz respeito, especificamente, ao termo “política”, a definição clássica foi herdada dos antigos gregos, no século 4 a.C, através da obra de Aristóteles Política. O conceito de política é derivado do adjetivo originado de polis (politikós), que significa tudo que se refere à cidade e, consequentemente, o que é urbano, civil, público e até mesmo sociável e social. Ou, dito de outro modo, o conceito de política “é habitualmente empregado para indicar atividade ou conjunto de atividades que têm de algum modo, como termo de referência, a polis, isto é, o Estado”. No conjunto de atividades que tem como referência a polis, ou seja, o Estado, este pode ser o sujeito ou o objeto de ação. O Estado é sujeito pelo fato de pertencer à esfera da política, com atos como o de comandar ou proibir algo, ou o exercício do domínio exclusivo sobre um determinado território, o de legi Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 2 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda slar com normas válidas que se impõem a todos, o de extrair e distribuir recursos de um setor para outro da sociedade e assim por diante. O Estado é objeto da ação quando partem da sociedade civil iniciativas que visam influenciar de alguma forma a ação do Estado. A política, também, pode ser vista como um conjunto de interações que visam atingir determinado objetivo, e neste sentido está em toda parte, seja na arte, nos jogos amorosos, nas relações de trabalho, na religião, no esporte etc. Podemos também entender a arte da política como destreza, habilidade, perícia com que se maneja assunto delicado ou uma atitude já estabelecida com respeito a determinados assuntos. Nesse sentido, também, uma questão se torna política quando e na medida em que se transforma em uma questão polêmica. No que diz respeito ao objeto de estudo deste livro, a política relacionada com o estudo das políticas públicas é “justamente a atividade que busca, pela concentração institucional do poder, sanar os conflitos e estabilizar a sociedade pela ação da autoridade; é o processo de construção de uma ordem”, que permita a pacífica convivência entre pessoas diferentes, com interesses particulares e que buscam a felicidade para si, condição que lhes é assegurada (ou pelo menos deveria ser) pela ação política do Estado. A política tem esse sentido quando associada à ação do governo, “como a atividade através da qual são conciliados os diferentes interesses, dentro de uma participação no poder, proporcional à sua importância para o bem-estar e a sobrevivência de toda a comunidade”. Política, nesse sentido, deve ser entendida como uma forma de governar sociedades divididas, sem o uso indevido da violência. Os pontos de vista divergentese os vários interesses diferentes são levados de uma forma ética a conciliarem-se, evitando-se o uso da coerção. É assim que, no contexto das políticas públicas, a política deve ser entendida como um conjunto de procedimentos que expressam relações de poder. Estes, por sua vez, se orientam para a resolução de conflitos no que se refere aos bens públicos. Em outras palavras, a política implica a possibilidade de se resolverem conflitos de forma pacífica. A política, assim, inclui diferentes significados, mas todos de algum modo relacionados com posse, manutenção ou distribuição do poder. A maior parte dos cientistas sociais compartilha a ideia de que poder é a capacidade para afetar o comportamento dos outros. O poder pode ser considerado um meio que o grupo ou indivíduo tem de fazer com que as coisas sejam realizadas por outros indivi- duos ou grupos. Nesse sentido, o poder é um elemento básico na implementação das políticas. As políticas públicas constituem um elemento comum da política e das decisões do governo e da oposição. Desse modo, a política pode ser analisada como a busca pelo estabelecimento de políticas públicas sobre determinados temas, ou de influenciá-las. Por sua vez, parte fundamental das atividades do governo se refere ao projeto, gestão e avaliação das políticas públicas. Como decorrência, o objetivo dos políticos, sejam quais forem seus interesses, consiste em chegar a estabelecer políticas públicas de sua preferência, ou bloquear aquelas que lhes sejam inconvenientes. Ao longo do século XX, com o aumento da complexidade das sociedades, e o aumento da capacidade de intervenção do ser humano, possibilitado pelo avanço das novas tecnologias, a política se torna ainda mais importante, havendo necessidade de ampla participação da população nos processos de decisão que ocorrem nos diferentes âmbitos de poder, em particular no Estado. Hoje, os grandes problemas colocados na agenda mundial são problemas que passam pela intervenção política. Podemos afirmar que a política está inserida em todos os aspectos da vida humana. Ou seja, o terrorismo, o aquecimento global, a diminuição da diversidade, a inserção social de imigrantes, a melhoria da qualidade, de vida dos idosos, o aumento da inclusão social, entre tantos outros problemas, antes de serem ambientais, sociais ou culturais são essencialmente políticos, pois dependem de decisões tomadas no âmbito dos Estados, ou em fóruns internacionais em que estes continuam a ter total relevância e influência. Portanto, mais do que nunca torna-se necessário que a política seja compreendida pelo homem comum, e um componente importante desse entendimento passa pela compreensão do que é o Estado e o papel que está reservado a cumprir nas sociedades humanas. O Estado Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 3 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda O Estado é um fenômeno político que, tal qual é conhecido hoje, surge no século XVI quando se consolida o poder real que se impõe sobre outros poderes, como a nobreza, os parlamentos, as cidades livres e a Igreja. Primeiramente, o Estado moderno surge em sua forma absolutista, onde o rei é o soberano absoluto; no final do século XVIII, com a Revolução Francesa de 1789, surge o Estado-nação que se consolida no século XIX e onde o povo é o soberano. Este Estado-nacão mantém-se até os dias atuais e é a formação reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU); embora tenha diferentes formatos, o princípio básico se mantém. Ocorre, muitas vezes, uma confusão entre os termos ‘Estado’ e ‘Estado-nação’, embora sejam termos semelhantes, e muitas vezes nem se empregue a terminologia nação para se referirem aos muitos Estados existentes no planeta, esses conceitos na realidade “referem-se a categorias ou gêneros diferentes: o Estado-nação ou país é uma unidade político-territorial soberana, enquanto que o Estado moderno é uma instituição - a principal instituição em cada país”. Enquanto instituição, nos referimos a uma associação política. Quando utilizamos a palavra “Estado” estamos nos referindo à totalidade da sociedade política, ou seja, o conjunto de pessoas e instituições que formam a sociedade juridicamente organizada sobre um determinado território. A palavra “governo”, por sua vez, se refere somente à organização específica de poder ao serviço do Estado, ou seja, àqueles que gerenciam os negócios do Estado por um determinado período de tempo. A função do governo, na direção ou processo de administração do Estado, é aplicar as leis e políticas públicas do Estado através dos poderes Executivo e do Judiciário, e, quando necessário, empreender sua reforma através do poder Legislativo. Numa abordagem mais atual, entende-se o governo como “constituído pela cúpula do poder Executivo, do poder Judiciário, e pelos deputados e senadores. Além de ser o processo de governar, o governo é o grupo dirigente do Estado”. A administração dos negócios do Estado, feita pelo governo, ocorre em todos os níveis da estrutura estatal - federal, estadual e municipal. Essa administração dos negócios do Estado é renovada de quatro em quatro anos nos diferentes níveis. No Brasil, as eleições para eleger o governo federal e os governos estaduais coincidem de quatro em quatro anos. As eleições para os governos municipais são realizadas dois anos após, e também realizadas de quatro em quatro anos. Em todos os casos é permitida a reeleição somente uma vez. Todos os níveis de governo atuam em nome do Estado e constituem a parte mais visível dessa organização; tendo a capacidade de induzir mudanças no âmbito do aparato estatal. Do ponto de vista das políticas públicas, as decisões mais importantes ocorrem no seio do poder governamental. Pode haver um equilíbrio ou desequilíbrio entre a parcela de decisão que cabe ao Executivo ou ao Legislativo, dependendo de vários fatores. Num regime presidencialista, como é o caso do Brasil, “isso depende do vigor da representação política no Poder Legislativo. Quanto mais o Parlamento corresponder ao espaço de representação das forças sociais, maior tende a ser o seu peso” no rumo que tomarão as políticas públicas. E, ao contrário, “quanto mais débil ou mais artificial ou ainda mais segmentada em benefício de classe ou grupos sociais for a representação parlamentar, mais a fundamentação e o rumo que tomarão as políticas públicas tende a se deslocar para o interior do aparelho administrativo”. A sociedade civil, por sua vez, em contraposição à sociedade política, ou Estado, é a sociedade organizada, que “engloba todas as relações sociais que estão à margem do Estado, mas que exercem algum tipo de influência sobre ele”. Ou seja, “da sociedade civil participam tanto organizações públicas não estatais de advocacia política e de prestação de serviços, e movimentos sociais quanto empresas e indivíduos interessados nos problemas públicos”. É constituída pelas organizações da sociedade civil, tanto do mercado quanto do terceiro setor (entidades sem fins lucrativos), nela se incluem tanto a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a União Nacional dos Estudantes (UNE), como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) entre outras. No Brasil, os atores sociais que emergiram na sociedade civil após 1970, à revelia do Estado, criaram novos espaços e formas de participação e relacionamento com o poder público. A partir da Constituição de 1988, a participação das organizações da sociedade civil ampliou-se com o des Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 4 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda envolvimento de práticas que abriram espaço para o incremento da democracia participativa. A revitaliza- ção da sociedade civil desde meados da década de 1990 se reflete no aumentodo associativismo e dos movimentos sociais organizados pressionando a ampliação e democratização da gestão estatal.1 Principais características do Estado O Estado está presente em toda parte, “o lugar que ele ocupa em nossa vida cotidiana é tamanho que não poderia ser retirado dela sem que ao mesmo tempo, ficassem comprometidas nossas possibilidade de viver”, sua autoridade se faz sentir sob diversas formas. O Estado é uma criação cultural humana, que vive na estrutura funcional de seu quadro de funcionários, que possui um objetivo. Constitui uma entidade, não uma pessoa, formado por um aparato social, jurídico-administrativo, para se obter a institucionalização do poder político. E dotado de uma vontade, concretizada em leis, que determina a conduta social. A função legislativa é a manifestação da vontade do Estado. O Estado manifesta sua vontade pelas leis, e faz que seja cumprida através do exercício do poder Executivo. O Estado é responsável pela ordem, pela justiça e pelo bem comum da sociedade. Para tanto, deve legislar (criar e manter em dia uma ordem jurídica eficaz); administrar (prover, através de diversos mecanismos legais e executando os serviços públicos, as necessidades da comunidade) e julgar (resolver pacificamente, de acordo com a lei, os conflitos de interesses que possam surgir e decidir qual é a norma aplicável em caso de dúvida). A nova realidade econômica mundial tem levado os Estados a se modificarem, considerando os novos espaços em que estão inseridos, alterando suas práticas tradicionais e reformulando os conceitos de soberania. O Estado possui acesso a um número limitado de recursos que devem ser utilizados para atender a um número significativo de demandas da sociedade e que tendem a crescer em função da maior complexidade das sociedades e das novas exigências e problemas decorrentes. Deste modo, as funções estatais em todos os níveis (federal, estadual, municipal), para serem exercidas, necessitam de um mínimo de planejamento, com a adoção de critérios de racionalidade para que as metas e objetivos sejam alcançados de forma eficiente, ou seja, obter resultados com recursos limitados. Para desempenhar suas funções essenciais, o Estado precisa ter determinadas capacidades que podem ser sintetizadas em uma série de dimensões identificadas como cruciais para o seu exercício e que são: a) Definir e manter prioridades entre as muitas demandas conflitantes. b) Direcionar recursos para onde eles sejam mais eficazes. c) Inovar quando as políticas existentes tiverem falhado. d) Coordenar objetivos conflitantes num todo coerente. e) Ser capaz de impor perdas a grupos poderosos. f) Representar interesses difusos e desorganizados além daqueles que são concentrados e bem organizados. g) Assegurar a implementação efetiva das políticas governamentais uma vez que elas tenham sido decididas. h) Assegurar a estabilidade das políticas para que elas tenham tempo para surtir efeito. i) Assumir e manter compromissos internacionais nas áreas de comércio e defesa nacional para assegurar o bem-estar duradouro do Estado. j) Administrar cisões políticas para que a sociedade não degenere em guerra civil. k) Assegurar a adaptabilidade das políticas quando as mudanças das circunstâncias o exigirem. l) Assegurar coerência entre diferentes âmbitos de políticas, para que as novas políticas sejam compatíveis com as já existentes. m) Assegurar uma coordenação eficiente das políticas entre os diferentes atores que operam num 1 Jacobi (2009). Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 5 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda mesmo âmbito de políticas. Essas capacidades do Estado podem ser estreitamente associadas às características-chave das políticas públicas. O objetivo do Estado: o bem comum O Estado como instituição criada por um contrato social tem um fim, um objetivo, que não pode ser confundido com os objetivos daqueles que exercem o governo, que possuem interesses próprios que podem ou não coincidir com a função social do aparelho estatal. O filósofo grego Aristóteles, em sua obra Política, afirma que a finalidade do Estado é a felicidade na vida. Segundo ele, bem viver livre e independente “é viver venturoso e com virtude. E necessário, portanto, admitir em princípio que as ações honestas e virtuosas, e não apenas a vida comum, são a finalidade da sociedade política”. Esse também é o entendimento dos autores do The Federalist Papers, importante documento do processo constitucional norte-americano, publicado em 1788, que afirmam que “um bom governo implica duas coisas: primeiro, fidelidade a seu objetivo, que é a felicidade do povo; segundo, um conhecimento dos meios que permitam alcançar melhor este objeto”. Outro ponto de vista, que não contradiz os anteriores, sobre os fins do Estado, repousa sobre a ideia de bem comum ou o interesse público. A elaboração desse conceito tem origem na teologia católica, em particular com São Tomás de Aquino (1225-1274), e de acordo com essa origem a ideia de bem comum constitui um status no qual se alcança a satisfação de todos os desejos da comunidade e seus membros. Em síntese, o “bem comum” não é o bem de todos - como se “todos” fosse uma unidade real - mas o conjunto de condições apropriadas para que todos “grupos intermediários” e pessoas individuais - alcancem seu “bem particular”. O bem comum consiste no conjunto de condições sociais que permitam e favoreçam nos seres humanos o desenvolvimento integral de todos os membros da comunidade. E o Estado tem por fim último oferecer condições para que todas as pessoas que integram a comunidade política realizem seus desejos e aspirações, e para tanto assegura a ordem, a justiça, o bem-estar e a paz externa, que são elementos necessários para que as outras necessidades públicas sejam atendidas. Tradicionalmente, o Estado desempenhou uma função social como agente econômico destinado a realocar os recursos escassos e amenizar as contradições inerentes ao próprio desenvolvimento das forças de reprodução do capital - como o aumento da desigualdade social e regional, entre outras, característica esta acentuada na configuração do Estado de Bem-Estar Social. O que acontece é que a relação entre o Estado e o indivíduo receptor do benefício é mecânica, e embora sua ação seja permeada por um aparato burocrático formado por indivíduos reais, na realidade, a relação se estabelece entre seres humanos e uma engrenagem, ou seja, uma máquina animada.2 Essa opacidade nas relações sociais reais tornou a ação do Estado destituída de um sentido humanitário e consolidou a alocação não democrática dos recursos com pouca ou nenhuma participação da comunidade na gestão dos programas. Estabeleceu-se uma estrutura administrativa para gerir recursos destinados a benefícios sociais que não cumprem suas funções. Esta estrutura diminui os recursos destinados aos programas em prol de sua utilização na remuneração do pessoal administrativo. E, por outro lado, favorece a não fiscalização dos recursos, permitindo a apropriação indevida dos mesmos, via mecanismos de corrupção. Ocorre que essas atividades - meio - os procedimentos administrativos encarregados de manusear os recursos - têm consumido todo ou quase todo o orçamento social, passando o Estado, muitas vezes, a ser o receptor final de um excedente que seria destinado a diminuir os problemas sociais, ou destinar partes significativas desses recursos para subsidiar atividades econômicas não competitivas e que só conseguem se manter com esse subsídio. No Brasil, o latifúndio, particularmente em áreas do Nordeste, 2 A referência aqui é sobre a caracterização que faz Weber de que a inteligência concretizada e uma máquina animada - a organização burocrática, estabelecendo uma semelhança com as maquinas inanimadas que seriam tambéma mente concretizada. Cf. Weber (1974), p. 31. Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 6 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda historicamente tem-se beneficiado desses subsídios, assim como setores industriais atrasados, do ponto de vista tecnológico, no Sul e Sudeste. Essa atividade do Estado, de gerenciar os recursos arrecadados do início ao fim do processo - do recolhimento dos impostos à destinação ao beneficiário - sem um controle mais efetivo da sociedade, gerou profundas distorções que fizeram aumentar significativamente o déficit público. Mesmo considerando todos esses problemas, o Estado deverá continuar exercendo seu papel social, embora em novas bases e com outro conteúdo. Como parte da redefinição do papel do Estado está a necessidade de haver um maior controle de suas ações, ou seja, uma maior democratização na execução de seus programas, o que somente poderá ser conseguido com a existência na sociedade de uma alternativa de ação permanente e independente, que fiscalize e mantenha os programas sociais em execução. Essa fiscalização e manutenção dos programas sociais pode ser realizada através de novos arranjos que possibilitem uma ação mais ágil do Estado; esse é um processo de reformulação em curso que tem possibilitado “o crescimento e a legitimação das organizações não governamentais no contexto nacional”. O Estado tem delegado cada vez mais “parte de seus poderes e parte de seus deveres a outras instituições da sociedade civil”. Configurando um novo espaço público no qual o Estado não tem exclusividade de ação, compartilhando a esfera pública com organizações que desempenham uma função pública sem fazer parte do aparato estatal, contribuindo para o desenvolvimento das políticas públicas. A definição de política pública Considerada uma área do conhecimento contida na Ciência Política, as políticas públicas foram adquirindo autonomia e status científico a partir de meados do século XX na Europa e Estados Unidos. Em 1936, Harold D. Lasswell publica o livro Política: quem ganha o quê, quando e como, título considerado uma das definições de políticas públicas. Na Europa, esses estudos tinham por objetivo analisar e explicar o papel do Estado e de suas organizações mais importantes na produção das políticas públicas. Já nos Estados Unidos, bem como no Brasil, a ênfase se deu na ação dos governos. Mas foi em 1951, com a publicação de dois livros fundamentais, que se tornaram um marco no estabelecimento da área disciplinar de estudos das políticas públicas, O processo governamental, de David B. Truman, e As ciências políticas, de Daniel Lerner e Harold D. Lasswell, que as políticas públicas foram se constituindo como área disciplinar específica. No Brasil, entretanto, apenas no final dos anos de 1970 e começo dos anos 1980 tiveram início efetivo os estudos de políticas públicas, com a publicação de trabalhos sobre a formação histórica das ações de governo. A expressão “política pública” engloba vários ramos do pensamento humano, sendo interdisciplinar, pois sua descrição e definição abrangem diversas áreas do conhecimento como as Ciências Sociais Aplicadas, a Ciência Política, a Economia e a Ciência da Administração Pública, tendo como objetivo o estudo do problema central, ou seja, o processo decisório governamental. Um primeiro passo para se discutir política pública é compreender o conceito de “público”. As esferas que são rotuladas como públicas são aquelas que estão em oposição a outras que envolvem a ideia de “privado”. O público compreende aquele domínio da atividade humana que é considerado necessário para a intervenção governamental ou para a ação comum. Fazem referência a esse âmbito comum muitos termos utilizados com frequência, tais como: interesse público; setor público; opinião pública; saúde pública entre outros. O conceito de política pública pressupõe que há uma área ou domínio da vida que não é privada ou somente individual, mas que existe em comum com outros. Essa dimensão comum é denominada propriedade pública, não pertence a ninguém em particular e é controlada pelo governo para propósitos públicos. A sua localização na esfera pública é a condição de tornar-se objeto de política pública. É nesse âmbito que as decisões são tomadas pelo público, para tratar de questões que afetam as pessoas em comunidades; todos os tipos de outras decisões são feitas em empresas, nas famílias e em outras organizações que não se consideram parte da esfera pública. A esfera pública pode ser pequena como uma vila Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 7 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda ou do tamanho de um país. Qualquer que seja a escala, as políticas públicas remetem a problemas que são públicos, em oposição aos problemas privados. A administração pública surgiu como instrumento do Estado para defender os interesses públicos ao invés dos interesses privados. Enquanto há aqueles que acham que somente os mercados podem equilibrar os interesses públicos e privados, outros entendem que a administração pública é o meio mais racional de promover o interesse público. Como vimos, é o governo o principal gestor dos recursos e quem garante a ordem e a segurança providas pelo Estado. Assim, o governo é obrigado a atender e resolver os problemas e levar adiante o processo de planejamento, elaboração, implementação e avaliação das políticas públicas que sejam necessárias ao cumprimento - de modo coordenado e permanente - dessa função que lhe delegou a sociedade. Entendida, desse modo, a função primordial do governo, uma primeira definição de política pública pode ser formulada como sendo o conjunto de princípios, critérios e linhas de ação que garantem e permitem a gestão do Estado na solução dos problemas nacionais. Outra definição de políticas públicas pode ser sintetizada da seguinte maneira: são as ações empreendidas ou não pelos governos que deveriam estabelecer condições de equidade no convívio social, tendo por objetivo dar condições para que todos possam atingir uma melhoria da qualidade de vida compatível com a dignidade humana. Nesta definição está implícito que os governos têm por objetivo garantir que sejam atingidos os fins para os quais foi criado o Estado, ou seja, com a utilização de mecanismos legais e coercitivos, tornar possível que todos os cidadãos possam buscar a felicidade, sem que sejam prejudicados pelas ações de outros indivíduos ou organizações. No entanto, deve ficar claro que embora as ações do governo tenham por objetivo primordial cumprir seu papel de gestor dos negócios do Estado e primeiramente atender ao conjunto da sociedade, sem discriminação de qualquer tipo, visando ao bem comum, as pessoas que integram a administração por prazo determinado têm seus próprios interesses particulares e procurarão atender durante o tempo que permanecerem como administradores da coisa pública, o que pode ou não coincidir com os fins do Estado. É considerando esse aspecto que as políticas públicas devem compreender todas as ações dos governos, pois estas, de algum modo, procurarão se legitimar através de um discurso (e alguma prática) que considera a necessidade de atender os fins do Estado, pois é esta a expectativa que possuem todas as pessoas da sociedade. Outras definições de políticas públicas podem ser: “A combinação de decisões básicas, compromissos e ações feitas por aqueles que detêm ou influenciam cargos de autoridade do governo” (Larry Gerston).3 “São a totalidade de ações, metas e planos que os governos (nacionais, estaduais ou municipais) traçam para alcançar o bem-estar da sociedade e o interesse público” (Sebrae).4 “É o que os governos decidem ou não fazer” (Dye).5 “É a soma das atividadesdos governos, que agem diretamente ou por meio de agentes, e que influenciam a vida dos cidadãos” (Peters).6 Alguns elementos mais comuns encontrados nas definições de políticas públicas são:7 • A política pública é feita em nome do “público”. • A política pública é geralmente feita ou iniciada pelo governo. • A política pública é interpretada e implementada por atores públicos e privados. 3 Gerston (2010), p. 7. 4 Sebrae (2008), p. 5. 5 Dye (1987), p. 1. 6 Peters (1993), p. 4. 7 Birkland (2010), p. 20. Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 8 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda • A política pública é o que o governo pretende fazer. • A política pública é o que o governo escolhe não fazer. É importante compreender-se que o conceito de políticas públicas inclui tanto temas do governo, como do Estado. Estes últimos são, na realidade, políticas de mais de um governo, o que lhes confere uma particularidade política. Também é possível considerar políticas de Estado aquelas que envolvem o conjunto dos poderes do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) em seu projeto e execução. Há necessidade de se diferenciar os bens públicos dos bens privados ou bens destinados ao uso coletivo. O que as políticas públicas geram são bens públicos - não privados ou coletivos pois o caráter público dessas políticas não é identificado pelo “agregado social que o bem que elas produzem atingem, mas sim pelo fato de essas políticas serem mandatórias e impositivas”. As políticas públicas são o resultado da atividade política, requerem várias ações estratégicas destinadas a implementar os objetivos desejados e, por isso, envolvem mais de uma decisão política. Discutir políticas públicas é importante para “entender a maneira pela qual elas atingem a vida cotidiana, o que pode ser feito para melhor formatá-las e quais as possibilidades de se aprimorar sua fiscalização”. Um dado importante a ser considerado sobre as políticas públicas é que elas têm um aspecto coercitivo oficializado que os cidadãos aceitam como legítimo. Por exemplo: os impostos devem ser pagos, os sinais de trânsito devem ser obedecidos, as normas que regulam o funcionamento dos espaços públicos devem ser acatadas etc., e, em caso contrário, aqueles que não o fizerem serão penalizados. Esse aspecto coercitivo das políticas públicas torna as organizações públicas distintas das organizações privadas. A discussão permanente, por parte dos cidadãos, das políticas públicas é importante porque o Estado, considerado em quaisquer dos seus níveis, possui acesso a um número limitado de recursos que devem ser utilizados para atender a um número significativo de demandas da sociedade e que tendem a crescer. Deste modo, as funções estatais, para serem exercidas, necessitam de um mínimo de planejamento, com a adoção de critérios de racionalidade para que as metas e objetivos sejam alcançados de forma eficiente. Em outras palavras, observados os interesses e as demandas da sociedade, as ações devem ser planejadas e organizadas, avaliando as possibilidades existentes, estruturando sua implementação adequada, além de desenvolver mecanismos para reavaliar todo o processo. Isto é, fazendo escolhas sobre em que área atuar, onde atuar, por que atuar e quando atuar. De forma sucinta, é disto que tratam as políticas públicas, a gestão dos problemas e das demandas coletivas através da utilização de metodologias que identificam as prioridades, racionalizando a aplicação de investimentos e utilizando o planejamento como forma de se atingir os objetivos e metas predefinidos. Uma política pública, desse modo, pode ser considerada um programa de ação de um governo, que pode ser executada pelos próprios órgãos governamentais ou por organizações do terceiro setor (ONGs, OSCIPs, fundações etc.) investidas de poder público e legitimidade governamental pelo estabelecimento de parcerias com o Estado (como, por exemplo, as agências de desenvolvimento). O termo “público”, associado à política, não é uma referência exclusiva ao Estado, como muitos pensam, mas, sim, à coisa pública, ou seja, de todos, pertencente ou destinado ao povo, sob a égide de uma mesma lei e o apoio de uma comunidade de interesses. De modo geral, as políticas públicas são reguladas e na maioria das vezes providas pelo Estado, mas elas também envolvem preferências, escolhas e decisões privadas, e, nesse caso, podem e devem ser controladas pelos cidadãos. Dito de outro modo, “a política pública expressa, assim, a conversão de decisões privadas em decisões e ações públicas, que afetam a todos”. Nesse sentido, “as políticas variam de acordo com o grau de diversificação da economia, com a natureza do regime social, com a visão que os governantes têm do papel do Estado no conjunto da sociedade e com o nível de atuação dos diferentes grupos sociais, como partidos, sindicatos, associações de classe e outras formas de organização social”. A discussão sobre política pública, assim como qualquer abordagem sobre a Administração Pública atualmente, qualquer que seja seu nível, deve considerar três grandes tendências que ocorrem em escala planetária e que se inter-relacionam: a globalização da economia, a transformação do Estado e o pro Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 9 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda cesso de descentralização. Essas megatendências influenciam os programas nacionais de desenvolvimento, alteram o papel das instituições públicas, reorientam os processos de integração nacional, pressionam por mudanças organizacionais, alteram a relação público- -privado, promovem o surgimento de novos atores políticos e fortalecem a territorialidade dos processos socioeconômicos. Características de uma política pública As políticas públicas constituem um meio de concretização dos direitos que estão codificados nas leis de um país. Nesse sentido, a “Constituição não contém políticas públicas, mas direitos cuja efetivação se dá por meio de políticas públicas”. Do mesmo modo devem ser consideradas as constituições estaduais e as leis orgânicas municipais, que apresentam disposições jurídicas onde estão codificados direitos de todo tipo (humanos, sociais, ambientais entre outros), e não políticas públicas. Estas têm a função explícita de concretizar aqueles direitos junto à comunidade a que se referem: o país todo, os Estados ou as comunidades locais. Uma política pública implica o estabelecimento de uma ou mais estratégias orientadas à solução de problemas públicos e/ou à obtenção de maiores níveis de bem-estar social. Resultam de processo de decisão surgido no seio do governo com participação da sociedade civil, onde são estabelecidos os meios, agentes e fins das ações a serem realizadas para que se atinjam os objetivos estabelecidos. Outro fator relevante é que não existe um modelo de política pública “ideal” ou “correta”, pois elas são respostas contingentes à situação de uma cidade, região ou um país. Ou seja, o que pode funcionar em dado momento da história, em um determinado país, pode não dar certo em outro lugar, ou no mesmo lugar em outro momento. Em alguns casos, certas características de sua implementação podem ser tão importantes quanto a orientação geral dessa política, como, por exemplo, aspectos como a coerência com que se executou a política, qual o órgão encarregado de fazê-lo, a forma como a política foi combinada (ou não) com outros objetivos de política e quão previsível seria o futuro da política. Uma das características importantes das políticas públicas é que se constituem “de decisões e ações que estão revestidas da autoridade soberana do poder público. A questão, então, é saber: quem são os atores envolvidos na produção das políticaspúblicas? Quem tem poder para tomar decisões públicas?” Para que uma política de governo se converta em política pública, é necessário que esta se baseie em programas concretos, critérios, linhas de ação e normas; planos; previsões orçamentárias, humanas e materiais; também podem ser incluídas as disposições constitucionais, as leis e os regulamentos, os decretos e resoluções administrativas, entre outras. Para o BID há certas características ou aspectos-chave das políticas públicas que afetam sua qualidade, tais como: • Estabilidade: na medida em que as políticas são estáveis no tempo. Ter políticas estáveis não significa que as políticas não possam sofrer alterações, mas que as alterações tendem a responder a mudanças nas condições econômicas ou ao fracasso de políticas anteriores, não a mudanças políticas. As mudanças devem ser gradativas, aproveitando as realizações de administrações anteriores e a ser alcançadas através de consenso. • Adaptabilidade: as políticas devem ser passíveis de adaptação e ajustes quando as circunstâncias mudam (condições econômicas, por exemplo) ou serem alteradas quando for evidente que elas não estão funcionando. • Coerência e coordenação: em que medida as políticas são compatíveis com outras políticas afins e resultam de ações bem coordenadas entre os atores que participam de sua formulação e implementação. A falta de coordenação com frequência reflete a natureza não cooperativa das interações políticas. Ela pode ocorrer em diferentes órgãos ou entre agentes que operam em diferentes estágios do processo de formulação de políticas. A falta de comunicação adequada e cooperação podem levar à fragmentação da formulação de políticas, também chamada de “bal- c a Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 10 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda nização” das políticas públicas. • Qualidade da implementação e da aplicação efetiva. Uma política pode ser muito bem projetada, passar pelo processo de aprovação sem alterações e, ainda assim, ser completamente ineficaz se não for bem implementada e aplicada. A qualidade da implementação está associada à capacitação do corpo técnico (ou burocracia). • Consideração do interesse público: refere-se ao grau em que as políticas produzidas por um dado sistema promovem o bem-estar geral e se assemelham a bens públicos (isto é, consideram o interesse público) ou tendem a direcionar os benefícios privados para determinados indivíduos, facções ou regiões sob a forma de projetos com benefícios concentrados, subsídios ou brechas fiscais (isto é, consideram o interesse privado). • Eficiência: é um aspecto-chave da boa formulação de políticas públicas, é a capacidade do Estado de alocar seus recursos escassos às atividades em que eles tenham os maiores retornos, em outras palavras, que assegure retornos sociais elevados. Este aspecto das políticas está, de certa forma, relacionado à consideração do interesse público, uma vez que, quando os formuladores de políticas favorecem indevidamente setores específicos em detrimento do interesse público, estão se afastando da alocação de recursos mais eficiente. Tipos de políticas públicas Como vimos, de forma sucinta, as políticas públicas são ações governamentais dirigidas a resolver determinadas necessidades públicas. Existem diferentes modelos ou tipologias desenvolvidas para facilitar o entendimento sobre como e por que o governo faz ou deixa de fazer alguma ação que repercutirá na vida dos cidadãos. As políticas públicas podem ser de diferentes tipos, como: 1. Política social: saúde, educação, habitação, previdência social. 2. Política macroeconômica: fiscal, monetária, cambial, industrial. 3. Política administrativa: democracia, descentralização, participação social. 4. Política específica ou setorial: meio ambiente, cultura, agrária, direitos humanos etc. No que se refere à natureza das políticas públicas, elas ainda podem ser agrupadas de acordo com as arenas decisórias, finalidades e o alcance das ações. De acordo com a tipologia clássica de Theodore J. Lowi, também chamada de ‘Tipologia de Lowi’ ou teoria das Arenas de poder, cada tipo de política pú- blica define um tipo específico de relação (ou discussão) política, ou seja, uma arena. Nesse sentido, a política pública determina a política; em outras palavras, cada tipo de política pressupõe uma rede diferente de atores, bem como arenas, estruturas de decisões e contextos institucionais diferentes. Conceitualmente, as arenas de poder ou arenas decisórias podem ser dividas em quatros tipos (regulatória, distributiva, redistributiva e constitutivas), de acordo com as coalizões ou oposição ao objeto da política que esta em jogo. Distributivas: são financiadas pelo conjunto da sociedade e os benefícios são distribuídos atendendo as necessidades individualizadas, ou seja, o governo distribui recursos a uns, sem que isso afete outros grupos ou indivíduos. A ausência de desfavorecidos gera uma arena baseada na cooptação desenvolvendo numa arena menos conflituosa. Podem ser utilizadas para estimular setores e atividades já existentes, como é o caso da concessão de subsídios, ou, ainda, isenções tarifárias, incentivos ou renúncias fiscais. Regulatórias: envolvem discriminação no atendimento das demandas de grupos distinguindo os beneficiados e prejudicados por essas políticas, estabelecendo controle, regulamento e padrões de comportamento de certas atividades políticas. Este tipo de política nasce do conflito entre coalizões políticas de interesses claros e opostos, uma vez que gera claramente uma distinção entre favorecidos e desf avo Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 11 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda recidos (quem ganha e quem perde). Esse conflito torna a arena regulatória menos estável que a distributiva e a redistributiva. Podem-se tomar como exemplo as regulamentações dos setores econômicos e de serviços, tais como as telecomunicações, regras de tráfego aéreo e códigos de trânsito, as leis ambientais, defesa do consumidor. Redistributivas: têm como objetivo redistribuir recursos financeiro, direitos ou outros benefícios entre os grupos sociais, intervindo na estrutura econômica social, através da criação de mecanismos que diminuam as desigualdades. Podem ser de forma direta, através de transferências monetárias, ou indiretas, por influenciarem a longo prazo a redução das desigualdades. Caracterizam-se pelo jogo de soma zero, pela contraposição de interesses claramente antagônicos, ou seja, para que alguns ganhem, outros têm que perder. São exemplos os programas de previdência, seguro-desemprego, cotas raciais para universidades, bolsa-família, reforma agrária. Constitutivas ou políticas estruturadoras: são políticas públicas que estabelecem regras sob as quais outras políticas públicas são selecionadas. “São aquelas políticas que definem as competências, jurisdições, regras da disputa política e da elaboração de políticas públicas. [...] exemplos são as regras do sistema político-eleitoral, a distribuição de competências entre os poderes e esferas, regras das relações intergovemamentais, regras da participação da sociedade civil em decisões públicas.” Conceitualmente, as políticas públicas - consideradas as políticas sociais - também podem ser dividas, de acordo com suas finalidades, em três grupos: preventivas, também chamadas de passivas; compensatórias ou ativas: e sociais ,stricto sensu. As políticas preventivas visam a minimizar ou impedir a ocorrência de problemas sociais graves, todos contribuem para seu financiamento indireto por meio do sistema tributário. São exemplos desse tipo as políticas de emprego, salário, saúde pública, saneamento, educação e nutrição. As políticascompensatórias são os programas sociais “destinados a remediar desequilíbrios gerados pelo processo de acumulação” e que visam solucionar problemas gerados pela ineficiência do sistema político em assegurar a coesão e o equilíbrio sociais, ou seja, remediam problemas gerados em larga escala por ineficiência de políticas preventivas anteriores. Pressupõem formas diversas de financiamentos (taxas, contribuições, tributos etc.). Têm impacto reduzido no contexto porque o fator originário do problema não é alterado. Como exemplos de políticas compensatórias têm-se: as relacionadas com a previdência social, de alfabetização, qualificação profissional, de habitação, assistência ao menor. Já as políticas sociais stricto sensu “são aquelas explicitamente orientadas, ao menos em intenção, para a redistribuição de renda e de benefícios sociais”, como exemplos o bolsa- família, bolsa-escola, vale-refeição etc. As políticas podem ainda ser dividas pelo alcance de suas ações em focalizadas e universalistas.8 São denominadas focalizadas aquelas que se destinam a um público específico, ou a alguma condição específica: os destinatários são definidos pelo nível de necessidades, de pobreza ou risco, são exemplos o Bolsa-Família, Programa de Alfabetização de Adultos, de Assistência ao Menor entre outros. E são universalistas as que se destinam a todos indistintamente, sem se definir o grupo destinatário. Como exemplos temos as políticas de saúde, de educação, de assistência social etc. Novas áreas de políticas públicas Com o aumento da complexidade das sociedades modernas, que incluem uma maior diversidade das demandas da sociedade para com o Estado, torna-se necessário que este implemente novas ações em termos de políticas públicas, o que amplia sua necessidade de intervenção na realidade social. Como exemplos de novas áreas de atuação em termos de políticas públicas incluem-se o meio ambiente, o turismo e ações voltadas para os idosos. Apesar de não ser uma “nova área”, a política tributária é uma área que merece destaque, além de ser “um bom ponto de partida para se examinar como funciona o processo de formulação de políticas. Antes de tudo, porque grande número de decisões na área das políticas públicas relaciona-se com os impostos, que afetam quase todos os aspectos da economia e da sociedade. O tamanho do Estado, o volume de redistribuição dos ricos para os pobres e as decisões concernentes a consumo 8 Kerstenetzky (2006). Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 12 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda e investimento — tudo isso está relacionado com essa área fundamental das políticas públicas. Em vista de seus fortes efeitos sobre a eficiência e a equidade, a política tributária talvez seja a área de políticas públicas na qual há mais interesses em jogo. Assim, o processo de formulação de políticas no âmbito dos impostos tende a ser um bom reflexo do processo de formulação de políticas geral (ou ‘global’), ou seja, o processo através do qual uma infinidade de interesses, tanto públicos quanto privados, exerce seus efeitos nas engrenagens da negociação política na elaboração de políticas públicas. Via de regra, os atores que desempenham os principais papéis no processo de formulação de políticas mais amplo (‘global’) são também atores ativos no processo de discussão, aprovação e execução das políticas tributárias”.9 É no âmbito dos governos locais onde surge com mais rapidez a necessidade de ampliação da ação do Estado, isto devido a maior proximidade do poder político com a comunidade, fazendo com que as pressões que estas exercem sejam mais efetivas num tempo menor que aquelas que ocorrem no âmbito estadual ou federal. Nesse sentido, em termos de inovações nos conteúdos das políticas públicas promovidas pelos governos locais, em período recente, há, por um lado, “a inclusão de novas áreas de ação no escopo de ação dos governos locais e, de outro, mudanças na abordagem ou concepção a respeito de políticas”. Em relação às inovações nos campos de ação dos governos municipais destacam-se, em primeiro lugar, iniciativas voltadas ao atendimento de segmentos da população, até então incorporadas de maneira periférica no âmbito da ação dos governos locais, envolvendo, portanto, democratização do acesso, como extensão da cidadania a “novos” segmentos da população. Há programas dirigidos a crianças e adolescentes, idosos, portadores de sofrimento físico e mental, mulheres e comunidades indígenas. Outro aspecto da inovação a ser considerado é a participação, cada vez maior, de organizações não governamentais integrando esse processo de inclusão de novas áreas de atuação dos governos locais. Globalização, Estado e governo “O governo, mesmo na sua melhor forma, é apenas um mal necessário; na sua pior forma, um mal intolerável.” (Thomas Paine - escritor e político inglês, 1737-1809) A discussão política hoje, qualquer que seja, deve passar necessariamente por considerar o fenômeno da globalização, pois constitui um processo que envolve as sociedades humanas de tal modo que as articulações locais muitas vezes sofrem mais influência do global do que do nacional, daí a constante menção das relações do local com o global. Do mesmo modo ocorre com as políticas públicas. Neste capítulo se pretende abordar as novas funções do Estado, levando em conta essa realidade e o papel das políticas de desenvolvimento local nesse contexto. O processo de globalização e o Estado Atualmente, um dos principais aspectos a serem considerados no estudo das políticas públicas é a relação destas com o processo de globalização. Esse fenômeno que se refere à expansão das interações humanas em termos planetários provoca o surgimento de uma vida social e de uma consciência em escala mundial, que configuram a existência de uma comunidade global com interesses comuns, tanto no que diz respeito ao modo de vida quanto à condição de desfrutar determinados direitos universais. Nesse contexto, e para o atendimento dessa comunidade de interesses tão ampla, deveriam ser estabelecidas políticas públicas de cunho global, considerando o atual paradigma que estabelece, que emanam, primordialmente, do Estado. Ocorre que não há, e não aparenta despontar num futuro próximo ou mediano, um Estado mundial dotado de um aparato coercitivo que em última instância faria com que se concretizassem as medidas políticas necessárias para permitir o atendimento dos interesses comuns dessa comunidade global. Acontece que, embora não haja um Estado com um governo capaz de gerenciar o processo de 9 BID (2007), p. 183. Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 13 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda globalização, há, na realidade, uma governabilidade10 global que vem permitindo a convivência de diversas culturas numa condição nunca antes experimentada pela humanidade. De fato, há uma governança global instituída, formada por um número indefinido de organismos e organizações mundiais, em sua maioria, relacionados com a estrutura da ONU que, através de recomendações, de modo geral seguidas pelos Estados, estabelecem normas e regulamentos em diversas áreas e que permitem uma convivência relativamente harmônica dos diversos atores da cena mundial como as pessoas, os diversos tipos de organizações e os Estados nacionais. Esse quadro configura uma situação em que muitas políticas públicas realizadas pelos diversos níveis de articulação do Estado - federal, estadual e municipal, no caso do Brasil - têm um marco de referência cuja origem são os diversos organismos que integram a estrutura de governança global. Como exemplo, na área da Saúde, qualquer que seja o âmbito de atuação das políticas públicas- local, regional ou nacional elas terão como referência as orientações de políticas emanadas da estrutura da Organização Mundial de Saúde (OMS) formada por diversos outros organismos e organizações. Da mesma forma, na área da cultura, as políticas públicas terão como referência a estrutura de governança cuja ponta mais visível é a Unesco. Assim, também, ocorre com o meio ambiente, com diretrizes com origem na estrutura do Pnuma entre outros organismos, e assim por diante. Atualmente, esse quadro de referências global para as políticas públicas não pode ser ignorado, pois o processo de globalização e a conseqüente integração global em todos os aspectos - políticos, econômicos, cultural e social - é irreversível e tende a se consolidar cada vez mais. A globalização é um processo que ocorre sustentada pela expansão do comércio e dos investimentos em escala mundial, e que conta e depende do apoio das tecnologias de informação e comunicação. Este processo produz efeitos no meio ambiente, na cultura, nos sistemas políticos, no desenvolvimento econômico e no bem-estar físico dos seres humanos. A globalização não é algo novo, o que a toma diferente hoje é a velocidade em que ocorre e como afeta de forma profunda as nações de todo o planeta. São diversos os fatores que contribuíram para o desenvolvimento da atual fase da globalização, entre os quais podemos enumerar: a) A revolução das tecnologias de informação: que contribuíram para a aproximação das pessoas em escala global, aumentando os contatos interculturais. A internet, em particular, oferece amplas possibilidades de acesso a informação de todos os tipos, de qualquer lugar e de qualquer cultura. Seu impacto na vida das pessoas é enorme, modificando profundamente os relacionamentos e o modo de vida em diversas partes do mundo. b) O desenvolvimento de um mercado global: com o aumento da integração entre os diferentes países, principalmente após a queda do muro de Berlim em 1989, houve uma rápida expansão de uma economia verdadeiramente mundial, com a incorporação de inúmeras regiões ao mercado internacional, configurando-se uma nova divisão de trabalho internacional, a constituição de blocos de comércio, dos quais a União Européia é a maior expressão, ao lado do Mercosul e do Acordo de Comércio da América do Norte (Nafta) entre outros. c) A redução de custos: propiciada pelas inovações tecnológicas, o esforço contínuo das empresas para obter economias de escala, o surgimento de países industrializados com alta capacidade produtiva e menor custo da mão de obra entre outros fatores. d) As políticas governamentais: que propiciam a redução das barreiras alfandegárias, criando os blocos comerciais e desenvolvendo ações que facilitam a circulação de mercadorias. Um dos maiores desafios a serem enfrentados nesse processo é a identificação do papel a ser desenvolvido pelo Estado-nação, pois este tem perdido gradativamente algumas de suas prerrogativas - tanto econômicas, políticas e culturais, quanto sociais. As relações tradicionais entre o Estado, o mercado e a sociedade estão sendo modificadas substancialmente e passam por um processo de reestruturação. Novos atores se fazem presentes no tecido 10 Governabilidade global deve ser entendida como o grau de aceitação social das políticas oriundas das estruturas de governança global. Esta definição é uma adaptação de Vallés (2008), p. 429. Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 14 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda social, como as organizações não governamentais (ONGs) e as estruturas transnacionais (Mercosul, União Européia, entre outras) não subordinadas a nenhum Estado em particular e gozando de autonomia relativa na proposição de políticas comuns a serem seguidas por vários Estados. O Estado deverá continuar exercendo seu papel, desempenhando sua função social como agente econômico destinado a realocar os recursos escassos e amenizar as contradições inerentes ao desenvolvimento das forças de produção do capital. No entanto, o fará em novas bases e com outro conteúdo. Um importante aspecto a ser considerado na relação local-global é que determinados fenômenos globais não afetam de modo igual a todos, sejam estes Estados ou suas unidades político-administrativas (administrações estaduais e municipais, no caso do Brasil). Nesse caso, as unidades menores, como os municípios, devem- -se fazer presentes no cenário internacional para defender seus interesses que, de modo geral, estarão diretamente relacionados com os seus recursos endógenos locais. Existem vários casos recentes. O Rio de Janeiro, por exemplo, enviou delegações a vários países para defender a cidade como sede da Olímpiada. Ubatuba, uma cidade paulista, marca presença nas feiras internacionais de birdwatching (observadores de pássaros) para atrair visitantes para seu território. A cidade do Recife envia representantes para Nova York procurando atrair judeus dessa região para visitar a primeira sinagoga das Américas. Representantes de cidades visitam países visando atrair investimentos para seu território em áreas específicas. Cidades fazem acordos com organizações não governamentais internacionais visando à preservação de determinados recursos ambientais. E assim por diante, sendo vários os exemplos de ações de localidades defendendo seus interesses no plano global. Por outro lado, nestes primeiros anos do século XXI intensificou-se o processo de descentralização do governo federal (municipalização), transferindo maiores responsabilidades aos municípios, iniciativa esta que nem sempre foi acompanhada dos necessários recursos para sua implementação, o que em muitos casos torna o acesso a recursos internacionais uma necessidade. O acesso a recursos internacionais pode ser facilitado quando a execução de determinadas políticas públicas está alinhada às recomendações dos organismos de governança global, que nesse caso concedem o auxílio na expectativa de consolidação de suas próprias políticas. Os novos espaços de articulação global, tanto políticos como econômicos - de que são exemplo os blocos comerciais -, tendem a modificar a execução das políticas públicas no âmbito do território do Estado. A interdependência crescente dos Estados abrange não só os aspectos de execução de suas políticas, mas até mesmo as práticas sociais e culturais de suas respectivas sociedades. No caso do Brasil, as políticas públicas, de modo geral, têm um alinhamento com as políticas públicas dos países que integram o Mercosul, quer estas ocorram de modo formal através das instituições criadas pelo Bloco, quer aconteçam de modo informal, através das estruturas estabelecidas pelas unidades subnacionais (Estados e municípios), através da articulação por meio de redes como a rede Mercocidades. Outras redes globais de tipo semelhante contribuem para o estabelecimento de políticas públicas locais, como Rede Mundial de Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU) e a Federação Latino-americana de Cidades, Municípios e Associações de Governos Locais (Flacma). Ocorre uma interdependência cada vez maior entre unidades locais de diversos países, entre estas e organizações internacionais, entre outras articulações globais. É uma interdependência que ainda é relativa, mas crescente, e que possibilita a ascensão de atores sociais com poder significativo no enfrentamento de questões pontuais e que dizem respeito a prerrogativas antes exclusivas do Estado. Por exemplo, há muitas ONGs globais que têm uma influência, em muitos casos, superior até mesmo a Estados nacionais, e certamente têm mais poder que muitos municípios existentes no país. Desenvolvendo políticas positivas, em aspectos pontuais, como meio ambiente, saúde, assistência social, direitos humanos entre outros, essas organizações contribuem de forma efetiva para a consolidação de políticas públicasque atendem às necessidades locais de tal modo que de outra forma não seria possível. Nesse processo de articulação horizontal, independente da ação dos governos nacionais, que as unidades administrativas locais experimentam com a intensificação da globalização, há dificuldade inerente à falta de funcionários capacitados, que possibilita o surgimento de distorções, principalmente aquelas relacionadas à falta de transparência no manuseio dos recursos e à ausência da participação da soci Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 15 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda edade em todo o ciclo no qual se processa o acesso aos recursos. Essas dificuldades deverão, então, ser enfrentadas, diminuindo as atividades no seio do Estado - procedimentos administrativos encarregados de manusear esses recursos e fortalecendo as estruturas não governamentais sem fins lucrativos que existem em todas as áreas e que se especializam em temas pontuais, o que lhes facilita um maior controle e gestão no manuseio dos recursos obtidos. A redefinição das funções do Estado O Estado pode ser definido como uma associação política que apresenta um aparato administrativo com a função de prover a prestação de serviços públicos e reivindicar “com êxito o monopólio legítimo da coação física para realizar as ordens vigentes”. Esse aparato administrativo ao qual associamos a expressão “Administração Pública” “designa o conjunto das atividades diretamente destina- das à execução concreta das tarefas ou incumbências consideradas de interesses público ou comum, numa coletividade ou organização estatal”. Ao lado da evolução da concepção de Estado, o conceito de gestão pública também evoluiu nos últimos anos do século XX, também em função do aumento da complexidade da função de governar, reflexo do aumento da demanda e das necessidades de populações que estão se tornando cada vez mais exigentes quanto à utilização racional dos recursos públicos. No início do século XX, a ação do governo era bem menos complexa e se baseava numa política intervencionista do Estado em áreas que necessitavam de sua forte presença para preservação da ordem pública, que era realizada sem negociação com interlocutores da sociedade civil, grupos sociais envolvidos ou afetados pelas eventuais medidas. Nesse sentido, as intervenções urbanas na saúde pública e na segurança política foram algumas áreas onde o ato de governar foi exercido de forma mais ativa. São exemplos, no início do século XX, a política sanitária desenvolvida no Rio de Janeiro, em 1903, comandada por Osvaldo Cruz com o objetivo de erradicar a febre amarela e que adotou medidas rigorosas de combate ao mosquito transmissor; e a mesma política sanitária rigorosa de combate à varíola provocou a Revolta da Vacina que eclodiu em 1904. No entanto, ao longo do século XX, mudanças sociais e políticas fizeram com que o Estado assumisse cada vez mais a prestação de serviços em áreas como educação, saúde, habitação, assistência social entre outros. Essa é a fase do Estado de Bem-Estar Social que encontrou sua forma mais acabada nos Estados europeus, e que faz com que os governos atuem sob uma nova lógica, a da negociação, con- siderando os diversos grupos sociais que convivem num determinado território. A ação governamental que se fraciona em diversas áreas especializadas passa a sofrer pressão de diversos grupos organizados que encontram nos Ministérios e Secretarias de Governo, o foco para a sua atuação. No final do século XX ocorre uma crise do Estado do Bem-Estar Social, que não consegue atender ao aumento da complexidade das demandas sociais, há um redimensionamento do setor público, que deixa de ser exclusivamente estatal, convertendo-se num espaço de articulação onde indivíduos e organizações não governamentais atuam e compartilham responsabilidades com os órgãos de governo em temas pontuais nos quais assumem a condição de especialistas. Nesse contexto, a atuação governamental assume maior complexidade na medida em que os diversos fragmentos nos quais se articula (educação, saúde, assistência social etc.) passam a ter que desenvolver políticas públicas sempre em interação com ONGs que atuam na área. Nesse sentido, a governabilidade ocorre num compartilhamento de ações conjuntas entre setores estatais, organizações não governamentais e setor privado (concessionárias, permissionárias, parcerias público-privadas etc.) que passam a responsabilizar-se pela execução de políticas públicas em áreas determinadas. Essa forma de governo, em que o Estado é um dos componentes da governabilidade, tem adotado o nome de governança. Nesse caso, o Estado continua a ter o papel central, no entanto, a gestão pública passa a ser compartilhada com outros agentes, embora sob a direção e controle do Estado. Pode-se considerar que o Estado moderno conta com quatro esferas de operação principais: o núcleo estratégico; a produção de bens e serviços para o mercado formado pelas empresas estatais; as atividades exclusivas que envolvem o poder de Estado; e os serviços não exclusivos, sendo aqueles que o Esta Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 16 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda do provê, mas que também são oferecidos pelo setor privado e pelo setor público não estatal. No domínio das atividades exclusivas, são criadas as “agências autônomas”, inteiramente agregadas ao Estado, onde um gerente executivo, nomeado pelo Estado, firmará um contrato de gestão. No que diz respeito aos serviços não exclusivos, há três direcionamentos possíveis para estas atividades: ficarem sob o controle do Estado; serem privatizadas ou serem financiadas/subsidiadas pelo Estado, mas controladas pela sociedade, isto é, serem convertidas em organizações públicas não estatais. No aspecto do compartilhamento das ações de políticas públicas, com a participação de outros atores além dos organismos do Estado, a Constituição Federal de 1988 em vários de seus artigos facilita a inclusão desses segmentos nas políticas governamentais, ampliando a participação da sociedade civil. A Constituição definiu sistemas de gestão democrática em diversas áreas de atuação da Administração Pública, como os colegiados dos órgãos públicos, na área da previdência social, onde os interesses profissionais e previdenciários são discutidos e deliberados pelos trabalhadores (art. 10). E, ainda, o planejamento participativo, mediante a cooperação das associações representativas no planejamento municipal, como preceito a ser observado pelos Municípios (art. 29, XII). Além da gestão democrática do ensino público na área da educação (art. 206, VI). Na área da saúde, através do sistema único que integra uma rede regionalizada e hierarquizada, organizado com a participação da comunidade (art. 198). Esses diferentes tipos de conselhos apontam para a existência de um espaço público de composição plural e paritária entre Estado e sociedade civil de natureza deliberativa. Com este compartilhamento do poder, e uma maior diversidade dos grupos que atuam em áreas específicas, torna-se mais viável a ação do Estado no atendimento das novas demandas que surgem na sociedade e que exigem a intervenção de novos agentes em novos temas (por exemplo, idosos, meio ambiente, turismo etc.), a fixação de novos objetivos e o desenvolvimento de novas ações para o atendimento dessas novas exigências que devem ser atendidas pelos órgãos do governo, por ação própria ou por delegação. No caso brasileiro, as características da gestão pública estão determinadas pela Constituição de 1988, que diz: “Art.37. A Administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,moralidade, publicidade e eficiência.” Em termos de conteúdo, a função da administração pública é atender, sem discriminação, as pessoas que habitam um país ou quaisquer de suas subdivisões, pois “nenhum preconceito ou discriminação deve privar os grupos não privilegiados de sua oportunidade de usar os direitos formais distribuídos igualitariamente”. A tarefa do Estado social “consiste em assegurar condições de vida sociais, tecnológicas e ecológicas que permitam a todos, em condições de igualdade de oportunidades, tirar proveito dos direitos cívicos igualmente distribuídos”. Desse modo, o que se deduz de tudo isso é que a administração pública tem como função explícita: “gerenciar os propósitos de um governo e os negócios de Estado, procurando atender o todo, o coletivo, a sociedade sem discriminação”. A gestão pública, portanto, “deve estar orientada para o público e não para o privado, para o coletivo e não para os indivíduos, para benefício da comunidade e não dos compadres”. As políticas públicas e as competências nas esferas de governo Considerando as políticas públicas ferramentas utilizadas pelos governos com o objetivo de alcançar determinados fins e metas, podemos identificar no caso brasileiro três níveis distintos de políticas governamentais associadas a três esferas de competências: da União, dos Estados e dos Municípios. “Embora autônomas nos termos da Constituição, essas esferas se demonstram interdependentes de modo que as linhas divisórias entre elas são difíceis de serem definidas.”11 Com a promulgação da Constituição de 1988, foram introduzidas alterações no perfil do federalismo brasileiro, inaugurando um ciclo descentralizador, marcado pela transferência de recursos e encargos da União para governos estaduais e municipais. Nessa transição, o Município passou a ter uma 11 Sebrae (2005), p. 26. Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 17 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda posição mais importante. “A nova Constituição redefiniu o papel do município ao ampliar significativamente o leque de competências deste nível de governo e ao aumentar a participação dos governos locais na repartição dos recursos fiscais.” Em termos de competências quanto a políticas públicas, as que são próprias do Governo Federal estão mais voltadas para a representação do Estado brasileiro, dentro e fora do seu espaço geográfico. A União se ocupa prioritariamente com o que se convencionou denominar high politics (alta política ou de primeiro nível), como o são a segurança nacional, a defesa, os tratados de livre comércio, a celebração de alianças etc. Por outro lado, as outras esferas como os Estados e Municípios tendem a se ocupar do que se convencionou denominar a low politics (baixa política ou de segundo nível), que inclui temas como a proteção ao meio ambiente, captação de investimentos, turismo, intercâmbio cultural, entre outros. Assim, o Estado, na perspectiva da União, é um centro estratégico que responde às questões internacionais, como a preocupação com as atividades nucleares, as políticas ambientais globais, os programas de desenvolvimento nacional etc. Entretanto, antes de tudo, a União volta-se para a defesa nacional (militar) abrangendo do direito de declarar guerra à preocupação com os potenciais energéticos, financeiros e de comunicação. “Além desse fato, o Estado tem um papel fundamental como centralizador das políticas regionais, determinado principalmente pelo aspecto macroeconômico de longo prazo, tomando capaz de delinear as prioridades do Governo Federal. Assim, avaliar a relação custo-efetividade dos serviços públicos prestados pelos governos locais, monitorar a redistribuição das receitas dos tributos, estabelecer normas gerais, organizar e manter as instituições federais são funções da União.” As funções da União ocorrem no plano macro, ou seja, que envolvem o Estado brasileiro como um todo e suas relações com outros países. Além disso, a União estabelece a divisão de tributos entre ela, os Estados e os Municípios, bem como princípios para compras governamentais, normas sobre comércio exterior e financiamento externo. Com a promulgação da Constituição de 1988, os Estados, bem como os Municípios, assumiram crescentes responsabilidades na realização do gasto público e na promoção de políticas sociais. Os Estados respondem pelo desenvolvimento regional, e perante as normas federais têm o papel de fiscalizar as políticas regionais, além de formular políticas estaduais de acordo com as carências de cada região. Assim, os Estados respondem diretamente ao governo central, servindo de elo entre os Municípios e a União. “Os municípios são os responsáveis pelo desenvolvimento local. Nesse sentido, apontados por muitos como a esfera pública mais importante para a promoção do desenvolvimento em uma nação.”12 Dessa maneira, os Municípios podem assumir a responsabilidade pelo seu próprio desenvolvimento, aproveitando suas vocações econômicas, seus recursos e potencialidades. O governo municipal tem um papel de destaque a realizar para gerar emprego, renda, dinamizar o comércio, o turismo, apoiar o associativismo e estimular a sustentabilidade dos programas sociais e de apoio solidário. O processo de municipalização das políticas públicas A Constituição brasileira de 1988 estabeleceu, em seu artigo 18, que a organização político- administrativa do País compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos. O Município é a unidade de governo mais próxima da população, e dentro de seu território há áreas rurais e urbanas e uma sede, que tem a categoria de cidade, que centraliza as atividades político- - administrativas locais. Em termos políticos e administrativos, os Municípios brasileiros gozam de bas- tante autonomia quando comparados a estruturas semelhantes em outros países. A autonomia dos Municípios se expressa na existência de autoridades municipais administrativas de acordo com a realidade social; no estabelecimento, arrecadação e gestão de seus próprios tributos e outras formas de ingresso; no exercício das competências municipais estabelecidas em lei; no direito de intervir em qual- quer questão relacionada com o desenvolvimento socioeconômico do Município; e no direito de intervir em outros assuntos que sejam de seu particular interesse. 12 Sebrae (2005), p. 30. Textos extraídos Do Livro Políticas Públicas: Princípios, Propósitos e Processos de Reinaldo Dias e Fernanda Matos 18 Biblioteca online - sem valor comercial, proibida a reprodução e venda Um fato relevante e que destaca a autonomia municipal é que: “ao contrário do que ocorre em muitos países, o Município brasileiro é uma entidade política e não uma corporação administrativa”. Isso implica que as leis municipais, por exemplo, são plenas no sentido de que somente poderão ser revogadas por outra lei municipal ou quando julgadas inconstitucionais pelo Poder Judiciário. No Brasil, “nenhuma lei municipal necessita da aprovação de autoridade estadual ou federal para entrar em vigência, como acontece em alguns países”. A Constituição estabelece que os Municípios devem reger-se por uma lei orgânica elaborada e aprovada pela Câmara Municipal. A Lei Orgânica do Município (LOM) é um conjunto de leis, normas e regras de um Município, que organiza e regula o seu funcionamento. É a lei maior nos limites do Município; no entanto, seu conteúdo deve respeitar as determinações e os limites impostos pelas Consti- tuições Federal e Estadual. Os elementos essenciais de um Município são: o território, a população e o governo. A unidade territorial ocorre com a estreita interação entre esses três elementos. O território municipal é um espaço delimitado por lei e formado por uma parte urbana e uma área rural. Esse espaço, para a população