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Sensações e Lembranças


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CAPÍTULO LVI / UM SEMINARISTA 
Tudo meia repetindo o diabo do opúsculo, com as suas letras velhas e citações latinas. Vi sair 
daquelas folhas muitos perfis de seminaristas, os irmãos Albuquerques, por exemplo, um dos quais 
é cônego na Bahia, enquanto o outro seguiu medicina e dizem haver descoberto um específico 
contra a febre amarela. Vi o Bastos, um magricela, que está de vigário em Meia-Ponte, se não 
morreu já; Luís Borges, apesar de padre, fez-se político, e acabou senador do império... Quantas 
outras caras me fitavam das páginas frias do Panegírico! Não, não eram frias; traziam o calor da 
juventude nascente, o calor do passado, o meu próprio calor. Queria lê-las outra vez, e lograva 
entender algum texto, tão recente como no primeiro dia. ainda que mais breve. Era um encanto ir 
por ele; às vezes, inconscientemente, dobrava a folha como se estivesse lendo de verdade; creio que 
era quando os olhos me caíam na palavra do fim da página, e a mão, acostumada a ajudá-los, fazia o 
seu ofício... 
Eis aqui outro seminarista. Chamava-se Ezequiel de Sousa Escobar era um rapaz esbelto, olhos 
claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo. Quem não 
estivesse acostumado com ele podia acaso sentir-se mal, não sabendo por onde lhe pegasse. Não 
fitava de rosto, não falava claro nem seguido as mãos não apertavam as outras, nem se deixavam 
apertar delas, por que os dedos, sendo delgados e curtos, quando a gente cuidava tê-los entre os 
seus, já não tinha nada. O mesmo digo dos pés, que lia depressa estavam aqui como lá. Esta 
dificuldade em pousar foi a maior obstáculo que achou para tomar os costumes do seminário. O 
sorriso era instantâneo, mas também ria folgado e largo. Uma cousa não seria tão fugitiva, como o 
resto, a reflexão; íamos dar com ele, muita vez, olhos enfiados em si, cogitando. Respondia-nos 
sempre que meditava algum ponto espiritual, ou então que recordava a lição da véspera. Quando ele 
entrou na minha intimidade pedia-me freqüentemente explicações e repetições miúdas, e tinha 
memória para guardá-las todas, até as palavras. Talvez esta faculdade prejudicasse alguma outra. 
Era mais velho que eu três anos, filho de um advogado de Curitiba, aparentado com um comerciante 
do Rio de Janeiro, que servia de correspondente ao pai. Este era homem de fortes sentimentos 
católicos. Escobar tinha uma irmã, que era um anjo, dizia ele. 
--Não é só na beleza que é um anjo, mas também na bondade. Não imagina que boa criatura que ela 
é. Escreve-me muita vez, hei de mostrar-lhe as cartas dela. 
De fato, eram simples e afetuosas, cheias de carícias e conselhos. Escobar contava-me histórias 
dela, interessantes, todas as quais vinham a dar na bondade e no espírito daquela criatura; tais eram 
que me fariam capaz de acabar casando com ela se não fosse Capitu. Morreu pouco depois. Eu, 
seduzido pelas palavras dele, estive quase a contar-lhe logo, logo, a minha história. A princípio, fui 
tímido, mas ele fez-se entrado na minha confiança. Aqueles modos fugitivos, cessavam quando ele 
queria, e o meio e o tempo os fizeram mais pousados. Escobar veio abrindo a alma toda, desde a 
porta da rua até o fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não 
raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro. Também as há fechadas e escuras, sem 
janelas ou com poucas e gradeadas, à semelhança de conventos e prisões. Outrossim, capelas e 
bazares, simples alpendres ou paços suntuosos. 
Não sei o que era a minha. Eu não era ainda casmurro, nem dom casmurro; o receio é que me tolhia 
a franqueza, mas como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las, e 
Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou, até que... 
CAPÍTULO LVII / DE PREPARAÇÃO 
Ah! Mas não eram só os seminaristas que me iam saindo daquelas folhas velhas do Panegírico. Elas 
me trouxeram também sensações passadas, tais e tantas que eu não poderia dizê-las todas, sem tirar 
espaço ao resto. Uma dessas, e das primeiras quisera contá-la aqui em latim. Não é que a matéria 
não ache termos honestos em nossa língua, que é casta para os castos, como pode ser torpe para os 
torpes. Sim, leitora castíssima, como diria o meu finado José Dias podeis ler o Capítulo até ao fim, 
sem susto nem vexame.

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