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Viagem Científica e Tragédia

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Ao cabo de seis meses, Ezequiel falou-me em uma viagem à Grécia, ao Egito, e à Palestina, viagem 
científica, promessa feita a alguns amigos. 
--De que sexo? perguntei rindo. 
Sorria vexado, e respondeu-me que as mulheres eram criaturas tão da moda e do dia que nunca 
haviam de entender uma ruína de trinta séculos. Eram dous colegas da universidade. Prometi-lhe 
recursos, e dei-lhe logo os primeiros dinheiros precisos. Como disse que uma das conseqüências 
dos amores furtivos do pai era pagar eu as arqueologias do filho; antes lhe pagasse a lepra... Quando 
esta idéia me atravessou o cérebro, senti-me tão cruel e perverso que peguei no rapaz e quis apertá-
lo ao coração, mas recuei; encarei-o depois, como se faz a um filho de verdade; os olhos que ele me 
deitou foram ternos e agradecidos. 
CAPÍTULO CXLVI / NÃO HOUVE LEPRA 
Não houve lepra, mas há febres por todas essas terras humanas, sejam velhas ou novas. Onze meses 
depois, Ezequiel morreu de uma febre tifóide, e foi enterrado nas imediações de Jerusalém, onde os 
dous amigos da universidade lhe levantaram um túmulo com esta inscrição, tirada do profeta 
Ezequiel, em grego: "Tu eras perfeito nos teus caminhos." Mandaram-me ambos os textos, grego e 
latino, o desenho da sepultura, a conta das despesas e o resto do dinheiro que ele levava; pagaria o 
triplo para não tornar a vê-lo. 
Como quisesse verificar o texto, consultei a minha Vulgata, achei que era exato, mas tinha ainda um 
complemento: "Tu eras perfeito nos teus caminhos, desde o dia da tua criação." Parei e perguntei 
calado: "Quando seria o dia da criação de Ezequiel?" Ninguém me respondeu. Eis aí mais um 
mistério para ajuntar aos tantos deste mundo. Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro. 
CAPÍTULO CXLVII / A EXPOSIÇÃO RETROSPECTIVA 
Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não ficou aí para um canto como uma 
flor lívida e solitária. Não lhe dei essa cor ou descor. Vivi o melhor que pude, sem me faltarem 
amigas que me consolassem da primeira. Caprichos de pouca dura, é verdade. Elas é que me 
deixavam como pessoas que assistem a uma exposição retrospectiva, e, ou se fartam de vê-la, ou a 
luz da sala esmorece. Uma só dessas visitas tinha carro à porta e cocheiro de libré. As outras iam 
modestamente, calcante pede, e, se chovia, eu é que ia buscar um carro de praça, e as metia dentro, 
com grandes despedidas, e maiores recomendações. 
-- Levas o catálogo? 
-- Levo; até amanhã. 
--Até amanhã. 
Não voltavam mais. Eu ficava à porta, esperando, ia até à esquina, espiava, consultava o relógio, e 
não via nada nem ninguém. Então, se aparecia outra visita, dava-lhe o braço, entrávamos, mostrava-
lhe as paisagens, os quadros históricos ou de gênero, uma aquarela, um pastel, uma gouache, e 
também esta cansava, e ia embora com o catálogo na mão... 
CAPÍTULO CXLVIII / E BEM, E O RESTO? 
Agora , por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu 
coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e 
dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitu da Praia da 
Glória já estava dentro da de Mata-cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso 
incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu 
cap. IX, vers. 1: "Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a 
malícia que aprender de ti". Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da 
Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca. 
E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a

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