ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Sintetizar o desenvolvimento da antropologia no Brasil. > Reconhecer os principais antropólogos brasileiros e suas contribuições na construção da identidade brasileira. > Explicar como se construiu a identidade brasileira na imensa diversidade cultural e geográfica do País. Introdução O objeto de investigação da antropologia é o ser humano e, por isso, ela se cons- titui como a área na qual investigador e objeto investigado coincidem. Por sua especificidade e metodologia, a antropologia possibilita a compreensão de nós mesmos pelo olhar do outro e que nos situemos diante dos diferentes mundos culturais e sociais, compreendendo-os melhor. A antropologia surgiu com o objetivo de resolver os problemas e encontrar soluções para a urbanização, a industrialização e a expansão europeia. Ao contrário da sociologia, por exemplo, desenvolvida no séc. XVIII para compreender melhor as sociedades europeias, com o objetivo de um “olhar interno”, para dentro de sua sociedade, a antropologia foi desenvolvida com foco no “olhar externo”, visando a melhor compreender os povos colonizados na África, na Ásia e na Américas. Assim, floresceu por meio de pesquisas financiadas pelas elites europeias, pela Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira Adriane da Silva Machado Möbbs necessidade de conhecer para dominar. Por outro lado, a antropologia brasileira surgiu e se desenvolveu com o objetivo de compreender sua própria diversidade social e cultural, com o foco em suas múltiplas culturas. Neste capítulo, você vai descobrir como se deu o desenvolvimento da antropologia no Brasil, o que permitirá a compreensão de nossa diversidade cultural e, consequentemente, um melhor entendimento da coletividade como povo. O desenvolvimento da antropologia no Brasil No Brasil, a antropologia surgiu entre as décadas 1930 e 1940. Muitos aspectos favoreceram seu surgimento e desenvolvimento no Brasil, e acabaram por caracterizar o pensamento antropológico brasileiro por um longo período. Podemos considerar o alemão Curt Nimuendajú (1883–1945), nascido Curt Unckel, o “pai da Antropologia brasileira”. Tido como um expoente em estudos indígenas no País, o etnólogo dedicou mais de 40 anos de sua vida ao estudo dos povos indígenas brasileiros. Sem formação acadêmica, mudou-se para o Brasil aos 20 anos e, dois anos depois, juntou-se aos Apapokuva, povo guarani do interior de São Paulo (atualmente conhecido como Nhandeva). A partir dessa imersão, que deu origem à obra As len- das da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani, publicada em 1915, começa o desenvolvimento da etnologia brasileira. Incialmente, a antropologia era reconhecida por sua prática e, assim, considerada uma etnologia. Desde seus primórdios, a antropologia brasileira esteve presa a seus objetos reais de investigação, como afirma Cardoso de Oliveira (1988, p. 230): Isso significa que o que se poderia chamar de modo de conhecimento — que deveria marcar a natureza do saber antropológico — ficou historicamente su- bordinado à natureza dos objetos reais (quer seja o índio, o negro ou o branco) com todos os "equívocos que posições deste teor geram no desenvolvimento da disciplina. E, em razão dessa mesma preponderância do objeto real sobre objetos teoricamente construídos, surgiram duas tradições no campo da An- tropologia Brasileira, ordenando a divisão de trabalho, seja na academia, seja nas atividades profissionais não universitárias. A primeira tradição que aparece com mais vigor é a da Etnologia Indígena, sendo a segunda a da Antropologia da Sociedade Nacional. Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira2 Podemos, portanto, considerar que, inicialmente, a antropologia se de- senvolveu a partir de duas tradições: 1. a etnologia indígena, na qual o nome de Curt Nimuendajú é, sem dú- vida, referência; 2. a Antropologia da Sociedade Nacional, cujo expoente é Gilberto Freyre. Isso ocorreu entre as décadas de 1920 e 1930, quando a profissão de antropólogo e o campo da antropologia ainda não estavam bem definidos no Brasil. Embora, nos anos 1930 e 1940, Lévi-Strauss e Radcliffe-Brown tenham lecionado no Brasil, eles não são tidos como atores do desenvolvimento da antropologia. Sabe-se, porém, que suas obras tiveram impacto nas décadas seguintes, como afirma Cardoso de Oliveira (1988, p. 230–231): “[...] o certo é que a absorção de suas ideias se daria nas gerações seguintes pela leitura de seus livros. Nesse caso, destaca-se a influência de Lévi-Strauss a partir dos anos 1960, enquanto a de Radcliffe-Brown (salvo engano) restringiu-se aos anos 1940 e 1950”. Desde os primórdios da antropologia no Brasil, vários pesquisadores utilizaram o termo ‘etnologia’ como parte da antropologia cultural ou social, o qual “[...] abrange os estudos em que o pesquisador entra em contato direto, face a face, com os membros da sociedade, ou segmento social estu- dado, contrastando-a com a arqueologia, que abarca as pesquisas apoiadas em vestígios deixados por sociedades desaparecidas ou por períodos passados de sociedades que continuam a existir” (MELATTI, 1983, p. 4). Contudo, confundem-se os termos “etnologia” e “etnografia”; por isso é sempre importante observar a época em que o termo é empregado. Segundo Kottak (2013), antropólogo contemporâneo, há dois tipos de ati- vidades realizadas pelos antropólogos: a etnografia (com base no trabalho de campo) e a etnologia (com base na comparação intercultural). De acordo com Kottak (2013, p. 33), “A etnografia fornece uma descrição de determinada comunidade, sociedade ou cultura. [...] A etnologia examina, interpreta, analisa e compara os resultados da etnografia — os dados coletados em diferentes sociedades — e os usa para comparar, contrastar e fazer generalizações sobre a sociedade e a cultura”. No artigo Traficante do excêntrico: os antropólogos no Brasil dos anos 30 aos anos 60 (1988), Mariza Corrêa (1988, p. 79) destaca um aspecto importante acerca do desenvolvimento da antropologia: Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira 3 Talvez seja uma ironia adequada a esta disciplina que se quer uma ciência do outro que ela tenha criado, em quase toda a parte, tradições antropológicas nacionais fundadas por estrangeiros: Franz Boas nos Estados Unidos, Curt Nimuendajú no Brasil, Bronislaw Malinowiski na Inglaterra. A pesquisadora destaca, ainda, um certo descompasso em meio ao inter- câmbio entre os pesquisadores nacionais e estrangeiros, e, sobretudo, acerca de “como nos pensamos” e “como nos pensam” (1988, p. 79–80): No caso brasileiro, se acrescenta ainda a esta ambiguidade, às vezes uma harmonia, às vezes um descompasso, entre “como pensamos” e “como nos pensam”. A traje- tória brasileira da disciplina é, mais do que costumamos registrar explicitamente, parte tanto de seu percurso internacional, quanto do imaginário dos antropólogos em geral: lembrando de novo o exemplo de Geertz, é de Lévi-Strauss que ele está falando quando escreve “mito brasileiro” ao invés de seu nome (1983, p. 150). Ao fazermos uma genealogia da antropologia no Brasil, deparamo-nos com tradições também inventadas. Esse é um fato importante a ser considerado, uma vez que o distanciamento do pesquisador nem sempre foi possível. Percebe-se, muitas vezes, considerações um tanto distantes de nossa re- alidade. Nesse sentido, podemos citar a percepção de nossos índios como “selvagens”, de acordo com a interpretação de Lévi-Strauss. Acerca dessas tradições-invenções, afirma Corrêa (1988, p. 80): As tradições aqui inventadas, se não o foram apenas por estrangeiros, tiveram uma forte participação deles nessa invenção: se olharmos atentamente o mapa etno- lógico de Curt Nimuendaju, quase poderemos ver as sombras dos pesquisadores que as estudaram projetando-se sobre os contornos das comunidades indígenas por eles estudadas até