68 | CIÊNCIAHOJE | VOL. 48 | 285 O francês Jean-Baptiste Pierre An-toine de Monet, Chevalier de La- marck (1744-1829), foi um importan- te personagem na história da ciência. Sua contribuição para o desenvolvi- mento do que conhecemos hoje como teoria da evolução é bem divulgada, mas alguns autores, ao tentar resumir as ideias desse naturalista, omitem algumas informações e distorcem ou- tras, criando assim ‘boatos’ sobre seu verdadeiro papel. RODOLFO FERNANDES DA CUNHA RODRIGUES Instituto de Biologia, Universidade Federal Fluminense EDSON PEREIRA DA SILVA Departamento de Biologia Marinha, Universidade Federal Fluminense ensaio B IOLOG IA Lamarck: fatos e boatos Teorias do naturalista francês continuam sendo mal divulgadas A ideia de que os seres vivos se modificam, em um processo que pode gerar novas espécies, é em geral atribuída quase exclusivamente ao inglês Charles Darwin, até por alguns professores e livros didáticos. Essa atribuição, porém, desmerece o trabalho de Jean-Baptiste de Lamarck, naturalista francês que propôs, de modo pioneiro, a noção de transformação dos organismos, antes considerados imutáveis. Embora o próprio Darwin tenha utilizado, em seus livros, parte das ideias de Lamarck, estas se revelaram incorretas. Seu trabalho inovador, porém, certamen- te contribuiu para a aceitação futura da teoria da evolução, hoje um dos pilares da biologia. Os dois maiores boatos criados a respeito de Lamarck são: 1. suas ideias evolutivas se resumiam a duas leis, e 2. o inglês Charles Darwin (1809- 1882), um dos autores da moderna teoria da evolução, se opôs a essas leis. Assim, diante da pergunta “Quem foi Lamarck?”, um aluno de ensino médio pode responder “Foi o cara do pescoço 285 | SETEMBRO 2011 | CIÊNCIAHOJE | 69 ILUSTRAÇÃO LULA >>> suas partes até um limite que seria próprio de cada organismo. Lamarck, tentando fornecer evidências empí- ricas para essa lei, fez uma analogia entre organismos mais simples e mais complexos e as fases de desenvolvi- mento de um organismo (do ovo ao adulto), visando demonstrar que, as- sim como um ovo se modifica e se tor- na um embrião, evidenciando um aumento da complexidade, os organis- mos mais complexos também teriam surgido a partir dos mais simples. Por- tanto, segundo o naturalista, a vida tinha o poder de aumentar o volume e as estruturas do corpo. Sobre a segunda lei (‘surgimento de órgãos em função de necessidades que se fazem sentir e que se mantêm’), Lamarck disse, em Filosofia zoológica, que os hábitos e as circunstâncias da vida de um animal eram capazes de moldar a forma de seu corpo. Em His- tória natural, afirmou que as antenas dos gastrópodes (como os caracóis) teriam surgido por ação dessa lei. Gas- trópodes mais simples, explicou, dian- te da necessidade de sentir os objetos à sua frente, teriam concentrado ‘flui- dos nervosos’ na região anterior do corpo, e estes, juntamente com outros fluidos corporais, estimularam a for- mação de novas estruturas, tecidos e órgãos. Essa segunda lei gerou uma discus- são sobre o sentido em que Lamarck usou a palavra francesa volonté. Esta é muitas vezes traduzida como ‘dese- jo’, mas uma melhor tradução seria algo como ‘ação gerada por uma ne- cessidade’, e não ‘ação gerada por um desejo’. Parece claro que Lamarck não se referia a um ‘desejo’, porque ele mesmo afirmava que “nem todos os animais têm a faculdade de sentir” (referindo-se a esponjas e águas-vivas, que não têm sistema nervoso) – se não sentem, não podem ter desejo. Se, para Lamarck, a diferenciação dos animais mais simples não ocorria por desejo, mas por uma necessidade fisiológica, essa última tradução para volonté seria mais apropriada. A terceira lei da teoria lamarckista (‘desenvolvimento e atrofia de órgãos em função de seu emprego’, ou ‘uso e desuso’) tinha sido apresentada como primeira na Filosofia. Lamarck disse que essa lei seria inútil, assim como a segunda, se os animais estivessem sempre nas mesmas condições. No entanto, se em determinado local ocor- ressem mudanças e estas criassem, para os indivíduos que viviam ali, a necessidade de modificar seu compor- tamento, então esses indivíduos te- riam que usar mais ou menos certas estruturas e isso levaria a alterações físicas. Nesse caso, indivíduos da mes- ma espécie que habitassem ambientes diferentes, nos quais as mudanças fos- sem desiguais, não teriam as mesmas necessidades, o que levaria à formação de grupos também diferentes, gerando as raças. Portanto, essa lei explicaria como as mudanças no ambiente pro- duziriam a diversidade observada nos seres vivos. Evidências da operação dessa lei foram apontadas por Lamarck. A au- sência de dentes nos tamanduás, por exemplo, seria explicada pela falta de uso e consequente atrofia e desapare- cimento, assim como os vestígios de dentes em fetos de baleias (exemplos de ‘desuso’). Já as girafas, que passam longos períodos se alimentando de fo- lhas das copas de árvores altas, estica- riam as pernas e o pescoço para alcan- çar seu alimento, o que teria levado ao crescimento dessas estruturas, e os quadrúpedes que pastam por longos períodos de tempo adquiririam cascos para sustentar um corpo muito pesado (exemplos de ‘uso’). da girafa”, ou até “Foi o cara que dizia o contrário de Darwin”. Essas respos- tas, e outras com conteúdo semelhan- te, permanecem vivas não apenas na boca dos alunos, mas também na de certos professores e no texto de alguns livros didáticos. Este ensaio, ao revi- sitar o legado de Lamarck, tenta des- fazer esses boatos. TEORIA LAMARCKIANA A ‘progressão dos animais’ é o nome da teoria que Lamarck desenvolveu. No livro Phi- losophie zoologique (Filosofia zoológica, de 1809), ele fundamentou sua teoria em duas leis, conhecidas como ‘uso e desuso’ e ‘herança dos caracteres ad- quiridos’. Já em Histoire naturelle des animaux sans vertèbres (História na- tural dos animais invertebrados, lança- do em partes de 1815 a 1822), as leis passaram a ser quatro. Para melhor compreender a teoria lamarckiana, é preciso analisar essa última versão. A primeira das quatro leis (‘ten- dência para o aumento da complexi- dade’) surgiu apenas no segundo livro e foi enunciada como uma tendência, de todos os corpos, para aumentar de volume, estendendo as dimensões de A contradição entre Lamarck e Darwin, tão propalada em textos didáticos, é um boato, tanto do ponto de vista histórico quanto do ponto de vista teórico 70 | CIÊNCIAHOJE | VOL. 48 | 285 Quanto à quarta lei (‘he- rança do adquirido’), Lamarck não se empenhou em sua de- monstração ou defesa, já que essa ideia, muito comum no meio filosófico-científico des- de Hipócrates (460-377 a.C.), era aceita entre os naturalistas do século 19. Ele não se preo- cupou em propor um mecanis- mo alternativo para a herança, apenas aceitando o que era o senso comum sobre heredita- riedade em seu tempo. Lamarck foi o primeiro pes- quisador a elaborar um siste- ma teórico completo para de- fender e tentar explicar a evo- lução biológica. Fez isso com base apenas em fenômenos naturais (leis físicas), sem lan- çar mão de forças imateriais (como ‘alma’, ‘princípio ativo’ e outras) ou entidades trans- ckianas de uso e desuso e herança dos caracteres adquiridos, inclusive dan- do exemplos (em animais domestica- dos). Mais tarde, em The variation of animals and plants under domestication (Variação de animais e plantas sob do- mesticação, de 1868), Darwin reafir- maria seu compromisso com essas leis em sua teoria da pangênese, segundo a qual todo o corpo contribuiria para a formação de um novo ser: o sêmen seria constituído de minúsculas par- tículas (as gêmulas) vindas das diver- sas partes do corpo.