Assim, como po- de ser facilmente deduzido, modifica- ções ocorridas no corpo poderiam ser transmitidas aos descendentes. A contradição entre Lamarck e Darwin encontra-se, de fato, nas duas primeiras leis da teoria lamar- ckista – ‘tendência para o aumento da complexidade’ e ‘surgimento de órgãos em função de necessidades’. A grande revolução da teoria darwi- niana foi entender a especiação co- mo processo de conversão da varia- ção entre indivíduos, dentro de uma população, em variação entre po- pulações diferentes, no tempo e no espaço. Assim, para ele, o processo de especiação é a transformação de variação intrapopulacional em inter- populacional. Se a formação de novas espécies se dá des- sa maneira, a regressão des- se processo nos leva a conce- ber uma origem comum para todos os seres vivos. A evo- lução, portanto, não teria um propósito: seria um processo de leis simples, no qual não existe espaço para a ideia de progresso, mas apenas de mudança ao longo do tempo. Essas conclusões eram revo- lucionárias e, certamente, contrariavam a noção lamar- ckiana de uma progressão dos seres vivos. FALSA CONTRADIÇÃO Lamarck foi um dos primeiros a elabo- cendentais como um deus. Mais que isso, ele lançaria mão, a partir de 1800 (quando trabalhava com fósseis de moluscos), de dados paleontológicos para justificar suas ideias, o que faz dele um dos primeiros a usar esse tipo de evidência em favor da evolução dos seres vivos. Portanto, Lamarck era um meca- nicista, materialista e empirista, em sintonia com o pensamento científico- -filosófico de seu tempo e, em alguns casos, em sua vanguarda. Entretanto, sua ideia de progressão da complexi- dade nos seres vivos – lei fundamental do seu sistema – e suas explicações para a origem da variação dentro da mesma espécie e para a origem de es- pécies novas eram equivocadas. ACEITO POR DARWIN No livro Origin of species (A origem das espécies, de 1859), Darwin lançou sua teoria da descendência com modificação guiada por seleção natural. Ele apontou que os descendentes de um indivíduo apresentam características diferentes (variações), mas explicou a origem dessas variações usando as leis lamar- rar um sistema teórico completo para tentar explicar a variação das espé- cies ao longo do tempo. Ele defendeu sua teoria da progressão dos animais ao longo de vários trabalhos, e a últi- ma e mais completa versão dessa te- oria, composta de quatro leis, foi ex- posta no livro História natural. No entanto, Filozofia zoológica, trabalho que traz a versão com apenas duas leis, é quase sempre citado como a maior e a única referência do natu- ralista – puro boato. Mais ainda, as duas leis apresen- tadas na Filosofia (‘uso e desuso’ e ‘herança dos caracteres adquiridos’) não eram originais. Lamarck as incor- porou ao seu sistema teórico quase como um conhecimento consensual da época. Portanto, a contradição en- tre Lamarck e Darwin, tão propalada em textos didáticos, é outro boato, tanto do ponto de vista histórico quanto do ponto de vista teórico, já que Darwin, com a teoria da ‘pangê- nese’, investiu muito mais nesse conhecimento ‘consensual’ que La- marck com sua teoria da progressão dos animais. ensaio © M IC HA EL N IC HO LS ON /C OR BI S/ /L AT IN ST OC K