A JUS-HUMANIZAÇÃO DAS RELAÇÕES PRIVADAS: para além da constitucionalização do direito privado PLÍNIO MELGARÉ* Professor de Direito da PUCRS e da Faculdade São Judas Tadeu, e Pesquisador e Orientador do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional Sumário: 1- INTRODUÇÃO; 2- ANOTAÇÕES DE APROXIMAÇÃO HISTÓRICA E CONCEITUAL; 3- AS CONDIÇÕES CONSTITUTIVAS DO DIREITO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA; 4- A PESSOA HUMANA E A JUS- HUMANIZAÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES; 5- OS DIREITOS DE PERSONALIDADE; 6- CERTAS CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE; 7- UM EXEMPLO DE JUS- HUMANIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO: O BEM DE FAMÍLIA – LIGEIRAS ANOTAÇÕES DIANTE DE ALGUMAS DECISÕES JURISPRUDENCIAIS; 8- NOTAS MODERNO- ILUMINISTAS E CAUSAS DO POSITIVISMO JURÍDICO; 9- CÓDIGOS JUSRACIONALISTAS; 10- CONCLUSÃO. “Restaurar a primazia da pessoa é assim, dever número um de uma teoria do Direito, que se apresente como a teoria do Direito Civil (...)” - ORLANDO DE CARVALHO * Mestre em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra e Palestrante de Teoria Geral do Direito Civil na Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado 1 – INTRODUÇÃO O objeto deste trabalho é refletir acerca das relações entre a ética e o direito. E, ao considerar essa circunstância, repercutir as inexoráveis conseqüências trazidas por essa relação – sobretudo no campo das relações jurídico-privadas, avistando-se o horizonte normativo estabelecido pelo atual Código Civil Brasileiro (CCB) e a Constituição Federal. Poderíamos partir da compreensão de ética apresentada por VICTORIA CAMPS1, a saber: “La defensa de un ideal de humanidad por debajo del cual la vida es indigna y carece de calidad. La reivindicación de la justicia mínima para que la vida merezca el calificativo de «humana».” Na continuação, a mencionada autora propõe: “el reconocimiento, enfin, de unos derechos básicos plasmados en la Declaración Universal de Derechos Humanos o en las Constituciones políticas”. Particularmente, em relação à última parte citada, apresentamos uma pequena divergência – que não radical, mas sim uma distinção a se configurar como um acréscimo, haja vista não nos limitarmos a reconhecer tão-somente os direitos moldados nas Constituições ou Declarações de Direitos Humanos. Ademais, vincular a ética com a mencionada Declaração de Direitos pode acarretar uma visão individualista. Convergimos com o ideal da dignidade humana, tendo por base o recíproco reconhecimento dessa condição entre os homens. E, desde logo, estabelecemos uma idéia a ser desenvolvida no corpo do trabalho: o direito não se reduz às ordens e às palavras escritas. 2 – ANOTAÇÕES DE APROXIMAÇÃO HISTÓRICA E CONCEITUAL Inicialmente, ainda que às rápidas, necessário caracterizar alguns conceitos. Referimo-nos aos conceitos de ética e moral. Uma análise etimológica dessas duas expressões nos conduz a um ponto de proximidade. Senão, vejamos: moral decorre do vocábulo latino mos, que significa costume, uso, enquanto ética origina-se do grego ethos, êthê a 1 Ética y democracia: una ética provisional para una democracia imperfecta. Revista del Centro de Estudios Constitucionales, n.º 06, Madri: 1990, p. 25. Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. 2 A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado significar modo de ser, costume, caráter. Portanto, ambas expressões firmam suas raízes em um modo de comportamento humano. Dessa origem comum é que ocorre o uso das expressões como sinônimos. Todavia, recortamos alguma característica própria de cada expressão. Conforme leciona MIGUEL REALE2, a ética teria por finalidade precisar, ordenar os valores que instituem o comportamento humano, enquanto que a moral refere-se mais à posição do sujeito em face desses valores, ou ainda o modo pelo qual se expressam objetivamente os valores de como regras ou mandamentos. A moral reproduziria a materialização concreta da ética. Em termos de complementares, poderíamos delinear como objeto da ética o estudo acerca das formas de agir do homem consideradas por ele valiosas e, para além disso, incontornáveis. Nos séculos XIX e XX, descortina-se na cultura humana o advento das teorias dos valores – a axiologia, isto é, a ciência da apreciação, da estimação. Nesse quadro, aquilo que é valioso também é assumido como a finalidade da ética. Sem querer adentrar em toda a complexidade que envolve a temática dos valores, podemos pensá-los como qualidades que aderem a um ser, a um objeto ou a uma conduta, alcançadas em função de suas relações com o homem, considerado como um ser social. Outrossim, podemos perceber que o ser humano é permeável aos valores – diferentemente de outros seres que compõem o universo –, sendo a vida humana o campo fértil para a realização daqueles. O termo valor pode ser considerado a pedra de toque das ciências humanas. E indicam, em razão da relevância que os homens e os grupos sociais lhes conferem na orientação das suas relações intersubjetivas, algo que deve ser realizado. Destarte, prestamos livre curso a esta definição: A ética é a parte da filosofia que tem por objeto os valores que presidem o comportamento humano em todas as suas expressões existenciais. Daí a sua preeminência em relação à moral, à 2 Variações sobre ética e moral, disponível no sítio www.miguelreale.com.br/artigo, acessado em 20/11/2003. Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. 3 A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado política e ao direito, os quais corresponderiam a momentos ou formas subordinadas de agir.3 Oportuno destacarmos, na marcha da história, uma precedência dos preceitos normativos éticos de convivência em relação ao ordenamento jurídico, o qual surgiu, também, ante a necessidade de tornar imperativas as normas da ética. Nessa linha, podemos dizer que o direito constitui-se como uma exigência social da ética.4 Por via de conseqüência, ética e direito, embora com dimensões e contornos próprios, são realidades que absolutamente não se divorciam, mas, ao contrário, reciprocamente se complementam. E será a ética a matéria-prima a adensar o direito, conferindo-lhe a validade fundante exigida para a concretização da justiça. Ao largo da história, embora possamos até perceber uma certa invariabilidade dos valores, é nítida uma variação da fundamentação da ética, bem como de sua função, de sua validade e de seu sentido social. Grosso modo, encontramos: a) Consoante à mundividência da Antigüidade grega, o homem era compreendido como um pequeno cosmos, onde seriam encontrados os mesmos elementos formais e materiais do cosmos. O mundo em que o homem vivia era visto como um cosmos e boa seria aquela vida que se harmonizasse com a ordem cósmica. A lei cósmica da natureza seria também uma normativa potencial aos costumes. Daí PLATÃO, a reclamar que a harmonia da ordem dos corpos celestes fosse também alcançada pelos homens, ou os estóicos, a proclamar como preceito moral a vida de acordo com a natureza. Encontramos aqui o cosmos como fundamento da ética. b) No período medieval, em que há a figura de um Deus