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Fundamentos sobre a lei do abate

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Conforme noticiado na imprensa há alguns dias, aviões da FAB (Força Aérea Brasileira) estiveram na iminência de abater avião boliviano que transportava drogas (ver a notícia ).
O procedimento da aeronáutica foi baseado nas disposições da Lei 9.614/98 , que alterou o art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/86) e no Decreto 5. 144/2004 , o qual regulamentou a divulgada “Lei do Abate”. Em síntese, as aludidas espécies normativas permitem a derrubada de aviões consideradas hostis após uma série de procedimentos ignorados pelo piloto desta aeronave.
 
“ CAPÍTULO IV
 
DA DETENÇÃO, INTERDIÇÃO E APREENSÃO DE AERONAVE
 
Art.303. A aeronave poderá ser detida por autoridades aeronáuticas, fazendárias ou de Polícia Federal, nos seguintes casos:
I- se voar no espaço aéreo brasileiro com infração das convenções ou atos internacionais, ou das autorizações para tal fim;
II- se, entrando no espaço aéreo brasileiro, desrespeitar a obrigatoriedade de pouso em aeroporto internacional;
III- para exame dos certificados e outros documentos indispensáveis;
IV- para verificação de sua carga no caso de restrição legal ( art. 21)[1] ou de porte proibido de equipamento ( parágrafo único do art. 21 )[2];
V- para averiguação de ilícito.
 
§ 1º. A autoridade aeronáutica poderá empregar os meios que julgar necessários para compelir a aeronave a efetuar o pouso no aeródromo que lhe foi indicado.
§ 2º. Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autorização do Presidente da República ou autoridade por ele delegada ( parágrafo acrescido pela Lei 9.614/98)
§ 3º. A autoridade mencionada no § 1º responderá por seus atos quando agir com excesso de poder ou com espírito emulatório.(parágrafo re-numerado e alterado pela Lei 9.614/98)”
 
Inúmeros juristas, dentre eles, LUIZ VICENTE CERNICCHIARO (ver artigo ) entendem inconstitucional a Lei, já que a Constituição Federal veda a adoção de penas de mortes, salvo em caso de guerra declarada (art. 5º, XLVII, a, da CF). Ademais, a execução seria sumária, sem qualquer direito à defesa, contraditório ou devido processo legal (art. 5º, XVLII, LV), com a presunção de culpa dos envolvidos (art. 5º, LVII, da CF).
Não obstante, há os defensores da Lei, para quem a soberania e a segurança nacional justificariam medidas coercitivas e eficazes.
Aos que repudiam a tese do “Direito Penal do Inimigo” certamente seria difícil aceitar a constitucionalidade e até a legitimidade da Lei do Abate. Por outro lado, entendendo os postulados trazidos pela tese do “Direito Penal do Inimigo” seria possível compreender a referida legislação, haja vista que inegavelmente ela é a constatação de uma das infiltrações dele em nosso ordenamento jurídico.
O chamado “Direito Penal do Inimigo” propugna uma distinção entre dois pólos no âmbito do Direito Penal. De um lado, o “Direito Penal do Cidadão”, com uma visão tradicional garantista, no qual seriam observados todos os princípios constitucionais e penais limitadores do jus puniendi, haja vista que o autor do delito ainda mantém a sua qualidade de pessoa. De outra verte, encontra-se o “Direito Penal do Inimigo” em que o criminoso – por não trazer expectativas cognitivas de que irá respeitar a norma – deixa de ser visto como pessoa para ser tratado como um inimigo, fonte de perigo. Corolário desta postura é a relativização dos seus direitos e garantias fundamentais no âmbito penal.
 
A questão foi trazida por GÜNTHER JAKOBS, apresentando a fundamentação jusfilosófica da tese em Kant e Hobbes: “Como acaba de citar-se, em Kant, não se trata como pessoa quem me ‘ameaça…constantemente’, quem não se deixa coagir ao estado de civilidade. De modo absolutamente similar, Hobbes despersonaliza o alto traidor; pois este também nega por princípio a constituição existente. Hobbes e Kant conhecem, portanto, um Direito Penal do Cidadão – contra pessoas que não delinqüem de modo contumaz por princípio- e um Direito Penal do Inimigo contra aqueles que se desviam por princípio; este exclui, enquanto aquele deixa intocado o status de pessoa. O primeiro, o Direito Penal do Cidadão, é direito também no que se refere ao criminoso; este continua sendo pessoa. Mas o último, o Direito Penal do Inimigo, é Direito em outro sentido. É certo que o Estado tem direito de proteger-se contra indivíduos que delinqüem de modo contumaz; afinal de contas, a custódia da segurança é um instituto jurídico. Mais ainda: os cidadãos têm o direito de exigir do Estado medidas apropriadas, i. e., ele têm direito à segurança, através do qual Hobbes fundamenta e limita do Estado: fini oboedientiae est protectio. Mas, nesse Direito, não está contido o inimigo- em Hobbes, o alto traidor; em Kant, aquele que ameaça constantemente; esse é o Direito dos demais. O Direito Penal do Cidadão é o direito de todos; o Direito Penal do Inimigo é o direito daqueles que se contrapõem ao inimigo; em relação ao inimigo, ele é somente coação física, chegando até à guerra ( JAKOBS, Günther, Direito Penal do Inimigo, org. Luiz Moreira e Eugênio Pacelli de Oliveira, tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes, 1ª edição, ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2008, p. 7/9).
De se ver que as aeronaves consideradas “hostis”, por conseqüência os seus tripulantes, serão vistos como inimigos, fontes de perigo à nação brasileira, porque mesmo depois de inúmeros procedimentos de averiguação, tiros de advertência, continuam a desobedecer as ordens das autoridades aéreas. Destarte, cuida-se de pessoas que pelo seu comportamento não oferecem expectativas cognitivas mínimas de que irão respeitar a norma. Daí ser legitima a relativização de direitos e garantias, já que aquele que não se comporta como cidadão não poderia exigir ser tratado como tal. O piloto da aeronave hostil teve inúmeras oportunidades de se render e atender aos comandos da Autoridade, todavia, optou por continuar ignorando os procedimentos legais.  
Sem a noção dos postulados do “Direito Penal do Inimigo”, inimaginável é a defesa da “Lei do Abate”, valendo ressaltar que a ótica dessa teoria é a preservação não dos direitos do criminoso e sim dos demais membros da sociedade, que também possuem direitos, notadamente o da segurança (art. 5º, caput, da CF), colocada em risco com o tráfico de drogas, vetor dos demais delitos. A crença do cidadão na vigência do ordenamento jurídico seria abalada com constantes violações da lei desprovidas de sanções aptas a assegurar o restabelecimento da paz social.
O criminoso passaria a ter consciência da existência de instrumentos estatais aptos a assegurar o cumprimento da lei, fornecendo maior segurança jurídica e paz social.
Destarte, a medida passaria sob o crivo da proporcionalidade e razoabilidade, já que idônea a atingir o fim almejado, qual seja, inibir o tráfico de drogas por meio aéreo, onde a fiscalização é mais trabalhosa. A postura seria necessária por inexistir meios mais amenos que garantissem a mesma eficácia. Por fim, encontraria equilíbrio entre meios e fins, já que a segurança nacional, com a defesa da sociedade contra o tráfico de drogas, delito vetor dos demais, justificaria a relativização dos direitos e garantias de quem teve todas as oportunidades de pousar o avião, mas optou por continuar contrário à lei.
Não obstante, é preciso salientar que nem mesmo JAKOBS avançou a ponto de legitimar o “Direito Penal do Inimigo”, já que se limitou a constatar a sua existência e descrevê-los, sem qualquer juízo crítico ou positivo, de sorte que a sua legitimação reclamaria um juízo reflexivo mais aprofundado.
Portanto, o tema foi apresentado, restando ao cenário jurídico e à sociedade como um todo o debate para aprimoramento das idéias, já que conforme advertem LUIZ FLÁVIO GOMES, ANTONIO GARCÍA-PABLOS DE MOLINA e ALICE BIANCHINI, “o sentido mais profundo de todo discurso crítico, é o de contribuir para a formação do estudante de direito, do acadêmico ou pós-graduando, que nãopode concluir sua graduação com uma única e sectarista visão do mundo ou do Direito” (GOMES, Luiz Flávio, Direito Penal, volume 1: introdução e princípios fundamentais/ Luiz Flávio Gomes, Antonio García-Pablos de Molina, Alice Bianchini., São Paulo, RT, 2007, p. 304).
 
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[1] Art. 21. Salvo com autorização especial de órgão competente, nenhuma aeronave poderá transportar explosivos, munições, arma de fogo, material bélico, equipamento destinado a levantamento aerofotogramétrico ou de prospecção, ou ainda quaisquer outros objetos ou substâncias consideradas perigosas para a segurança pública, da própria aeronave ou de seus ocupantes.
[2] Parágrafo único. O porte de aparelhos fotográficos, cinematográficos, eletrônicos ou nucleares, a bordo de aeronave, poderá ser impedido quando a segurança da navegação aérea ou o interesse público assim o exigir.

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