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39 À Procura das Causas As Causas Biológicas: A Teoria da Etiologia Específica Pensar que agentes vivos pudessem dar origem a doenças infecciosas não era novidade, em meados do século passado. Desde a antigüidade remota, aventava-se a hipótese de serem estas doenças transmitidas por contágio, e causadas por “sementes”, “animálculos” ou “vermes”. Na Idade Média, a primeira reação ao aparecimento da Morte Negra, no século XIV, foi o pânico. Buscava-se a salvação na fuga, mas nem todos podiam, ou queriam, fugir. Além disso, as comunidades se negavam a admitir pessoas vindas de áreas onde houvesse a doença. Assim, era imperioso tomar medidas que protegessem os sadios e controlassem o mal. A experiência ganha com o combate à lepra fez com que o princípio do isolamento se desenvolvesse de forma rápida e generalizada. Além de se tomarem medidas no interior da própria comunidade, era preciso evitar a entrada da peste. Para isso, usava-se o método de isolar e observar pessoas e objetos durante um período, sob condições rigorosas, até se estabelecer que não estivesse com a peste. Assim surgiu a quarentena. Deu-se o primeiro passo, neste sentido, em Veneza, principal porto para entrada de produtos vindos do Oriente. De início, tratava-se de um isolamento de quinze dias; a seguir, trinta e, afinal, quarenta dias. Desde o séc. XVII já se havia demonstrado que a escabiose (popularmente conhecida como sarna) se devia ao ácaro Sarcoptis scabiei e não, como afirmou um autor da época, “ao Humor Melancólico de Galeno, nem ao ácido corrosivo de Sylvius, nem ao Fermento particular de Van Helmont, nem aos Sais Irritantes no Soro da Linfa, dos Modernos, mas às contínuas mordidas desses Animálculos na Pele”. Estas observações, entretanto, não tiveram qualquer conseqüência prática. As descobertas e os relatos de Leeuwenhoek (1632-1723), feitos com a utilização de um microscópio, despertaram algum interesse pela teoria do contágio animado, mas também sem resultados notáveis. Em meados do século XIX, alguns autores defendiam a idéia de que organismos vivos eram os responsáveis pelas doenças contagiosas e infecciosas. Esta teoria, entretanto, permanecia inaceitável para muitos clínicos importantes e para outros profissionais do mundo científico. A doutrina do “contágio animado” era tida como uma elaboração artificial da mente, uma fantasia sem qualquer base científica. I - Seres Invisíveis I.a - A “Geração Espontânea” 40 Desde Aristóteles, e inclusive na era medieval e na renascença, se acreditava que seres vivos surgiam espontaneamente. Ao longo do tempo, esta idéia havia sofrido poucas contestações importantes, mas em 1688 o médico italiano Francesco Redi demonstrou que não se desenvolviam larvas, quando se utilizava uma gaze para proteger a carne deteriorada da contaminação das moscas. A seguir, ele acompanhou todas as fases da metamorfose dos ovos, a larvas e até moscas. Sua demonstração, mais tarde confirmada por outros experimentadores, contribuiu para o descrédito da “geração espontânea” de organismos visíveis a olho nu. No entanto, mesmo depois da descoberta de seres microscópicos, em fins do século XVII, tal origem ainda era defendida para os pequenos “animálculos”, encontrados nas infusões de feno e outras matérias orgânicas. Em 1799, o abade Lazzaro Spallanzini declarou que se impediria o aparecimento de animálculos case se fervessem as infusões durante, no mínimo, 40 minutos. O químico Louis Pasteur interessou-se pelo problema e, a 7 de abril de 1864, organizou uma demonstração pública na Sorbonne. Ele, depositou um caldo nutritivo em alguns frascos e lacrou-os: mesmo depois de muitos anos não havia qualquer sinal de vida dentro deles. A refutação do conceito de geração espontânea, nascido com Aristóteles, foi uma das condições preliminares para a aceitação da teoria do germe como causa de doenças. I.b - O Mundo Microbiano As pestes, e as várias doenças febris agudas, intrigavam os médicos. Nos escritos hipocráticos se defendia a idéia de serem as epidemias causadas por uma constelação de condições climáticas e circunstâncias do lugar. Hipócrates distinguiu as variações meteorológicas e o caráter das estações como os elementos determinantes da ascensão e do declínio das doenças epidêmicas, e das variações em suas incidências sazonal e anual. Este conceito de constituição epidêmica - um estado da atmosfera produtor de certas doenças, a se espalharem enquanto persistir a constituição particular – ganhou alento durante os séculos XVI e XVII. Thomas Sydenham (1624-1689), o grande clínico inglês, aprofundou essa maneira de ver. Em sua opinião, as doenças febris agudas se dividiam em dois grupos principais: as desordens epidêmicas - produzidas por mudanças atmosféricas - e as doenças intercorrentes - dependentes da susceptibilidade do corpo, e podendo, aparecer, portanto, independentemente do estado atmosférico. Peste, varíola e disenteria pertenciam ao primeiro grupo; escarlatina, amigdalite, pneumonia e reumatismo, ao segundo. Ao estado da atmosfera e às mudanças em que se produziam doenças, Sydenham chamou de “constituição epidêmica”. Os distúrbios epidêmicos aumentavam em gravidade e violência enquanto a força da constituição epidêmica crescia, e se atenuava à proporção que os elementos atmosféricos cediam lugar a uma nova constituição. Esta 41 prevaleceria por um certo período e se lhe associavam outras doenças epidêmicas. Sydenham não tinha certeza quanto à natureza da mudança atmosférica, mas a atribuía a um miasma que se elevava da terra. E chegava a pensar em uma origem astrológica das epidemias. Girolamo Fracastoro (1478-1533), no tratado De Contagione Contagiosis Morbis et Eorum Curatione (“Sobre contágio, doenças contagiosas e suas curas”), tinha apresentado uma teoria do contágio. Esse livro representa um dos marcos na evolução de uma teoria científica da doença comunicável. A obra de Fracastoro se sustenta em um estudo da peste, do tifo, da sífilis e de outras doenças epidêmicas. Ele foi o primeiro a apresentar uma teoria da infecção, considerando-a uma conseqüência e não uma causa, a ser produzida por diminutos agentes - sementes ou seminaria , transmissíveis e que se reproduziam por si mesmos. A doença se instalava quando as sementes alteravam os humores e princípios vitais do corpo. Fracastoro não imaginava que as sementes se assemelhassem aos micróbios modernos; o mais provável é que as concebesse como substâncias químicas ou fermentos. Além disso, reconheceu três modos de contágio: por contato direto, de pessoa a pessoa; por agentes intermediários; à distância, e através do ar. Condições atmosféricas e astrológicas anormais favoreceriam as infecções. Fracastoro não descobriu, ou sequer previu, a existência das bactérias; mas, criou uma teoria contagionista, que, até finais do século XIX, rivalizou com a doutrina atmosféricomiasmática. Teoria Miasmática: os surtos das doenças epidêmicas seriam causados pelo estado da atmosfera. Aos poucos, esta teoria se modificou e se passou a considerar que as condições sanitárias ruins criariam um estado atmosférico que provocaria doenças. Muitos dos reformadores sanitários defendiam essa opinião e, assim, justificavam os esforços para melhorar o saneamento. Teoria Contagionista: o contágio específico era a única causa de infecção e doença epidêmica. Até a última parte do séc. XIX, dominou a doutrina mioasmática. No entanto, nenhum dos grupos tinha qualquer conhecimento de certos elos importantes na cadeia da infecção, tais como o portador humano e o inseto hospedeiro e vetor. Assim, embora existisse uma explicação para o mecanismo do contágio, as sementes da doença permaneceram obscuras. Aliás, até o séc. XVII não se levava muito a sério a idéia de diminutos organismos vivos causarem doenças tão graves. Entretanto, com a evolução das lentesde aumento simples e a aparição do microscópio composto, no séc. XVI, pôde-se investigar a natureza das diminutas seminaria de Fracastoro. O primeiro a observar bactérias e outros organismos microscópicos foi Antony van Leeuwenhoek (1632-1723), negociante de linho de Delft (Holanda). Em famosa carta à Real Sociedade de Londres, Leeuwenhoek descreveu as formas hoje conhecidas como cocos, bacilos e espirilos. Mas, aparentemente, não lhe ocorreu uma conexão entre seus “animálculos” e as doenças. Como ele os encontrara em meios inofensivos - água da 42 chuva, solo, excreções humanas sadias - isso não chegava a surpreender. Entretanto, graças ao achado de Leeuwenhoek, vários microscopistas passaram a caçar os germes das doenças. No entanto, suas deficiências técnicas e teóricas produziram relatos confusos e contraditórios, e terminaram por levar a uma reação contra a teoria dos germes. A descoberta das bactérias, por Leeuwenhoek, fez reviver a questão: estas diminutas criaturas eram geradas espontaneamente ou nasciam de sementes? Investigadores logo descobriram a associação entre esses organismos e os processos de fermentação e putrefação, e sua presença no leite azedo, na carne podre, no caldo de carne estragado, enfim, onde decomposição ou putrefação ocorressem. Dos estudos que se seguiram, o mais importante foi o de Theodor Schwann, que concluiu não se dever a putrefação ao ar, mas a algum elemento que estava no ar. Schwann inferiu que este processo ocorria quando germes ou sementes alcançavam, pelo ar, a matéria orgânica e, nutrindo-se dela, se desenvolviam. Após o trabalho de Antony von Leeuwenhoek, os aperfeiçoamentos técnicos do microscópio, introduzidos no final do século XIX, reacenderam o interesse pelas formas de vida invisíveis a olho nu. Ferdinand Cohn foi um dos pioneiros do estudo sistemático da bacteriologia. Determinou que espécies individuais de bactérias se comportam de modo previsível, quando cultivadas de maneira específica, e podem, portanto, ser identificadas e classificadas. O primeiro relatório científico sobre uma doença provocada por um microorganismo parasitário transmissível foi feito por Agostinho Bassi, em 1835. Bassi, advogado italiano que dedicava parte de seu tempo à ciência, descreveu o organismo responsável pela muscardina (a doença do bicho-da-seda), de conseqüências econômicas desastrosas. Bassi descobriu que a transmissão da doença se fazia por contato, ou pelo alimento contaminado. Esse trabalho não impressionou os médicos da época. II - Um Tiro no Escuro No início do século XVIII, a varíola era endêmica nas cidades da Grã-Bretanha e do continente, e uma das principais causas de morte. Os boletins de mortalidade indicam que a metade de todas as mortes devidas à enfermidade ocorria entre crianças menores de 5 anos. Na Inglaterra, em 1714, nasceu uma idéia para se enfrentar essa situação: a “variolização”. Desde séculos já se sabia que um ataque de varíola conferia imunidade. Seguindo esse princípio, se havia desenvolvido, e usado por muito tempo, em especial no Oriente, um procedimento de prevenção: inoculava-se matéria variólica de um caso benigno em um indivíduo sadio, para provocar um caso benigno, que iria conferir proteção contra qualquer ataque sério no futuro. Edward Jenner (1749-1823), um médico rural inglês, se interessava pela relação entre 43 vacina e varíola e fazia inoculações. Em sua prática, ele encontrou pacientes nos quais a inoculação não vingava, porque eles já haviam tomado a vacina. Assim, Jenner teve a idéia de inocular um indivíduo com matéria vacinal de uma pessoa que tivesse contraído a doença naturalmente, e de utilizar a matéria colhida desse indivíduo para inocular outros, e assim por diante. Em 1796, a oportunidade de testar essa idéia se apresentou. Jenner inoculou um menino com matéria vacinal tirada da mão de uma ordenhadora que tinha apanhado a doença de modo natural; passadas várias semanas, ele inoculou o menino com a varíola. A inoculação não resultou em nada, o garoto estava imune! Jenner ofereceu suas observações à Sociedade Real, mas esta recusou-se a publicar seu artigo, e o próprio autor acabou por fazê- lo, em 1798. Embora a recepção inicial não parecesse muito promissora, logo vieram confirmações da descoberta de Jener. Rapidamente se adotou a nova prática, e até 1801 ao menos 100 mil pessoas haviam sido vacinadas, só na Inglaterra. A difusão da vacinação, por todo o mundo, foi espantosa. Em poucos anos, o artigo de Jenner tinha recebido traduções para as principais línguas européias. A descoberta de Jenner ofereceu um instrumento poderoso para o controle de um importante problema de saúde: a varíola. Não obstante, uma apreciação mais completa do impacto da vacinação no controle das doenças comunicáveis teria que aguardar a última parte do século XIX. III - A Bacteriologia Louis Pasteur (1822-1895) era químico, interessado em cristalografia. Em 1854, foi nomeado professor de Química e Reitor da Faculdade de Ciências de Lille. As indústrias de fermentação eram importantes para a vida econômica daquela cidade e um de seus fabricantes lhe propôs as seguintes questões: “Por que, algumas vezes, o vinagre se estragava durante sua produção?”; “O que fazia com que a fabricação de vinho e cerveja, por vezes, não desse certo, se havia uma rotina que era seguida de forma inalterável?”. Pasteur atacou primeiro o problema do azedamento do leite e da formação do ácido láctico, e demonstrou a participação de microrganismos no azedamento, embora não conseguisse isolá-los do leite. A seguir, investigou a fermentação alcoólica do vinho e da cerveja, a formação do ácido acético para fazer o vinagre e o aparecimento do ácido butírico, quando a manteiga tornava-se rançosa. Em 1871, em seu clássico Études sur la bière (Estudos sobre a cerveja), descreveu os resultados encontrados. Pasteur concluiu serem as diversas atividades bioquímicas (produção de álcool, ácidos láctico, butírico e acético) ocasionadas por microrganismos específicos. Com um interesse constante pela importância prática da ciência, Pasteur passou a dedicar seu trabalho a diversas “doenças” que afetavam a indústria de vinho. Para 44 espanto dos produtores, ele diagnosticou anormalidades como “vinho viscoso”, “vinho oleoso” e “vinho amargo”, simplesmente ao examinar uma gota no microscópio e ao verificar quais micróbios cada uma das amostras continha. Pasteur não só pesquisou porque o processo de fermentação se tornava anormal, mas também como prevenir essa situação. Ele mostrou como suprimir as atividades de todos os organismos, com o aquecimento do vinho, por um curto período, a uma certa temperatura. Esse é o método conhecido como pasteurização , hoje aplicado ao leite e a outros produtos alimentícios. Ao estudar a fermentação, Pasteur descobriu, também, a existência de vida anaeróbica, ao notar que certos organismos não crescem na presença do ar, mas na sua ausência. A seguir, passou a aplicar a uma série de doenças humanas e de animais - como o carbúnculo, a cólera das galinhas, a erisipela do porco e a raiva - os ensinamentos obtidos com os estudos da fermentação. Em todas essas pesquisas, sempre teve dois objetivos principais: isolar e cultivar o organismo responsável pela doença e desenvolver métodos para controlar a infecção. Em 1879, quase casualmente, Pasteur descobriu que as galinhas inoculadas com uma cultura envelhecida de bacilos de cólera de galinha não desenvolviam a doença. Aprendeu, assim, a usar a “atenuação”, um enfraquecimento da virulência dos microrganismos, sem se alterar sua capacidade de proporcionar resistência. A atenuação veio a ser a base de diversas vacinas. Se Pasteur estivesse certo, ao considerar organismos específicos como responsáveis por alterações fermentativas - e pudesse demonstrar quesua exclusão impedia a ocorrência de fermentação - a doutrina da geração espontânea não mais se sustentaria. Pasteur provou, então, que os micróbios estavam universalmente presentes na atmosfera e que, submetidos à lei da gravidade, podiam assentar sobre líquidos ou sólidos e desencadear as mudanças da fermentação ou da deterioração. No entanto, se, por exemplo, se filtrasse o ar através de algodão cru tornava-se impossível desencadear esses processos. Em suma, Pasteur demonstrou, de forma experimental, o caráter fictício da teoria da geração espontânea. Um apelo urgente interrompeu suas pesquisas sobre a fermentação, em maio de 1856. Uma epidemia misteriosa e prolongada vinha dizimando os viveiros de bicho-da-seda da França e levando os distritos atingidos a um estado de calamidade industrial. Embora Pasteur nunca tivesse visto um bicho-da-seda, pediram-lhe para estudar o problema. A carreira de Pasteur contém exemplos seguidos da interação de necessidade técnica e descoberta científica. Ele lidava com problemas de importância econômica imediata, embora seu interesse sempre ultrapassasse o problema específico, e se prolongasse até ramificações mais distantes. Assim, ao estudar a fermentação, ele já havia pensado em uma possível relação causal entre germes e doença. Após trabalhar dois anos com o bicho-da-seda, Pasteur se convenceu de que esse animal vinha sendo atingido por duas doenças 45 transmissíveis, causadas por diferentes microorganismos. Em 1868 ele pôde indicar as causas dessas doenças e o modo de as controlar, assim salvando outra das grandes indústrias da França. Além disso, essas pesquisas deram grande sustentação à teoria microbiana das doenças. Em 1868, Pasteur sofreu um acidente vascular encefálico e seu estado de saúde limitou suas atividades. Apenas em 1877 ele retomou o estudo das doenças infecciosas em animais e no homem, mas, chegou a uma solução apenas parcial do problema. A prova final teria que esperar pela criação de técnicas para o controle rigoroso dos experimentos. Robert Koch (1843-1910) vivia em uma cidade de interior, onde clinicava e servia como funcionário médico do distrito. Além disso, tinha instalado em casa um pequeno laboratório, onde encontrou tempo para estudar o antraz (carbúnculo). Ele inoculou camundongos com o sangue de gado enfermo, e logo encontrou os mesmos bastonetes considerados responsáveis pela doença. A seguir, estudou o ciclo de vida dos bastonetes, inclusive a fase de esporos, uma fase de seu ciclo vital muito resistente ao calor e a outras condições adversas. Esse fato explicava a persistência da doença e sua reincidência na zona rural infectada: os esporos podiam sobreviver no solo, e causar nova infecção, muitos anos depois. Por fim, provou que o Bacillus do antraz, e nenhum outro microorganismo, produz a doença em um animal suscetível. A meticulosidade com que comprovava sua argumentação marcou os trabalhos de Koch e firmou-o na carreira científica. Assim, nascia a Bacteriologia Médica: pela primeira vez a origem microbiana de uma doença tinha sido reconhecida e sua história natural bem explicada. Durante as duas décadas seguintes, ocorreram avanços com extrema rapidez e, em geral, ao longo de duas linhas. Uma, característica do trabalho de Koch, levou ao desenvolvimento de técnicas para o cultivo e o estudo das bactérias. Pasteur e seus colaboradores tomaram outra direção, levaram sua atenção para os mecanismos da infecção e para as conseqüências desse conhecimento na prevenção e no tratamento das doenças contagiosas. Com os métodos criados por Koch, tornou-se possível estudar, de modo mais sistemático, os agentes de várias doenças infecciosas. Talvez, o maior legado de Koch tenha sido insistir na necessidade de um conjunto de rigorosos postulados, cada um dos quais tinha a ser preenchido antes que se pudesse considerar o organismo como o agente de uma doença específica. Entre 1879 e 1900 foram descobertos os agentes causais de, no mínimo, vinte e duas infecções. Entretanto, à medida que se confirmava o papel patogênico dos microorganismos, surgiam perguntas sobre os mecanismos da ação microbiana. Como se produzia a infecção? Como preveni-la? Como tratar suas conseqüências? A partir de 1877, a Bacteriologia francesa, nas mãos de Pasteur e seus colaboradores, se aplicou a responder essas perguntas, e se reconheceu a resistência à infecção como um problema importante. Neste 46 processo, surgiu a idéia de se prevenirem doenças infecciosas por meio de vacinas preparadas com cepas atenuadas. Essas pesquisas levaram ao desenvolvimento da Imunologia e viriam a ter, no século XX, um impacto profundo e prático sobre a criação de um programa científico para a medicina. Assim, na última década do século XIX, várias questões importantes sobre as causas das doenças já haviam sido respondidas. Entretanto, alguns fatos permaneciam sem explicação. Em algumas doenças, como na febre tifóide e no cólera, novos casos ocorriam em pessoas sem contato direto com os indivíduos enfermos; em outras doenças, continuavam sadias pessoas expostas aos doentes. Nos primeiros anos de nosso século, uma série de brilhantes investigações revelaram a participação de vetores ou intermediários na transmissão de doenças comunicáveis. Descobriram-se seres humanos saudáveis portadores de organismos patogênicos, e se confirmaou a opinião de Max von Pettenkofer (1818-1901). Pettenkofer, médico higienista alemão, defensor da teoria miasmática das epidemias, em 1855 havia sugerido que portadores humanos, sadios, transmitiam o cólera. Por volta de 1900, Pettenkofer, aos 74 anos de idade, ingeriu deliberadamente uma cultura com milhões de bacilos de cólera, isolados de um caso fatal. A seguir, apesar de apresentar uma imensa quantidade de bacilos de cólera nas fezes, sofreu apenas uma leve diarréia. A experiência do higienista alemão demonstrava a necessidade de se relativizar a teoria da etiologia específica. Na verdade, Pasteur e Koch não lidaram com eventos naturais, mas com situações experimentais. O pesquisador não consegue, nem tenta, reproduzir a natureza no laboratório. Isto significa que o agente etiológico é parte da questão, mas que muitos outros elementos devem ser considerados, ao se buscar a origem de uma doença. De fato, tão logo os bacteriologistas aperfeiçoaram os métodos de investigação, tornou-se claro ser possível encontrar um grande número de cepas patogênicas em indivíduos com excelente saúde. IV - As Causas Sociais ou “A Doença é a Vida em Condições Anormais” Desde o final do século XVI e o começo do século XVII, todas as nações européias se preocuparam com o estado de saúde de sua população, em um clima político, econômico e científico característico do período mercantilista. O mercantilismo não era apenas uma teoria econômica, mas, também, uma prática política que consistia em controlar os fluxos monetários entre as nações, os fluxos de mercadorias e a atividade produtora da população. A política mercantilista consiste, essencialmente, em aumentar a produção da população, a quantidade de população ativa, a produção de cada indivíduo ativo e, em estabelecer fluxos comerciais para haver a entrada, no Estado, da maior quantidade possível de moeda. 47 Rudolf Ludwig Carl Virchow (1821- 1902) nasceu na Pomerânia, região noroeste da Alemanha. Simultaneamente ao seu trabalho clínico, Virchow iniciou estudos de química e histologia. Por seu talento e dedicação, tudo indicava que cedo alcançaria posição de destaque no meio médico alemão e, até, internacional. Entretanto, suas idéias e ações políticas, e suas convicções pessoais (era liberal, agnóstico e anticlerical), o levaram a opor-se e a combater o governo prussiano, de quem dependiam seus empregos. Pelas mesmas razões, participou ativamente da revolução alemã de 1848e publicou, durante cerca de um ano, uma revista semanal (“A Reforma Médica”) onde fazia críticas severas ao governo e defendia a necessidade urgente de uma mudança radical na estrutura da sociedade, a fim de se proporcionar um nível de vida melhor para as pessoas, vida baseada na democracia total e sem limites, assim como na educação, na liberdade e na prosperidade. Formado em medicina em 1843, Virchow dirigiu-se à Berlim com este propósito um ano após Theodor Schwann anunciar uma descoberta tão decisiva para a história da medicina quanto para a sua própria: a célula animal. Em 1838, soube-se que os animais, tal como já se sabia acerca das plantas, tinham células nucleadas como sua unidade biológica básica. A partir daquele momento, pareceu então ser possível realizar o estudo científico dos fenômenos elementares da doença. De início, porém, uma dificuldade detinha os pesquisadores: “qual era a origem da célula?”. Virchow foi o primeiro a refutar com veemência a teoria dominante – a “geração espontânea” a partir do blastema, uma substância rudimentar, indiferenciada e homogênea - e provar que uma célula sempre provém de outra, que o fenômeno da vida consistia de uma “legítima sucessão de formações celulares”, “onde surge uma célula, uma célula deve ter previamente existido, tal como um animal só pode nascer de outro animal e uma planta de outra planta”: omnis cellula e cellula. Para melhor compreensão das características e do alcance da obra de Virchow, pode-se dividi-la em três períodos de duração desigual. O primeiro, se estende até o ano de 1849 e diz respeito à iniciação científica e a um intenso ativismo social e político. Por um lado, registra-se o início de seu interesse sobre as células, seus estudos sobre a leucocitose, sobre a triquinose (que determinou o início do controle sanitário da carne, na Alemanha), sobre alguns tumores hepáticos, sobre a flebite e os fenômenos da trombose e do embolismo, e é impressionante o grau de permanência de seus conceitos e termos técnicos. Por outro lado, havia seu engajamento apaixonado na cena política, se não determinado, ao menos em muito influenciado por um episódio marcante em sua atuação como médico. No verão de 1847, irrompeu na região da Alta Silésia uma epidemia que veio a ser conhecida como “tifo da fome”. Como as autoridades locais vissem o fracasso de seus esforços, em fevereiro de 1848 o governo central de Berlim enviou uma comissão (da qual Virchow era membro) com a tarefa não apenas de explicar o fenômeno, mas de resolvê-lo. De pronto, Virchow reconheceu a 48 causalidade social da epidemia, fazendo de seu relatório uma veemente condenação ao regime. Após uma pormenorizada análise da situação local, que se estendia desde aspectos clínicos, epidemiológicos e culturais, até o levantamento do número de escolas, fábricas e estabelecimentos públicos, e a recomendações sobre o tratamento dos casos individuais, apresentou a seguinte conclusão: “Todos sabem que o proletariado de nossa época foi trazido à existência pela introdução e pela melhoria da maquinaria; que, à proporção em que agricultura, manufatura, navegação e transporte por terra - graças ao aperfeiçoamento de instrumentos – adquiriram uma extensão sem precedentes, a energia física do homem perdeu de todo sua autonomia e os seres humanos foram incorporados como meras engrenagens na empresa mecânica, tratados como se não tivessem mais valor do que matéria morta ... Deve ser este o significado último da maquinaria na história da civilização? Os triunfos do gênio humano devem levar a apenas isto, a que a raça humana se torne mais miserável? ... Nosso século deu início à chamada era social e o objetivo de suas atividades deve ser o de reduzir, ao máximo, as partes puramente mecânicas da atividade humana ... ele não devia desperdiçar suas melhores energias na produção de capital ... ao menos, o capital e a força de trabalho devem ter direitos iguais, e as energias vivas não devem mais estar subordinadas ao capital morto.” (Virchow, 1985: 308-311) Quanto ao tratamento desta epidemia e prevenção das demais, prescreveu: “democracia completa e ilimitada, liberdade, educação e prosperidade”. Talvez por sua fama, ou pela ilusão de poder tê-lo a seu lado, o governo tolerou as críticas de Virchow por bastante tempo. Até que, em 1849, despediu-o de todos os seus cargos. A reação dos médicos e estudantes foi tamanha e tão ruidosa que, quinze dias depois, Virchow estava de volta ao trabalho. Antes do fim deste ano, ele aceitou a primeira cátedra alemã de anatomia patológica, onde permaneceu por sete anos. Tinha, então, 28 anos de idade e um sólido prestígio, não apenas por suas contribuições originais sobre temas como trombose e embolia, mas também por suas idéias sobre saúde pública, epidemiologia e antropologia. Em 1856, Virchow foi convidado a assumir a cátedra de patologia em Berlim, onde trabalhou pelos 46 anos seguintes, até o fim de sua vida. Aí, além de continuar suas carreiras de patologista, higienista e antropólogo, iniciou uma quarta atividade: regressou à prática ativa da política, tornando- se conselheiro da cidade para assuntos sanitários e participando da fundação do Partido Progressista Alemão. É curioso notar que, para Virchow, suas diversas atividades nada tinham de antagônicas, ao contrário, mostravam-se como diferentes faces da mesma realidade. Por exemplo, ele afirmava que a medicina era uma ciência social, que “a política nada mais é do que a medicina em grande escala”, que o “problema de saúde pública é um somatório de transtornos físico/biológicos adicionados a limitações de ordem social” e “a doença é a vida em condições anormais”. Para Virchow, os problemas médicos deveriam, em primeiríssimo lugar, ser resolvidos através da 49 prevenção e, depois, de acordo com a gravidade, através da cura, alívio ou consolo. De uma maneira geral, Rudolf Virchow defendia os seguintes princípios: a saúde do povo é um assunto de interesse social prioritário; a sociedade tem a obrigação de proteger e assegurar a saúde de seus membros; as condições sociais e econômicas exercem um efeito importante sobre a saúde e a doença e há necessidade de considerar essas relações em uma investigação científica. Ele indicava, ainda, que uma das principais funções da saúde pública era o estudo das condições de vida dos vários grupos sociais e a determinação dos efeitos dessas condições sobre a saúde; com base nesse conhecimento, seria possível agir. Concluía, então, que os passos para promover a saúde e combater a doença deviam ser sociais e médicos. Neste sentido, não apenas propôs a oferta de serviço médico para os pobres, como defendeu a inclusão, na constituição, do direito do cidadão ao trabalho. Porém, com a derrota da revolução de 1848, Virchow perdeu a disputa política para o primeiro ministro von Bismarck que, em 1861, conseguiu unificar a Alemanha. Curiosamente, a partir de 1865, Virchow iria aproveitar-se da prosperidade alemã, proporcionada por Bismarck, para promover diversas reformas municipais em Berlim, como a instalação de drenagem e água potável corrente. V - As Causas Mentais Sigmund Freud (1856-1939) foi o criador da psicanálise, fixador da noção de “inconsciente”, da divisão funcional da mente humana em ego, superego e id e o defensor da idéia de que a evolução do indivíduo marca o padrão de sua vida adulta. Para ele, a doença mental teria sempre esse matiz evolutivo, e não dependiam de lesões anatômicas cerebrais, embora estas também fossem importantes, como na oligofrenia, na sífilis terciária, etc. Ao longo de sua carreira, Freud teve que construir seus próprios instrumentos de trabalho. Por herança, só recebeu o conceito do inconsciente, que provém do séc. XVIII - por exemplo, com Leibniz (1646-1716). Em 1873, Freud ingressou na Faculdade de Medicina e, entre1876 e 1882, trabalhou em um laboratório de fisiologia, em pesquisas sobre a histologia do sistema nervoso. A essa altura, já revelava grande interesse pelo estudo das doenças mentais, bem como pelos métodos utilizados em seu tratamento. A necessidade de ganhar a vida obrigou-o a abandonar a pesquisa e a dedicar-se à clínica psiquiátrica. Em 1855, obteve uma bolsa para estudar em Paris, com Jean Martin Charcot (1825- 1893), o grande mestre da Neurologia. Segundo seu próprio relato, foi Charcot quem lhe chamou a atenção para as relações existentes entre a histeria e a sexualidade, tese de que nunca abriu mão. Nesta ocasião, concebeu um plano de trabalho destinado a distinguir as paralisias orgânicas das histéricas. A idéia central era demonstrar que, na histeria, as paralisias e as anestesias das diversas partes do corpo são delimitadas 50 segundo uma representação não anatômica. Após seu regresso a Viena, recebeu violentas críticas por defender a idéia de que a histeria não era um quadro exclusivo das mulheres. Além disso, ao contrário de Charcot, Freud achava possível a existência de quadros histéricos em pacientes sem qualquer lesão orgânica. Entre 1882 e 1896 Freud trabalhou com Josef Breuer e descreveu a íntima relação entre os sintomas histéricos e certos episódios da infância. Em 1900, Freud publicou “A Interpretação dos Sonhos”. Em 1908, junto com um grupo de jovens médicos, fundou a Sociedade Psicanalítica de Viena e realizou, em Salzburg, o primeiro congresso de psicanálise. Em 1910, deu-se, em Nuremberg, o segundo congresso, ocasião em que foi fundada a Associação Psicanalítica Internacional, dividida em seções locais. Com o advento do nazismo e as crescentes pressões sobre os judeus Freud mudou-se para Londres, em 1938, onde veio a falecer, de câncer. Sigmund Freud conceituava a psicanálise como: a) um método para a investigação de processos mentais, de outro modo inacessíveis; b) um método, baseado nessa investigação, para o tratamento de desordens neuróticas; c) uma série de concepções psicológicas, a formarem uma nova disciplina. Assim, a psicanálise apresenta-se como uma prática (a cura analítica) e uma técnica (o método da cura), a proporcionarem a construção de uma teoria. Na verdade, a psicanálise se conceitua como uma técnica de interpretação. As curas que, por seu intermédio, se obtêm seriam apenas decorrência. Referências Bibliográficas BREATHNACH, CS. Biographical Sketches nº 17 - Virchow. Irish Medical Journal, 75 95): 139, 1982. EISENBERG, L. Rudolf Ludwig Karl Virchow, Where are you now, that we need you?. The American Journal of Medicine, 77: 524-532, 1984. MARGOTTA, R. The Hamly History of Medicine. London: Reed International Books Ltda., 1996. ROSEN, G. Da Polícia Médica à Medicina Social. Rio de Janeiro: Graal,1980. _______ . Uma História da Saúde Pública . trad. Marcos Fernandes S. Moreira. São Paulo: Hucitec. Rio de Janeiro: Abrasco, 1994. SIGERIST, HE. The Great Doctors - a biographical history of medicine. New York: W.W. Norton and Company Inc., 1933. 51 TAMAYO, P.R. El Concepto de Enfermedad - Su evolución a través de la historia - Tomo I. Guadalajara: Fondo de Cultura Economica, 1988. VIRCHOW, RLK. Collected Essays on Public Health and Epidemiology - Volume 1. Bethesda, Maryland: Science History Publications, 1985.
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