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69 Uma Trajetória da Prática Médica A enfermidade cria dependência. O doente precisa não só de tratamento médico, mas também de cuidados gerais e de abrigo. Ao longo da história, as sociedades criaram várias instituições para fornecer os serviços necessários. Uma dessas instituições, o hospital, é hoje o centro do sistema de atenção médica. E a atenção às necessidades dos doentes sempre esteve intimamente ligada às condições econômicas, políticas, sociais e culturais a governarem a vida do homem. Em vários períodos históricos, o cuidado dos doentes e dos inválidos criou modelos institucionais característicos de certas sociedades. O hospital medieval era uma instituição eclesiástica, não preocupada com a atenção médica. E foi substituído, no século XVI, por um outro tipo, cujos objetivos não eram religiosos, mas sociais. Para isto, o hospital passou ao controle governamental e suas atividades aceitas como responsabilidade da comunidade. A atenção médica, porém, ainda não estava entre suas funções principais. Isto é, tal como existiu entre os sécs. XVI e XIX, o hospital tinha como objetivo primeiro ajudar na manutenção da ordem pública, e era uma espécie de instrumento de exclusão e transformação espiritual, em que a função médica não aparecia. Assim, o hospital instituição importante, e mesmo essencial, para a vida urbana do Ocidente, desde a Idade Média, não se incluía entre as instituições médicas, e a medicina era uma prática não-hospitalar. O hospital como instrumento terapêutico data do final do século XVIII. Neste período, várias forças que lhe eram externas o transformaram no que é hoje. Desde que quando, e em função de que, o hospital passou a ser um instrumento de intervenção sobre a doença e o doente, com a intenção de produzir cura? Com a universalização da assistência médica, houve um extraordinário crescimento da rede assistencial extra-hospitalar. Se, no caso da medicina praticada no hospital, verificamos uma clara relação entre uma estrutura de saber e uma organização institucional, o mesmo não se pode dizer da prática fora do hospital. Como ela se estrutura e o que a diferencia da medicina hospitalar? I - A Evolução do Hospital Templos como o de Asclépio, em Epidauro, ofereciam acomodações para os que procuravam ajuda junto aos deuses. Iatreia , ou salas de cirurgia, eram comuns entre os gregos. Na Roma Imperial, havia várias formas de assistência médica, além da oferecida pelos clínicos municipais, entre elas estava o hospital. Durante a República, os romanos não dispunham de mais nada. No século I d.C., no entanto, surgiram as valetudinárias , ou enfermarias, para escravos. A fundação, durante a Idade Média, de hospitais para pobres e indigentes nasceu das valetudinárias romanas. A partir do séc. IV, já podemos encontrar instituições destinadas aos doentes e necessitados. A concepção de ser necessária assistência social em caso de doença ou outro 70 infortúnio era altamente desenvolvida durante a Idade Média. Estava presente entre muçulmanos, judeus e cristãos e evidenciou-se, principalmente, pela criação de hospitais. Considerações religiosas e sociais predominaram no desenvolvimento destes serviços. Os cristãos tinham um dever de caridade para com seus companheiros doentes e sofredores. A este sentimento se juntava outro valor: cuidar dos doentes trazia benefícios à salvação da alma. No Ocidente, o hospital desenvolveu-se de modo lento, graças à estreita ligação com a Igreja, não é de surpreender que a primeira contribuição significativa para o estabelecimento de hospitais tenha vindo dos mosteiros medievais. Os mosteiros tinham uma enfermaria, onde os monges doentes eram tratados, uma farmácia e, freqüentemente, um horto com plantas medicinais. Além de cuidarem dos membros da comunidade monástica, os monges também atendiam a peregrinos e viajantes. O início desta prática não está precisamente estabelecido, mas é bem possível que se situe na aurora da Idade Média. O hospital se difundiu porque se tornou um instrumento central em torno do qual grandes ordens se estabeleceram. Fundados ao longo das rotas percorridas pelos cruzados, muitas ordens cavaleiras, durante as guerras santas, assumiram a missão de criar e mantê- los.Com o correr do tempo, muitos tipos diferentes de benfeitores também fundaram hospitais, como reis, nobres, comerciantes ricos, etc. O primeiro hospital na Inglaterra fundou-se em 937, sendo dedicado a São Pedro. Por volta do século XV, a Europa já estava coberta por uma rede de hospitais. Na verdade, não é exagero considerar a criação do hospital uma das grandes façanhas, em Saúde Pública, da Idade Média. Por exemplo, só na Inglaterra, mais ou menos no meio do séc. XIV, havia mais de seiscentas instituições deste tipo. Em 1300, Florença, com uma população de 90.000 habitantes, tinha trinta hospitais e abrigavam mais de mil pessoas doentes e necessitadas. Criado como instituição filantrópica e como agência de auxílio aos pobres, o hospital também foi concebido como instituição religiosa e espiritual. No final da Idade Média, os hospitais se mostravam cada vez mais inadequados para enfrentar os novos contextos em que os problemas de saúde e bem-estar eram considerados. Como, segundo a perspectiva medieval, os pobres, doentes e debilitados podiam ser considerados necessários para a salvação daqueles que praticavam a caridade; encorajavasse a mendicância. Agora, esse problema passava a ser visto de forma diversa. Apesar das causas da pobreza pouco terem mudado entre os sécs. XIII e XVI, circunstâncias econômicas e sociais alteraram seu significado e intensificaram seu impacto. E os pobres e mendigos, muitas vezes, começaram a se fingir de doentes para serem admitidos nos hospitais. Com isso, as autoridades entenderam que o hospital passara a ser uma instituição central para a vida da comunidade. Ao emergir da era medieval, era um instrumento da sociedade para minorar a pobreza, erradicar a mendicância e, sobretudo, 71 restabelecer a ordem pública. E o desenvolvimento de hospitais no séc. XVIII e início do séc. XIX está ligado a importantes correntes políticas e sociais, especialmente o mercantilismo e o despotismo esclarecido, a iniciativa privada e a ação cooperativa, a concepção de uma política nacional de saúde. O primeiro fator de transformação não foi a busca de uma ação positiva do hospital sobre o doente ou a doença, mas a anulação dos efeitos negativos do hospital. Procurou-se, primeiro, purificá-lo dos efeitos nocivos que a desordem provocava. Isto quer dizer, purificá- lo das doenças que ele podia provocar nas pessoas internadas e espalhar na cidade e da perpétua desordem econômico-social. No século XVII, a primeira grande organização hospitalar da Europa se situou não no hospital civil, mas nos hospitais marítimos e militares, lugares de desordem econômica, em que se dava o tráfico de mercadorias, objetos preciosos, matérias raras, etc. O traficante fazia-se doente e era levado para o hospital no momento do desembarque, a esconder objetos que escapavam, assim, do controle econômico da alfândega. Os grandes hospitais marítimos de Londres, Marseille ou La Rochelle eram lugares de um tráfico intenso, contra o que protestavam as autoridades financeiras. O primeiro regulamento de hospital, que aparece no século XVII, refere-se à inspeção dos cofres que os marinheiros, médicos e boticários detinham nos hospitais, para se registrar o que eles contêm. Aparece, também, neste hospitais marítimos e militares, o problema da quarentena, isto é, da doença epidêmica que as pessoas desembarcadas podem trazer. A quarentena é, essencialmente, um tipo de hospitalização que não procura fazer do hospital um instrumento de cura, mas impedir que seja foco de desordem econômica ou médica. Os hospitais militares e marítimos se tornaram o modelo da reorganização hospitalar porqueas regulamentações econômicas tornaram-se mais rigorosas no mercantilismo, e porque o preço dos homens tornou-se cada vez mais elevado. É nesta época que a formação do indivíduo, sua capacidade, suas aptidões passam a ter um preço para a sociedade. Tome-se o caso do exército, por exemplo. Até a segunda metade do século XVII, não havia dificuldade em recrutar soldados. Existiam, em toda a Europa, desempregados, vagabundos, miseráveis prontos para entrar no exército de qualquer nacionalidade ou religião. Com o surgimento do fuzil, no final do século XVII, o exército torna-se muito mais técnico e custoso. Para se aprender a manejar um fuzil serão precisos exercício e adestramento, e o custo de um soldado será maior do que uma simples mão-de-obra. Assim, a reorganização do hospital militar servia para: 1) vigiar os soldados para que não desertassem; 2) evitar que morressem; 3) evitar que, já curados, fingissem estar doentes. O mesmo se deu com o hospital marítimo, a partir do momento em que a técnica da marinha se tornou muito mais complicada e não se podia mais perder pessoas de formação muito custosa. Então, a reorganização do hospital não se fez através de 72 uma técnica médica, mas, essencialmente, a partir da disciplina. E a introdução de mecanismos disciplinares no espaço confuso do hospital irá permitir sua medicalização. As razões econômicas, o preço atribuído ao indivíduo, o desejo de evitar que as epidemias se propagassem explicam a regulamentação disciplinar do hospital. Mas, para esta disciplina ser médica, deverá haver uma transformação no saber médico. II - A Constituição do Saber Médico Moderno A medicina dos séculos XVII e XVIII era profundamente individualista, da parte do médico, compreendendo o conhecimento de textos e a prescrição de receitas, mais ou menos secretas ou públicas. A experiência hospitalar estava excluída da formação médica. Na medicina da época, a chamada “Medicina das Crises”, a cura só surgia através de uma relação individual entre médico e doente. O médico devia observar o doente e a doença desde os seus primeiros sinais, para descobrir quando a crise apareceria. A crise era o momento em que se defrontavam, no doente, a natureza sadia do indivíduo e o mal que o atacava. Nesta luta entre a natureza e a doença, o médico devia observar os sinais, prever a evolução, ver de que lado estaria a vitória e favorecer, na medida do possível, a vitória da natureza e da saúde sobre a doença. Assim, a idéia de uma longa série de observações no interior do hospital, em que se poderia registrar as constâncias, as generalidades, etc., estava excluída da prática médica. A partir do momento em que se legitima como principal centro produtor e reprodutor do saber médico, o hospital vai abrigar e facilitar a grande transformação operada na racionalidade médica do século XIX - a racionalidade anatomoclínica - base do saber médico moderno. Com o "olhar clínico", inaugurado por Bichat (1771-1802), ocorre uma mudança qualitativa na percepção da doença. Enquanto a clínica dos sintomas (medicina classificatória) se preocupa em chegar a uma essência nosológica, a anatomoclínica se arma para explorar um novo espaço: a doença deixa de ser uma entidade, e passa a ser representada pela lesão inscrita na profundidade do corpo. A nova espacialização, iniciada por Bichat, vai adquirir maior coerência nos trabalhos de Broussais(1772-1838). Ele sistematiza a relação lesão-sede-causa da doença. A localização do processo patológico, realizada por Bichat, recebe, da parte de Broussais, um olhar mais ampliado, que inclui um esquema causal. Através da teoria da irritabilidade dos tecidos, ele conclui ser a sede da doença, ao mesmo tempo, o sítio etiológico. A doença seria uma alteração tecidual secundária a um processo irritante (causa), situado em determinado tecido ou órgão (sede), evidentemente através da lesão. Assim, o "ser-da-doença", tão valorizado na medicina dos sintomas, torna-se secundário para o método anatomoclínico, que reduz a doença ao espaço do organismo. O "ser-da-doença", dá lugar ao "corpo doente". 73 O exercício desta nova clínica exigiu e determinou a reformulação do espaço hospitalar. Não era mais possível realizar a observação clínica rigorosa, exigida pelo novo olhar médico, sem a estrutura do hospital. Assim, a medicina anatomoclínica redefine o papel do hospital. O estudo da morte abre caminho para a compreensão do que sucedeu em vida e, consequentemente, para o acúmulo do conhecimento médico. O hospital se transforma em espaço estratégico a permitir não só a observação clínica rigorosa, mas, sobretudo, o estudo detalhado da morte. Finalmente, vale ainda destacar a relação do hospital com a cirurgia. Até meados do séc. XIX, a cirurgia estava seriamente limitada, de duas maneiras. A mais importante era a quase inevitável ocorrência de infecção da ferida, que resultava, amiúde, em septicemia fatal. Complicação comum, em especial nos hospitais, onde os pacientes sucumbiam à “gangrena do hospital”, ou a um “hospitalismo” ainda mais vago. A introdução, em 1846, da anestesia por éter, superou o outro fator limitante: o controle da dor. Entretanto, as chamadas “doenças de hospital” ganharam ainda mais vigor, assumindo proporções epidêmicas. A tal ponto, que as autoridades de Nurembergue chegaram a pensar em demolir o Hospital Geral e dirigentes e funcionários do Hospital do Condado de Lincoln, na Inglaterra, aceitaram uma decisão igualmente radical. Essa era a realidade, quando, em 1865, o cirurgião Joseph Lister (1827-1912) introduziu a cirurgia anti-séptica. O método anti-séptico de tratamento das feridas produziu resultados espantosos, ultrapassados na década de 1880, por técnicas baseadas no princípio da assepsia. III - A Medicina Hospitalar Como vimos, a formação de uma medicina hospitalar se deve, por um lado, à disciplinarização do espaço hospitalar, e, por outro, à transformação do saber e da prática médicas. Com esta dupla origem, o hospital irá adquirir as seguintes características: 1ª) Preocupação com o espaço do hospital, dentro do planejamento sanitário da cidade, e com a distribuição interna; 2ª) Transformação do sistema de poder. Até meados do séc. XVIII, quem detinha o poder era o pessoal religioso. A visita médica era irregular e se destinava a centenas de doentes. O médico estava, além disso, sob a dependência do pessoal religioso, que o podia, inclusive, despedir. A partir do momento em que o hospital é concebido como um instrumento de cura e a distribuição do espaço torna-se um instrumento terapêutico, o médico passa a ser o principal responsável pela organização hospitalar. A ele se pergunta como se deve construí-lo e organizá-lo. Além disso, se o regime alimentar, a ventilação, a ingestão de líquidos, etc., são fatores de cura, o médico, controlando o regime dos doentes assume, até certo ponto, a administração econômica, até então privilégio das ordens religiosas. Ao mesmo tempo, sua presença se afirma e se multiplica. O ritmo das visitas aumenta cada vez mais até que, em torno de 74 1770, decide-se que um médico deve residir no hospital, para que seja chamado a qualquer hora do dia ou da noite, para observar o que se passa. Aparece, assim, o médico do hospital, que antes não havia. O grande médico, até o séc. XVIII, não aparecia no hospital; era o médico de consulta privada, que tinha adquirido prestígio graças a um certo número de curas espetaculares. Aquele que as comunidades religiosas chamavam para fazer visitas aos hospitais eram, em geral, os piores médicos; 3ª) Organização de um sistema de registro permanente e detalhado de tudo o que acontece: técnicas de identificação dos doentes, produção de prontuários, etc. Constitui-se, assim, um campo documental a fazer do hospital, também, um lugar de registro, acúmulo e formaçãode saber. Então, o saber médico que, até o início do séc. XVIII, estava localizado nos livros, começa a ter seu lugar no hospital, nos registros do dia-a-dia. Assim, por volta de 1780/1790, começa-se a afirmar que a formação de um médico deve dar-se no hospital. Assim, o hospital, além de ser um lugar de cura, passa a ser também um lugar de formação de médicos. Por outro lado, a observação detalhada dos sintomas, dos sinais e da evolução do doente acontece no interior do hospital, e permite uma atitude médica de extrema curiosidade diante da doença. Tudo era observado e anotado; cria-se o prontuário do doente, o registro detalhado das observações. E só o hospital permitia este trabalho, que o novo médico considerava ser decisivo para o avanço do conhecimento. Em pouco tempo, o estudo da medicina se deslocou dos livros clássicos para os acervos hospitalares; entre 1780-1790, já existia um consenso de que a formação médica tinha que ser realizada no espaço hospitalar. O aprendizado médico deixou de estar vinculado apenas à literatura e se dirigiu à observação à beira do leito do doente hospitalizado: é a medicina da cabeceira do doente. Assim, desde que o exame minucioso do paciente internado passou a ser decisivo para o exercício da prática e do ensino médicos, o hospital ganhou uma posição invulgar na História da Medicina. A rotina das atividades hospitalares, por si só, já era ensino, e punha em cheque o ensino ministrado nas universidades. O crescente prestígio hospitalar acaba, não sem conflitos, vencendo a resistência da velha instituição universitária, e obrigou as cátedras ao silêncio. De agora em diante, professor e aluno vão observar de forma obsessiva tudo o que estiver ao alcance dos seus sentidos. Não mais com o intuito de classificar a doença, como na medicina das espécies, mas movidos pela necessidade de esclarecer o mecanismo e a evolução da doença, graças à observação rigorosa do indivíduo hospitalizado. Ao contrário do que acontecia até então, professor e aluno passam a ter tarefas semelhantes; ambos estão à beira do leito a observar os sinais emitidos pelo doente, para chegarem a um esclarecimento sobre a natureza da doença. Enfim, desde a medicalização do hospital até a virada do século XX, apenas os pobres, sem recursos para obter assistência médica em casa, eram hospitalizados. Com o 75 advento da antissepsia e, posteriormente, com os avanços tecnológicos, os hospitais começaram a construir anexos (ou a adaptar parte de sua área) para os doentes particulares. O médico, antes um frequentador ocasional do hospital, sem responsabilidade administrativa, vem a dedicar grande parte de seu tempo às atividades hospitalares. No hospital moderno, o médico estará envolvido não só com a doença do seu paciente, mas com as questões gerenciais, com os custos, com os equipamentos, com a relação de equipe, etc. O hospital, centro fundamental de pesquisa e ensino da medicina científica, complementa o seu projeto, tornando-se, também, terapêutico. De agora em diante, vai ocupar um lugar central no campo médico: o lugar de ensino, pesquisa e assistência médicos. IV - A Medicina fora do Hospital Até meados do século XX, o Estado assegurava a saúde como força física, capacidade de trabalhar. Progressivamente, o conceito de saúde, os meios para manter a boa saúde, a presença do Estado segurador capaz de recuperar a saúde, darão a tônica à segunda metade do nosso século. A partir daí, o estatuto do direito à saúde, como um direito de cidadania a ser proporcionado pelo Estado, irá redefinir completamente a organização do campo médico. A década de 40 é o marco histórico das grandes mudanças definidoras do projeto médico contemporâneo. Agora, a medicina terá como principal tarefa a execução do projeto de reorganização do espaço urbano, através de ampla intervenção física sobre as cidades. O discurso médico que sustenta as transformações ocorridas no campo da saúde é também um discurso transformado, que incorporou a idéia da promoção da saúde. O projeto médico de intervenção social ganhou um novo impulso, proporcionou a montagem da rede assistencial extra-hospitalar, que, em pouco tempo, assumiu posição de dominância no quadro de assistência. Apesar do hospital dominar todo o processo de incorporação tecnológica, de formação de recursos humanos para a medicina sofisticada e, consequentemente, de sustentar a imagem de espaço avançado da pesquisa e da prática médicas modernas, seu horizonte, no plano das políticas de saúde, foi, em grande parte, superado pela intervenção extra-hospitalar. Além de trabalhar em espaços diferenciados - o ambulatório, a família, o trabalho, a escola, etc. - essa medicina não se detém, apenas, no corpo acometido por uma lesão/disfunção, mas estrutura outros corpos como objeto de sua prática: o corpo das relações interpessoais, o corpo da família, o corpo da escola, etc. Os dois séculos de hegemonia da medicina anatomoclínica têm no hospital o centro institucional das práticas, da produção e da reprodução do saber. Entretanto, com a universalização da assistência médica proporcionada pelo direito à saúde, houve um extraordinário crescimento da rede assistencial extra-hospitalar. E, se no caso da medicina hospitalar podemos verificar uma clara relação 76 entre uma estrutura de saber (o anatomoclínico) e uma certa organização institucional (o hospital); o mesmo não se pode dizer da medicina extra-hospitalar. Assim, as tentativas de extensão do saber anatomoclínico, nos moldes da prática hospitalar, estão condenadas ao fracasso e à produção de graves distorções. A medicina hospitalar consegue manter a coerência, e até mesmo ser representada como uma ciência, porque trabalha com um grupo selecionado de doentes - os lesionais - ao mesmo tempo em que nega a condição de doente aos não-portadores de lesão. A medicina extra-hospitalar, por sua vez, surge do amplo processo de medicalização da sociedade, que transforma cada indivíduo em um doente em potencial, pois as várias situações de vida e sensações físicas e mentais passaram a ser objetos da competência médica. Portanto, não se destina apenas a uma parcela dos enfermos, mas é desafiada pelo universo das sensações mórbidas e dos sofrimentos individuais. Assim, a prática médica fora do hospital constitui uma verdadeira rede de mediações, em que o médico que se restringir a seguir apenas o discurso médico científico, estará simplesmente imobilizado. Ilustram esta afirmação o descompasso entre o quadro de doenças mais comumente diagnosticadas e a lista dos medicamentos mais prescritos; a freqüente constatação de que sintomas físicos não apresentam base orgânica; as significativas diferenças encontradas, entre países desenvolvidos, para taxas de cesareanas e tratamentos; a ampla e significativa variação geográfica no uso dos mais variados procedimentos. Em nossos dias, a demanda por assistência médica, sobretudo ambulatorial, apresenta altíssima incidência de casos "diagnosticados" como funcionais, não- orgânicos, vagos ou mal definidos. Esta vasta categoria inclui a imensa romaria a vagar desamparada em busca de sucessivas consultas especializadas, de um interminável rol de exames complementares, de receitas de psicotrópicos, etc. Deve-se, então, entender o campo médico extra-hospitalar como um espaço diferenciado da prática médica. Importa destacar as diferenças na estrutura de saber de cada campo, isto é, caracterizar a constituição de dois campos diferenciados, e em grande parte independentes, a delinearem não apenas a organização institucional da medicina, mas, sobretudo, a estruturação do saber e da prática. Assim, de um lado situa-se a medicina científica, praticada no hospital, dedicada ao atendimento dos casos graves, com risco de vida, onde se aplica a "ciência médica" (racionalidade anatomoclínica) na investigaçãoe no tratamento; de outro, está a prática médica fora do hospital, caracterizada, sobretudo, pelos problemas da vida cotidiana que, transformados em “queixas”, correspondem à maior parte do atendimento ambulatorial. 77 Referências Bibliográficas ALMEIDA, ELV. Medicina Hospitalar - Medicina Extra-Hospitalar : Duas Medicinas ? Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Medicina Social da UERJ. Rio de Janeiro: xerox, 1988. BALINT, M. O médico, seu paciente e a doença . 2ª edição. Rio de Janeiro: Atheneu, 1975. CANGUILHEM, G. La Connaissance de la vie . 2ª edição. Paris: J. Vrin, 1971. __________ . O Normal e o Patológico . Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978. CLAVREUL, J. A Ordem Médica . São Paulo: Brasiliense, 1983. CORDEIRO, HA. 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