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DIPLOMATICA DOS ARQUIVOS PESSOAIS

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Contribuição para uma Abordagem 
Diplomática dos Arquivos Pessoais 
Ana Maria de Almeida Camargo 
Temos diante de nós um impresso de dimensões reduzidas, medindo 
apenas dez centímetros de altura por sete de largura, com revestimento de papel 
flexível. A primeira capa da brochura ostenta os elementos identificadores de seu 
conteúdo: ao alto, o nome do autor [Montenegro Cordeiro]; no centro, o título 
principal [Heloisianas] acompanhado do secundário [Grinalda de Noiva]; na 
parte inferior, o local [Rio de Janeiro] e a data da publicação [1884]. A simetria 
da área de grafismo, onde tais elementos se distribuem em torno de um eixo 
central, é quebrada apenas por ornamento tipográfico que representa uma pal­
meira elevada, folhagens rasteiras e borboleta em pleno vôo. O fOllllato, os dizeres 
da capa e seu tratamento enfático não deixam margem a dúvida: é um livro. 
O gesto de folheá-lo revela que tem 85 páginas numeradas. Percebe-se 
também a organização espacial do texto em estrofes, cãnone indicativo da forma 
mais tradicional do ofício de versejar. Não há dúvida: é um livro de poesia. 
Uma observação mais atenta mostra, nas páginas que antecedem a de 
rosto, a presença de elementos insuspeitados. Na primeira delas, duas linhas 
pontilhadas impressas estão reservadas para o registro manuscrito de termos 
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variáveis, como um formulário. Em caligrafia bem cuidada, nosso exemplar 
estampa as palavras" Ao mmo Sn' Oliveira Martins". Segue-se a mensagem 
impressa "João Montenegro Cordeiro e Heloisa Guimarães Montenegro Cor­
deiro participam o seu casamento.", a que se justapõe um endereço no bairro de 
Botafogo, obviamente o da residência do casal. A outra �ágina traz a foto dos 
noivos, desbotada pela passagem de mais de cem anos. As certezas anteriores 
soma-se outra: é uma participação de casamento. 
Um livro, um livro de poesia, um livro de poesia que dá parte de um 
casamento. Num único objeto, a presença de dois textos de natureza diversa, aos 
quais se aplicam perfeitamente as qualidades que, na análise do discurso, são 
associadas às formas de leitura ou de interpretação: de um lado, a instabilidade 
de sentido típica da obra literária; de outro, a estabilidade da fórmula que espera 
ser entendida literalmente.' As Heloisianas, portadoras desta ambigüidade, 
servirão aqui de pretexto para que se possa discutir, da perspectiva da diplomática, 
o estatuto dos chamados arquivos pessoais e, no limite, a própria natureza dos 
documentos de arquivo. 
AsHeloisianas chamam a atenção, em primeiro lugar, pelos seus elemen­
tos externos, pela sua aparência. O suporte, o fOIUlato, as dimensões e a disposição 
espacial do texto lhe emprestam os atributos do livro, isto é, do "documento 
impresso, não periódico, com mais de 48 páginas sem contar as da capa, que 
constitui uma unidade bibliográfica" (Faria, 1988: 207). Dessa defmição, que 
com pequenas diferenças tem sido adotada por todos, convém reter o dispositivo 
final: o livro, pela autonomia de significado, por constituir um universo de 
auto-suficiência, pode ser descrito a partir de um conjunto de regras gerais, sem 
que se leve em conta o contexto de sua produção. Ao bibliotecário cabe indicar 
os elementos relativos a responsabilidade, título, edição, publicação e paginação, 
que variam apenas quanto ao nível de pormenorização que pretende alcançar. E 
a partir desse conjunto de indicações, e também dos componentes que articulam 
o texto central, poderá ele classificar a obra como pertencente à literatura, à 
literatura brasileira, à poesia, à poesia lírica e assim por diante. A relação que se 
estabelece com a obra não requer nenhum elemento de mediação, seja do ponto 
de vista do profissional que a identifica, seja do ponto de vista do usuário (Carucci, 
1989: 12). 
Ao contrário do bibliográfico, o documento arquivístico não dispõe de 
autonomia, nem prescinde da relação que mantém com seu contexto de origem. 
Para além do suporte, do formato e do conteúdo, passíveis da modalidade de 
identificação típica da biblioteconomia, importa conhecer o vínculo orgânico 
entre o documento e a ação que nele se materializa a título de prova ou evidência. 
As Heloisianas preenchem plenamente essa condição. Resultaram da iniciativa 
de Montenegro Cordeiro de comunicar por escrito aos amigos e parentes o seu 
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casamento com Heloisa Guimarães. O ato (panicipação de casamento), realizado 
por vontade de um agente (Montenegro Cordeiro), assumiu uma determinada 
forma escrita (o livro de poesia). Mesmo na perspectiva diplomática, que permite 
vê-lo na sua singularidade, a operação de identificar o documento supõe, entre 
ele e a função que cumpriu, o estabelecimento de um "nexo qualificado" 
(Duranti, 1996: 60). 
Nosso exemplo reconou, do universo dos documentos acumulados por 
uma pessoa ao longo de sua existência,2 um espécime pouco convencional. É que 
as Heloisianas apontam, em cena medida, para um domínio em que as normas 
não existem ou são muito flexíveis. Qualquer que seja o modo de nomeá-lo -
reduto do indivíduo, espaço doméstico, círculo de familiares e amigos , é nele 
que se manifestam, em princípio, os fatos juridicamente inelevantes, isto é, 
aqueles que, por oposiçao ao que se dá no âmbito das instituições públicas ou 
privadas, não foram deliberadamente previstos no sistema jurídico de que fazem 
parte (Duranti, 1996: 49). Esta é a razão por que tais documentos (e, por extensão, 
os arquivos pessoais como um todo) foram sistematicamente considerados um 
problema difícil de ser equacionado, o que fica patente na relutância dos teóricos 
em vê-los com as qualidades orgânicas dos produtos do funcionamento de 
instituições e na prática recorrente de submetê-los a tratamento inadequado.3 
A despeito de sua condição de documento marcado pela iniciativa 
individual e pela busca de originalidade, o livro de poemas não deixa de eviden­
ciar, na primeira página, o vínculo essencial que o prende ao ato de comunicar o 
casamento do autor. E o faz por meio de fórmula estereotipada que, no plano das 
relações sociais, acaba por ter também a força da norma. Basta ler os códigos de 
bom-tom da época para obter uma amostra representativa não apenas das ações 
prescritas para as mais diversas circunstâncias (batizados, casamentos, enterros, 
bailes, jantares, visitas, viagens etc.), mas das regras gerais de composição das 
cartas (cartas de panicipação ou de notícia; de negócios e encargos; de escusa; de 
queixas; eucarísticas ou de agradecimento; morais e de conselho; de pretensão e 
tantas outras). Além de poder contar com o famoso Roquete,4 que desfrutou de 
grande popularidade entre nós, Montenegro Cordeiro teve ainda, à sua dis­
posição, uma variedade assombrosa de "impressos efêmeros" que inundaram o 
mercado brasileiro de seu tempo.5 Como se pode perceber, uma tipologia docu­
mental baseada nas regras de etiqueta de cada época seria um precioso auxiliar 
para o arquivista. 
No cotejo entre as duas modalidades de expressão presentes no docu­
mento, o profissional de arquivo reconhece a supremacia do vínculo que re­
laciona as Heloisianas com a função de anunciar o casamento do autor. Perante 
esse vínculo funcional básico e substantivo, os poemas são secundários e ad­
jetivos, perfeitamente comparáveis a um sem-número de vinhetas (corações, 
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taças entrelaçadas, pombos) que poderiam, com resultado equivalente, enfatizar 
o binômio casamento/amor. 
Longe de ser arbitrária, essa distinçao remete para o papel desempe­
nhado pelos recursos gráficos e léxicos que, no processo de desenvolvimento do 
discurso escrito, procuram de diferentes modos incorporar à fala do autor a 
maneira como este deseja ser interpretado, na tentativa de criar documentos 
como representação fixa ou invariável do sentido pretendido (Olson, 1997). No 
primoroso estudo de Clanchy (1997) sobre a formalização das queixas(writs) na 
administração da justiça inglesa, vê-se como os matizes de significação cederam 
lugar à padronização dos documentos, alterando a própria linguagem legal e 
produzindo um gênero específico de discurso. 
O esforço para produzir o entendimento literal de seu conteúdo trans­
forma-se, assim, num elemento essencial para definir o documento de arquivo, 
qualquer que seja a entidade que lhe deu origem. Se os documentos dispositivos 
e probatórios alcançam o ponto máximo de estereotipia numa escala que a 
pudesse medir, o outro extremo é ocupado por aqueles que, na palavra de Duranti 
(1996: 48), assumem forma discricionária, como uma carta de amor ou um diário 
íntimo. Segundo a autora, nenhum aspecto da vida e dos negócios humanos fica 
fora do sistema de regras que são percebidas como obrigatórias, em qualquer 
tempo e lugar: "mesmo a mais espiritual f alma de amor é penetrada e regulada 
pela ética, pelo direito natural, pela moralidade, pelas crenças religiosas, pelos 
costumes, e se expressa de acordo com elas". A observação seria válida - não 
fosse impertinente nos quadros da argumentação aqui apresentada até mesmo 
para os poemas reunidos nas He/oisianas, de originalidade duvidosa e inteira­
mente conformados ao receituário do gênero e do tipo literários então em voga.6 
Até que ponto é possível conferir autenticidade a um documento que se 
situa nos patamares inferiores da escala a que nos referimos? Em que medida tem 
ele capacidade de dizer o que pretende, ou de ser o que parece, realizando a radical 
operação de "impor-se a si mesmo" (Boüard, 1948: 2), como vem definida a 
condição do documento autêntico nos clássicos manuais de diplomática? Em 
recente artigo, Delmas (1996: 441) expõe que os documentos orgãnicos (ou seja, 
arquivísticos), produzidos no curso de uma atividade, carregam consigo, a partir 
mesmo de seu contexto de origem, sinais específicos de validação: "o fato de não 
serem atos gratuitos confere à informação neles contida a presunção de autenti-
, 
cidade". E na infolmação orgânica e estruturada, e não mais no meio que lhe 
serve de veículo (que é neutro), que se encontra o elo de necessidade que autentica 
um documento. Essa mudança de enfoque, deixando para trás os selos, carimbos 
e assinaturas, não só é fundamental para a validação dos chamados documentos 
eletrônicos, objeto das constantes referências dos autores, como importantíssima 
, 
para os que, como as Heloisianas, fogem aos padrões. E no criador autorizado e 
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credenciado para o exercício de uma determinada atividade (Bearman, 1994: 
301-302) que se pode ancorar, afinal, a possibilidade de reconhecer a proveniência 
de um documento, independentemente da veracidade de seu conteúdo. 
Mas a teoria arquivística preconiza a utilização de outros indicadores 
para garantir a literalidade que o esrudo da gênese documental se esforça por 
demarcar no plano do documento individualizado. Trata-se de vê-lo a partir das 
relações que estabelece com seus congêneres e no lugar que lhe é próprio. Cortés 
Alonso (1994: 198) exprimiu essa condição de modo incisivo: o desrespeito à 
"relação escalonada" dos documentos faz com que percam até mesmo seu valor 
testemunhal originário. Identificar a conexão lógica e fOllllat1 que liga 11m 
documento a outro mediante relação de necessidade seria, portanto, a tarefa 
primordial do arquivista. 
Notas 
1. As idéias de Pêcheux sobre a divisâo 
do trabalho social da leitura, que separa o 
"literal" do que é "sujeito a 
interpretaçáo", são aqui aproveitadas 
conforme expostas por Orlandi (1996: 94). 
2. Ao caracterizar os papéis que se 
acumulam no espaço doméstico, 
Dardy (1997: 187-200) verificou o 
predomímio de documentos (que 
indevidamente chama de 
"administrativos") resultantes das 
múltiplas relações do cidadão com 
instituições públicas e privadas. 
3. A diferença entre records e manuscripts, 
na tradição nane-americana, é um 
eloqüente sintoma desse fenômeno. 
4. J. I. Roquete é autor do C6digo do bom 
tom e do Código epistolar, obras que 
Referências bibliográficas 
BEARMAN, David. 1994. Elcctronic 
evidence: stTategies for managing records in 
contemporary organizations. Pinsburgh, 
Archives & Muscum Informatics. 
tiveram sucessivas edições ao longo do 
século XIX. 
5. Tais impressos incluíam bilhetes 
de boas festas, cartas de enterro, 
cartões de visita, convites de baile, 
convites de casamento. Segundo Ferreira 
(1976: 266-268), responsável pela 
rubrica "impressos efêmeros", a 
imprensa do Rio de Janeiro estampou 
anúncio, em 1843, oferecendo 
mais de 4 mil padrões de bilhetes de 
• • VISitas. 
6. As rimas pobres e os lugares-comuns, 
além do próprio emprego do sufIXO de 
aumento no plural para dar título à obra, 
são indicadores de uma fonna "menor", 
estereotipada e rotineira de expressão 
literária. 
7. Vínculo arquivístico, como a 
denomina Carucci (1989: 19 e 230). 
BOÜARD, A. de. 1948. Manuel de 
d,p/omatique française ct pontificale: I'acte 
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CARUCCI, Poola. 1989. LeJonti 
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• 
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174 
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Inurpretilção: autoria, leitura e efeitos lÚ1 
trabalho simbólico. Petrópolis, Vozes. 
Palavras-chave: 
• • • 
• 
• arqulvos pessOalS; arqUlvlsnC3, 
diplomática, documento, autenticidade. 
(Recebic/o para publicação em 
navembra de 1997)

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