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Império do Direito - cap.02

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54 oIMPERIO DO DIREITO 
inclusive aqueles fundamentais, nao se trata de uma piada gro­
tesca. Significa alguma coisa afirmar que os juizes devem 
aplicar a lei, em vez de ignora-Ia, que 0 cidadao deve obedecer 
alei, a nao ser em casos muito raros, e que os funciomirios publi­
cos sao regidos por suas normas. Parece estupido negar tudo 
isso simplesmente porque as vezes divergimos sobre 0 verda­
deiro conteudo do direito. Desse modo, nossos filosofos do 
direito tentam salvar aquilo que podem. Para faze-Io, agar ram­
se a qualquer coisa que encontram: afirmam que, nos casos 
dificeis, os juizes apenas fingem divergir sobre 0 conteudo do 
direito, ou que os casos dificeis nao passam de discussoes li­
mitrofes, amargem daquilo que eclaro c comum a todos. Ou 
entao pensam que devem entrar em alguma forma de niilismo 
a proposito do direito. A logica que preside a essa devasta<;ao e 
aquela que descrevi ha pouco, 0 argumento de que, a menos 
que os advogados e juizes compartilhem criterios factuais so­
bre os fundamentos do direito, nao podera haver nenhuma 
ideia ou debate significativos sobre 0 que e 0 direito. Nao te­
mos outra op<;ao a nao ser confrontar esse argumento. Trata-se 
de um argumento filosOfico, razao pela qual a pr6xima etapa de 
nosso esquema deve ser tambcm filosOfica. 
Capitulo II 
Conceitos de interpretar;iio 
o aguilhao semantico 
Chamarei de aguilhao semantico 0 argumento que dcscre­
vi ha pouco, e que tem causado tantos problemas afilosofia do 
direito. Suas viti mas sao as pessoas que tem uma certa imagem 
do que ea divergencia e de quando ela epossivel. Elas pensam 
que podemos discutir sensatamente se (mas apenas se) todos 
aceitarmos e seguirmos os mesmos criterios para dccidir quan­
do nossas posi<;oes sao bem fundadas, mesmo que nao possa­
mos afirmar com exatidao, como seria de esperar de um filo­
sofo, quc criterios sao esses. Eu e voce so poderemos discutir 
sensatamente quantos livros tenho em minha estante, por exem­
plo, se ambos estivermos de acordo, pelo menos em linhas ge­
rais, quanto ao que e um livro. Podemos divergir sobre osca­
sos limitrotes: posso chamar de livrinho aquilo que para voce 
seria um panfleto. Mas nao podemos divergir sobre aquilo que 
chamei de easos centrais. Se para voce meu exemplar de Moby 
Dick nao e um livro, pois em sua opiniao romances nao sao 
livros, qualquer divergencia sera necessariamente absurda. Se 
essa imagem simples das circunstancias em que a verdadeira 
divergcncia epossivel esgota todas as possibilidades, ela cleve 
aplicar-se aos conccitos juridicos, inclusive ao conceito de di­
rei to. Eentao que se coloca 0 dilema que exponho a scguir. Ou 
os advogados, apesar das aparencias, realmente aceitam, em li­
56 o IMPERIO DO DIRElTO 
nhas gerais, os mesmos criterios para decidir quando uma afir­
ma~ao sobre 0 direito e verdadeira, ou nao pode existir absolu­
tamente nenhum verdadeiro acordo ou desacordo sobre 0 que e 
o direito, mas apenas a estupidez de pessoas pensando que di­
vergem porque atribuem significados diferentes ao mesmo 
som. 0 segundo termo desse dilcma parece absurdo. Portanto, 
os fil6sofos do direito adotam 0 primciro e tentam identificar 
as regras fundamentais ocultas que devem estar contidas, mas 
nao reconhecidas, l1a praticajurldica. Eles produzem e discutem 
as teorias semanticas do direito. 
Infelizmentc para essas teorias , a imagem do que toma a 
divergencia possivel ajusta-se mal aos tipos de dive rgcncia que 
os advogados realmente tern. Ela e coerente quando advogados 
e juizes divergem sobre fatos hist6ricos ou sociais, sobre que 
palavras dcvem ser encontradas no texto de alguma Ici, ou 
quais cram os fatos em alguma decisao judicial anterior. Em 
direito, porel1l , grande parte das divergcncias e tc6rica, nao 
empirica. Os fil6sofos do direito cm cuja opiniiio uevem exis­
tir regras comuns tentam subestimar a divcrgencia tc6rica por 
meio de explica~6es. Dizcm que os advogados e jLlizes apenas 
fingcm, ou que so divergem porque 0 caso que tcm em maos se 
situa numa zona cinzenta OLI pcriferica das regras comuns. Em 
ambos os casos (dizem eles), 0 melhor a fazcr e ignorar os ter­
mos usados pelos juizes c trata-Ios como se divergissem quan­
to a fidelidade ou rcforma do dircito, e nao quanta ao direito. 
Ai esta 0 aguilhao: estamos marcados como seu alvo por uma 
imagcm demasiado tosca do quc dcve ser a divergencia. 
Urn exernplo irnaginario 
A atilude interpretativa 
Talvez essa imagem do que torna a divergencia possive l 
scja muito tosca para captar qualquer divergencia, ainda que 
sobre livros. Mas sustentarei apenas que cia nao e exaustiva e, 
em particular, que nao contem LIm conjunto importante de cir-
CONCEITOS DE lNTERPRETA (:A0 57 
cunstancias que inclua a argumenta~ao te6rica em direito. Ela 
nao se sustenta quando os membros de comunidades especi­
ficas, que compartilham pr<iticas e tradi~6es, produzem e de­
batem afirma~6es sobre as melhores intcrpreta~6es de tais pra­
ticas e tradi~6cs -- quando divergem, melhor dizendo, sobre 
aquilo que alguma tradi~ao ou pratica real mente requer em cir­
cunstancias concretas. Essas afinna~6es sao muitas vezes po­
lemicas, e a divergencia cgenllina mesmo que as pessoas usem 
criterios diferentes para dar forma a essas interpreta~6es; e ge­
nuina porque as intcrpreta~6es confiitantes voltam-se para os 
mesmos objetos ou cventos a interpretar. Tentarei mostrar como 
esse modele nos ajuda a comprecnder melhor 0 argumento 
juridico e a ver com mais clarcza 0 papel do dircito na cultura, 
considerada em sentido mais vasto. Antes, porcm, sera util exa­
minar como 0 modele se aplica a uma institui~ao muito mais 
simples. 
Imagine a seguinte hist6ria a prop6sito de uma comunida­
de ficticia . Sells membros segucm urn conjunto de regras, que 
chamam de " regras de cortesi a", usando-as em um certo nu­
mere de situa~oes sociais. Eles dizem: "A cortesi a exige que os 
camponeses tirem 0 chapeu diante dos nobres", por exemplo, e 
sustentam c aceitam outras proposi~oes desse tipo. Por algum 
tempo, cssa pratica tcm urn caniter de tabu: as regras simples­
mente estao ali, e ninguem as qucstiona nem tenta muda-Ias. 
Mas em seguida, talvez lentamente, tudo isso muda. Todos 
desenvolvem uma complcxa atitude "intcrpretativa" com rela­
~ao as regras de cortcsia, lima atitude que tem dois componen­
tes. 0 primeiro c 0 pressuposto de que a pnitica da cortesia nao 
apenas existe, mas tern um valor, serve a algum interesse ou 
prop6sito, ou refor~a algum principio - COl resumo, tem algu­
ma finalidadc - que pode ser afirmado, independentemcnte da 
mera descri~ao das regras que constituem a pnitica. 0 segundo 
e 0 pressuposto adicional de que as exigcncias da cortesia - 0 
comportamento que ela evoca ou os juizos que ela autoriza ­
nao sao, nccessaria ou exclusivamente, aquilo que semprc se 
imaginou que fossel11 , mas, ao contrario, suscctiveis a sua fi­
nalidade, de tal modo que as regras cstritas devem ser com­
59 58 o IMPERIO DO DIREITO 
preendidas, aplicadas, ampliadas, modificadas, atenuadas ou 
limitadas segundo essa finalidade. Quando essa atitude inter­
pretativa passa a vigorar, a institui<;ao da cortesia deixa dc ser 
medinica; nao c mais a deferencia espontanea a uma ordem 
runica. As pessoas agora tentam impor urn sign!/icado ainsti­
tuic;;ao - ve-Ia em sua melhor luz - e, em seguida, reestrutura­
la aluz desse significado. 
Os dois componentes da atitude interpretativa sao inde­
pendentes urn do outro; podemos adotar 0 primeiro componen­
te des sa atitude com relaC;;ao a alguma institui<;ao sem que seja 
necessario adotar tam bern 0 segundo. E0 que fazemos no caso 
de jogos e competic;;oes. Recorremos afinalidade dessas pniti­
cas ao discutirmos a possibilidade de alterm' suas regras, mas 
nao (a nao ser em casos muito raros)1 aquilo que elas sao no 
momento; isso e determinado pela historia e pela convenc;ao. 
A interpretac;;ao, portanto, desempenha urn papel apenas exte­
rior nos jogos e competic;;ocs. Contudo, e fundamental para
a 
minha filbula sobre a cortesia que as pessoas da eomunidade 
hipotetica adotem 0 segundo eomponente dessa atitude, bern 
como 0 primeiro; para eles, a interpreta<;ao decide nao apenas 
por que a cOltesia existe, mas tambem 0 que, devidamente com­
preendida, ela agora requer. Valor e conteudo sc confundem. 
Como a cortesia se modi/iea 
.., 
Vamos supor que, antes de a atitude interpretativa entrar em 
vigor com seus dois componentes, todos presumam que a fina­
lidade da cortesia esteja na oportunidade que ela oferece de 
demonstrar respeito aos membros superiores da hierarquia 
social. Nao se questiona se as formas tradicionais de respeito 
sao, de fato, aquelas que a pnitica exige. Estas sao, pura e sim­
plesmente, as fonnas de deferencia, e as opc;;oes disponiveis 
I . Ver, em Illeu li vro Taking Righls Seri()us~y, 101 -5 (Cambridge, Mass. 
e Londres, (977). a discussao de um problema inlcrp rctativo ineomum num 
torneio de xad rez. . 
CONCEITOS DE INTERPRETAr;A-O 
sao a conformidade ou a revolta. Portm, quando a atitude in­
terpretativa se desenvolve plenamente, as pessoas comec;;am a 
exigir, a titulo de cortesia, formas de deferencia anteriormente 
desconhecidas, ou a desprezar ou rejeitar formas anteriormen­
te reverenciadas, sem nenhum sentido de revolta, afirmando 
que 0 verdadeiro respeito e mais bem observado por aquilo 
que elas fazem que pOl' aquilo que outros fizeram. A interpre­
tac;;ao repercute na pratica, alterando sua forma, e a nova forma 
incentiva uma nova reinterpretac;;ao. Assim, a prMica passa por 
uma dramatica transformac;;ao, embora eada etapa do proeesso 
seja uma interpretac;;ao do que foi conquistado pc/a etapa ime­
diatamente anterior. 
A concepC;;ao das pessoas sobre os fundamentos apropria­
dos do respeito, pOl' exemplo, pode variar de acordo com a po­
sic;;ao social, idade ou sexo, ou algum outro atributo. Os princi­
pais beneficiarios do rcspeito entao seriam, em urn periodo, os 
membros superiores da escala social, os idosos em outro perio­
do, as mulheres num terceiro, e assim por diante. Ou as opi­
nioes podem mudar quanto anatureza ou qualidade do respei­
to, passando do ponto de vista de que a demonstrac;;ao externa 
constitui respeito ao ponto de vista oposto, de que 0 respeito e 
apenas uma questao de sentimentos. Ou, ainda, as opinioes 
podem mudar num ambito diferente, sobre se 0 respeito tem 
algum valor quando se dirigc a grupos ou quando deeorrc de 
atributos naturais, e nao a individuos em atenc;;ao asua realiza­
c;;ao pessoal. Se 0 respeito do primeiro tipo nao mais parece 
importante, ou mesmo parece errado, entao uma nova interpre­
tac;;ao da prMica vai se fazer necessaria. As pessoas passarao a 
ver a finalidade da cortesi a quase como 0 inverso daquilo que 
era no comec;;o, no valor de formas impessoais de rela<;oes 
soeiais que, devido a sua impessoalidade, nao exigem nem ne­
gam nenhum significado mais vasto. A cortesia passara entao 
a ocupar urn lugar menor e diferentc na vida social, e ja se 
pode antever 0 fim da fabula: a atitude interpretativa perdcra 
sua forc;;a, e a pratica retornara ao estado mecanico e estatico 
que tinha de inicio. 
60 o IMPERIO DO DIRE1TO 
Urn prirneiro exarne da interpreta~ao 
Este eum exame rapido, a partir da perspectiva hist6rica, 
de como a tradic;:ao da cortesia muda com 0 passar do tempo. 
Precisamos agora considerar mais de pelto a dinamica da trans­
forrnac;:ao, observando os tipos de juizos, decisoes e argumen­
tos que produzem cada res posta individual a tradic;:ao, as res­
postas que coletivamente, durante longos period os, produzem 
as grandes mudanc;:as que cxaminamos primeiro. Precisamos 
de informac;:oes sobre 0 modo como a atitude que chama de in­
terpretativa funciona a partir do interior, do ponto de vista dos 
interpretes. Infelizmentc, mesmo um relato preliminar sera 
controvertido, pois, se uma comunidadc faz uso dos conceitos 
interprctativos, 0 proprio conceito de interpretac;:ao sera um 
deles: uma teoria da interpretac;:ao e uma interpretac;:ao da pni­
tica dominante de usar conccitos intcrpretativos. (Desse modo, 
qualquer relato apropriado da intcrpretac;:ao devc scr verdadei­
ro para consigo mesmo.) Neste capitulo, apresento uma abor­
dagem te6rica particulannente destinada a cxplicar a inter­
pretac;:ao de praticas c cstruturas sociais como a cortesia, e de­
fcndo essa abordagem contra algumas objec;:6es fundamentais 
e aparentemcnte vigorosas. Receio que a discussao nos leve 
muito al6m do direito, ao dominio das controversias sobre in­
terpretac;:ao das quais sc tem ocupado sobretudo os criticos li­
tcrarios, os cientistas sociais e os fil6sofos. Mas, se 0 direito e 
um conccito interpretativo, qualqucr doutrina digna desse n6­
me deve assentar sobrc alguma concepc;:ao do que einterpreta­
c;:ao, e a analise da interpretac;:ao que claboro e defendo neste 
capitulo constitui a base do restante do livro . A l11udanc;:a de di­
rec;:ao ccssencial. 
Intcrpretar uma pnitica social eapcnas uma forma ou oca­
siao de interpretac;:ao. As pessoas interprctam em muitos con­
textos difercntes e, para comec;:ar, dcvcmos procurar entender 
em que esses contcxtos diferem. A ocasiao mais conhecida de 
interpretac;:ao tao conhecida quc mal a reconhecemos como 
tal - ca conversac;:ao. Para decidir 0 que uma outra pessoa dis­
se, interpretamos os sons ou sinais que cia faz . A chamada in-
CONCEITOS DE INTERPRETA C;AO 61 
terpretac;:ao cientifica tem outro contexte: dizemos que um cien­
tista comec;:a p~r coletar dados, para depois interpreta-Ios. Ou­
tro, ainda, tem a interpretac;:ao artistica: os criticos interpretam 
poemas, pec;:as e pinturas a fim de justificar algum ponto de 
vista acerca de seu significado, tema ou prop6sito. A forma de 
interpretac;:ao que estamos estudando - a interpretac;:ao de uma 
pratica social - e semeJhante a interpretac;:ao artistica no se­
guinte senti do: ambas pretendem interpretar algo criado pelas 
pessoas como uma entidade distinta delas, c nao 0 que as pes­
soas dizem, como na intcrpretac;:ao da conversac;:ao, Oll fatos 
nao criados pelas pessoas, como no caso da interpretac;:ao cien­
tifica. Vou concentrar-me nessa semelhan<;a entre a interpreta­
c;:ao artistica e a interpretac;:ao de uma pratica social; atribuirei 
a ambas a designac;:ao de formas de interpretac;:ao "criativa", 
distinguindo-as, assim, da interpretac;:ao da conversac;:ao e da 
interpretac;:ao cientifica. 
A interpretac;:ao da conversac;:ao e intencional, e nao causal 
em algum sentido mais mecanico. Nao pretende explicar os 
sons que alguem emite do mesmo modo que um bi610go expli­
ca 0 coaxar de uma ra. Atribui significados a partir dos supos­
tos motivos, intenc;:5es e preocupa<;6es do orador, e aprcsenta 
suas conclus6es como afirmac;:5es sobre a "intcnc;:ao" deste ao 
dizer 0 que disse. Podemos afirmar que todas as form as de in­
terpretac;:ao tem por finalidade uma explicac;:ao intencional 
nesse sentido, e quc cssa finalidadc estabelece uma distinc;:ao 
entre a intcrpretac;:ao, enquanto um tipo de cxplicac;:ao, c a ex­
plicac;:ao causal em sentido mais amplo'? Essa dcscri<;ao nao 
me parcce, aprimeira vista, ajustar-se a interpretac;:ao cicntifi­
ca, e poderiamos nos sentir forc;:ados, se nos deixarmos atrair 
pel a id6ia de que toda illterpretac;:ao genuina e intencional, a 
afirmar que a interpretac;:ao cientifica nao e, de modo algum, 
interpretac;:ao de verdade. Poderiamos dizer que a cxpressao 
"interpretac;:ao cientifica" c apenas uma metafora, a metafora 
de dados que "fa lam" com 0 cientista do mesmo modo que uma 
pessoa fala com outra; cIa mostra 0 cientista como algu6m que 
se empenha cm entender aquilo que os dados tenta111 dizer-Ihc. 
Poderiamos perfeitamcnte acreditar quc e possivel descartar a 
62 63 oIMPERIO DO DIREITO 
metafora e falar com precisao, simplesmente retirando de nos­
sa descriyao final do processo cientifico a ideia de intenyao. 
Sera entao que a interpretayao criativa tambem nao passa 
de um caso metaf6rico de interpretayao? Poderiamos
dizer 
(para usaI' a mesma metafora) que, quando falamos de inter­
pretar poemas ou praticas sociais, estamos imaginando que 
eles nos falam, que pretendem dizer-nos alguma coisa, tal qual 
faria uma pessoa. Mas entao nao podemos descartar a metafo­
ra, como no caso da ciencia, explicando que na verdade temos 
em mente uma explicayao causal comum, e que a metafora de 
intenyao e significado e apenas decorativa. Pois a interpreta­
yao das prMicas sociais e das obras de arte diz respeito, essen­
cialmente, a intenyoes, nao a meras causas. Os membros da 
comunidade ficticia nao tencionam encontrar, quando inter­
pretam sua pratica, os diversos determinantes econ6micos, psi­
col6gicos ou fisiol6gicos de seu comportamento comum. Tam­
pouco um critico tem por objetivo uma dcscriyao fisiol6gica 
de eomo um poema foi escrito. Precisamos, pOlianto, substituir 
a metafora das praticas e das imagens falando com suas pr6­
prias vozes, de modo a reconhecer 0 lugar fundamental da in­
tenyao na interpretayao criativa. 
Ba uma soluyao muito conhecida. Ela descarta a metafora 
de poemas c imagcns que nos falam, ao insistir em que a in­
terprctayao criativa e apenas um caso especial de interpreta­
yao convcrsacional. Ouvimos nao as obras de arte em si, como 
sugere a metafora, mas sim os seres ,humanos que sao .,'?eus 
autorcs. A interpretayao criativa pretende decifrar os proposi­
tos ou intenyoes do autor ao escrever detenninado romance ou 
conservar uma tradiyao social especifica, do mesmo modo que, 
na convcrsayao, pretendemos perceber as intenyoes de um 
amigo ao falar como fala2 Defenderei aqui uma soluyao dife­
2. Nas paginas seguintes avalio 0 pn:ssuposto de quo: a interpreta<;ao 
crialiva devc scr inlerpreta<;30 eonversaeional, sobreludo ao diseutir uma 
ideia familiar aos te6rieos da litcralura: de que interprctar uma obra literaria 
signifiea reeapturar as intell<;i5es de seu autor. Mas esse pressuposlO tern uma 
hase mais geral na literalura lilos6fica da illterpreta<;1io. Wilhelm Oilthey, urn 
fil6sofo alemao quc roi espeeiallllcnle influenle em dar forma ao debate sobre 
CONCEITOS DE INTERPRETAc;:JO 
rente: a de que a interpretayao criativa nao e conversaeional, 
mas construtiva. A interpretayao das obras de arte e das prati­
cas sociais, como demonstrarei, na verdade, se preocupa es­
sencialmente com 0 proposito, nao com a causa. Mas os pro­
p6sitos que estao em jogo nao sao (fundamentalmente) os de 
algum autor, mas os do interprete. Em linhas gerais, a interpre­
tayao construtiva e uma questao de impor urn propos ito a urn 
a objetividade nas eicneias soeiais, usou a palavra verstehen para deserever 
especifieamente 0 tipo de entendimento que adquirimos ao saber 0 que outra 
pessoa quer dizer com aquilo que diz (poderiamos dizer que esse (: um senti­
do da eomprecnsao no qual entellder alguem impliea ehegar a um entendi­
mento com tal pessoa), em vez de deserever todas as possivcis manei ras ou 
modalidades de entender seu eomportamento ou sua vida mental. (Vel' 
Meaning in History: Dilthey 's Thought on Ilisto/]' lIl1d Society [H. P. Rickman, 
trad. C org., Londres, 1961 ].) Oilthey eoloeou a quest ao de saber se e como 
esse tipo de cnlendimenlo e passivel a despeito das diferen<;as eulturais; 
eoeontrou a ehavc para seu problema na conseicneia "historica": 0 estado de 
espirito aleal1<;ado pOI' rams e dedieados intcrprdes atraves da reflexiio sobre 
a estrutura c as eategorias gerais de suas pr6prias vidas em um nivel de abs­
tra<;ao tao alto que se pode supor, pelo menos como uma hip6lese metodol6­
giea, que perduram no tempo. Os mcstres eontcmporancos que deram eonli­
nuidadc ao debate, como Gadamer e Habermas, tomam dire<;oes diferentes. 
Gadamer aeha que a solu<;iio de Dilthey pressupoe 0 aparato hegeliano que 
Dilthey ansia va por exorcizar. (Vcr H. G. Gadamer, 7"utl1 and Me/hod, em 
particular pp. 192-214 [traduC;30 inglcsa, 2~' cd., Londres, 1979].) Aeredita 
que a eonseicneia hist6riea arquimediana que Oilthey imaginoll possivel, 
livre daquilo que Gadamer chama, no sentido especial que oil ao termo, de 
preeoneeilos, (: imposs ivel, que 0 m{lximo que podemos esperar alean<;ar e 
uma "eonscicneia hist6riea efetiva" que prelende ver a historia nao a partir 
de nenhum ponto de vista especifieo, mas sim eompreender como nosso pr6­
prio ponto de visla e influeneiado pclo mundo que desejama$ interpretar. 
Habermas, pOI' sua vez, eriliea Gadamer pOI' sua visao demasiado passiva de 
que a dire<;30 da comuniea<;ao e de mao uniea, que 0 intcrprele deve esfor<;ar­
se par aprender e aplicar aquilo que interpreta com base no prcssuposto de 
que esta subardinado a seu aulor. I-Iabermas [az a ohserva<;ao crucial (que 
aponta mais para a intcrprcta<;aa eonsl ruliva do que para a eonversaeional) de 
que a interprelac,:ao pressupoe que a aulor poderia aprender com 0 int6rprete. 
(Vel' Jurgen Haberlllas, I, The Theory o/Commul1icalive Action [trad . de T. 
McCarthy, Boston, 19S4].) 0 interlllimlvel debate prosscguc, dominado espe­
eialmenle pelo pressuposto que deserevo no texto: de que a lmiea allernaliva 
ao entendimenlo eausa-e-efeito dos falos sociais (: 0 entendimenlo conversa­
eional com base no modelo do verstellen. 
64 o IMPERIO DO DIREITO 
objeto ou pr<itica, a fim de torna-lo 0 melhor exemplo possivel 
da forma ou do genero aos quais se imagina que pertenc;am. 
Dai nao se segue, mesmo depois dessa breve exposic;ao, que 
um interprete possa fazer de uma pratica ou de uma obra de 
arte qualquer coisa que desejaria que fossem; que um membro 
da comunidade hipotetica fascinado pela igualdade, por exem­
plo, possa de boa-fe afirmar que, na verdade, a cortesia exige 
que as riquezas sejam compartilhadas. Pois a hist6ria ou a 
forma de uma pr<itica ou objcto exerce uma coen;ao sobre as 
interpretac;oes disponiveis destes ultimos, ainda que, como ve­
rcmos, a natureza dessa coen;:ao deva ser examinada com cui­
dado. Do ponto de vista construtivo, a intcrpretac;ao criativa e 
urn caso de interac;ao entre prop6sito e objeto. 
Segundo esse ponto de vista, urn participante que inter­
preta uma pnltica social propoe um valor a essa pnitica ao des­
crever algum mecanismo de interesses, objetivos ou principios 
ao qual, se supoe, que ela atende, expressa ou exemplifica. Mui­
tas vezes, talvez ate mesl110 quase sempre, os dados comporta­
mentais brutos da pratica- 0 que as pessoas fazem em quais 
circunsHincias -- vaG tornar indcterminada a atribuic;ao dc va­
lor: esscs dados serao compativeis com atribuic;ocs diferentes e 
antagonicas. Uma pessoa poderia ver nas pniticas da cortesia 
um meio de assegurar 0 respeito a quem 0 merec;a devido a sua 
posic;ao social ou outro atributo qualquer. Outra pessoa pode­
ria ver, com a mesma nitidez, urn meio de tornar as relac;oes 
sociais mais convencionais e, portanto, menos indicativas de 
juizos diferenciais de respeito. Se os dados brutos nao estabe­
lecem diferenc;as entrc essas interpretac;oes antagonicas, a op­
c;ao de cada interprete deve refletir a interpretac;ao que, de seu 
ponto de vista, atribui 0 maximo de valor apr<itica - qual delas 
e capaz de mostra-Ia com mais nitidez. 
Apresento essa exposic;ao construtiva apenas a titulo de 
analise da interprctac;ao criativa. Mas devcmos observar, de 
passagem, de quc modo a exposiC;30 construtiva poderia ser ela­
borada para se ajustar aos olltros dois contextos de interpreta­
c;ao que mencionci, para mostrar, assim, uma profunda relac;ao 
entre todas as formas de interpretac;ao. Para .entender a conver-
CONCEITOS DE INTERPRETA(:tfO 65 
sac;ao de outra pessoa e preciso que se usem expedientes e pres­
supostos, como 0 chamado principio de "caridade", que, em 
circunstancias norma is, tern 0 efeito dc transformar aquilo que 
a pessoa diz no melhor exemplo de comunicac;ao possiveP. E a 
interpretac;ao de dados na ci C: ncia faz urn grandc uso dc pa­
droes da teoria da construc;ao, como simplicidade, elegancia e 
possibilidade de vcrificac;ao, que refletem pressupostos con­
test<iveis e variaveis sobre os
paradigmas de explicac;oes, isto 
e, sobre quais caractcristicas tornam uma forma de explicaC;30 
superior aoutra·'. Portanto, a exposic;ao construtiva da interpre­
tac;ao criativa talvcz pudesse nos fornecer uma descric;ao mais 
geral da interpretac;ao em todas as suas fOl·mas. Diriamos, en­
tao, que toda interpretac;ao tenta tornar um objeto 0 mclhor 
possivel, como exemplo de algum suposto empreendimento, e 
que a interpretac;ao s6 assume formas diferentes em diferentes 
contextos porque empreendimentos diferentes cnvolvem dife­
rentes criterios de valor ou de SLlcesso. A interpretac;ao 3ltistica 
s6 difere da interprctac;ao cientifica porque julgamos 0 sucesso 
das obras de arte segundo crit6rios diferentes daqueles que uti­
lizamos para julgar as explicac;ocs de fcnomenos fisicos. 
Interpreta~ao e inten~ao do autor 
A exposic;ao construtiva da interpretac;ao, contudo, pare­
cera bizarra a muitos leitores, mesmo quando restrita a inter­
pretac;ao criativa ou, mais ainda, a interpretac;ao de praticas 
sociais como a cortesia. Irao faza-Ihe objcc;ocs pOl'que prefc­
rem a versao corrente da interpretac;ao criativa que ha pouco 
3. Ver W. V. O. Quine. Word and Object, 58-9 (Cambridge, Mass., 
1960). 0 prineipio de earidade capresentado e aplicado num contexto dire­
rente em Wilson, "Substance without Substrata", 12, Review (!!'Metapilysics , 
521-39 (1959). 
4. Vcr T. Kuhn. The Essen/ial T('nsioll: S<:lec!ed Studies in Scientific 
Tradition and Change. 320-51 (Chicago, 1(77); Kuhn, The Strttc!ure a/ Sciell­
tific Revolution (2:' ed., Chicago. 1970); K. Popper. The Logic III' Scientific 
Discovely (No va York , 1959). 
66 o IMPERIO DO DIREITO 
mencionei: de que a interpretayao criativa e apenas interpreta­
yao de conversayao dirigida a um autor. Eis uma declarayao 
que ilustra bem seus protestos: "Sem duvida as pessoas podem 
fazer afirmayoes do tipo que voce atribui aos mcmbros da co­
munidade hipotetica a proposito das praticas sociais que com­
partilham; sem duvida elas podem propor e contestar opinioes 
sobre como se devem entender essas pr<iticas e dar-lhes continui­
dade. Mas e uma grave confusao dar a esse ponto de vista 0 
nome de inlerpreta9iio, ou sugerir que, de certo modo, ele atri­
bua um sentido .it pratiea em si. Isso eprofundamente engana­
dor em dois sentidos. Primeiro, interpretar quer dizer tentar 
entender algo - uma afirmayao, urn gesto, um texto, um poe­
ma ou uma pintura, por exemplo - de maneira particular e es­
pecial. Signifiea ten tar descobrir os motivos ou as intenyoes do 
autor ao falar, representar, esc rever ou pintar como 0 fez . 
Assim, interpretar uma pratica social, como a pratica da corte­
sia, significa apenas diseernir as intenyoes de seus adeptos, 
uma por uma. Em segundo lugar, a interpretayao tenta mostrar 
o objeto da interpretayao - 0 comportamento, 0 poema, a pin­
tura ou 0 texto em questao - COm exatidiio, cxatamente como 
ele e, c nao como voce sugere, visto atraves de uma lente cor­
de-rosa ou em sua melhor luz. Isso signifiea recuperar as ver­
dadeiras intenyoes historicas de scus autores, e nao impingir os 
valores do intcrprete aquilo que foi criado pelos autores." 
Vou responder a essa objeyao por ctapas, e 0 esboyo de 
argumentayao que se segue poderia ser utiI, ainda que seja ne­
cessariamcnte condensado. Sustentarei primeiro que, mesmo 
considerando 0 objetivo da interprctayao artistica como uma 
recuperayao da intenyao de um autor, como recomenda a obje­
yao, nao poderemos fugir ao uso das estrategias de interpreta­
yao construtiva que a objeyao condena. Nao podemos evitar a 
tentayao de fazer do objeto artistico 0 melbor que, em nossa 
opiniao, ele possa scr. Tentarei demonstrar, em seguida, que se 
rea I mente considerarmos que 0 objetivo da interpretayao artis­
tica e a descoberta da intenyao do autor, isso deve ser uma con­
seqiiencia da aplicayao, .it arte, dos metodos da interpretayao 
construtiva, e nao da recllsa em recorrer a tais metodos. Sus­
67CONCEITOS DE INTERPRETA9AO 
tentarei , por ultimo, que as tecnicas da interpretayao conversa­
cional comum, nas quais 0 interprete procura descobrir as inten­
yoes ou significados de outra pessoa, seriam de qualquer modo 
inadequadas ainterpretayao de uma pratica social como a cOlte­
sia, pois e essencial aestrutura de tal pratica que sua interpreta­
yao seja tratada como algo diferente da compreensao daquilo 
qlle outros partieipantes querem dizer com as afirmayoes que 
fazem ao coloca-la em operayao. Segue-se que um cientista so­
cial deve participar de uma pratica social se pretende compreen­
de-la, 0 que e diferente de compreender seus adeptos. 
A arte e a natureza da inten~ao 
A interpretayao artistica consiste inevitavelmente em des­
cobrir as intenyoes de um autor? Descobrir as intenyoes de um 
autor e um processo factual independente dos valores do pro­
prio interprete? Comeyaremos pela primeira dessas perguntas 
e por uma afirmayao cautelosa. A interpretayao artistica nao e 
simplesmente uma questao de recuperar a intenyao de um au­
tor se por "intenyao" entendermos um estado mental conscien­
te, e nao se atribuirmos a afirmayao 0 significado de quc a 
interpretayao artistica sempre pretende identificar um pensa­
mento consciente especifico que coordenava toda a orquestra­
yao na mente do autor quando este disse, escreveu ou criou sua 
obra. A intenyao e sempre mais compIcxa e problematica. Por­
tanto, precisamos reformular nossa prime ira pcrgunta. Se, na 
arte, uma pessoa quer ver na interpretayao a recuperayao da 
intenyao de um autor, 0 que ela deve entender por "inten<;ao"? 
Assim rcformulada, essa primeira pergunta vai dar uma nova 
forma asegunda. Existe de fa to uma distinyao tao nitida , como 
supoe a objeyao entre descobrir a intenyao de um artista e en­
contrar valor naquilo que eIe fez? 
Precisamos primeiro lembrar uma observayao crucial de 
Gadamer, de que a interpretayao deve p/Jr em pratica uma in­
tenyao j 0 teatro nos oferece um exemplo elucidativo. Alguem • 
5. Ver Uadamcr, acima (n. 2). 
68 o IMPERIO DO DIREfTO 
que atualmente resolva produzir 0 mercador de Veneza deve 
eneontrar uma coneepGao de Shylock que possa evocar, para 0 
publico contemporaneo, 0 eomplexo significado que a figura 
de urn judeu tinha para Shakespeare e seu publico, e por esse 
motivo sua interpretaGao deve, de alguma maneira, unir dois 
periodos de "conscieneia" ao transpor as intenGoes de Shakes­
peare para uma eultura muito diferente, situada no termino de 
uma historia muito diferente6. Se eonseguir faze-lo , eprov3vc1 
que sua leitura de Shylock seja muito diferente da visao eon­
creta que Shakespeare tinha desse personagem. Sob eertos as­
pectos, poden:' ser 0 eontrario, substituindo desprezo ou ironia 
por simpatia, por exemplo, ou pode haver uma mudanGa de 
enfase que talvez tome a relar,:ao entre Shylock e Jessica muito 
mais importante do que aos olhos de Shakespeare como diretor 
da peGa7 A intenGao artistica c, portanto, complexa e estrutu­
rada: diferentes aspectos ou niveis de intenGao podem entrar 
em conflito da maneira que se segue. A fidelidade a cada uma 
das diversas opinioes concretas de Shakespeare sobre Shylock, 
ignorando 0 efeito que teria sua eoncepr,:ao desse personagem 
sobre 0 pLlblieo eontemporaneo, poderia configurar uma trai­
<;ao a seu proposito artistieo mais abstrato'. L "apliear" esse 
proposito abstrato a nossa situa<;ao emuito mais que um neu­
tro exercieio historico de reconstruGao de um estado mental 
anterior. De modo inevitavel, envolve as opinioes artisticas do 
proprio intcrprete exatamente como 0 sugere a cxplieaGao 
eonstrutiva da interpretaGao criativa, porque tenta eneontrar a" 
melhor maneinl de expressar, dado 0 texto em qllestao, gran­
des ambiGoes artiSlicas que Shakespeare nunca formulou ou, 
talvez, nem mesmo definiu eonscientemcnte, mas que sao pro­
dllzidas pOl' nos ao perguntannos como a peGa que de csereveu 
leria sido mais esc1areccdora ou convineente para sua epoea. 
(,. Dcvo est c cxcmplo a Thomas Grey.
7. Jonathan Mill cr cnf'alizoll () papcJ de .lessica em sua produyao de 
1069. 
8. Ess <l ql1Cs li\o 6 dcscnvolvida , no con(cx lO da inlcrprelUyao das leis e 
da C()lIs(itui <;~o , nos capilulos IX e X. Vcr larnbelll '/ (Ik ing Rights Seriously , 
cap. 5, e mcu li vro A Mafler o/Principle , cap. 2 (Cambridge. Mass ., 1985). 
69COtVCEfTOS DE fNTERPRETAC;AO 
Stanley Cavell adiciona um novo grau de complexidade 
ao mostrar de que modo ate mesmo as intenGoes eoncretas e 
detalhadas de um artista podem ser problematieas". Ele obser­
va que urn personagem do filme La strada, de Fellini, pode ser 
visto como uma refereneia a lend a de Filomela, e pergunta 0 
que preeisamos saber sobre Fellini para afirmar que a referen­
cia era inteneional (ou, 0 que e diferente, nao indeliberada). 
Ele imagina um dialogo com Fellini no qual 0 cineasta diz que, 
embora nunea antes tenha ouvido falar sobre essa lenda, ela 
reflete 0 sentimento que ele tinha aeerca do personagem du­
ninte as filmagens, isto e, que ele agora a aceita como parte do 
filme. Cavell diz que, em tais circunstancias, tende a tratar a 
refereneia como deliberada. A analise de Cavell e importante 
para nos, nao porque a questao agora e saber se ela c correta 
em seus detalhes, mas porque sugere uma coneepGao de inten­
Gao muito diferente da tosca eoncepGao de estado mental cons­
ciente. Segundo esse ponto de vista, uma intuiGao faz parte da 
intenGao do artisla quando se ajusta a seus propositos artisticos 
e os ilumina de tal modo que ele a reconheeeria e endossaria 
mesmo que ainda nao 0 tivesse feito. (POItanto, 0 teste do dia­
logo imaginario pode ser aplicado a autores mortos ha muito 
tempo, como deve ser se pretendemos que tenha alguma utili­
dade critica geral.) Isso introduz 0 senso de valor artistico do 
inter prete na reconstruGao da intenGao do artista pclo menos de 
uma mane ira comprobatoria, pois 0 julgamento que faz 0 in­
terprete sobre aquilo que 0 autor teria aeeito vai ser guiado por 
seu senso daquilo que 0 autor deveria ter aeeito, isto C, seu sen­
so de quais leituras tornariam a obra melhor e quais a lorna­
nam pior. 
A conversa imaginaria com Fellini eomer,:a com Cavell 
achando que 0 [ilme [icaria melhor se visto como incluindo 
uma refereneia a Filomela; Cavell supoe tambcm que Fellini 
poderia ser levado a compartilhar esse ponto de vista, a descjar 
tal leitura do filme e a ver que suas ambiGoes tem melhor re­
9. Stanley Cavell, MuSI We Mean What We Say? , cap. R (Nova York, 
1969). Comparar corn GadaJllcr, acillla (n. 2, pp. 39-55). 
70 o IMPERIO DODIREITO 
sultado admitindo essa intenc;:ao . A maioria das razoes que 
Cavell apresenta para fundamentar tal suposic;:ao sao as razoes 
dele para preferir sua propria leitura. Nao quero dizer que esse 
uso da intenc;:ao artistica seja uma especie de fraude , um disfar­
ce para 0 ponto de vista do interpretc. Pois essa conversa ima­
ginaria tem um importante papel negativo: em algumas cir­
cunstancias, um interprete teria bons motivos para supor que 0 
artista rejeitaria uma leitura que agrade ao intcrprete. Tambem 
nao quero dizer que devemos aceitar a id6ia geral de que a in­
terpretac;:ao consiste em recuperar ou reconstruir as inten<;6es 
de um determinado autor uma vez que abandonemos a concep­
c;:ao tosca do estado mental consciente. Hoje, muitos criticos 
rejeitam cssa ideia geral de maneira ainda mais sutil, e mais 
adiantc teremos de examinar de que modo essa querela persis­
tente deve ser entendida. No momento, pretendo apenas afir­
mar que a id6ia da inten<;ao do autor, quando se torna um me­
todo ou um estilo de interpretac;:ao, implica em si mesma as 
convicc;:6es artisticas do interprete: estas serao muitas vezes 
fundamentais para estabelecer aquilo em que, para tal intcrpre­
te, realmente consiste a intenc;:ao artistica desenvolvida. 
Podemos, se desejannos, usar 0 relata de Cavell para ela­
borar uma nova descric;:ao daquilo que fazem os cidadaos de 
minha imaginaria comunidade interessada na cortesia ao in­
terpretarem sua pnitica social, um relato que poderia ter pare­
cido absurdo antes desta discussao. Cada cidadao, diriamos, 
esta tentando descobrir sua propria intenc;:ao ao manter cssa 
pratica e dela participar - nao no sentido de recuperar seu es­
tado mental da ultima vez em que tirou 0 chapeu em sinal de 
respeito a uma senhora, mas no sentido de encontrar uma ex­
plicac;:ao significativa de seu comportamento que 0 fac;:a sen­
tir-se bem consigo mesmo. Essa nova descriGao da interpreta­
Gao social como uma conversa consigo mesmo, como comb i­
nac;:ao dos pap6is de autor e critico, sugere a importancia, em 
termos da interprctac;:ao social, do choque de reconhecimento 
que tem um papel tao importante nos dialogos que Cavell ima­
gina ter com os artistas. ("Sim, isso confere sentido ao que fa­
c;:o ao tirar meu chapcu; ajusta-se i\ noc;:ao que tenho de quando 
71CONCEITOS DE INTERPRETA9AO 
seria errado faze-lo, noc;:ao que ate entao nao fui capaz de des­
crever, mas que agora se torna possive!." Ou "Nao, nao faz 
sentido".) De outro modo, a nova descric;:ao nada acrescenta a 
minha primeira descric;:ao que possa mostrar-se util a nos. Re­
vela, apenas, que a linguagem da intenc;:ao, e pelo menos al­
gum aspecto da idcia de que a interpretaGao e uma questao de 
intenc;:ao, encontra-se ao alcance tanto da interpretac;:ao social 
quanto da interpretac;:ao artistica. Na id6ia de inten<;ao, nao 
existe nada que necessaria mente separe os dois tipos de inter­
preta<;ao criativa. 
Agora, porem, chegamos a um aspecto mais importante: 
ha, nessa id6ia, aJguma coisa que necessariamente as une. Por­
que, mesmo se rcjcitarmos a tese de que a interpretaGao criati­
va pretende descobrir alguma inten<;ao hist6rica real, 0 concei­
to de inten<;ao ainda assim oferece a estrutura formal a todo 
enunciado interpretativo. Quero dizer que uma intcrpretac;:ao e, 
por natureza, 0 relata de um proposito; cIa prop6e uma forma 
de vel' 0 que e interpretado - uma pratica social ou uma tradi­
c;:ao, tanto quanto um texto ou uma pintura -- como se este fosse 
o produto de uma decisao de perseguir um conjunto de temas, 
vis6es ou objetivos, uma dire<;ao em vez de outra. Essa estrutu­
ra 6 necessaria a uma interpreta<;ao mesmo quando 0 material 
a ser interpretado e uma pnitica social, mesmo quando nao 
existe nenhum autor real cuja mente possa ser investigada. Em 
nossa hist6ria imagimiria, uma interpreta<;ao da cortesia tent 
um ar intencional ainda que a inten<;ao nao possa ser atribuida 
a ninguem em particular, nem mesmo as pessoas em gera!. 
Essa exigencia estrutural, considerada como indcpendente de 
qualquer outra exigencia que ligue a interpreta<;ao as intenc;:6cs 
de um autor especifico, prop6e um estimulante desafio do qual 
nos ocuparemos mais adiante, em especial no capitulo VI. Por 
que valeria a pen a insistir na estrutura formal do prop6sito, da 
maneira como explicamos os textos ou as institui<;6es juridi­
cas, para alem do objetivo de recuperar alguma intenc;:ao auten­
tica atua!? 
I 
72 o IMPERIO DO DIREITO 
Intent;do e valor da arte 
Afirmci , ha pouco, que 0 metodo de interprcta<;ao artisti­
ca que se fundamenta na inten<;ao do autor e discutivel ate 
mesmo em sua forma mais plausivel. Muitos criticos afirmam 
que a interpreta<;ao liteniria deve ser sensivel a certos aspectos 
da literatura - os efeitos emocionais que ela cxeree sobre os 
leitores, ou 0 modo como sua linguagem foge a qualquer redu­
<;ao a um eonjunto especifieo de significados, ou a possibilida­
de de dialogo que cria entre 0 artista e 0 publico, por exemplo 
-- qucr esses aspectos fa<;am ou nao parte da inten<;ao do autor, 
mesmo no sentido eomplexo em que at6 0 momenta a cxami­
namos. E mesmo aqueles que ainda insistem em afirmar que a 
inten<;ao do artista deve ser decisiva quanto a "verdadeira" 
naturcza da obra divergem sobre 0 modo como essa inten<;ao 
deve scr reconstruida. Todas essas divergcncias sobre a inten­
<;ao e a arte sao importantes para nbs nao porque
devamos 
tomar partido - 0 quc 11ao se faz nccessario aqui -', mas porque 
devemos tcntal' compreender a natureza da discussao, aquilo so­
bre que rcalmente ha divergencia. 
Aqui esta uma resposta a essa questao. As obras de arte se 
apresentam a nos como portadoras- ou peIo menos assim 0 
pretendem - de um valor especifico que chamamos de esteti­
co: esse modo de apresenta<;ao faz parte da ideia mesma de tra­
di<;ao artistica. Mas 6 scmpre uma questao um tanto aberta, so­
bretudo na tradi<;ao critiea geral que ehamamos de "modernis" 
ta", saber on de se eneontra esse valor e ate que ponto ele se 
coneretizou. Os estilos gerais de interpreta<;ao sao, ou pelo 
menos pressupoem, respostas gerais a questao que, portanto, 
fieou em aberto. Sugiro, entao, que 0 argumento acadcmico 
sobre a inten<;ao do autor seja eonsiderado como um argumen­
to partieularmente abstrato e teorieo sobre onde se situa 0 va­
lor na artc. Assim, esse argumento descmpenha seu papel,jun­
tamente com argumentos mais concretos e valiosos, voltados 
principal mente para objetos particulares, nas praticas essen­
eiais que nos propicia a experiencia estetica. 
Essa maneira de ver 0 debate entre os criticos expliea por 
que alguns periodos de atividade literaria sao mais associados 
CONCEITOS DE INTERPRETA9AO 73 1"1 
do que outros com a inten<;ao artistica: sua cultura intelectual 
vincula 0 valor na arte mais firmemente ao proeesso de cria<;ao 
artistiea . Cavell observa que "na arte moderna, 0 problema da 
inten<;ao do autor ... assumiu um papel mais visivel, em nossa 
aeeita<;ao de suas obras, do que em pcriodos anteriores", e que 
"a pnitica da poesia se transforma nos seeulos XIX e XX de tal 
modo que as questoes de inten<;ao ... sao impostas ao lei tor 
pelo proprio poema"'O. Essa mudan<;a reflete e eontribui para 0 
desenvolvimento, naqueles periodos, da eonvie<;ao romantiea 
de que a alte tem 0 valor que tem - e concretiza esse valor em 
objetos e eventos cspecifieos - porque e quando enearna 0 ge­
nio criador individual. 0 predominio dessa coneep<;ao do valor 
da arte em nos sa cultura explica nao apenas nossa preoeupa<;ao 
com a inten<;ao e a sineeridade, mas muito mais ·- nossa obses­
sao com a originalidade, por exemplo. Assim, nosso estilo de 
interpreta<;ao dominante fixa-se na inten<;ao do autor, e as dis­
cussoes, no interior desse esti/o, sobre 0 que e, mais preeisa­
mente, a inten<;ao artistica refletem duvidas e divergencias 
mais afinadas sobre a natureza do genio criador, sobre 0 papel 
do conscientc e do inconseiente, e sobre 0 que hfl de instintivo 
em sua composi<;ao e expressao. Alguns critieos que divergem 
mais explicitamente do estilo autoral, pois enfatizam os valo­
res da tradi<;ao e da continuidade nos quais 0 lugar de um autor 
muda amcdida que a tradi<;ao se constroi, defendem uma in­
terpreta<;ao retrospectiva quc faz a melhor leitura da obra de­
pender daquilo que foi eserito um seculo mais tarde". Desafios 
ainda mais radicais, que insistem na importiincia das conse­
quencias soeiopoliticas da arte, ou da semantica cstruturalista 
ou desconstrueionista, ou que insistcm na narrativa construida 
entre 0 autor e 0 leitor, ou que pareccm rejeitar por completo a 
atividade interpretativa, recorrem a concep<;oes muito diferen­
tes do lugar em que de fato sc encontra 0 valor conceitualmen­
te pressuposto da arte. 
10. Cavell, acim:l (n. 9, pp. 22R-9). 
II. Vcr T. S. Eliot, "Tradition and the Individual Talent", Selected 
Essays (Nova York, 1(32). 
74 o IMPERIO DO DIREITO 
Essa exposic;ao da complexa interac;ao entre a interpreta­
r,:ao e outros aspectos da cu)tura e perigosamente simplista; 
prctcndo apenas sugerir como a discussao sobre a intenc;ao na 
interpretac;ao, situada na pratica social mais ampla de discus­
sao do modo de avaliar a arte, pressupoe, ela mesma, 0 objeti­
vo mais abstrato da interpretac;ao construtiva, visando tirar 0 
melhor proveito daquilo que e interpretado. Preciso ter cuida­
do para que nao me entendam mal. Nao estou afirmando que a 
teoria da interpretac;ao artistica com base na intenc;ao do artista 
seja errada (ou certa), mas que, certa ou errada, essa qucstao e 
aquilo que ela significa (ate onde seja possivel refletir sobre 
essas questoes no ambito de nossa tradir,:ao critica) dcvem vol­
tar-se para a plausibilidade de alguma hip6tese mais funda­
mental sobre a razao por que as obras de arte tcm 0 valor que 
sua aprcsentac;ao pressupoe. Tampouco quero dizer que 0 criti­
co empenhado em rcconstituir as intenr,:ocs de Fellini ao reali­
za r La strada deva ter em mente, enquanto trabalha, alguma 
teoria que ligue a intenc;ao ao valor estetico: a intenc;ao critica 
nao e urn estado mcntal mais do que a intenc;ao artistica. Nao 
estou prctendendo afirmar, tambem, que se 0 critico relatar es­
sa intenc;ao como sc cia incluisse uma reelaboraC;ao de Filo­
mcla, cmbora isso nunca tenha sido admitido por Fellini, cle 
deve ter conscicncia de estar pensando que 0 filme sera melhor 
sc intcrpretado dessa maneira . Quero dizer, apenas, que nas cir­
cunstancias habituais da critica, devemos ser capazes de atri­
buir-lhe tal ponto de vista, do mesmo modo que em geral atri­
buimos convicc;ocs as pessoas, se quisermos entender suas 
afirmac;oes como interpretativas, e nao, por exemplo, como 
zombeteiras ou enganadoras l2 • Nao nego 0 que e6bvio, isto e, 
12. Cireunsliincias incomuns ausentes. Imagine esta sequencia: um cri­
ti co insistc em que, embora 0 proprio l'cllini nan se tcnha dado conla enquan­
to filmava, a ITlclhor rnaneira de interprclar La strada 6 atravcs on hisloria de 
FiJoInela. Em segu ida 0 cri lieo acrcscenla que 0 /ilme, ass im cnlcnd ido, e 
parlicularmcnle banal. Ficamos scm saber por que cle faz tal interprela9ao. 
Nao quero dizer que IOcJo lipo de alividade que chamamos de interpreta9ao 
pretenda fazer 0 mclhor daquilo que in tcrprcta - uma inlcrprela930 "eienti fi­
ca" do Holocausto nao leillar ia mostrar os motivos dc Hitler sob 0 ponto de 
CONCEITOS DE INTERPRETAr;AO 75 
que os interpretes pensam no ambito de uma tradic;ao interpre­
tativa a qual nao pod em escapar totalmente. A situar,:ao inter­
pretativa nao e um ponto de Arquimedes, nem isso esta sugeri­
do na ideia de que a interpretac;ao procura dar ao que e inter­
pretado a melhor imagem possivel. Recorro mais uma vez a 
Gadamer, que acerta em cheio ao apresentar a interpretar,:ao 
como algo que reconhece as imposir,:ocs da hist6ria ao mesmo 
tempo que luta contra elas!.l. 
lriten~oes e praticas 
Em rcsposta aobjec;ao que apresentei ao iniciar esta dis­
cussao, afirmo que em nossa cultura a interpretac;ao artistica e 
uma interpretac;ao construtiva. A grande questao sobre ate que 
ponto a melhor interprctac;ao de uma obra de arte devc ser fiel 
aintenc;ao do autor volta-se para a questao construtiva de saber 
se a accitar,:ao dessa exigencia permite que a interpretac;ao 
aprimore ao maximo a experiencia ou 0 objeto artisticos. Os 
que admitem essa possibilidade, por acharem que 0 genio e a 
essencia da arte, ou por a lguma outra razao, devem fazer uma 
avaliac;ao mais detalhada do valor artistico ao decidirem qual 
e, de fato, a intenc;ao pertinente ao autor. Devemos, agora, exa­
vista mais atracnte, assim como algue.n que tentasse mostrar os efeilos scxis­
tas de uma hisl6ria cm quadrinhos nao se empenharia cm cncontrar uma in­
terpreta9iio niio-scxista - , mas apenas que assim sao as eoisas nos casos nor­
mais ou paradigmaticos de interpreta9ao eria ti va. Algucm poderia tenlar 
desacreditar urn escri tor ao mostrar sua obra naqu ilo que ela tem de pior, nao 
de melhor, c natural mente apresentaria seu argumento como uma inlcrpreta­
930, uma afirma9lio sobre 0 que "rcalmenlc e" a obra do eseritor em questao. 
Se 0 crilico real mente acredila que ncnhuma outra intcrpreta<;1io mais favon\­
vel se ajusta tao bem, seu argumento se cnquadra cm minha dcscri<;ao. Mas 
suponhamos que ele nao acredite, C esteja omitindo uma intcrprcta<;flo mais 
atraente, que tambcm cacei tavcl tendo-sc em vista
0 lex to. Ncsse caso, sua 
estrategia edepcndente da avalia<;ao normal , pois ele s6 sera bem-succdido sc 
seu publico nao pcrccber scu vcrdadeiro objetivo; somcnte se aereditar quc 
de tentou produzir a mclhor intcrprcta9ao possi ve l. 
13. Gadamer, acima (n. 2). 
76 o IMPERIO DO DIREITO 
minar a obje~ao do modo como ela se apliea espeeifieamente a 
outra modalidade de interpreta~ao criativa, a interpreta<;:ao das 
pnitieas e estruturas soeiais. Como poderia essa forma de in­
tcrprcta~ao pretendcr dcscobrir algo como a intcn~ao dc um 
aut or? Observamos um sentido no qual alguem poderia cogitar 
tal possibilidade. Um participante de uma pratica social pode­
ria pensar que a interpreta<;:ao de sua prMica significa desco­
brir suas proprias inten~5es no sentido que descrevi . Mas essa 
hipotese nao faz frente aobje~ao , pois a obje~ao sustenta que a 
interpreta<;:ao deve ser neutra, e que, portanto, 0 interprete deve 
tentar descobrir os motivos e propositos de outra pessoa. Que 
sentido podcmos dar a essa sugestao no contexto da interpreta­
~ao social? 
Existem duas possibilidades. Alguem poderia dizer que 
interpretar uma pratiea social significa deseobrir os prop6si­
tos ou intel1<;:oes dos outros participantes da pratiea, os cida­
daos da hipotetiea eomunidade, por exemplo. Ou que significa 
descobrir os prop6sitos da comunidadc que abriga essa prati­
ea, coneebida .como tendo, ela mesma, alguma forma de vida 
mental ou de eonsciencia de grupo. A primcira dessas suges­
toes parece mais atraente, por ser a menos misteriosa. Mas e 
excluida pela estrutura interna de uma pratica social argumen­
tativa, pois e uma caracteristica de tais pniticas que uma afir­
ma~ao intcrprctativa nao seja apenas lima afirma~ao sobre 
aquilo que outros interpretes pensam. As praticas sociais sao 
compostas, sem dllvida, pOl' atos individuais . Muitos desses 
atos tem por objetivo a comunica~ao e, pOl'tanto, convidam a 
seguinte pcrgunta: "0 que clc quis dizer com isso?", ou "Por 
que ele disse isso exatamente naquelc momento?" Se um mem­
bro da comunidade hipotetica diz a outro que a institui<;ao 
exige que se tire 0 chapeu diantc dos superiores, torna-se per­
feitamente sensa to fazer tais perguntas, e responde-las seria 
tentar compreender tal pessoa da maneira quc 6 usual na inter­
preta<;:ao conversacional. Mas uma pdltica social cria e pressu­
poc uma distin<;:ao crucial entre interpretar os atos c pcnsamen­
tos dos participantes um a um, daquela maneira, e interpretar a 
pratica em si, isto e, interpretar aquilo quc fazcm coletivamen-
CONCEITOS DE INTERPRETAr;AO 77 
teo Ela pressupoe essa distin~ao porque as afirma<;:oes e os ar­
gumentos que os participantcs apresentam, autorizados e esti­
mulados pela pratica, dizem respeito ao que ela quer dizer, e 
nao ao que cles querem dizer. 
Essa distin~ao nao teria importancia efetiva se os partici­
pantes de uma pra.tica sempre estivessem de acordo quanto a 
melhor interpreta~ao dela. Mas eles nao concordam, pelo me­
nos em detalhes, quando a atitude interpretativa e intensa . De­
vem, na verdade, concordar sobre muitas coisas para poderem 
compartilhar uma pnitica social. Devem compartilhar um voca­
b.ulario: devem ter em mente mais ou menos a mesma coisa 
quando mencionam chapcus ou exigencias. Devem compreen­
der 0 mundo de maneira bastante parecida, e ter interesses e 
convic~oes suficientemente semelhantes para reconhecer 0 sen­
tido das afirma~oes de todos os outros, para trata-Ias como afir­
ma~oes, nao como meros ruidoso Isso significa nao apenas usar 
o mesmo dicionario, mas compartilhar aquilo que Wittgenstein 
chamou de uma forma de vida suficientemente concreta, dc tal 
modo que um possa encontrar sentido c propos ito naquilo que 0 
outro diz e faz, ver que tipos de cren~as e de motivos dariam um 
sentido a sua dic~ao, a seus gcstos, a seu tom de voz, e assim 
por diante, Devem, todos, "falar a mesma lingua" em ambos os 
sentidos da expressao. Mas essa semelhan<;:a de interesses e 
convic~oes so deve manter-sc ate um certo ponto: deve ser sufi­
cientemente densa para permitir a vcrdadeira divcrgencia, mas 
nao tao densa que a divergencia nao possa manifcstar-se. 
Portanto, cada um dos adeptos de uma pnltica social devc 
estabelccer uma distin~ao entrc tentar decidir 0 que outros 
membros de sua comunidadc pensam quc a pratica exigc, e 
tentar decidir, para si mesmo, 0 que cia rcalmente requer. 
Uma vez quc s~ trata de questoes difercntes, os mctodos inter­
pretativos que cle usa para responder a esta ultima questao 
nao podem scr os metodos da interpreta~ao convcrsacional, 
dirigida a individuos um a um, que usaria para responder a 
primeira. Um cicntista social que sc oferece para intcrpretar a 
pratica deve estabelecer a mesma distin~ao. Se assim 0 dese­
o IMPERIO DO DJRElTO78 
jar, ele pode dedicar-se apenas a reportar as diversas opinioes 
que diferentes membros da comunidade tem a respeito daqui­
10 que a priitica exige. Mas isso nao configuraria uma inter­
prctac;ao da pn,\tica em si; se de se dedicar a esse outro projc­
to, deve abrir mao do individualismo metodologico e empre­
gar os m6todos que os que estao submetidos a sua am\lise L1sam 
para formar suas pr6prias opinioes sobre aquilo que a cortesia 
realmente exige. Ele devc, portanto, aderir a pratica que se 
propoe compreender; assim, suas conclusoes nao serao relatos 
neutros sobre 0 que pensam os mcmbros da comunidade, mas 
afirmac;oes sobre a cortesia que competem com as deles 14 . 
Que dizer da sugesiao mais ambiciosa de que a interpreta­
yao de uma pratica social e interpretayao conversacional diri­
gida acomunidade como um todo, concebida como uma enti­
dade superior? Os fil6sofos tem explorado a id6ia de uma cons­
ciencia co let iva ou de grupo por muitas razoes e em muitos 
contextos, alguns dos quais pertinentes ainterpretayao; discuto 
14. Ilabcrmas observa que a cicncia social difere da cicncia natural cxa­
tamcntc por eSla raziio. Afinna que, mesmo quando dcscartamos it coneepGao 
newtoniana da cicncia natural como cxplicaGao dos fcn6mcnos t<:oricamcnte 
neutros, cm favor da coneepG30 moderna de que a teoria dc UI1l cienlista 
detcnninara aquilo que ele vc como dados, ainda assim continua cxistindo 
Lima importante diferenGa entre a ciencia natural e a social. Os cientistas so­
ciais ja encontram scus dados pre-intcrprctados. Devcm compreendcr 0 com, 
portamcnto do modo como cste ja ccomprcendido pclas pessoas que lem tal 
cOlllportamcnto; um cicnlista social deve ser pclo i11cnos um participante 
"virtual" das pniticas que pretcndc descrcve r. Dcvc cstar pronto ajulgar, bCi11 
como a rcportar, as afirmaGoes quc fazci11 scus sujcitos, pois, a mcnos que 
possa julga-Ios, nao podent compreendc-Ios. (Vcr Habermas, acima, n. 2, pp. 
102-11.) Argumento no lexlo quc Ui11 eientisla social quc tente comprccnder 
uma prMica socia l argumcn!ativa eOlllo a pn\!ica da cortesia (ou, como afir­
marei, do dircito) dcvc parlicipar do espirito de seus participantcs, i11csmo 
quc sua participaGao seja apenas "virtual". Uma vcz que nlio prctcndcm inter­
pretar-se entre 5i it mancira eon versacional quando aprcscntam scus pontos dc 
vista sobre as verdadeiras exigcncias da cortesia, tampouco pode faze-Io ° 
cientista quando apresenta scus pontos dc vista. Sua interpretac,:ao da cortcsia 
dew contestar a deles e, portanto, ser ullla intcrpretaG30 construtiva, c nao 
conversacional. 
CONCEITOS DE INTERPRETAC;AO 79 
alguns deles em uma nota l5 . Mesmo que aceitemos a dificil on­
tologia dessa sugestao, contudo, ela e invalidada pelo mesmo 
argumento que e fatal a menos ambiciosa. A interpretayao 
conversacional e inadequada porque a pratica a ser interpreta­
da determina as condiyoes da interpretayao: a comunidade hi­
15. A ideia de uma consciencia social ou de grupo parcce oferecer uma 
fuga a uma seria dificuldade que, como pensam muitos, amca9a a possibilida­
de da interpretaGiio conversacional atraves dc culturas e epocas. Como pode­
mos esperar comprccndcr 0 que alguem escrevcu
ou pensou em uma cultura 
difcrente, muito tempo arras, ou 0 que suas praricas c instituiGoes sociais sig­
niticavam para ele? Nao podemos compreendc-Io a menos que vejamos 0 
mundo como eic 0 ve, mas nao podemos deixar dc ve-Io do modo como ja 0 
vemos, o modo como 0 cxprcssamllossa linguagcm e nossa cultura, c a partir 
desse pOlltO de vista suas aflrmaGocs podcm parecer tolas e imotivadas. (Para 
uma versao dcssc argumcnto cm um contcxto juridico, vc r I{obcrt Gordon, 
"Historicism in Lcgal Scholarship", 90 Yulc LuwJournall01 7, 1021 [1981].) 
Nao podcmos cspcrar aprccndcr 0 quc a palavra "casta" significa para pessoas 
que nLinca foram afctadas por cia, assim como nao podcmos comprccnder 
alguem quc afirma cstar sofrcndo c nao so nao sc importa, como tamb6m nao 
entende pOl' que algucm devcria sofrer. Contudo, 5e pudcrmos accitar quc as 
culturas c as 6pocas podcm ter lima esp6eic de co nscicncia duradoura, c que a 
propria historia tem sua vida mental abrangcntc, as pessoas dc um periodo 
podem csperar comprecndcr as de oulro, po is todas participam de uma cons­
eicncia comum com signiticados duradouros quc compartilhai11. Essa ambi­
eiosa id6ia scpara os aros con ve rsacionais dc dctenninadas pessoas, cxpres­
sando scus intcresses c pressupostos individuais, 0 que exprime os prop()sitos 
e motivos de unidacles sociais mais amplas, cm ultima instancia da propria 
vida (lll da mente. 
Nao posso cliscutir aqui a olltologia do cspirito dc grupo ou a va lidadc 
cia sugcstao dc que clc ofcreec uma soluc,:ao ao problcma do isoiamcilto cultu­
ral. (Vcr (lcima, n. 2, as citmilics de Dilthcy, Gadamcr c Habcrmas.) Valc assi­
nalar, contu<io, que 0 problcma sera dificil c amcac;ador somentc se 0 que 
estiver em qucstao for a interprerac;ao conversacional , c nao a interpretaGao 
construriva. Quando {:; convcniente adotar a atitudc intcrprctativa quc descre­
vo no tcxto com rclaG30 a alguma cultura difcrentc (vel', por cxcmplo, a dis­
cussao dos sistemas juridicos pcrvcrsos e estrangciros, no capitulo Ill), tcnta­
mos comprcc ndc-Ia nan Clll termos convcrsacionais, mas antes faz<:ndo dcla 0 
melhor possivcl, dados os nossos propositos c nossas convicGoes. Se pensar­
1110S que esse objctivo exige que descubramos ou adotemos as cOllvicGoes 
reais - que pockriam nao ser as nossas <los protagonistas historicos, 0 pro­
blema do isolalllcnto continua existindo. (:: possivcl que nao eonsigamos, de 
maneira sCllsata, at ribuir a Shakespeare ncm mcsillo a intenc,;f1o rclativamcnte 
o IMPERIO DO DIREITO 80 
potetica insiste em que interpretar a cortesia nao se reduz a 
uma questao de descobrir 0 que uma pessoa em particular pen­
sa sobre ela. POl·tanto, mesmo supondo que a comunidade e 
uma pessoa distinta, com opinioes e convicyoes proprias, al­
gum tipo de consciencia de grupo, esse pressuposto apenas 
acrescenta it historia uma outra pessoa cujas opinioes urn inter­
prete deve julgar e contestar, nao simplesmente descobrir e re­
portar. Ele deve ainda estabelecer uma distin<;ao, entre a opi­
niao que a consciencia de grupo tern sobre aquilo que eexigi­
do pela cortesia, que ele pensa poder descobrir ao reflctir sobre 
seus motivos e prop6sitos distintos , e aquilo que cle, 0 inter­
prete, pensa quc a cortesia realmente exige. Ele ainda precisa 
de um tipo de metodo interpretativo que possa usar para por it 
prova 0 julgamcnto daquela entidade, uma vez descoberto, e 
esse metodo nao pode consistir numa cOllversa<;ao com essa 
entidade, ou com qualquer outra coisa. 
Come<;amos essa longa discussao cstimulados pOl' uma 
importante objc<;ao: de que a descri<;ao cOllstrutiva da interpre­
ta<;ao criativa eerrada porquc a intcrpreta<;ao criativa esempre 
interpreta<;ao conversacional. No caso da interpreta<;ao das 
pr<lticas sociaif>, essa obje<;ao c ainda mais inadequada que no 
caso da intcrpreta<;ao artistica. A descri<;ao cOllstrutiva deve de­
frontar com outras obje<;oes, em particular com a obje<;ao que 
examinarei mais adiante, neste capilulo: de que a interpreta<;ao 
construtiva nao pode ser objetiva. Mas devemos estudar um 
pouco mais esse modo de interpretayaO, antes de coloca-Io de 
novo apro va. 
ahstrata de provocar, entre seus eonteillporflncos, uma detcnninada reaGao 
complcxa a Shylock. Mas csscs prohlemas, quando scrios, se transformam em 
razoes para ariaptar as exigencias da intcrpretaGao construtiva aquilo que po­
dcmos alcanGar, para clJcontrar no tcatro algullla ciimens50 de valor que nos 
pcrmitJ !ilzer 0 mel hoI' possi ve l de 0 mereudo,. de Vel1eza (ou dos anteceden­
tes germallicos do ciireito consuetudiJ1ilrio) scm uma cspcculaGao duvidosa 
sobrc cstados de espirito aos quais nao tcmos accsso dcvido as barrciras eultu­
rai s. Pois na interprelaGiio eonstruliva as inlcnGocs hist6ricas nao sao os lunda­
Illcntos constituti vos <in cOlllprecns~o interpretativa . A incapacidade de rccu­
peni-Ias nao eum dcsastrc intcrpretativo, pois cxistcll)outras maneiras, quuse 
sempre muito mclhores, de cneonl.rar va lor nas traciiGiics as quais aderimos. 
CONCEITOS DE INTERPRETA C;A-O 81 
Etapas da interpreta~ao 
Precisamos eomeyar a refinar a interpreta<;ao construtiva, 
transformando-a em um instrumento apropriado ao estudo do 
direito enquanto pr<itiea social. Teremos de estabelecer uma dis­
tin<;ao analitica entre as tres eta pas da interpreta<;ao que apre­
sentaremos a seguir, observando como sao necessarios, em 
uma comunidade, diferentes graus de consenso para cada eta­
pa quando se tem em vista 0 florescimento da atitude interpre­
tativa. Primeiro, deve haver uma etapa "pre-interpretativa" na 
qual sao identificados as rcgras e os padroes que se conside­
ram fornecer 0 conteLldo experimental da pratica. (Na interpre­
ta<;ao de obras I itenlrias, a etapa equivalente e aquela em que 
sao textual mente identifieados romances, pe<;as, etc., isto e, a 
etapa na qual 0 texto de Mohy Dick eidentificado e distinguido 
do texto de outros romances.) Coloco "pre-interpretativo" en­
tre aspas porquc, mesmo nessa etapa, algum tipo de interpreta­
c.;ao se faz necessario. As regras socia is nao tem rotlilos que as 
identifiquem. Mas epreciso haver um alto grau de consenso ­
talvez uma cOIllLlnidade interpretativa seja bem definida como 
I1ccessitando de conscnso ncssa etapa - . sc se espera que a ati­
tude interpretativa de frutos, c podemos, portanto, nos abstrair 
dessa etapa em nossa analise ao pressupor que as elassi fica­
<;oes que ela nos oferecc sao tratadas como um dado na refle­
xao e argumenta<;ao do dia-a-dia. 
Em segundo lugar, deve haver uma etara interpretativa 
cm que 0 interprete se concentre nurna justifieativa geral para 
os principais elementos da pratica identificada na etapa pre­
interpretativa. Isso vai consistir numa argumenta<;ao sobre a 
conveniencia ou nao de buscar uma pratiea com essa forma gc­
rat. A justificativa nao precisa ajustar-se a lodos os aspectos 
ou caracteristicas da pn'ttiea cstabelecida, mas deve ajustar-se 
o suficiente para que 0 interprete possa ver-se como algucm 
que interpreta essa pratica, nao COIllO alguem que inventa uma 
nova pratiea"'. Par ultimo, deve haver uma etapa p6s-interprc­
16. Para uma discussao mais apruflll1dada dessa distin,:iio, e da inter­
pretaGao eriativa em tcrmos gerai s, vcr Dworkin, "Law as Interpretation", em 
82 o IMPERIO DO DIREITO 
tativa ou reformuladora aqual ele ajuste sua idcia daquilo que 
a pnitica "realmente" requer para melhor servir ajustificativa 
que ele aceita na etapa interpretativa. Um interprete da comu­
nidade hipotetica em que se pratica a cortesia, por exemplo, podc 
vir a pensar que uma aplica<;ao coerente da mclhor justificativa 
dessa pratica exigiria que as pessoas tirassem os chapeus tanto 
para soldados que voltam de uma guerra quanto para os no­
bres. Ou que ela exige uma nova exce<;ao a um padrao estabe­
lecido de deferencia : isentar os soldados das demonstra<;oes de 
cortesia quando voltam da guerra, por exemplo. Ou, talvez, ate 
mesmo que uma regra inteira estipulando defercncia para
com 
todo urn grupo (ou toda uma classe) de pessoas deva ser vista 
como urn erro aluz daquela justificativa 17. 
Em minha sociedade imagimlria, a verdadeira interpreta­
<;ao seria muito mcnos deliberada e estruturada do que sugere 
essa estrutura analitica. Os juizos interpretativos das pessoas 
scriam mais uma questao de "ver" de imediato as dimcnsoes 
de sua pratica, urn prop6sito ou objetivo nessa pratica, e a con­
seqiiencia p6s-intcrpretativa desse prop6sito. E "ver" desse mo­
do nao seria, habitual mente, mais penetrante do que 0 mero fato 
de concordar com uma interpreta<;ao entao popular em algum 
grupo cujo ponto de vista 0 interprete adota de maneira mais ou 
The Politics o/fnterpretatioll 2&7 (W . .I. T. Mitchell , org., Chicago, 1983); S. 
Fish, "Working on the: Chain Gang: Interpretation in t,.aw and Literature", 60 
Texas Law Review 373 (19R2); Dworkin, "My Reply to Stanley Fi sh (and 
Waltcr Henn Michaels): Please Don't Talk about Objectivity Any More", em 
The Politics 0/ Interpretation, 2R7; S. Fish, "Wrong Again", 62 Texas Law 
Review 299 (19R3) . Os artigos de Dworkin forum reeditados, ainda qu-c 0 
segundo estcja modificado c abreviado. Clll A Maller 14Pril1!'ip/e, caps. (i e 7. 
17. Poderiamos resumir essas tres ctapas na observal,:ao de que a intc:r­
prctac;ao proeura cstabelccer urn C4uilibrio entre a deseric;iio prc-interpretati­
va de uma priltica social c uma justificativa apropriada de tal pratica. Tomo a 
palavra "equilibrio" emprestada de Rawls, mas essa descri<;ao da interpreta­
Gao 6 difcrcntc de sLia deseri<,;~o do raeiocinio sobrc a justiC;<l. Elc contempla 0 
equilibrio cntre 0 que chama de "intuic;oes" sobre a justic;a e uma te:oria for­
mal que une c:ssas intuil,:ocs. Ver John Rawl s. A Theo,), ofJustice, pp. 20- 1, 
48-50 (Cambridge. Mass., 1971). A interpretac;ao dc uma pn\tica social procura 
equilibrio cntre ajllstificativa da pratica c ~lIas e:xigcncias p6s-intcrprctativas. 
(, DNCEITOS DE INTERPRETAr;XO 83 
menos automatica. Nao obstante, havera uma controversia ine­
vitavel, mesmo entre os contemporaneos, a prop6sito das exatas 
dimensoes da pratica que cles todos interpretam, e a controver­
sia sera ainda maior quanta amelhor justificativa para tal pra­
tiea. Pois ja identificamos, em nossa exposi<;ao prcliminar da 
natureza da interprcta<;ao, t1luitas maneiras de divergir. 
Podemos agora retomar nossa exposi<;ao analitica para 
compor urn inventario do tipo de convic<;oes, cren<;as ou supo­
si<;oes de que uma pessoa necessita para interpretar alguma 
coisa. Ela precisa de hip6teses ou convic<;oes sobre aquilo que 
evalido, enquanto parte da pratica, a fim de definir os dados 
brutos de suainterpretac;ao na etapa pre-interpretativa; a atitu­
de interpretativa nao pode sobreviver a menos que membros da 
mesma comunidade interpretativa compartilhem, ao menos de 
maneira aproximada, as mesmas hip6tescs a prop6sito disso. 
Ela tambem precisara dc convic<;oes sobre ate que ponto a jus­
tificativa qLle propoe na etapa interpretativa deve ajustar-se as 
caracteristieas habituais da pnitica, para ter va lor como uma 
interpreta<;ao dela e nao como inven<;ao de algo novo. Pode a me­
Ihor justificativa das praticas da cortesia, que para quase todo 
o mundo significa basicamente a demonstra<;ao de deferencia 
para com seus superiores sociais, ser aquela que de fato nao 
vai exigir, na etapa da rcformula<;ao, nenhuma distinc;ao em ter­
mos de posi<;ao social? Seria esta lima rcforma demasiado ra­
dical , uma justificativa demasiado inadequada para valer como 
uma interpreta<;ao? Uma vez mais, nao podc haver uma dispa­
ridade muito grande entre as convicc;oes de diferentes pessoas 
sobre tal adequa<;30; s6 a historia, porem, pode nos cnsinar 0 
que deve ser visto como excesso de discrcpancia. Finalmente, 
essa pessoa vai precisar de convie<;oes mais substantivas sobre 
os tipos de justificativa que, de fato, mostrariam a prfltica sob 
sua meJhor luz, e de j uizos sobre se a hierarquia social 6 dcsc­
javel ou deploravcl, por exemplo. Essas convic<;oes sllbstanti­
vas devem scr independentcs das convic<;oes sobre adequa<;ao 
que descrevemos ha pouco; do contrario, estas ultimas nao po­
deriam exercer coer<;ao sobre as primeiras, e, ao final, a pessoa 
84 o tMPERfO DO DiREtTO 
nao poderia distinguir entre interpreta<;ao e inven<;ao. Mas, para 
que a atitude interpretativa flores<;a, essas convic<;oes nao pre­
cisam ser tao compartilhadas pela comunidade quanto a no<;ao 
do interprete acerca dos limites da pre-interpreta<;ao, ou mesmo 
quanto a suas convic<;oes sobre 0 devido grau de adequa<;ao. 
Filosofos da cortesia 
Idenlidade inslilucional 
No capitulo 1, passamos em revista as teorias ou filosofias 
Cl{lssicas do direito, e sustentei que, lidas da maneira habitual , 
essas teorias sao inuteis, uma vez que paralisadas pelo aguilhao 
semantico. Podemos perguntar agora que tipo de teorias filos6­
ficas seriam uteis as pessoas que adotam a atitude interpretativa 
que venho dcscrevendo a prop6sito de certas tradi<;oes sociais. 
Vamos supor que nossa comunidade imaginaria de cortesia se 
vanglorie de ter urn fil6sofo ao qual se pede, nos verdes anos da 
atitude interpretativa, que prepare uma exposi<;ao filosOfica da 
cortesia. fIe recebe as seguintes instru<;oes: "Nao queremos 
suas pr6prias concep<;:oes autonomas, que tem tanto interesse 
quanta quaisquer outras, sobre aquilo que a cortesia real mente 
exige. Queremos uma teoria mais conceitual sobre a natureza 
da cortesia, sobre 0 que e a cortesia em virtude do proprio senti­
do da palavra. Sua teoria deve ser neutra sobrc nossas contro­
versias cotidianas; deve fomecer os antecedentes conceituais 
ou as normas que regem essas controversias, sem tomar parti­
do." 0 que pode de fazer ou dizer em resposta? Estel. na mesma 
si tua<;ao do cientista social quc mencionei , que deve aderir as 
praticas que descrcve. Nao pode ofereccr um conjunto dc re­
gras scmanticas para 0 usa apropriado da palavra "cortesia", 
como as regras que poderia ofereccr no caso da palavra "livro". 
Nao pode dizer que, por defini<;ao, tirar 0 chapeu diante de uma 
senhora e um caso de cortesia, do mesmo modo que sc diria 
que, por defini<;ao, Moby Dick e um livro. Ou que mandar uma 
nota de agradecimcnto e urn caso limitrofe que sc pode consi­
('ONCEtTOS DE tNTERPRETAC;lo 85 
derar como pertencente ou nao it esfera da cortesia, da mesma 
mane ira que um grande folheto pode ou nao ser considerado 
como urn livro. Qualquer passo que ele de nessa dire<;:ao trans­
grediria de imediato a linha demarcada pela comunidade como 
o limite de sua tarefa; ele teria oferecido sua propria interpreta­
<;ao positiva, e nao analise neutra dos antecedentes. Assemelha­
se a urn homem do P610 Norte a quem se diz que va para qual­
quer parte, menos para 0 SuI. 
Ele se queixa da tarefa que Ihe atribuiram, e recebe novas 
instru<;oes. "Pelo menos, voce pode dar uma resposta a essa 
questao. Nossas praticas sao hoje muito diferentes do que cram 
varias gera<;:oes atras, e diferentes tambem das praticas de cor­
tesia que vigoram nas sociedades pr6ximas e distantes. Contu­
do, sabemos que nossa pratica e0 mesmo lipo de pratica que a 
deles. Portanto, todas essas diferentes praticas devem ter al­
gum atributo comum, que faz de todas elas versoes da cortesia. 
Esse atributo ecertamente neutro tal como queremos, uma vez 
que e compartilhado por pessoas com ideias muito difercntes 
acerca das verdadeiras exigencias da cortesia. Por favor, diga­
nos que atributo e esse." Ele pode, sem duvida, responder a 
essa questao, mas nao da mane ira que as instru<;oes sugerem. 
Para explicar em que sentido a cortesia permanece a mes­
ma institui<;:ao ao longo de todas as mudan<;:as e adapta<;oes, e 
em comunidades distintas com normas muito diferentes, 0 fi­
losofo nao vai recorrer a nenhum "tra<;o caracteristico" comum 
a todos os casos ou excmplos dessa institui<;:ao". Pois, por 
hipotese, nao existe tal atributo: em uma etapa, a cortesia e vis­
ta como uma questao
de respeito; em outra, como algo muito 
diferente. Sua explica<;ao sera historica: a institui<;ao tem a 
eontinuidade - para usar a conhecida imagem de Wittgcnstein 
- de uma corda constituida de inLllueros fios dos quais nenhum 
corre ao longo de todo 0 seu comprimcnto nem a abarca em 
toda a sua largura. Eapenas um fato historico que a presentc 
18. Para U1l1a tentaliva il11portante de oi'ercccr "caracteristicas clefinido­
ras" de U1l1 sistema juridico, vcr Joseph Raz, The Concept o/a Legal.s:VI·tem 
(2~ ed., Ox rord, 1980). 
86 o IMPERiO DO DIREITO 
instituic;ao descenda, atraves de adaptac;oes interpretativas do 
tipo que aqui apresentamos, de instituic;oes mais antigas, e que 
as instituic;oes estrangeiras tambem descendam de exemplos 
anteriores semelhantes. As mudanc;as dc um periodo a outro, 
ou as diferenc;as entre uma sociedade e outra, podem ser gran­
des 0 suficiente para que a continuidade seja negada. Que mu­
danc;as sao grandes 0 bastante para eortar 0 fio da continuida­
de? Esta c, em si, uma questao da interpretac;ao, e a resposta 
dependeria do porque do surgimento da questao da continuida­
de"'. Nilo ha nenhum atributo que alguma etapa ou exemplo da 
pnltica deva possuir em razao do significado da palavra "corte­
sia", e a busca dc tal atributo scria apcnas mais um exemplo da 
prolongada int1uencia que produz 0 aguilhao semantico. 
Conceito e concep9ao 
Pode 0 filosofo ser menos negativo e mais eficiente? Sera 
ele capaz de oferccer algo no sentido que seus clientes dele 
esperam: uma exposic;ao da cortesia mais conceitual e menos 
autonoma que as teorias que eles .if! possuem e usam? Talvez. 
Nao 6 improvavel que os debates habituais sobre a cortesia na 
comunidade imagimiria tenham a estrutura em forma de arvore 
que vercmos a seguir. Em termos gerais, as pessoas concordam 
com as proposic;oes mais genericas e abstratas sobre a cortesia, 
que formam 0 tronco da arvore, mas clivergem quanto aos refi­
namentos mais concretos ou as subinterpretac;oes dessas pro­
posic;oes abstratas, quanto aos galhos da arvore. Por exemplo, 
numa certa etapa do desenvolvimcnto da pratica, toclos concor­
dam que a eortesia, em sua descric;ao mais abstrata, e uma 
questao de respeito. Mas h~l uma importante divisao sobre a 
correta interpretac;ao da id6ia de respeito. Alguns consideram 
que se deve, de maneira mais ou menos automatica, demons­
1(). Ver 0 cxcelcntc I?ellson.\· lind Persons, de Derek Partit (Oxford, 
1984), sobre a idcnlidadc das comunidadcs c - de modo mais disculivcl - a 
identidade pessoal. 
('ONCEITOS DE INTERPRETAC;A-O 87 
Irar respeito a pessoas de certa posic;ao ou grupo, enquanto 
(Jutros pensam que 0 respeito deve ser merecido individual­
Illcnte. Os primeiros se subdividem ainda mais, questionando 
"lu3is grupos ou posic;oes sociais sao dignos de respeito; os 
scgundos se subdividem a proposito de quais atos eonferem 
Il'speito. E assim por diante, ao longo de infindaveis subdivi­
soes de opiniao. 
Em tais circunstancias, 0 tronco inicial da arvore- a liga­
(;,)0 ate 0 momento incontestavel entre cortesia e respeito ­
i'uneionaria, tanto nos debates publicos quanta nas reflex5es 
privadas, como uma especie de patamar sobre 0 qual se forma­
fiam novos pensamentos e debates. Seria entao natural que as 
pessoas eonsiderassem essa ligac;ao importante e, a guisa de 
conceito, dissessem, por exemplo, que 0 respeito faz parte do 
" proprio significado" da eortesia. Nao querem dizer com isso 
que alguem que 0 negue seja culpado de autocontradic;ao, ou 
Ilao saiba como usar a palavra "cortesia", mas apenas que 0 
que ele diz coloea-o amargem da comunidade do diseurso util, 
Oll pelo menos habitual, sobre a instituic;ao. Nosso fil6sofo ser­
vira a sua comunidade se puder demonstrar essa estrutura e iso­
lar essa ligac;ao "conceitual" entre cortcsia e respeito . Ele pode 
;lpreende-Ia na proposic;ao de que, para essa eomunidade, 0 
respeito ofereee 0 conceito de cortesia, e que as posic;oes anta­
g()nicas sobre as verdadeiras exigcncias do respeito sao con­
('('fJ90eS desse conceito. 0 contraste entre conceito e concep­
~iio eaqui um contraste entre niveis de abstrac;ao nos quais se 
pode estudar a interpretac;ao da pratica . No primeiro nivel, 0 
acordo tem por base ideias distintas que sao incontestavelmen­
Ie utilizadas em todas as interpretac;ocs; no segundo, a contro­
vcrsia latente nessa abstrac;ao eidentificada e assumida. Expor 
cssa estrutura pode ajudar a aprimorar 0 argumento, e, de qual­
'Iller modo, ira melhorar a comprecnsao da cOl11unidade acerea 
ti L: seu ambiente intelcctual. 
A distinc;ao entrc conccito e concepc;ao, assim comprcen­
dida e criada com esscs propositos, c muito diferente da co­
Ilhecida distinc;ao entre 0 significado de uma palavra e sua ex­
I1,;11Sao. Nosso fil6sofo teve exito, supomos, ao impor apratica 
88 89 o IMPERIO DO DIRElTO 
de sua eomunidade uma estrutura tal que certas teorias inde­
pendentes podem ser identifieadas e entendidas como sub inter­
pretayoes de uma ideia rnais abstrata. Em celio sentido sua ana­
lise, se bem-sueedida, deve tambem ser incontestavel, porque 
sua alega<;ao - de que 0 respeito estabelece 0 conceito de corte­
sia - nao produz efeito, a menos que as pessoas estejam total­
mente de aeordo que a eOliesia e uma questao de respeito. 
Contudo, apesar de ineontestavel nesse aspeeto, sua afirmaGao 
e interpretativa, e nao semantiea; nao se trata de uma afirma<;ao 
sobre as regras basieas da lingiiistiea que todos devam observar 
para se fazerem entender. Sua afinnayao tamb6m nao e atempo­
ral: cia se mantem grayas a um padrao de acordo e dcsaeordo 
que poderia, como na hist6ria que eontei ha poueo, desaparecer 
amanha. E sua afirmayao pode ser eontestada a qualquer 
momento; 0 contestador pareceni. cxccntrico, mas sera perfeita­
mente bem eompreendido. Sua eontesta<;ao marcara 0 aprofun­
damento da divergcneia, e nao, como no easo de alguem que 
diz que Moh)1 Dick nao e um livr~ , sua superfieialidade. 
Paradigm as 
Hil mais uma tarefa .- menos desafiadora, ainda que nao 
menos importante -. que 0 fil6sofo deve reali zar para aqueles 
que 0 nOlllearam. A cada etapa hist6riea do desenvolvimento 
da instituiyao, eertas exigeneias eoneret,as da cortesia se m()s­
trarao a qllase todos como paradigmas, isto e, como requisitos 
da eortesia. A regra dc que os homcns dCVClll levantar-se quan­
do uma mulher entra na sala, pOl' exemplo, poderia ser consi­
derada um paradigma numa certa epoca. 0 papel que esses 
paradigmas descmpenham no raciocinio c na arglllllentaGao 
sera ainda mais crucial do que qualquer acordo abstrato a pro­
p6sito de LIm conceito. Pois os paradigmas scrao tratados como 
exemplos concretos aos quais qualquer interpretaGao plausivel 
deve ajustar-se, cos argumentos contra uma interpretaGao con­
sistirao, sempre que possivel, cm dcmonstrar que ela 6 incapaz 
de incluir ou cxplicar LIm caso paradigmMico. 
('ONCEITOS DE INTERPRETA9AO 
Em decorrencia desse papel especial, a relaGao entre a 
institui<;ao e os paradigmas da epoca sera estreita a ponto de 
estabelecer urn novo tipo de atributo conceitual. Quem rejeitar 
um paradigma dara a impressao de estar cometendo um erro 
cxtraordinario. Uma vez mais, porem, ha uma importante dife­
ren<;a entre . esses paradigmas de verdade interpretativa e os 
casos em que, como dizem os fil6sofos , um eonceito se susten­
ta "por definiGao", assim como 0 celibato se sustenta graGas 
HOS homens que nao se casam. Os paradigmas fixam as inter­
preta<;oes, mas nenhum paradigma esta a salvo de contestaGao 
por urna nova interpretaGao que considere melhor outros para­
digmas e deixe aquele de lado, por considera-Io um equivoco. 
Em nossa comunidade imaginaria, 0 paradigma do sexo pode­
ria ter sobrevivido a outras transfonnayoes por muito tempo, 
apenas pOl' parecer tao solidamente arraigado, ate que um dia 
se tornasse um anacronismo nao mais reconhecido. Um dia, 
cntao, as mulheres passariam a nao mais admitir que os ho­
menS se levantassem na sua presenya; poderiam

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