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O EXÉRCITO BRASILEIRO NA APLICAÇÃO DA GARANTIA DA LEI E DA ORDEM: A INTERVENÇÃO FEDERAL NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO RESUMO Esta pesquisa versa sobre a Intervenção Federal de segurança pública no Rio de Janeiro. Coletou dados governamentais e opiniões de autoridades diretamente relacionadas ao assunto (como comandantes do exército). Procuramos entender o papel dos militares na sociedade e as intenções do Estado ao utilizar as Forças Armadas no Rio de Janeiro. Por fim, o Gabinete de Intervenção identificou um ponto fundamental, nomeadamente a reorganização da Polícia Nacional. No entanto, entende-se que a política de segurança pública não foi redirecionada, fazendo com que voltasse a um erro histórico e priorizasse as operações militares contra o crime, ao invés de ações em áreas que causam problemas. Palavras-chave: Intervenção Federal; Segurança Pública; Exército; Garantia da Lei e da Ordem; Forças Armadas. INTRODUÇÃO As políticas de Estado são dinâmicas e mudam ao longo do tempo, assim como as ideias e valores que prevalecem em uma sociedade. Durante a Segunda Guerra Mundial, Otto Adolf Eichmann foi um oficial alemão condecorado responsável pela deportação de judeus. Após a Segunda Guerra Mundial, Eichmann fugiu para a Argentina, onde foi capturado pelo Mossad[footnoteRef:1] e julgado em Jerusalém. Em Israel, ele foi condenado à morte por vários crimes contra a humanidade. Esta foi a única vez que o Estado de Israel impôs a pena de morte a alguém. Este oficial é, atualmente, conhecido como o arquiteto de Solução Final (UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM, 2018). [1: Instituto de Inteligência e Operações Especiais de Israel] Segundo Hannah Arendt (1963), Eichmann afirmou, em sua defesa, que não poderia ser condenado pelas leis humanas, pois era apenas um funcionário que cumpria seus objetivos e obedecia às leis de seu país. O condenado nunca nutriu ódio contra os judeus e nunca desejou a morte de seres humanos, sua culpa vinha de sua obediência, que até então era elogiada como uma virtude. Eichmann não era nenhum Iago[footnoteRef:2] [...]. A não ser por sua extraordinária aplicação em obter progressos pessoais, ele não tinha nenhuma motivação. E essa aplicação em si não era de forma alguma criminosa; ele certamente nunca teria matado seu superior para ficar com seu posto. Para falarmos em termos coloquiais, ele simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo. [...] Ele não era burro. Foi pura irreflexão. (ARENDT, 1963, p. 310). [2: Personagem Shakespereano da tragédia Othello. Iago é o vilão que gostava de usar as pessoas e não ser visto desta forma. O seu poder de convencimento ultrapassava as barreiras do certo e do errado (POLIDÓRIO, 2011).] Inspirados nas observações de Hannah Arendt, para nos diferenciarmos dos condenados, propomos refletir sobre a atuação do exército brasileiro para obedecer à decisão do Presidente da República. Se a obediência à ordens e leis não são os determinantes de nossas ações no âmbito da ética, como pode ser determinado no famoso julgamento do “arquiteto da solução final”, em que medida podemos analisar o comportamento do exército brasileiro no aplicação da Garantia da Lei e da Ordem? O Brasil tem uma tradição de usar suas forças de segurança em seu território para formular ou apoiar suas políticas nacionais. No Império Brasileiro, a Guarda Nacional foi usada contra vários levantes de escravos. Tal como em 1838, quando Luís Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias, comandou a Guarda Nacional contra o quilombo de Manuel Congo a pedido das autoridades locais e após uma fracassada incursão das forças policiais locais (RIO DE JANEIRO, 2018). Conforme aponta Campello (2018), em 1881 alguns generais do império escravista participaram e apoiaram reuniões abolicionistas e em 1887 houve a recusa formal de oficiais do Exército em perseguir negros nas encostas de Cubatão, no Estado de São Paulo SP, mesmo com a Marinha deslocando um navio de guerra para Santos. Em 1888, no auge do ideário abolicionista no Brasil, o Clube Militar enviou à princesa Isabel um manifesto que expressava claramente o repúdio militar à missão de captura de escravos (ARRUDA, 2007). Inseridos esse manifesto aqui por compreender que as preocupações que atormentavam os militares no passado, em relação ao uso político da força, é, em essência, a mesma preocupação dos dias atuais. Senhora – Os oficiais, membros do Clube Militar, pedem a V.A. Imperial vênia para dirigir ao Governo Imperial um pedido, que é antes de tudo uma súplica. Eles todos, que são e serão os amigos mais dedicados e os mais dedicados servidores de S.M. o Imperador e da sua dinastia, os mais sinceros defensores das instituições que nos regem, eles que jamais negaram, em vosso bem, os mais dedicados sacrifícios, esperam que o Governo Imperial não consinta que, nos destacamentos do Exército que seguem para o interior, com o fim, sem dúvida, de manter a ordem, tranquilizar a população e garantir a inviolabilidade das famílias, os soldados sejam encarregados da captura dos pobres negros que fogem à escravidão, ou porque vivam cansados de sofrer-lhe os horrores, ou porque um raio de luz da liberdade lhes tenha aquecido o coração e iluminado a alma. Por isso, os membros do Clube Militar, em nome dos mais santos princípios da humanidade, em nome da solidariedade humana, em nome da civilização, em nome da caridade cristã, em nome das dores de S.M. o Imperador, vosso augusto pai, cujos sentimentos julgam interpretar, e do futuro do vosso filho, esperam que o Governo Imperial não consinta que os oficias e praças do Exército sejam desviados da sua nobre missão. (VIANNA, 2006, p. 61). Porém, esta não é a única vez que o Exército se desviou de sua nobre missão, que é defender a pátria e foi utilizado em ações para a segurança pública e o controle da população. Hoje, a missão de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) é regulamentada pelo Decreto nº 3.897, de 24 de agosto de 2001 (BRASIL, 2001), e essas ações são amplamente utilizadas em todo o Brasil. Somente entre 1992 e 2021, 132 ações dessa natureza foram implantadas, sendo o Estado do Rio de Janeiro o que mais utilizou esse recurso (CARVALHO; DURÃO, 2017). Em 2018, o Governo Federal emitiu o Decreto nº 9.288 para determinar a Intervenção Federal no Estado do Rio de Janeiro, e nomeou o general do Exército Walter Souza Braga Netto como interventor, designando seu campo de ação como a segurança pública do estado (BRASIL, 2018). No entanto, ainda em 2017, o general Vilas Boas, que foi comandante do Exército Brasileiro de 2015 a 2019, afirmou o seguinte: Foi na favela da Maré que eu percebi que nos tornamos uma sociedade doente. Vi muitas vezes nossos soldados preocupados em meio àquelas vielas, apontando armas enquanto passavam crianças e mulheres. Assim que saímos, em uma semana o crime retornou com a mesma força de antes – criticou o general, para quem esse tipo de uso precisa ser repensado por ser desgastante, perigoso e inócuo. (VILLAS BÔAS, 2017 apud VIEIRA, 2017). Apontamos três pontos importantes neste discurso de Villas Boas: perigoso, desgastante e inócuo. As duas primeiras são evidentes, enquanto a terceira se mostra como importante problemática a ser analisada: Seria mesmo inócua a atuação das Forças Armadas nas Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). 1. VIOLÊNCIA NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Uma das maiores dificuldades enfrentadas pelo Governo do Rio de Janeiro na atualidade é a violência. A sensação de pânico generalizado provocada por essa situação leva a população carioca a se sentir impotente e acuada diante da ineficiência do poder público em resolver essa questão. Não apenas isso, mas essa sensação produz a crença de que a única solução para tal problema é uma intervenção de caráter militar. Mas será que esta é a única solução para este problema? Diante disto, este capítulo tem o intuito de apresentar um panorama histórico da violência no Estado do Rio de Janeiro e procura produzir o questionamento de que este argumento, por vezes utilizado pelo GovernoFederal como forma de justificar o processo de intervenção, se mostra válido. Como forma de alcançar este objetivo será abordado neste capítulo os principais atores que contribuem para a situação de violência no Estado do Rio de Janeiro. (COLLET, 2018). Antes disso, algumas considerações precisam ser feitas. Atualmente, uma das formas de mostrar o nível de violência na sociedade é a quantidade de homicídios ocorridos. Há duas razões básicas para isso. A primeira é porque esses crimes são notificações obrigatórias e a segunda porque, de modo geral, são cobrados pelos órgãos responsáveis pela saúde e não pelos órgãos responsáveis pela segurança pública, como é óbvio. pode levar a uma tentativa de “compensar” a realidade, pois a avaliação de seu sucesso está diretamente relacionada à redução de alguns números relacionados ao índice de violência existente em um determinado local (COLLET, 2018). Nesse sentido, o padrão utilizado por este trabalho para embasar uma possível confirmação de aumento ou diminuição da violência nos períodos selecionados é o padrão de homicídios ocorridos no Rio de Janeiro para cada 100.000 habitantes. Os dados fornecidos foram coletados por meio do sistema DataSUS vinculado ao Ministério da Saúde e incluídos no levantamento do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (RAMOS, 2016). Nesse sentido, entender quem são os principais atores da violência no Rio de Janeiro é fundamental para entender a realidade da segurança pública neste Estado. 1.1. OS ATORES DA VIOLÊNCIA CARIOCA A violência no Estado do Rio de Janeiro tem determinadas características que apontam para a complexidade deste contexto. Tal situação tornou-se cada vez mais evidente ao longo dos anos com a introdução de novos atores e o aperfeiçoamento das formas de atuação daqueles que já estavam nesse cenário. Esses elementos tornam o panorama carioca totalmente único se comparado com outros locais do Brasil e do mundo (COLLET, 2018). Por exemplo, no RJ, existem disputas territoriais entre várias facções do crime, e, atualmente, existem disputas territoriais até mesmo entre essas facções e as chamadas milícias. Por exemplo, essa situação não existe no Estado de São Paulo, no qual o PCC é o único grupo criminoso. Outro fator importante é o papel da polícia no combate à violência no estado. A força policial realizou algumas ações em seus vários anos de operação e pode até questionar se a verdadeira razão de sua existência é permitir que a paz exista ou perpetuar o estado de guerra existente. Para os cariocas, não é novidade ver na mídia que a polícia está envolvida em um plano de corrupção. Um fator típico neste fato é que as milícias surgiram entre os quadros militares nacionais responsáveis pela promoção da paz (COLLET, 2018). O tráfico, a polícia e as milícias combinadas, operando em constante estado de guerra, provocaram outro fenômeno que levou ao atual estado de insustentabilidade, que é um tipo de corrida armamentista. Soares, Bill e Athayde (2005) afirmam em seu livro que a luta pelo domínio do narcotráfico levou à necessidade de ampliar e aperfeiçoar o aparato militar a tal ponto que, de alguma forma, está desconectado da realidade. Conforme noticiado diariamente em diversos meios de comunicação, nas favelas do Rio existem fuzis de guerra, lançadores de granadas, bazucas e muitos outros dispositivos militares, cujo uso é totalmente incompatível com um ambiente predominantemente urbano. Segundo os mesmos autores esse aparato militar desnecessário também foi utilizado em crimes contra o patrimônio (SOARES; BILL; ATHAYDE, 2005). Esse fato não só aumenta o medo geral da população, mas também aumenta o risco de morte em situações de ataque, uma vez que esses tipos de armas têm um grau de letalidade muito alto. Mesmo assim, é preciso nos deter um pouco na história e no padrão de atuação desses personagens. 1.1.1. O TRAFICO DE DROGAS O tráfico de drogas é o maior responsável pela ampliação constante da violência no Rio de Janeiro. Isso se explica, pois sendo uma atividade econômica ilegal que é altamente rentável, produz a inserção da polícia de forma ilegal, ou a produção de políticas que visam tirar proveito de sua existência. Neste sentido, o tráfico de drogas é o principal responsável por sustentar a violência e o crime no Rio de Janeiro. Esse mercado possibilita o enriquecimento de centenas de pessoas no Estado, mas em troca torna a absoluta maioria da população refém do medo (MARINO, 2018). A década de 1980 representa a cidade do Rio de Janeiro, um marco na mudança das características básicas do tráfico de drogas (MARINO, 2018). Isso porque, no passado, embora essa atividade já existisse, ela se caracterizava pela comercialização principal de Cannabis. Esta droga não tem alto valor econômico e é consumido por pessoas com menor poder aquisitivo. Portanto, no estado inicial, as principais características do tráfico são as baixas margens de lucro e o uso de armas leves. Essa característica inicial começou a mudar com a disseminação da cocaína. Ao contrário da maconha, essa droga é caracterizada por alto valor. Esse fator tem levado à diversificação do público-alvo inicial do tráfico, ou seja, a adaptação à oferta de drogas ilícitas de alto valor econômico para a população mais rica. Tal alteração é percebida como o ponto culminante que levou a mudança do modus operandi do tráfico, deixando de ser uma atividade praticamente caseira, profissionalizando-se. Nesse sentido, segundo Leonardo Freire (MARINO, 2018), dois fatores foram fundamentais para essa adaptação ao crime organizado. A primeira delas é o aumento das favelas, que possibilitou a ocupação de áreas urgentemente necessárias ao desenvolvimento e manutenção dessa atividade. A segunda está relacionada ao surgimento das chamadas “facções criminosas”, mais precisamente o chamado Comando Vermelho. Nesse ponto, um enfoque especial é muito importante. Porque é importante saber como surgiram essas facções. No final da década de 1970, em plena ditadura militar, presos políticos eram encaminhados para presídios que já abrigavam os chamados presos comuns. Esse fato deu origem a um fenômeno um tanto estranho, que consistia em conectá-los com aqueles que davam aos presos comuns um conceito de organização até então desconhecido para eles (COLLET, 2018). Antes desse contato, os presos já estavam um tanto organizados por meio de grupos chamados “Falanges”. Mas só então esse nível de integração melhorou e a primeira grande facção criminosa nasceu no Rio de Janeiro, o Comando Vermelho. Essas facções têm como principal forma de atuação a cooperação, dentro ou fora da rede, permitindo certo nível de organização, seja econômica ou humanamente, sem o qual dificilmente teriam todo esse poder atual. É importante destacar que o Comando Vermelho não é mais o único grupo político do estado do Rio de Janeiro. Este grupo se dissolveu ao longo dos anos devido a desentendimentos internos, que levaram ao surgimento de novas facções criminosas como o Terceiro Comando (TC) e o Amigo dos Amigos (ADA). Esse fator é responsável por um constante estado de guerra por território entre grupos criminosos no estado (COLLET 2018). Depois disso, a outra percepção importante que os traficantes tiveram foi a ocupação de áreas chamadas favelas. Estes locais apresentam uma característica muito peculiar, nomeadamente a ausência de estradas ou caminhos com grande distribuição, com predomínio de vielas e becos. Este fator dificulta a entrada de viaturas policiais neste local, por exemplo, obrigando a polícia a entrar nesses locais a pé. Além disso, o conhecimento local dos contrabandistas também deve ser levado em consideração, o que é uma vantagem considerável em uma situação de confronto. Também é muito importante ressaltar que a ocupação das favelas por esses grupos foi facilitada pela ausência total do Estado nessas áreas. Não é novidade que as favelas são locais onde residem as populações de baixa renda dos centros urbanos, talvez por isso o baixo interesse públicoem ocupar esses locais. O fato é que os traficantes se beneficiaram com esse fato e substituíram o Estado em seu papel essencial nesses lugares, ou seja, de governança. Comunidades dominadas pelo tráfico de drogas, não apenas no Rio de Janeiro, mas também no Brasil, têm regras e códigos de conduta muito diferentes dos códigos formais brasileiros (COLLET, 2018). Para encerrar este tópico, é preciso olhar para uma mudança no padrão dos traficantes de drogas no Rio de Janeiro. Segundo Leonardo Freire (MARINO, 2018), o traficante do passado era o mais velho que já havia cumprido pena de prisão e, portanto, tinha certa relação com outros traficantes fora de sua comunidade de origem. Atualmente, o perfil do traficante é completamente diferente, ou seja, caracteriza-se pela predominância de jovens menores de 20 anos que não têm a experiência dos traficantes antigos por nunca terem estado presos. 1.1.2. A POLÍCIA Via de regra, o principal motivo para criação e manutenção de uma polícia é a garantia da segurança. No Estado do Rio de Janeiro isso não é diferente. Entretanto, como é de conhecimento geral, as polícias daquele estado possuem problemas estruturais cotidianos, como a péssima condição de trabalho, elevado grau de periculosidade intrínseco a atividade, salários baixos, dentre outros problemas. Ressalta-se a importância da polícia do Estado do Rio de Janeiro, entretanto, é necessário a análise crítica da sua atividade, visto que a forma da atuação desta polícia tem sido um dos elementos que influenciam a permanência da violência. Considerando esta característica marcante, este tópico tratará sobre o papel na manutenção desse status quo de violência que contradiz a própria função social da polícia. O repórter Zuenir Ventura relatou em seu livro Cidade Partida (VENTURA, 1994) um caso um tanto remoto, mas útil para a compreensão do conteúdo descrito. Envolve o General Kruel, encarregado da segurança pública do Rio de Janeiro no final dos anos 1950. Em sua época, Kruel criou a chamada Serviço de Diligências Especiais (SDE), que tinha plenos poderes para atuar, inclusive para executar criminosos. Este grupo é denominado "Esquadrão da Morte". Segundo o autor, a tarefa desse grupo é escalar montanhas, invadir cabanas, desentocar ladrões e "limpar a cidade" (VENTURA, 1994, p. 34-35). Em 1959, sob denúncia do jornalista Edmar Morel, foi aberta uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que descobriu que o General Kruel era o principal beneficiário do jogo do bicho, cafetões, hotéis, cartomantes, etc. Nesse sentido, este caso é emblemático porque revela duas formas de atuação ilegal e tradicional das autoridades de segurança do Rio, a saber, a naturalização da adoção de práticas de extermínio de grupos marginalizados da sociedade e a obtenção direta dos respectivos lucros. '' impostos '' 'para que os infratores continuem a exercer sua atividade sem a interferência do Poder Público. Um exemplo de policiamento que buscou lucrar e não lutar contra as atividades criminosas foi a entrada da polícia na indústria do sequestro na década de 1990. Esse envolvimento ficou tão evidente que o delegado Hélio Luz, quando foi nomeado chefe da Delegacia Antissequestros, proferiu a emblemática frase: “de hoje em diante o Anti Sequestro não sequestra mais” (CALDEIRA, 1997). De acordo com Silvia Ramos: As policias, conscientemente ou não, impuseram o ritmo da corrida armamentista e muitas vezes eram os agentes dessa dinãmica, ora vendendo armas e munições, ora vendendo armamentos capturados em confrontos com traficantes, ora fazendo vista grossa para a entrada de fuzis, metralhadoras e munições nas favelas (RAMOS, 2016, p. 11). Silvia Ramos Continua: Os observadores concordam num ponto: não há tráfico e domínio territorial sem a participação policial. Seja na forma de omissão, negociação de meios, seja com informação ou proteção. Na verdade, as formas de participação da polícia no negócio do crime no rio de Janeiro foram se sofisticando. No contexto das favelas, as mais frequentes são a prisão e o sequestro de traficantes para serem vendidos a facções inimigas ou à própria facção, e a revenda a traficantes de armas capturadas em operações policiais. A mais universal é a propina semanal apanhada na boca de fumo por policiais que distribuem a semanada entre colegas do Batalhão, na mais fiel tradição das antigas ''caixinhas'' do jogo do bicho (RAMOS, 2016, p. 12). Além disso, outro fator importante é a adoção de métodos cruéis de ação por parte da polícia. Esses métodos são logicamente contra a lei, uma vez que adotam práticas como tortura e sentenças sumárias que resultam em pena de morte. Segundo Silvia Ramos (RAMOS, 2016, p. 12), quanto mais dura e violenta uma polícia em suas práticas de combate ao crime, maior seu poder de negociação com os traficantes em relação ao seu “direito de matar”. Silvia Ramos: explica que: Há uma lógica seletiva acionada por grupos de policiais violentos e corruptos: prender os criminosos importantes e negociar a vida dos peixes pequenos. Dar o máximo nas apreensões de grandes carregamentos de armas e drogas e negociar os pequenos carregamentos (RAMOS, 2016, p. 12). Além disso, outras práticas corruptas consistem em modificar situações para encobrir erros policiais. Esse fato ocorre quando, por exemplo, o policial mata uma pessoa (pensando que é traficante) e, ao descobrir que se trata de um estudante, cria uma situação para defraudar a cena do crime e dar a entender que essa pessoa era um criminoso. Esse fato é responsável pelo atrito constante entre os moradores da comunidade e a polícia, que muitas vezes leva os moradores dessas localidades a enxergar a polícia como inimiga, quando na verdade deveria ser o contrário (COLLET, 2018). Assim, fica evidente que a polícia do Rio de Janeiro tem um papel importante na manutenção da violência no estado. Os policiais, de fato, foram os responsáveis pelo agravamento dessa situação ao criarem grupos territoriais que mais tarde seriam chamados de milícias e que serão discutidos no próximo tópico. 1.1.3. AS MILÍCIAS A palavra “milícia”, de acordo com o dicionário Houaiss significa “''qualquer organização de cidadãos armados que não integram o exército de um país'' (HOUAISS, 2021). No Estado do Rio de Janeiro essa expressão passou a ser utilizada na reportagem feito pela jornalista Vera Araújo do jornal O Globo. A notícia divulgada tinha o título ''Policiais montam milícias e expulsam tráfico das favelas''. A jornalista denunciava a existência de 11 grupos que atuavam em 42 favelas na região da Barra e de Jacarepaguá, dessas, 6 eram comandadas por policiais militares (RAMOS, 2016, p. 13). A milícia é caracterizada por um grupo armado composto por policiais, ex-policiais, bombeiros, agentes penitenciários e outros agentes de segurança pública, cujas atividades são desenvolvidas principalmente na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. No filme Tropa de Elite 2 (2010), pode ser observado uma cena em que esses agentes entram no controle da comunidade, seja substituindo traficantes ou ocupando áreas não governadas. Nessa cena, um policial foi a uma favela para coletar o chamado "arrego". Ao se deparar com um traficante argumentando que não tinha dinheiro para dar à polícia porque extorquia muito, passou a observar o traficante que explicou sobre os serviços pelos quais pagou, como serviço de TV a cabo. Naquele momento, a polícia matou o traficante e assumiu simbolicamente o território que antes era área do narcotráfico. Diante disso, Silvia Ramos afirma que: Em geral, a milicia vende ''segurança'' por meio de cobrança de taxas a comerciantes e, em algumas áreas, a moradores, indo de casa em casa. Além disso, na medida em que tem o controle armado sobre o território, milicianos passam a explorar e monopolizar outros negócios, como transporte alternativo, água, gás, sinal de TV a cabo e internet, e também transações imobiliárias (cobrando percentuais sobre vendas que ocorrem dentro da área controlada. (RAMOS, 2016, p. 14) Ramos (2016, p. 14) explicaque a milícia está estruturada em cinco eixos, a saber: área territorial; Força; negócios com fins lucrativos; Legitimação baseada no combate ao tráfico de pessoas; e a presença de agentes armados que exercem coerção. Outra área de atuação desses grupos é a formação dos chamados "currais eleitorais". Por meio dessa prática, os militares obrigam os residentes de um determinado local a votar em candidatos que correspondam aos seus interesses. Esse fato também é relatado no filme Tropa de elite 2. Durante o Primeiro Governo de Sérgio Cabral, as autoridades do Rio de Janeiro começaram a adotar as primeiras práticas investigativas das milícias com a implantação da chamada “CPI das Milícias”. Até então, as autoridades até mesmo entendiam a atuação desses grupos, pois retiravam os traficantes dos locais que controlavam e instituíam uma espécie de ordem. Na época da CPI, vários milicianos foram perseguidos, presos e condenados. Após esse episódio, as milícias mudaram um pouco sua forma de agir, ou seja, tornaram-se mais discretas quando, por exemplo, pararam de andar armadas nas saídas e entradas das regiões que controlam. No entanto, isso não anula o fato de que, nos locais dominados pelos milicianos, há altos índices de ataques e execuções sumárias com a prática usual do desaparecimento das provas. (CANO; DUARTE, 2014). 2. ASPECTOS LEGAIS PARA A INTERVENÇÃO FEDERAL 2.1. PRESSUPOSTOS PARA INTERVENÇÃO FEDERAL A Constituição Federal do Brasil, promulgada em 1988, apresenta em seu primeiro artigo o Federalismo como a forma de organização do Estado da República Federativa do Brasil, o que representa uma variedade de Estados regidos por uma Constituição que tem o intuito de garantir a ordem do território nacional. Entretanto, estes Estados, segundo o artigo 18 da Constituição possuem autonomia política, ou seja, são capazes de desenvolver leis constitucionais próprias (BONAVIDES, 2000). Como regra geral, a União não deve intervir nos Estados ou no Distrito Federal, atendendo ao princípio da não intervenção e da autonomia dos estados para se autogovernar, desde que suas ações não estejam em conformidade com a Constituição Federal. No entanto, a própria Constituição, em seu capítulo VI, dispõe sobre as situações em que a intervenção federal pode ser necessária, "como um antídoto contra a ilegalidade, o arbítrio, a autossuficiência e o abuso de poder dos estados, do Distrito Federal e dos Municípios." (BULOS, 2013, p. 480). Enquanto isso, a intervenção assume uma postura negativa sobre a autonomia, pois uma unidade federal intervém em outra. Desse modo, a liberdade política de determinado ente federativo fica excepcional e temporariamente suspensa para restaurar a ordem social (PINHO, 2018). A Constituição Federal em seu artigo 38 refere-se expressamente às condições de intervenção excepcional e temporária da União nos Estados. A doutrina divide-se em dois grupos de pressupostos para esta intervenção: pressupostos materiais e pressupostos formais (BULOS, 2013, p. 483-484). A Constituição, em seu artigo 34, incisos I a VII, consideras os seguintes pressupostos materiais para a intervenção Federal: I - manter a integridade nacional; II - repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra; III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública; IV- garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação; V - reorganizar as finanças da unidade da Federação que: a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior; b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei; VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial; VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta. e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde (BRASIL, 1988). O artigo 36 da Constituição Federal, nos incisos I a III apresentam os pressupostos formais para a Intervenção Federal: I - no caso do art. 34, IV, de solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo coacto ou impedido, ou de requisição do Supremo Tribunal Federal, se a coação for exercida contra o Poder Judiciário; II - no caso de desobediência a ordem ou decisão judiciária, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral; III - de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal (BRASIL, 1988). Assim, atendendo a estes pressupostos existe a possibilidade de Intervenção Federal seguindo os seguintes procedimentos. 2.2. PROCEDIMENTOS PARA DECRETAÇÃO DE INTERVENÇÃO FEDERAL O procedimento de Intervenção Federal acontece de duas maneiras: 1) espontânea; 2) por solicitação, requisição ou provimento. A primeira acontece nos casos previstos na Constituição Federal, segundo os artigos 34, nos incisos I, II, III e V e, alcançado efetiva ação de forma direta, através da determinação do Presidente da República. Esta decisão é publicada de ofício, sem a necessidade de provocar outros órgãos. A segunda forma, por sua vez, depende da provocação de alguns órgãos responsáveis por esta competência, conforme aponta a Constituição Federal, em seus artigos 34 e 36 (MORAES, 2018, p. 441-442). Destaca-se ainda que Na hipótese de solicitação pelo Executivo ou Legislativo, o Presidente da República não estará obrigado a intervir, possuindo discricionariedade para convencer-se da conveniência e oportunidade. Por outro lado, havendo requisição do Judiciário, não sendo o caso de suspensão da execução do ato impugnado (art. 36 §3º), o Presidente da República estará vinculado e deverá decretar a intervenção federal, sob pena de responsabilização (LENZA, 2019, p. 559). A Constituição Federal prevê ainda a audiência dos mais altos órgãos de assessoramento do Presidente da República: o Conselho Superior (art. 90) e o Conselho de Defesa Nacional (art. 90). Ambos os conselhos, em seus pareceres, formadores de opinião e podem ser consultados posteriormente, mas no menor tempo possível, em caso de ordens de intervenção urgentes (LENZA, 2019). Além de consultar os referidos conselhos, a Constituição Federal também estabelece o controle político que o Congresso Nacional deve exercer. O parágrafo 1º, do artigo 36 da Constituição dispões que “O decreto de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, será submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembleia Legislativa do Estado, no prazo de vinte e quatro horas”. Adicionalmente, o parágrafo 2º determina que “se não estiver funcionando o Congresso Nacional ou a Assembleia Legislativa, far-se-á convocação extraordinária, no mesmo prazo de vinte e quatro horas.” (BRASIL, 1988). Assim, o Congresso Nacional poderá aprovar ou rejeitar o decreto de intervenção, sendo esta uma competência exclusiva do órgão (Art. 49, IV, BRASIL,1988). Não havendo determinação de quórum mínimo, a regra de aprovação por maioria simples é determinada pelo artigo 7. Ressalte-se que também há casos em que dispensa o controle político, conforme previsto no artigo 3 (BRASIL, 1988). Em caso de rejeição, o Presidente da República deve suspender imediatamente o decreto de intervenção sob a ameaça de crime de responsabilidade (LENZA, 2019, p. 561). Com isso, será restaurada a autonomia dos estados federados e a readmissão de autoridades distintas de seus respectivos cargos (PINHO, 2018). Se a intervenção for aprovada, um interventor é nomeado, as autoridades envolvidas são afastadas até o final doprazo interventivo (LENZA, 2019, p. 562). Além disso, deve-se notar que a intervenção é de natureza temporária; seu tempo dura enquanto o problema que os causou persistir (PINHO, 2018). 3. OPERAÇÕES DE GARANTIA DA LEI E DA ORDEM (GLO) Deve-se observar que a partir do início da intervenção Federal no Rio de Janeiro realizada em janeiro de 2018, a utilização das Forças Armadas para operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no Estado do Rio de Janeiro, já haviam sido decretados pelo Presidente da República, decreto que vigeu de 28 de julho de 2017 até dezembro de 2018. De acordo com a Lei Complementar nº 97/1999, o Ministério da Defesa Nacional define as ações de salvaguarda da lei e da ordem como ocorrendo quando “há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem” e “concedem provisoriamente aos militares a faculdade de atuar com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade”. Nessas operações “as Forças Armadas agem de forma episódica, em área restrita e por tempo limitado, com o objetivo de preservar a ordem pública, a integridade da população e garantir o funcionamento regular das instituições”. De acordo com a lei, as Forças Armadas são destacadas para garantir a ordem pública se essa situação for formalmente reconhecida pelo executivo Federal ou Estadual e, neste caso, a autoridade de destacamento “constituir um centro de coordenação de operações, composto por representantes dos órgãos públicos sob seu controle operacional ou com interesses afins”. É importante destacar que as mesmas regras que regem as operações do GLO têm por objetivo proteger os direitos dos civis e limitar o uso da força militar. Assim, as operações da GLO podem ser questionadas quando violam as regras e regulamentos em que estão inseridas, em episódios marcados pelo uso irrestrito da força militar, ou quando os direitos da população civil são violados (MACHADO, 2017). Essas operações são distintas das operações reais de guerra ou de combate. Os regulamentos fornecem diretrizes destinadas a proteger as forças armadas do confronto com civis, mas permitem o "uso limitado da força". Esta política é explicada no manual GLO do Ministério da Defesa (MD), que leva o seguinte em consideração: As Operações de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO) caracterizam-se como operações de “não guerra”, pois, embora empregando o Poder Militar, no âmbito interno, não envolvem o combate propriamente dito, mas podem, em circunstâncias especiais, envolver o uso de força de forma limitada (BRASIL, 2014, p. 17). O manual do Ministério da Defesa ainda define que as seguintes normas de conduta precisam ser cumpridas: As Normas de Conduta são prescrições que contêm, entre outros pontos, orientações cerca do comportamento a ser observado pela tropa no trato com a população, pautado, sempre, pela urbanidade e pelo respeito aos direitos e garantias individuais. Sua exata compreensão e correta execução pela tropa constituirão fator positivo para o êxito da operação. As referidas normas serão consideradas quando da elaboração subsequente das Regras de Engajamento (RE) (BRASIL, 2014, p. 20). As “Regras de Engajamento” consideram as seguintes diretrizes: Regras de Engajamento (RE) deverão ser expedidas em cada nível e para cada operação e tipo de atuação visualizada. Levarão em consideração a necessidade de que as ações a serem realizadas estejam de acordo com as orientações dos escalões superiores e que observem os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e legalidade. Deve-se ter em mente, também: a) a definição de procedimentos para a tropa, buscando abranger o maior número de situações; b) a proteção, aos cidadãos e aos bens patrimoniais incluídos na missão; e c) a consolidação dessas regras, em documento próprio, com difusão aos militares envolvidos na operação (BRASIL, 2014, p. 20). Segundo os dados do Ministério da Defesa, entre 1992 e 2021 foram realizadas 132 operações de Garantia da Lei e Ordem. Destas, a maioria envolveu missões de curto prazo (entre 1 e 3 meses), tanto para “segurança em eventos”, como para “garantir a normalidade das eleições” e também em episódios de “perturbação da ordem pública”, gerados devido ao estado de greves policiais, episódios de violência urbana, entre outros (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2014). Destas 132 operações, apenas seis foram ordenadas com prazo igual ou superior a cinco meses, a saber: Mamoré (Rondônia em 2004); Ibama (Amazônia Legal em 2005); Arcanjo (Rio de Janeiro, 2010); Ilhéus (Bahia, 2014); São Francisco (Rio de Janeiro, 2014); Barrido (Todo território Nacional e sistema penitenciário, 2017); Rio de Janeiro. Destas 132 operações de GLO, 20 foram realizadas no Rio de Janeiro. Por sua vez, a metade destas 20 operações estavam relacionadas a segurança pública ou violência urbana. A maior parte dessas operações envolveu ocupações militares de favelas da capital do Estado. No Rio de Janeiro, desde 2010, aconteceram duas operações com longa duração: Operação Arcanjo entre 2010 e 2012, que durou vinte e seis meses, e ocupou os Complexos do Alemão e o Complexo da Penha; e depois a operação São Francisco entre 2014 e 2015, para ocupação do Complexo da Maré e que durou quinze meses. De acordo com levantamento feito pela imprensa, as operações de GLO causaram mortes violentas de civis por militares (VIANA, 2018) e, com menor frequência, mortes de militares. Na operação São Francisco, no Complexo da Maré, por exemplo, foram registrados doze civis e um soldado mortos. Esse tipo de operação, em que o exército assume o poder de polícia, não foi bem avaliada pelo comando das Forças Armadas. Em meados de 2017, o Comandante-Geral das Forças Armadas, General Eduardo Villas Boas, expressou sua insatisfação com as operações da GLO: (...) internamente esse emprego inclusive causou, agora recentemente, alguma celeuma de garantia da lei e da ordem. Nos últimos 30 anos nós fomos empregados [em operações GLO] 115 vezes. O único estado onde não houve emprego até hoje, me parece, foi São Paulo. Nós não gostamos desse tipo de emprego. (...) O último grande emprego nosso foi na favela da Maré, comunidade da Maré no Rio de Janeiro, comunidade de 130 mil habitantes. Nós ficamos lá por 14 meses, senador. E eu periodicamente ia até lá e acompanhava o nosso pessoal, nossas patrulhas na rua. E um dia me dei conta, senador Requião, [vendo] nossos soldados atentos e preocupados [nas] vielas, armados, e [nas vielas] passando crianças, passando senhoras. E eu pensei: “estamos aqui apontando a arma para a população brasileira?!”, “nós somos uma sociedade doente!”. E lá ficamos 14 meses. E no dia que saímos, uma semana depois, tudo havia voltado ao que era antes. Então, temos realmente que repensar esse modelo de emprego porque ele é desgastante, perigoso e inócuo. (IPEA, 2019). Uma das principais preocupações das operações da GLO diz respeito aos processos relacionados a incidentes criminais envolvendo praças e oficiais. No entanto, uma nova lei federal ampliou as garantias para os militares envolvidos nessas operações. Com efeito, em outubro de 2017, foi aprovada a Lei n.º 13491, que alarga os poderes da Justiça Militar da União para processar e julgar os homicídios cometidos por militares e altera o Código Penal Militar. Segundo a Lei n.º 13491, crimes ''dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União'', especialmente os cometidos em determinados contextos, inclusive: I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa; II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal (BRASIL, 2017). Antes desta lei, as mortes cometidas por militares eram julgadasem tribunais comuns, em processo de júri (lei n. 9.299/96). Mesmo com essa nova lei, o papel dos militares nas operações da GLO é preocupante. Em matéria publicada na página aberta da revista Veja, em 28 de fevereiro de 2018, o comandante-geral das Forças Armadas, General Eduardo Villas Boas, expressou sua preocupação com a questão jurídica das ações militares durante a intervenção. A este respeito, o general pede "medidas jurídicas excepcionais" durante a intervenção. Ressalte-se que, desde o decreto GLO no Rio de Janeiro, de 28 de julho de 2017, até o início da intervenção em fevereiro de 2018, já haviam sido realizadas dezenove operações GLO no estado, três para patrulhamento rodoviário e dezesseis em comunidades pobres. Essas operações envolveram ações conjuntas das Forças Armadas e das Forças de Segurança Pública. Há denúncias sobre a atuação das Forças Armadas na operação de GLO realizada no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, em novembro de 2017. Essa operação culminou em um alto número de civis mortos e a imprensa denunciou graves violações de direitos humanos durante a operação (SOARES, 2018). Em abril de 2018, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) protocolou uma denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos contra a Lei nº 13.491, que transferiu a competência de julgar e processar da Justiça Comum para a Justiça Militar os assassinatos de civis atribuídos a membros das Forças Armadas, a exemplo do massacre no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, já citado (DPRJ, 2018). A imprensa noticiou as dificuldades encontradas por familiares em esclarecer as circunstâncias das mortes causadas pelos militares nas operações do GLO (VIANA, 2018). Em geral, as Forças Armadas não possuem protocolos e dispositivos específicos para tornar transparente sua atuação nas operações da GLO. Ressalte-se que o “exercício do controle externo” das atividades das Forças Armadas durante o período de intervenção é de responsabilidade do Ministério Público Militar no Rio de Janeiro. CONCLUSÃO Nesta pesquisa foi possível observar que o Exército, por diversas vezes na história, foi empregado como meio paliativo para resolver políticas públicas do Estado Brasileiro. Duque de Caxias, patrono do Exército, conduziu suas tropas em 1838 contra a população negra, com o intuito de garantir a ordem e a estabilidade da política escravocrata que vigorava até então. Falecido em 1880, Caxias não pode ver as mudanças deste campo nos anos que se seguiriam, quando generais se voltaram contra o posicionamento anterior e passaram a defender publicamente uma política abolicionista, chegando até mesmo, a envio de carta aberta pelo Clube Militar à Princesa Isabel, requerendo o não emprego das Forças Armadas na perseguição da População Negra. De forma bastante semelhante, a posição do general Eduardo Villas Boas em oposição a atuação do Exército em operação da GLO nos aponta uma mudança. Zigmunt Bauman (2005, p. 24) adverte que “no carro do progresso, o número de assentos e de lugares em pé não é, em regra, suficiente para acomodar todos os passageiros potenciais” e, conclui que “não importa a habilidade que possamos ter na arte de gerenciar crises, na verdade não sabemos como enfrentar esse problema. Talvez nos faltem até mesmo as ferramentas para imaginar formas razoáveis de enfrentá-lo”. A intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro enfrentou um dos problemas mais complexos do país: a crise de segurança pública. Os dados analisados mostram que a Intervenção Federal no Rio de Janeiro priorizou a reestruturação das forças de segurança do estado para alcançar resultados mais sustentáveis. Paralelamente, levou a cabo medidas de enfrentamento direto imediato com o objetivo de reduzir, a curto prazo, índices significativos de criminalidade. Ao combater as forças irregulares, deixando de abordar as causas latentes da violência política, social e econômica e priorizando o combate repressivo, as operações de Garantia da Lei e da Ordem pode não só ter falhado em atingir seus objetivos, mas também corre o risco de ter produzido efeitos secundários. Estamos cientes de que ao investir na parte estrutural da Polícia Militar com a compra de armas e veículos o interventor indicou que não houve mudança no rumo da implementação da política de segurança que, por razões históricas, visa o confronto direto com o crime. Voltando ao problema estabelecido: Seria mesmo inócuo a atuação das Forças Armadas nas Operações de Garantia da Lei e da Ordem? Podemos concluir que sim, porque os resultados analisados, independentemente de terem ou não relação causal direta na redução em curto prazo dos índices de criminalidade, não são suficientes para reverter uma situação histórica: agir para obter capital simbólico antes do uso da violência física, cujo uso acaba não sendo mais necessário. Concluímos que as medidas adotadas pelo Órgão de Intervenção Federal do Estado do Rio de Janeiro indicam que as medidas implementadas replicam medidas fracassadas de política de segurança pública que favorecem as operações militares sem comprometer as condições econômicas, políticas e sociais do problema. REFERÊNCIAS ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Schwarcz, 1963. ARRUDA, J. R. O Uso Político das Forças Armadas: e outras questões militares. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. BAUMAN, Z. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. BONAVIDES, P. Ciência Política. São Paulo: Malheiros editores, 2000. 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