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80 F G V d e B o l s o soes q u e a inda afligem cientis tas sociais ao r edor do m u n d o , em especial n o Brasil. Tra taremos b revemente dos seguin tes temas: i den t i dade e cu l tu ra ; nação, nacional ismo e cul tura ; cu l tu ra de massa e indústria cul tura l ; mul t icu l tura l i smo. O objet ivo desta seção é mos t ra r como " c u l t u r a " p o d e significar u m espec t ro amplo de práticas sociais e políticas. No decor rer dessa apresentação, veremos também alguns ou t ros au tores e teorias . Identidade e cultura Que é a " i d e n t i d a d e " ? Em geral , usamos essa palavra pa ra descrever a sub je t iv idade ou a s ingu la r idade de cada pessoa, o con jun to coerente de emoções, mot ivos , opções e práticas q u e t r a d u z e m o q u e cada u m é. Do mesmo modo , q u a n d o fa- lamos em iden t idade cu l tura l , es tamos p e n s a n d o n u m a ideia de t rad ição q u e seria a expressão au tên t ica dos costumes, há- bitos e valores de u m povo ou u m g r u p o social. Mas será q u e a discussão é tão simples assim? Em u m conhec ido l ivro in t i tu l ado A identidade cultural na pós-modernidade, o es tudioso inglês Stuar t Hall traça u m a breve história do concei to de i den t i dade n o pensamen to oci- denta l , m o s t r a n d o como este passou por u m a série de al te- rações. Se antes a i d e n t i d a d e era pensada n u m a perspec t iva cartesiana, q u e via a sub je t iv idade h u m a n a como emanação da rac ional idade ind iv idua l , depois das descober tas da so- ciologia, da psicanálise e da própria filosofia, essa visão foi p ro fundamen te a l terada. Afinal, os sociólogos clássicos já mos t ravam q u e o indivíduo não é " senhor de s i" , mas cons - tituído socia lmente em var iados processos de in teração e so- cialização. Além disso, desde a r u p t u r a p romov ida pela obra P e n s a n d o c o m a S o c i o l o g i a 81 de S igmund Freud , já p u d e m o s e n t e n d e r as d imensões não conscientes q u e marcam a cons t rução da i nd iv idua l idade dos homens . Mais r ecen temente , inúmeros pesqu i sadores e filó- sofos ressal taram o pape l da l inguagem na p r o d u ç ã o da iden- t idade , enfa t izando q u e esta seria menos u m a expressão de algo i n t e rno de cada u m e mais u m sistema de classificações e s ignos mobi l izados po r pessoas em posição de poder , q u e p o d e m ro tu la r ou t ras . Qual o impac to de todas essas mudanças inte lectuais na nossa t rad ic ional concepção de i den t i dade e, mais especifica- mente , n o e n t e n d i m e n t o da i den t i dade cul tura l? Em pr imei - ro lugar, essas novas formulações ind icam q u e o sujeito foi descen t rado , isto é, passou-se a ver o indivíduo como u m a cons t rução de q u e pa r t i c ipam agências sociais (como esco- la, família etc.) , ou t ros indivíduos q u e com ele in te ragem e discursos q u e t r a d u z e m imagens simbólicas das pessoas (por exemplo , estereótipos veiculados pela mídia sobre negros , in- dígenas etc.). De m o d o geral , abandonou-se a ideia de q u e nossa sub je t iv idade é u m a s imples au tocons t rução , mov ida pela razão e pelos nossos sen t imentos íntimos. Ora, como podemos pensar a iden t idade cu l tura l nessa nova chave? Inic ia lmente , devemos desconfiar de visões q u e afirmam de forma mui to essencialista as iden t idades cu l tu ra i s de u m d a d o g rupo . Ou seja, deve-se ques t ionar a ideia de q u e os bens cu l tura is de u m a comun idade são resu l tado de u m a t rad ição au tên t i ca ou de u m espírito colet ivo in tocado . Em mui tos casos, essas t radições são inven tadas ou mesmo resul - t an tes de cons t ruções discurs ivas q u e envolvem out ros agen- tes além da comun idade . Por exemplo , o q u e represen ta "ser índio" n o Brasil hoje? Para início de conversa, essa visão do índio como u m ser genérico é característica das ins t i tu ições estatais q u e e ram responsáveis pela " p r o t e ç ã o " desses povos , 82 F G V d e B o l s o muitas vezes d is t in tos e inimigos en t re si. Q u a n d o vemos hoje u m índio ves t indo be rmudas , boné e camiseta de t ime de fute- bol, é fácil acusá-lo de ter " a b a n d o n a d o " sua iden t idade cul tu- ral . Esquecemo-nos, porém, q u e essa iden t idade cul tura l não é uma essência pura , q u e deve ser supos tamente "p rese rvada" , e sim u m modo de se const rui r socialmente. Assim, seria me- lhor vermos a iden t idade cul tura l indígena como u m conceito em disputa , sujeito a interações com outros g rupos sociais e à própria interpre tação feita pelos povos indígenas contemporâ- neos sobre suas origens e suas estratégias políticas. Cultura, nacionalismo e i d e n t i d a d e nacional Assim como a nossa concepção da i den t i dade cu l tura l passou po r mui tas t ransformações , o mesmo aconteceu com a nossa visão da nação. Afinal, qua l a relação en t re o Es tado- nação e a iden t idade nacional de u m " p o v o " ? Será possível afirmar q u e cada país exis ten te hoje n o m u n d o t r a d u z u m espírito colet ivo par t icu la r e homogéneo? Em u m l ivro clássico sobre o tema, in t i tu l ado Comunidades imaginadas, o cient is ta social Benedict A n d e r s o n d e s m o n t o u u m a série de pré-concepções acerca do significado do nac io- nal ismo n o m u n d o m o d e r n o . A n d e r s o n a r g u m e n t o u q u e as nações são " c o m u n i d a d e s imag inadas" , ou seja, artefatos p o - líticos q u e p re s supõem a formação de u m a língua nacional co- m u m e de u m imaginário histórico específico. Além disso, só teria s ido possível " imag ina r " a pertença dos h o m e n s a u m a comun idade q u e t r anscend ia seus locais de v ida par t icu lares depois de u m a série de t ransformações es t ru tura i s , exempl i - ficadas pelo su rg imen to da imprensa de massa nas sociedades capital istas. Por exemplo , como p roduz i r n u m espaço te r r i to - rial tão g r a n d e como o do Brasil o sen t imento comum de q u e P e n s a n d o c o m a S o c i o l o g i a 83 t odos hab i tam u m a mesma nação? A disseminação de notícias comuns e imagens homogéneas teria pe rmi t ido aos h o m e n s e mulheres do n o r t e ao sul do país sen t i rem q u e v ivem d e n t r o de u m mesmo t e m p o histórico e q u e compar t i lham u m mes- m o un iverso de significados. Como se vê , a nação é t u d o , me- nos uma s imples emanação do espírito colet ivo de u m g rupo . Além disso, há u m imenso e incessante t raba lho de seleção q u e classifica fatos históricos como " o r i g e n s " da nacional i - dade e el imina ou t ros como "distúrbios" ou anomalias . Por exemplo , é comum classificarmos as revol tas ocorr idas em P e r n a m b u c o em 1817 como "separa t i s tas" , e squecendo-nos de q u e n e m havia u m Estado i n d e p e n d e n t e p r o p r i a m e n t e constituído. M u i t a s vezes, achamos q u e o Brasil de hoje é mera consequênc ia na tu ra l de u m processo q u e se in ic iou em 1500, e squecendo-nos das d i spu tas de fronteiras, da conqu i s - ta de territórios es t rangei ros e da própria fabricação de u m a suposta i den t i dade q u e pe rmanecer ia até hoje. O p e n s a d o r inglês Eric H o b s b a w m escreveu, j u n t a m e n t e com o h i s to r i ador Terence Ranger, u m famoso l iv ro in t i tu la - do A invenção das tradições, n o q u a l a r g u m e n t a m q u e as t r a - dições cu l tu ra i s são, em boa med ida , fabricações históricas. Is to é, q u a n d o ident i f icamos cer tos s inais ou bens cu l tu ra i s a cer tos povos (o kilt aos escoceses, po r exemplo) , es tamos as - s u m i n d o como n a t u r a l u m a relação q u e foi alvo de d i s p u t a s en t r e eli tes, in te lec tua is , escr i tores e demais in te ressados em " p e n s a r " u m país. Por exemplo , p o r q u e o samba é t ido como u m símbolo da i d e n t i d a d e brasi leira , e ou t r a s manifes tações musicaisnão o são? Por q u e associamos o "bras i le i ro típico" a u m con jun to de características, como o b o m h u m o r , o j e i - t i n h o , a in formal idade e a c r ia t iv idade? Essas qua l i dades são na tu ra i s em nós ou são também p r o d u ç õ e s de l ivros , músicas e filmes q u e consagram cer ta v isão do q u e acei tamos como 82 F G V d e B o l s o muitas vezes d is t in tos e inimigos en t re si. Q u a n d o vemos hoje u m índio ves t indo be rmudas , boné e camiseta de t ime de fute- bol, é fácil acusá-lo de ter " a b a n d o n a d o " sua iden t idade cu l tu - ral. Esquecemo-nos, porém, q u e essa iden t idade cul tura l não é uma essência pura , q u e deve ser supos tamente "prese rvada" , e sim u m modo de se cons t ru i r socialmente. Assim, seria me- lhor vermos a iden t idade cul tura l indígena como u m conceito em disputa , sujeito a interações com out ros g rupos sociais e à própria interpretação feita pelos povos indígenas contemporâ- neos sobre suas origens e suas estratégias políticas. Cultura, nacionalismo e i d e n t i d a d e nacional Assim como a nossa concepção da iden t idade cu l tura l passou po r mui tas t ransformações , o mesmo aconteceu com a nossa visão da nação. Afinal, qua l a relação en t r e o Es tado- nação e a i den t idade nacional de u m " p o v o " ? Será possível afirmar q u e cada país exis ten te hoje n o m u n d o t r a d u z u m espírito coletivo par t icu la r e homogéneo? Em u m l ivro clássico sobre o tema, in t i tu l ado Comunidades imaginadas, o cient is ta social Benedict A n d e r s o n d e s m o n t o u u m a série de pré-concepções acerca do significado do nac io- nal ismo n o m u n d o m o d e r n o . A n d e r s o n a r g u m e n t o u q u e as nações são " c o m u n i d a d e s imaginadas" , ou seja, artefatos p o - líticos q u e p ressupõem a formação de u m a língua nacional co- m u m e de u m imaginário histórico específico. Além disso, só teria s ido possível " imag ina r " a pertença dos h o m e n s a u m a comun idade q u e t r anscend ia seus locais de v ida par t icu lares depois de u m a série de t ransformações es t ru tu ra i s , exempl i - ficadas pelo su rg imen to da imprensa de massa nas sociedades capital istas. Por exemplo , como p roduz i r n u m espaço te r r i to - rial tão g r a n d e como o do Brasil o sen t imen to comum de q u e P e n s a n d o c o m a S o c i o l o g i a 8! todos hab i tam u m a mesma nação? A disseminação de notícias comuns e imagens homogéneas ter ia pe rmi t ido aos h o m e n s e mulheres do no r t e ao sul do país sent i rem q u e v ivem d e n t r o de u m mesmo t e m p o histórico e q u e compar t i lham u m mes- m o universo de significados. Como se vê , a nação é t u d o , me- nos u m a s imples emanação do espírito colet ivo de u m g rupo . Além disso, há u m imenso e incessante t raba lho de seleção q u e classifica fatos históricos como " o r i g e n s " da nacional i - dade e el imina ou t ros como "distúrbios" ou anomalias . Por exemplo , é comum classificarmos as revol tas ocorr idas em P e r n a m b u c o em 1817 como "separa t i s tas" , e squecendo-nos de q u e n e m havia u m Estado i n d e p e n d e n t e p rop r i amen te constituído. Mui t a s vezes, achamos q u e o Brasil de hoje é mera consequênc ia na tu ra l de u m processo q u e se iniciou em 1500, e squecendo-nos das d i spu tas de fronteiras, da c o n q u i s - ta de territórios es t rangei ros e da própria fabricação de u m a suposta i den t i dade q u e permanecer ia até hoje. O p e n s a d o r inglês Eric H o b s b a w m escreveu, j u n t a m e n t e com o h i s to r i ador Terence Ranger, u m famoso l iv ro in t i tu la - d o A invenção das tradições, n o qua l a r g u m e n t a m q u e as t r a - dições cu l tu ra i s são, em boa med ida , fabricações históricas. Is to é, q u a n d o ident i f icamos cer tos sinais ou bens cu l tu ra i s a cer tos povos (o kilt aos escoceses, po r exemplo) , es tamos as - s u m i n d o como n a t u r a l u m a relação q u e foi alvo de d i s p u t a s en t r e elites, in te lec tua is , escr i tores e demais in te ressados em " p e n s a r " u m país. Por exemplo , po r q u e o samba é t ido como u m símbolo da i d e n t i d a d e brasi leira , e o u t r a s manifes tações musicais n ã o o são? Por q u e associamos o "bras i le i ro típico" a u m con jun to de características, como o b o m h u m o r , o j e i - t i n h o , a in formal idade e a c r i a t iv idade? Essas qua l i dades são na tu ra i s em nós o u são também p r o d u ç õ e s de l ivros, músicas e filmes q u e consagram certa v isão do q u e acei tamos como 84 F G V d e B o l s o l eg i t imamente brasi leiro? São essas ques tões q u e devem des - pe r t a r a a tenção do sociólogo e do professor de sociologia q u a n d o for d i scu t i r esses t emas com a lunos e colegas. Cultura de massa, c u l t u r a popular e indústria cultural Q u a n d o falamos de cul tura , u m a pr imei ra divisão q u e sempre nos vem à men te é aque la en t re " cu l tu r a p o p u l a r " e "cu l tu r a e rud i t a " . Supos tamente , a pr imei ra seria o q u e en- t endemos po r folclore, e n q u a n t o a segunda t raduz i r i a o re - pertório de g randes bens cu l tura is universa is , como a música de Beethoven, os l ivros de Tolstoi ou as p i n t u r a s de Van Gogh. A l g u n s falam também em "cu l tu r a de massa" para t en ta r en- t e n d e r a música p o p , o c inema de Hol lywood , as revis tas em q u a d r i n h o s e demais bens cu l tura is q u e são p r o d u z i d o s em larga escala e vend idos como mercadorias . Mas será q u e a coi- sa é tão simples assim? O q u e a sociologia e as ciências sociais p o d e m nos ens inar sobre essas classificações? Uma das pr imei ras g r andes t en ta t ivas de pensar as rela- ções en t re cu l tu ra e sociedade de massas foi p roduz ida pela chamada escola de Frankfur t . Um dos mais famosos pensa- dores desse g rupo , T h e o d o r A d o r n o , escreveu mui to sobre a indústria cul tura l em seus tex tos e l ivros, nos qua is a rgu- mentava q u e o adven to do capi tal ismo monopol i s ta — ba- seado na g r a n d e indústria, na concen t ração de p r o p r i e d a d e e na formação de vas tos conglomerados económicos — impl i - cou a t ransformação da p r o d u ç ã o cu l tu ra l n u m a espécie de mercador ia p r o d u z i d a em larga escala. Isso significava q u e o conteúdo único de cada criação era desca r tado em função da padron ização e da repet ição de certas formas e clichés q u e p r o d u z i a m u m consumo rápido e fácil. A d o r n o acredi tava q u e a g r a n d e cu l tu ra t i nha po r objet ivo desper t a r u m a cons- P e n s a n d o c o m a S o c i o l o g i a 85 ciência crítica n o indivíduo, poss ib i l i t ando u m a a t i tude de não aceitação do m u n d o q u e o cercava. Já os p r o d u t o s da in - dústria cul tura l e ram mercador ias des t inadas à simples frui- ção, cujo consumo não implicava o desenvo lv imen to de u m a visão crítica a respei to do m u n d o em q u e foram p roduz idas . Mas seria essa a única forma de c o m p r e e n d e r a chamada cu l tu ra "de massas"? Na Ingla ter ra , u m g r u p o constituído n o Centro pa ra Es tudos Cul tura is Contemporâneos, na Uni - vers idade de Bi rmingham, desenvolveu novas visões desse tema ao longo dos anos 1970 e 1980. Inic ia lmente , os p e s q u i - sadores desse g r u p o dedicavam-se a fazer análises críticas dos p r o d u t o s de massa (como novelas, filmes comerciais etc.) em busca de ideologias dominan te s q u e es tar iam aí implícitas ou ocul tas pela forma "fácil" q u e revest ia esses objetos. Poste- r io rmente , eles descar ta ram a visão simplis ta q u e enxergava o consumo de massa como pass ivo e a l ienado, a t e n t a n d o para as diversas formas q u e o público empregava para ler, consu- mir e usar filmes, novelas, comerciais etc . Como se percebe , esses intelectuais v iam esses p r o d u t o s como " t e x t o s " a serem in t e rp re t ados e decodificados. Stuar t Hall , po r exemplo , dizia q u e era impor t an t e e s tuda r as diversas formas pelas qua is o consumidor lia esses tex tos : ele poder ia s implesmente acei- tar as premissas do d iscurso político con t ido n u m a novela, ou poder ia também negá-lo, desacreditá-lo. A importância dos e s tudos cu l tura is britânicos está no des locamento do foco de pesqu i sa da produção pa ra o consumo cu l tura l , o q u e ev idencia a capac idade do público de desenvolver diferentes estratégias para l idar com os bens p r o d u z i d o s pela indústria cul tu ra l . Mas e a cu l tu ra popu la r ? O q u e a sociologia teria a dizer sobre ela? Em pr imei ro lugar, as m o d e r n a s teorias sobre o tema mos t ram q u e é i lusão acredi tar n u m a suposta pureza ou 86 F G V d e B o l s o P e n s a n d o c o m a S o c i o l o g i a 87 au ten t i c idade q u e seriam características da p r o d u ç ã o cu l tu ra l feita pelo povo. Afinal, poderíamos p e r g u n t a r o q u e vem a ser exa tamen te " p o v o " : homens simples? Sertanejos, pobres? To- das essas são classificações questionáveis, muitas vezes cons- truídas não pelos próprios " p o p u l a r e s " , mas por in te lectuais e pensadores q u e falam sobre o m u n d o popula r . Essa é ou t r a d imensão re levante q u e a sociologia revelou: a importância dos mediadores na definição do q u e seja a cu l tu ra popu la r . Por exemplo , a ideia de q u e o samba seria a "música p o p u l a r bras i le i ra" foi resu l tado de u m processo histórico envolven- do sambis tas e in te lectuais e rud i tos in teressados em fixar os elementos mais característicos da cu l tu ra nacional . Com isso não se p r e t e n d e dizer q u e a cu l tu ra p o p u l a r seja u m a s imples invenção, e sim q u e devemos evi ta r i ngenu idades n o t r a to dessas ques tões . A própria história q u e cerca a ideia de cu l t u r a p o p u l a r é ev idênc ia disso. Afinal, foi no período romântico a lemão (v i rada d o século XVIII pa ra o XIX) q u e o con jun to de len- das , t r ad ições e cos tumes t r ad ic iona i s pas sou a ser pos i t i - v a m e n t e va lo r izado como algo q u e dever ia ser co le tado , ca ta logado e p r e s e r v a d o . E nesse processo foi f u n d a m e n t a l a pa r t i c ipação de escr i tores e p e n s a d o r e s como J o h a n n Her- der . Sem eles não haver ia a própria reflexão em t o r n o do q u e seja " c u l t u r a p o p u l a r " . O sociólogo paul is ta Rena to Ortiz é u m dos g r andes es - tud iosos dessa ques t ão n o Brasil. Nos seus l ivros, ele mos t ra como nos anos 1950 e 1960 os inte lectuais brasi leiros es tavam obcecados com a ideia de "descob r i r " a "ve rdade i r a " cu l tu - ra brasileira, q u e seria u m a emanação da nossa i den t i dade au tên t ica e não colonizada. Ortiz mos t ra q u e essa busca, na ve rdade , não revelava u m a pureza intocável, mas ajudava a fabricar a própria t rad ição q u e se acredi tava estar desco- b r i n d o . Os in te lectuais d e s e m p e n h a r a m notável papel nesse processo, a r t i cu l ando objetos t idos como regionais ao p r o - j e to nacional e n c a r n a d o no Estado. Ao longo dos anos 1970 e 1980 foi possível nota r como u m veículo típico da cu l tu ra de massas — a te levisão — logrou t raba lhar com elementos e regis t ros no rma lmen te associados à cu l tu ra popula r . Por exemplo , a Rede Globo p r o d u z i u inúmeras novelas e séries q u e re t ra tavam personagens " t ip i camen te brasi le i ros" , além de adap ta r novelas de Jorge A m a d o q u e supos tamente r ep re - sentavam o país mais au tên t ico . Seriam as novelas hoje u m a nova t rad ição popu la r ? Com o adven to da globalização, pe rcebemos u m mov imen- to geral de busca das raízes, como n u m a estratégia de defesa d i an te da ameaça de homogene idade social. En t re tan to , es - t u d o s recentes mos t ram q u e esse processo não é u m a via de mão única, mas uma complexa in teração em q u e diferentes aspectos cu l tura is são d isseminados pelo p laneta . O mesmo Renato Ortiz escreveu em out ros l ivros sobre a cu l tu ra inter- nacional popular , q u e vem a ser o imenso repertório global p r o d u z i d o pe lo processo de mundia l ização da cu l tu ra . Ou seja, é possível percebermos a formação de u m imaginário pop , pa r t i l hado po r j ovens brasileiros, amer icanos e irania- nos, q u e lida com diversos objetos e referências q u e são, na ve rdade , "des te r r i to r ia l izados" . Por exemplo , os filmes de fa- roeste, o r ig ina lmente u m a típica nar ra t iva nor te-amer icana , foram progress ivamente incorporados por diversos c ineastas ao redor do m u n d o e ressignificados. O q u e era u m e lemento típico da "cu l tu ra p o p u l a r amer icana" torna-se uma mitologia heroica global , t ransformando-se n u m s igno q u e faz sen t ido p a r a os homens ao redor do m u n d o . Do mesmo modo, os fil- mes do cineasta americano Quentin Tarantino usam d iversos 88 F G V d e B o l s o símbolos da cu l tu ra p o p u l a r de ou t ros países, como as lu tas marciais inverossímeis da filmografia de H o n g Kong. É claro q u e a inda há relações assimétricas en t re países, o q u e to rna o fluxo cu l tura l global mui to des igual . Mas, a inda assim, é impor t an t e no ta r q u e a mundia l ização não implica necessar iamente a mor t e da cu l tu ra popu la r . Se e n t e n d e r m o s q u e essa cu l tu ra n u n c a foi algo p u r o ou in tocado , torna-se mais fácil compreende r as negociações e d i spu tas q u e envol - v e m a descrição do q u e seja u m b e m cu l tu ra l " p o p u l a r " n o m u n d o contemporâneo. Multiculturalismo Que vem a ser o mul t icu l tura l i smo? Grosso modo, essa pa- lavra diz respei to a u m conjun to de teorias e discursos polí- tico-culturáis q u e enfat izam a exis tência de u m a d ivers idade de iden t idades e modos de v ida par t icu lares n u m a sociedade, e q u e avaliam esse fato de manei ra posi t iva . Trata-se de afir- mar q u e a pertença a u m a comun idade cu l tu ra l específica é fundamenta l pa ra a autoes t ima das pessoas, bem como de va- lorizar o r econhec imen to disso pelo Estado e pela sociedade. Como se percebe , a perspec t iva mul t icul tura l i s ta se opõe à tradic ional concepção q u e via os Estados-nações como ex- pressões políticas de u m a comun idade nacional homogénea e in tegrada , baseada n u m a concepção abst ra ta e universal is ta do c idadão. De m o d o geral , essa perspec t iva também implica u m a pos tu ra política q u e busca dar voz a minor ias e g rupos étnicos q u e supos tamente te r iam s ido si lenciados nos proces- sos de cons t rução nacional . Para os autores q u e ado tam essa l inha de pensamen to , a rea l idade mul t i cu l tu ra l das sociedades contemporâneas nos obr igar ia a ado ta r u m a pos tu ra crítica do l iberal ismo univer - P e n s a n d o c o m a S o c i o l o g i a 89 salista q u e está na raiz das m o d e r n a s democracias . Isto é, em vez de relacionar as leis e os direi tos ao con jun to da socieda- de, t o m a n d o os indivíduos como c idadãos iguais e homogé- neos , a política do r econhec imen to veiculada pelos mul t icu l - tura l is tas sugere q u e cer tos g rupos específicos dever iam te r sua i den t i dade comunitária legalmente reconhec ida . Ou seja, a visão mul t icu l tu ra l da justiça reconhece a necess idade de a legislação a t r ibu i r direi tos a g rupos par t iculares , r o m p e n d o com a concepção l iberal t radic ional q u e rejeita o a t iv ismo d o Estado em ques tões referentes a estilos de v ida e preferências cu l tura is e só concebe o c idadão i n d i v i d u a l como depositário de direi tos. Um exemplo dessa d i spu t a está no Canadá, o n d e a região francófona de Quebec luta pela preservaçãode sua i den t i dade cu l tu ra l pa r t i cu la r e busca p roduz i r u m a legisla- ção específica q u e reconheça a pa r t i cu la r idade de sua comu- n i d a d e . Na França contemporânea, a legislação — for temente igualitária e r epub l i cana — proíbe o uso de sinais religiosos nas escolas públicas, e isso desagrada aos imigrantes muçul- manos q u e pos tu l am a leg i t imidade de sua confissão rel igio- sa, a qual , pa ra a lguns , o rdena o uso do véu para mulheres . O exemplo francês i lustra de forma precisa os di lemas en t re universa l i smo e par t i cu la r i smo q u e estão n o coração das d i s - p u t a s envo lvendo o mul t icu l tura l i smo. Quais são os a rgumen tos mais comumente ut i l izados nes - sas d i spu tas? Os l iberais universal is tas a r g u m e n t a m q u e não faz sen t ido p roduz i r legislação para g rupos específicos, se- j a m eles minor ias étnicas ou religiosas, já q u e isso romper ia a condição igualitária q u e marca as democracias . Além disso, qua is os critérios para aver iguar q u e cu l tu ras devem ou n ã o ser "p re se rvadas"? Seria a t r ibu ição do Es tado legislar sobre estilos de v ida e preferências? Também a r g u m e n t a m q u e esse a t iv ismo criaria efeitos não desejados, como a criação de g ru - 90 F G V d e B o l s o pos pr iv i leg iados não po r seus méritos, mas apenas po r sua or igem ou condição étnica. Por sua vez, os adep tos da política do reconhec imento a r g u m e n t a m q u e a igua ldade das d e m o - cracias m o d e r n a s seria falsa, na medida em q u e o modelo do c idadão n u n c a foi neu t ro , mas sempre marcado pelas caracte- rísticas dos g rupos socialmente dominan tes . Em geral , o m o - delo de c idadania ter ia s ido o h o m e m b r a n c o de classe média, exclu indo-se das representações hegemónicas as mulheres e os negros , ou mesmo os indígenas. Assim, a r g u m e n t a m q u e o universa l i smo sempre teria mascarado a hegemonia de a lguns g rupos sobre out ros , o q u e demandar i a a p r o d u ç ã o de di re i - tos específicos para certas cole t iv idades . Além disso, a legam q u e o ind iv idua l i smo l iberal ignora o fato de as pessoas na s - cerem d e n t r o de u m ambien te cu l tu ra l específico, q u e p r o d u z parâmetros morais e estéticos par t icu lares . Assim, não faria sen t ido ignora r a exis tência de diferentes comun idades e suas d is t in tas h ie ra rqu ias de valores. No Brasil, o mul t icu l tu ra l i smo já foi até ado t ado como p a r t e do discurso oficial — q u e valoriza a d ivers idade de cu l tu ras q u e ter iam p r o d u z i d o o país — , mas a inda provoca mui tas polémicas na esfera pública. Por exemplo , a d iscussão sobre cotas raciais invar iavelmente t raz à tona a rgumen tos a respei to da necess idade de se p rese rvar a iden t idade "afro- bras i le i ra" , o q u e susci ta críticas por pa r t e dos adep tos de políticas universal is tas . Para estes, o r econhec imen to das d e - m a n d a s de g rupos par t icu lares por t r a t amen to diferenciado implicar ia o f rac ionamento do país e o a b a n d o n o da convi - vênc ia democrática. Para os q u e defendem u m a abordagem mul t icu l tura l , o reconhec imen to da i d e n t i d a d e negra bras i - leira servir ia pa ra romper com o falso d iscurso da mestiça- gem, q u e operar ia como u m discurso hegemónico q u e discr i - P e n s a n d o c o m a S o c i o l o g i a 91 minar ia o un ive rso afro-brasileiro. Como se vê , mui tas são as polémicas q u e cercam o deba te mul t icul tura l i s ta . C u l t u r a b r a s i l e i r a : d e m o c r a c i a , m u l t i c u l t u r a l i s m o , i d e n t i d a d e e patrimônio Depois de t u d o q u e v imos , como é possível anal isar a "cu l tu r a bras i le i ra" e e n t e n d e r suas t ransformações na v ida contemporânea? Aliás, será possível falar de uma cu l tu ra brasi leira? Nos próximos parágrafos discut i remos b revemen- te a lguns aspectos contemporâneos desse tema, l evando em conta o q u e foi a p r e n d i d o an te r io rmen te . Democracia e i d e n t i d a d e nacional A Const i tuição de 1988 t rouxe novos parâmetros para as políticas públicas q u e envolvem a cu l tu ra . Em pr imei ro lu- gar, o próprio adven to do regime democrático abr iu a pos - s ibi l idade de q u e a discussão cu l tura l não seja apenas u m a a t r ibu ição de in te lectuais , especialistas e formuladores de políticas públicas. Desde então , numerosos g rupos e comu- n idades busca ram valor izar suas expressões artísticas e iden- titárias e fazer valer suas d e m a n d a s de forma autónoma. Isso impl icou, mui tas vezes, u m a d i spu ta em t o r n o do significado da i den t i dade brasi leira. A iden t idade nacional brasi leira foi construída em t o r n o de u m a nar ra t iva q u e enfatizava a con t r ibu ição de t rês cu l tu ras — negros , b rancos e indígenas — q u e te r iam se amalgamado pela mestiçagem. Para a lguns fabuladores dessa iden t idade , como o pensado r p e r n a m b u c a n o Gi lber to Freyre , o Brasil, ao contrário de sociedades europeias , não teria n e m u m povo cu l tu ra lmen te homogéneo, n e m u m mosaico de iden t idades étnicas r ig idamente demarcadas . Seríamos, po r t an to , novos e 92 F G V d e B o l s o mestiços. Depois de 1988, ampl iaram-se as críticas a essa nar- rat iva, b e m como as re in terpre tações . Os povos indígenas, p o r exemplo , ques t iona ram o q u a n t o esse d iscurso escamoteou suas cu l tu ras par t iculares , além de tratá-los de forma genéri- ca como "índios". Os enf ren tamentos com a polícia, q u a n d o das comemorações dos 500 anos do descobr imen to em Por to Seguro, são prova dessa tensão . O próprio mov imen to negro abr iu-se desde os anos 1990 para u m a discussão mais in tensa da relação en t re i d e n t i d a d e afro-brasileira e seu lugar na cul - t u r a nacional , b u s c a n d o afirmar de forma mais clara sua pró- pr ia versão sobre o tema. O próprio t e rmo "afro-bras i le i ro" deno ta essa ten ta t iva de marcar u m a inscrição par t icular i s ta q u e desafia as noções clássicas de i den t idade nacional . Como se vê , assiste-se hoje a u m a in t ensa d iscussão en - v o l v e n d o a própria definição do q u e seja a i d e n t i d a d e b ra - sileira e seus sen t idos cu l tu ra i s . Será possível afirmar u m a rea l idade mul t i cu l tu ra l em q u e não haja necessa r i amen te u m e lemento único a s in te t izar as i d e n t i d a d e s pa r t i cu la res? Será o mul t i cu l tu ra l i smo incompatível com a i d e n t i d a d e nac iona l bras i le i ra? Essas são ques tões q u e d e v e m ser t r a - ba lhadas p o r q u a l q u e r profissional das ciências sociais n o Brasil contemporâneo. Para os q u e o lham apenas para as últimas décadas, pa re - ce q u e o Brasil sempre teve u m a iden t idade monolítica, q u e só agora estaria s endo ques t ionada . Na ve rdade , é possível afirmar q u e esse sempre foi u m tema clássico no pensamen to brasi leiro, o c u p a n d o lugar cent ra l em tex tos e obras clássicas de escri tores, ensaístas e músicos. Na década de 1920, a d is- cussão sobre a relação en t re i den t i dade brasileira, t rad ição e m o d e r n i d a d e foi fundamen ta l pa ra o m o v i m e n t o modern i s t a . N o seu manifesto da antropofagia, o poeta paul is ta Oswald de A n d r a d e afirmou q u e a marca da cu l tu ra brasileira seria a P e n s a n d o c o m a S o c i o l o g i a 93 capac idade de deg lu t i r informações ex te rnas e reprocessá-las de forma criat iva. Ou seja, o Brasil seria ao mesmo t e m p o sel- vagem e m o d e r n o , ser tão e c idade , mata e máquina. Em lugar de u m a iden t idade nacional ancorada n u m a cu l tu ra t rad ic io- nal e ant iga, Oswald r e t r a tou u m país capaz de se re inven ta r con t inuamen te po r intermédio de u m a relação canibalesca com o resto do m u n d o . Pode-sedizer q u e a antropofagia marcou a cu l tu ra bras i - leira ao longo do século XX. O t ropical ismo, por exemplo , foi u m mov imen to musical q u e enfatizava a necess idade de a mú- sica brasi leira apropr iar-se de e lementos da cu l tu ra p o p como forma de reatual izar o diálogo com a t rad ição anter ior . Is to é, tratava-se de ev i ta r u m a posição pur i s ta , q u e o p u n h a música brasi leira e rock, au t en t i c idade e cu l tu ra de massa, MPB e brega. As letras e músicas de Caetano Veloso, Gi lber to Gil, Tom Zé e out ros ev idenc iavam a poss ib i l idade de se usar a l inguagem do samba para incorpora r referências dos Beatles, de Rober to Carlos e de ou t ros ar t is tas t idos como " imper ia l i s - t a s " ou a l ienados. Vê-se aí a marca da antropofagia. Mais r ecen temente , o chamado mov imen to m a n g u e beat, surg ido em P e r n a m b u c o na década de 1990 e compos to po r ar t is tas como Chico Science, Nação Zumbi , Fred 04 e out ros , veio atual izar essa posição. Esses personagens rel iam a t r ad i - ção p o p u l a r p e r n a m b u c a n a , r ep resen tada pelos maraca tus r u - rais, violeiros, músicas de cordel e t c , po r intermédio de u m a l inguagem u r b a n a e p o p , apoiada por gu i ta r ras , d is torções e demais e lementos v incu lados ao rock. A despei to da polémica desper tada — em especial com Ar iano Suassuna, famoso es- cri tor e u m dos nomes do Mov imen to Armoria i , q u e buscava cons t ru i r u m a música erudi ta a par t i r da pesquisa no m u n d o popu la r — , o m a n g u e beat mos t rou a a tua l idade do m o d o de pensar antropofágico como forma de falar sobre o Brasil e sua 94 F G V d e B o l s o cul tura . Isso nos remete à seguin te pe rgun ta : será q u e o Brasil foi mul t icul tura l antes q u e essa palavra existisse? Cultura e patrimônio Que é o patrimônio cul tu ra l de u m país? Até recen temen- te , essa p e r g u n t a era fácil de ser r e spond ida , pois nossa ideia de patrimônio nos levava a pensa r em prédios históricos, ar- qu i t e tu r a , c idades coloniais e tc . No m u n d o oc identa l , o pa t r i - mônio t e m a função de representar , em te rmos simbólicos, a memória de u m a nac iona l idade , a to real izado po r intermédio da pesqu i sa e coleção de objetos t idos como exemplares de períodos históricos. No Brasil, o g r a n d e m o m e n t o q u e marcou essa discussão foi a criação do Serviço d o Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) em 1937, projeto pa ra o qua l as a tuações de Rodr igo Melo Franco de A n d r a d e (1898-1969) e Mário de A n d r a d e (1893-1945) foram fundamenta i s . O Sphan agia po r intermédio do mecanismo de t o m b a m e n t o s dos vestígios da ar te colonial , b u s c a n d o também inventar ia r e catalogar o b - je tos associados à memória nacional . A preocupação básica era or ien tada para a preservação da cu l tu ra barroca, encon - t r ada p r inc ipa lmen te no es tado de Minas Gerais e t ida como expressão da nossa s ingu la r idade nacional . Como se vê , pa - trimônio estava associado a u m a t rad ição nacional q u e deve - ria ser p rese rvada e ope rada como guia pa ra cons t rução do fu turo . Pos ter iormente , porém, essa noção se ampl iou . Já em 1979 a Fundação Nacional Pró-Memória tombava o terre i ro de can- domblé Casa Branca, em Salvador, i n d i c a n d o u m a visão mais aber ta do q u e fosse patrimônio, além de se abr i r pa ra práticas e manifestações colet ivas q u e estavam à margem da cu l tu ra P e n s a n d o c o m a S o c i o l o g i a 95 erud i t a . A figura de Aloísio Magalhães (1927-82) foi decisiva nesse projeto, po r sua a tuação em órgãos federais e seu p r o - j e to de valor izar os bens cu l tura is cot id ianos e as práticas e os espaços popula res . A par t i r de 1988, consagra-se a ideia de patrimônio imater ial ou intangível, a t r ibu indo-se ao Estado o dever de reconhecer e pro teger formas de medic ina popula r , t ipos de música e dança, técnicas culinárias etc . O regis t ro desses objetos e manifestações deve ser feito em q u a t r o l ivros: o de regis t ro dos saberes, o de regis t ro das celebrações, o de regis t ro das formas de expressão e o de regis t ro de lugares . Essas novas concepções nos levam às discussões sociológi- cas sobre o es ta tu to da cu l tu ra p o p u l a r e das iden t idades . Afi- nal , a política atual do Estado brasi leiro or ienta-se j u s t a m e n t e pa ra o regis t ro , p rese rvação e apoio de a t iv idades relaciona- das a práticas popu la re s t idas como "patrimônio imater ia l" , de q u e são exemplos os registros recentes do pão de quei jo e do samba de roda . Em lugar de pensa rmos esses objetos e prá- ticas como traços de au ten t i c idade popula r , devemos analisar o papel dos mediadores (funcionários federais, in te lectuais , r ep resen tan tes regionais , ar t is tas etc.) na consagração desses fenómenos e os próprios conflitos q u e envolvem a definição do q u e seja patrimônio. No cenário democrático contemporâneo, cu l tu ra é, cada vez mais, u m tema q u e envolve a sociedade civil e seus atores . As discussões sobre patrimônio passaram a se associar aos próprios projetos políticos de g rupos popu la res e comunida- des in teressadas em lu tar pelas suas iden t idades e em to rna r públicos seus discursos sobre a nação e seus lugares . Assim, se podemos falar em t radições " i n v e n t a d a s " e nações " imagi - n a d a s " , talvez n u n c a o Brasil t e n h a se inven tado e imaginado de formas tão d issonantes q u a n t o nessas duas décadas pos te - r iores à Const i tuição.
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