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José Eduardo Palacio Soares – Bloco Síndromes Pediátricas I – GT4 REFLUXO GASTROESOFÁGICO (RGE) CONCEITO Fluxo retrógrado involuntário do conteúdo gástrico para o esôfago. Regurgitações recorrentes ocorrem em cerca de 50% dos lactentes normais nos 3 primeiros meses de vida. Há uma redução gradual dessa taxa com a idade, chegando a 5% dos lactantes de 10 a 12 meses de vida. CLASSIFICAÇÃO 1) RGE FISIOLÓGICO: quando não é acompanhado de repercussões clínicas. Pode se tornar patogênico em qualquer momento de sua evolução. Nos primeiros meses de vida, o RGE fisiológico manifesta-se, principalmente por regurgitações pós-alimentares imediatas. Nesses casos, a criança tem crescimento normal e não apresenta outras manifestações clínicas. A frequência dos sintomas diminui a partir do 2° semestre de vida, coincidindo com a adoção de postura mais ereta e a transição para dietas pastosas e sólidas. Obs.: Em crianças maiores e adultos, episódios de refluxo fisiológicos podem ocorrer no período pós-prandial. 2) RGE PATOGÊNICO: é acompanhado de repercussões clínicas, como: • Perda de peso • Manifestações decorrentes de lesão esofágica e /ou manifestações respiratórias Deve-se suspeitar de RGE patogênico quando: • Regurgitações não diminuírem no 2° semestre de vida; • Não responderem às medidas posturais e dietéticas após 4 a 6 semanas ou persistirem após o primeiro ano de vida; • Lactente apresentar vômito, em vez de regurgitações, como principal manifestação do refluxo. O RGE patogênico pode ser: • Primário: decorrente da disfunção na região da junção esofagogástrica (denomina-se doença do refluxo). • Secundário: quando associado a doenças subjacentes, localizadas no trato digestivo ou fora dele. ETIOPATOGENIA Sob condições fisiológicas, o movimento do conteúdo gástrico para o esôfago é prevenido pela barreira antirrefluxo, localizada na junção esofagogástrica. Seus componentes principais são: ESFÍNCTER ESOFAGIANO INFERIOR (EEI): • Tem partes iguais localizadas no tórax e no abdome; • Localizado abaixo do diafragma, está submetido à pressão intra-abdominal, que contribui para a competência da junção esofagogástrica; • O recém-nascido apresenta imaturidade anatômica e funcional do EEI, que tem localização predominantemente intratorácica; • Após os 3 anos de idade, o esfíncter atinge dimensões e localização encontradas no adulto; • Em termos pressóricos, a maturação é gradual e funciona como esfíncter efetivo apenas após 5 a 7 semanas de vida. Durante a inspiração, forma-se um gradiente de pressão entre o estômago e o esôfago, que pode ser superior a pressão do EEI, podendo gerar o RGE. Entretanto, também durante a inspiração, o hiato esofágico se contrai, com consequente aumento da pressão intraluminal da junção esofagogástrica, dificultando ou impedindo o RGE. José Eduardo Palacio Soares – Bloco Síndromes Pediátricas I – GT4 LIGAMENTO FRENOESOFÁGICO: Ligamento que fixa o esôfago às margens do hiato esofágico (abertura formada por feixes musculotendíneos do diafragma, por onde passa o esôfago). Durante a inspiração, ele faz com que o esfíncter e o hiato deslizem juntos para baixo, impedindo que o esôfago assuma posição totalmente torácica, o que facilitaria o refluxo. Obs.: Portanto, durante a expiração parece ser o EEI o fator mais importante da barreira antirrefluxo, enquanto durante a inspiração, o diafragma e o ligamento frenoesofágico assumem papel preponderante. DIAFRAGMA CRURAL ÂNGULO DE HIS ROSETA DA MUCOSA GÁSTRICA: formada pelas pregas concêntricas da mucosa gástrica, na transição entre o esôfago e o estômago, ajuda na contenção do conteúdo gástrico, evitando sua passagem para o esôfago. FISIOPATOLOGIA O RGE torna-se patogênico quando disfunções dos mecanismos de barreira propiciam: • Episódios de refluxos volumosos e/ou mais prolongados; • O acesso do material refludo para a árvore respiratória; • Perda calórica importante; • Material refluido mais nocivo (ácido, pepsina, bile e tripsina). PRINCIPAIS FATORES ENVOLVIDOS NA DOENÇA DO RGE 1) RELAXAMENTOS TRANSITÓRIOS DO EEI INADEQUADOS Caracterizam-se por redução acentuada e abrupta da pressão do EEI com duração de mais de 5 segundos (35% dos episódios de RGE). 2) PRESSÃO DO EEI Diminuição da pressão basal do EEI (12% dos casos de refluxo patogênico). 3) AUMENTO DA PRESSÃO INTRA-ABDOMINAL: Pode ser secundário a choro, tosse e esforço evacuatório, especialmente, quando há disfunção do EEI. 4) ASSOCIAÇÃO DE ESVAZIAMENTO GÁSTRICO RETARDADO E RGE Quando o conteúdo gástrico se direciona rapidamente para o intestino, não sobra conteúdo para ser refluído. Por outro lado, quando há demora no esvaziamento gástrico, há um maior intervalo de tempo para que algum fator ocorra e provoque um refluxo (25 a 30% dos casos de crianças com refluxo sintomático). 5) EXISTÊNCIA DE HÉRNIA DE HIATO NO RGE Tem papel controverso, já que nem todo paciente que apresente o EEI dentro do tórax tem RGE. Entretanto, adultos com hérnia tem com mais frequência refluxo. 6) TEMPO DE CLAREAMENTO ESOFÁGICO É o tempo de duração do contato do material refluído com a mucosa esofagiana. Como o clareamento é resultante da peristalse esofagiana, da ação da gravidade e da produção e deglutição de saliva, durante o sono, como estão diminuídos, ocorre um prolongamento da exposição do esôfago ao material refluído, aumentando a chance de esofagite. Obs.: A esofagite depende do tempo de clareamento esofágico, da qualidade do material refluído e da resistência da mucosa. José Eduardo Palacio Soares – Bloco Síndromes Pediátricas I – GT4 MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS Podem ser subdivididas em 3 grupos: 1) REGURGITAÇÃO E/OU VÔMITOS • Regurgitação: eliminação de pequenas quantidades do conteúdo gástrico sem esforço. • Vômitos: eliminação de conteúdo gástrico com maior volume e acompanhada de contrações da musculatura abdominal, em geral, precedida por náuseas. São os sintomas mais frequentes, acometendo 80 a 95% das crianças menores que 12 meses com RGE patogênico. Dependendo da frequência e do volume das perdas, pode haver déficit de crescimento e anemia ferropriva. 2) ESOFAGITE E SUAS COMPLICAÇÕES Nas crianças mais jovens, manifesta-se por: • Choro excessivo • Irritabilidade • Distúrbio do sono • Dificuldade de alimentar, que pode ser acompanhada de hipodesenvolvimento somático. Nas crianças maiores, manifesta-se por: • Dor retroesternal • Pirose (sensação de dor epigástrica semelhante a uma queimadura, ger. acompanhada de regurgitação de suco gástrico para dentro do esôfago); • Azia; • Dor abdominal recorrente. Obs.: A dor retroesternal e a pirose, muitas vezes não estão associadas à esofagite e podem significar apenas irritação das terminações nervosas do esôfago pelo ácido. Quando a esofagite é grave e prolongada, pode resultar em estenose do esôfago, esôfago de Barret (metaplasia da mucosa esofágica) ou Síndrome de Sandifer (representada pela tríade: esofagite grave + movimentos rotatórios da cabeça e do pescoço + anemia ferropriva). 3) MANIFESTAÇÕES RESPIRATÓRIAS Várias manifestações respiratórias têm sido associadas ao RGE (embora sem confirmação de sua relação causa-efeito): • Pneumonia crônica ou recorrente • Asma; • Tosse crônica noturna O refluxo, apesar de mais frequente nessas situações, pode simplesmente ser um efeito secundário da tosse (aumento da pressão intra-abdominal), da dispneia (diminuição da pressão intratorácica) e da medicação broncodilatadora (diminuição da pressão do EEI). Entretanto alguns estudos sugerem o papel primário do refluxo na produção de doença respiratória, principalmente na hiper-reatividade brônquica não alérgica; na pneumonia recorrente e na bronquite. José Eduardo Palacio Soares – Bloco Síndromes Pediátricas I – GT4 DIAGNÓSTICO Deve-se iniciar pela história clínica, com especial atenção para: • História alimentar• Padrão de vômitos e regurgitações • Manifestações associadas • História pregressa e familiar A avaliação do ritmo de crescimento deve constituir parte fundamental do exame físico. A exploração propedêutica só está indicada em crianças com suspeita de RGE patogênico. EXAMES: 1) RADIOLOGIA CONTRASTADA DO ESÔFAGO, ESTÔMAGO E DUODENO (REED): Avalia a deglutição e anatomia do trato digestivo até o ceco. Útil para a identificação de estenose de esôfago e para o afastamento de causas anatômicas de RGE secundário (como: fístulas traqueoesofágicas, estenose hipertrófica do piloro, etc.) 2) CINTILOGRAFIA: é melhor para se detectar aspiração pulmonar e para estudar o esvaziamento gástrico. Frequência de mais de 3 episódios de refluxo por hora é, provavelmente, anormal. 3) MONITORAÇÃO DO PH ESOFAGIANO: Quando realizada por 18 a 24 horas é útil para o diagnóstico do RGE, em especial do refluxo oculto ou sem manifestações específicas. Alta sensibilidade, entretanto, detecta também RGE fisiológico. Mais utilizado para correlacionar refluxo e eventos como apneia, tosse, irritabilidade, distúrbios do sono, sibilância, dor retroesternal, choro excessivo. Para diferenciar RGE fisiológico e patológico, avalia-se critérios como: - Frequência dos episódios de refluxo; - Porcentagem de tempo em que o pH permanece abaixo de 4; - Número de episódios com duração superior a 5 min. - Porcentagem de tempo com episódios de duração acima de 5 minutos; - Média de tempo de clareamento; 4) ENDOSCOPIA DIGESTIVA ALTA OU ESOFAGOGASTRODUODENOSCOPIA: É um exame invasivo e realizado sob anestesia geral em crianças menores de 2 anos. Não diagnostica o RGE, mas sim a esofagite a ele associada. Está indicada quando houver suspeita de esofagite e suas complicações. 5) HISTOLOGIA DA MUCOSA ESOFAGIANA: sensível para o diagnóstico do refluxo. Alterações discretas à histologia sugerem a presença de refluxo, mas não permitem avaliar a gravidade e o prognóstico da doença. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL • Obstruções mecânicas do trato digestivo alto • Alergias alimentares (especialmente à proteína do leite de vaca) • Doenças infecciosas e neurológicas • Hiperreatividade brônquica • Úlcera péptica • Cólicas do lactente • Outras causas de irritabilidade do lactente José Eduardo Palacio Soares – Bloco Síndromes Pediátricas I – GT4 TRATAMENTO É individualizado e baseia-se na instituição de medidas comportamentais e medicamentosas. A Sociedade Europeia de Gastroenterologia e Nutrição Pediátricas recomenda, para o manejo inicial do RGE: a orientação da família e a instituição de medidas comportamentais, incluindo modificações alimentares e posturais. MEDIDAS COMPORTAMENTAIS 1) MUDANÇAS NA ALIMENTAÇÃO: • O aleitamento materno deve ser sempre mantido. • A recomendação de refeições menores em intervalos mais curtos, embora seja de grande utilização, tem sido contestada, pois, além de dificultar as tarefas da mãe, pode causar estresse à criança, em virtude da interrupção frequente das mamadas antes de ser alcançada à saciedade. Na prática, só é utilizada para crianças com RGE que não respondem a outras medidas. • O espessamento da dieta reduz o número de vômitos e regurgitações, mas não normaliza o índice de refluxo. Apesar do seu efeito benéfico, as dietas espessadas podem provocar aumento do tempo de contato do ácido gástrico com a mucosa esofagiana, predispondo esofagite e sintomas respiratórios. • Retirada de uso de leite de vaca, fórmulas infantis lácteas ou de soja, caso o lactente tenha iniciado o RGE após a introdução desses alimentos. Pode estar ocorrendo uma intolerância à proteína láctea ou da soja. • Para crianças maiores: evitar alimentos gordurosos, chocolate, café, bebidas gaseificadas em excesso e alimentação noturna antes de deitar. 2) MEDIDAS POSTURAIS: • Segundo estudos com pHmetria, a postura que mais reduz o refluxo é o decúbito ventral, com cabeceira elevada a 20 ou 30°. O tempo necessário nessa posição varia de acordo com a gravidade do refluxo. Obs.: essa postura vem sendo questionada por sua possível associação com a síndrome da morte súbita do lactente. • Para o lactente, recomenda-se posição supina com elevação da cabeceira e/ou decúbito lateral esquerdo. • Para as crianças maiores, recomenda-se a elevação do leito em 15 a 20 cm. 3) OUTRAS MEDIDAS: • Evitar roupas apertadas, constipação intestinal, drogas que diminuam a pressão do EEI e troca de fraldas no período pós-prandial imediato. • Nas crianças mais velhas e adolescentes deve-se prevenir a obesidade e evitar ingestão de bebidas alcoólicas e uso de fumo. TRATAMENTO MEDICAMENTOSO Podem ser usadas drogas bloqueadoras da ação ácida. Os medicamentos procinéticos não constituem, na atualidade, armas eficazes no controle do RGE. SUPRESSORES DA ACIDEZ: As drogas supressoras da produção de ácido promovem redução da exposição do esôfago à ação do ácido refluído do estômago mediante neutralização ou boqueio da secreção de ácido pelo estômago. I) ANTIÁCIDOS: • Usados largamente para o alívio temporário dos sintomas de esofagite, mas para isso é necessário o uso de doses altas e frequentes, dificultando a adesão do paciente ao tratamento. José Eduardo Palacio Soares – Bloco Síndromes Pediátricas I – GT4 • No lactente alimentado a curtos intervalos, devem ser administrados uma hora após cada refeição; e na criança maior, uma a três horas após as três principais refeições e ao deitar. II) INIBIDORES DA SECREÇÃO ÁCIDA: • Os inibidores H2 são antagonistas competitivos e reversíveis das ações da histamina nos receptores H2, inibindo a secreção ácida gástrica induzida pela histamina ou outros agonistas (agonistas muscarínicos e gastrina) de modo competitivo e dependente da dose. Ex.: cimetidina, ranitidina. • O omeprazol pode ser considerado uma pró-droga que, em meio ácido, transforma-se em inibidor da H+/K+ ATPase, promovendo intensa redução da secreção ácida gástrica. • Vale ressaltar que o uso prolongado desses medicamentos não é isento de efeitos colaterais, como alterações metabólicas, hematológicas e predisposição às infecções. Por isso, quando indicados, seu uso deve ser parcimonioso. TRATAMENTO CIRÚRGICO Deve ser reservado aos casos excepcionais de pacientes que não respondem ao tratamento clínico adequadamente instituído e/ou que apresentem condições ameaçadoras à vida.
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