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INTUIÇÃO E INTELECTO NA ARTE Rudolf Arnheim Tradução: Jefferson Luiz Camargo Martins Fontes São Paulo 2004 SOBRE UMA ADORAÇÃO* Ninguém que tenha sido verdadeiramente tocado por uma obra de arte se refere a ela em prosa analitica sem apreensão. Pode-Se achar que só a arte tem o direito de reagir à arte. Se, entretanto, considerarmos um exemplo concreto-a Quinta Elegia de Duino de Rilke, inspirada nos Saltimbancos de Picasso, de 1905-compreenderemos que um pocta Ou talvez um músico podem de fato evocar alguns aspectos da experiéncia transmitida por um quadro ou escultura, mas apenas em função da sua própria poesia ou música, e náo pela referéncia direta ao meio de expres são da própria obra original. Um poeta pode homenagear um quadro, mas só indiretamente pode ajudá-lo a falar sua própria linguagem. Os historiadores e os críiticos podem dizer muitas coisas úteis sobre um quadro sem qualquer referéncia a ele como obra de arte. Podemn analisar seu simbolismo, atribuir seus temas a origens filosóficas ou teoló- gicas. e sua forma a modelos do passado; podem também usá-lo como um documento social, ou como uma manifestação de uma atitude men- tal. Tudo isso, contudo, pode se limitar ao quadro como um transmissor de informações factuais e não precisa se relacionar com seu poder de transmitiro testemunho do artista através da expressão formal e do conteúdo. Por isso, muitos historiadores ou críticos sensíveis concor dariam com Hans Sedlmayr quando afirma que tais abordagens deixam de considerar fatores que só se podem explicar como qualidades artísticas (3. p. 37)**. Isso equivale a dizer que, a menos que tenha apreendido intuitivamente a mensagem estética de um quadro, 0 analista não pode esperar lidar intelectualmente com ele como uma obra de arte. Todos conhecemos aquelas horas de tristeza ocasional num museu ou galeria, quando os objetos expostos estão nas paredes ao redor, absur Publicado pela primeira vez em Art Education, vol. 23, n: 8, novembro de 1970. *" As referéncias entre parénteses serão encontradas no final de cada ensaio, dispos- tas em ordem alfabética. 4 INTUIÇÃO E INTELECTO NA ARTE damente silenciosos como os trajes postos de lado após a representação da noite anterior. O espectador não está inclinado a reagir às qualidades "dinamicas'" de forma e cor, e. por isso, o objeto físico está devidamente presente e observável, mas a obra de arte não. Ou, usando outro exem- plo, conhecemos a frustragão de tentar comunicar a perfeição e riqueza de um quadro, tão evidentes para os nossos olhos, a um companheiro que não as ve. O professor de arte à moda antiga, que se limita a indicar o assunto, e seu moderno sucessor, que pergunta às crianças quantas formas arre- dondadas ou pontos vermelhos podem encontrar no quadro, não fazem mais que encorajar a criança a olhar. Fazer a obra se tornar viva éé outra coisa. Para fazer isso, é preciso dar-se conta, de forma sistemática mas intuitiva. dos fatores de forma e cor que transmitem as forças visuais de direção, relação e expressão. pois estas forças visuais proporcionam principal acesso ao Significado simbólico da arte. Na prática, o que significa tal exigência? Para ilustrar, escolherei um daqueles quadros a que o vISitante comum presta pouca atenção. uma pequena Adoração dos Magos de Giovanni di Paolo, na Galeria Nacional de Washington (pág. ao lado). E o tipo da obra que os especia- Tistas de uma geração anterior costumavam tratar com um sorriso condes- cendente e um fácil floreado de linguagem. Em 1914, um crítico refe- riu-se a seu criador como "um pintor afävel cujo palavreado, simples e agradável, é às vezes intercalado de deliciosa música" (1. p. 177). Ele não tomara conhecimento de Giovanni di Paolo. Qualquer introdução válida a determinada obra de arte é uma reve- lação da arte em geral, mas só quando transmite o choque da grandeza. Obras diferentes realizaräo isso em diferentes pessoas, e. por isso, o intérprete deve fazer sua própria escolha na esperança de que os princí pios a que se refere em seus exemplos sejam reconhecidos por outros em suas obras preferidas. No segundo capítulo de São Mateus, lemos a história da mancira como nosso pintor a conhecia: Quando ouviram o rei. partiram; e, vejam, a estrela que viram no leste os guiou, até que chegou e se deteve sobre onde estava o menino. Quando viram a estrela. rejubilaram-se com extraordinária alegria. E quan- do entraram na casa viram a criancinha com Maria, sua máe,e se ajoelha ram e a reverenciaram; e quando, depois, abriram seus tesouros, oferta ram-Ihe oS seus presentes: ouro, incenso e mirra. Contada em palavras, a história está cheia de quandos. Uma coisa Ocorre após a outra numa seqüéncia temporal. No quadro, o elenco exibe o contraponto entre açãoe estase: os reis viajam e chegam; a SOBRE UMA ADORAÇ�O 5 estrela se move e pára; os reis apresentam seus cumprimentos, enquanto a família, no estábulo, fica imóvel. O quadro, não sendo nem literatura, nem teatro ou filme, está fora do tempo. Oque representa é algo melhor do que um segmento momentâneo da história. O pintor não oferece um instantâneo, mas um equivalente. Sintetiza todos os aspectos salien- tes: a peregrinação, a chegada, o reconhecimento, a homenagem e a benção, e traduz açáão e imobilidade em seus correlatos pictóricos. ASsim como o quadro não condensa simplesmente os episódios da história na dimensão temporal, não comprime a amplitude espacial da histó- ria como um acordeão. Os reis e seu séquito expandem-se livremente pela área ocupada pela composição do quadro. Estão, ao mesmo tempo, den tro e fora da gruta. O Evangelho diz que a família de José estava dentro da casa, e, astronomicamente, a estrela deve ter pairado a muitos quiló- metros acima, no céu. Não se pode dizer, no entanto, que o pintor simplesmente reduziu a altura fisica ou que derrubou a parede da frente da casa. Ao contrário, ele recomeça a partir da superfície do minúsculo quadro e confere a cada elemento o lugar que o torna visível e define sua funçáo no conjunto. Ele redistribui toda a cena dentro do plano frontal. Se nossa percepção do plano do quadro, que as crianças peque- nase outras pessoas Simples poSsuem espontaneamente e que os pintores de nosso século restabeleceram, estiver absolutamente intacta, não senti- remos esta disposição frontal como um artificio forçado, mas como umn comportamento natural em espaço bidimensional. Não estamos mais conscientes da superfície plana do que um peixe da água. As condições invariáveis do meio de expressão não são explicitamente percebidas; são as regra_ não percebidas do jogo pictórico. Uma sensação de bem-estar emana de uma organização que se ajus- ta ao mei0 de expressão. Em tal organização cada componente da histó ria é espacialmente livre para existir e atuar de acordo com sua função. Uma vez que a história é apresentada a partir de um ponto de vIsta particular, ela tem uma ordem de importância gradual, com a açao em primeiro plano, a posição da gruta e da casa atrás dele, e a paisagem no distante plano de fundo. Esta ordem náo é o resultado acidental da perspectiva, da forma como esta poderia ser reproduzida pela cámara de um repórter fotográfico, mas uma ordem inerente å lógica do próprio fato pictórico. As superposições não são arbitrárias. As figuras humanas Se sobrepõem ao cenário. O menino est à frente da mae, e Maria está à frente de José. O rei ajoelhado está à frente do cocho e do burro e somente a mão do filho de Deus pode penetrar no halo e tocar a fronte do líder do cortejo, prostrado à sua frente. As cores concorrem para criar ordem. O vermelho, uma cor de grande força sugestiva, é reservado à cena frontal da ação. Dois campos 6 INTUIçAO E INTELECTO NA ARTE principais de azul servem para unificar a formação largamente exposta das tiguras. num amplo salto dos cavalariços.a esquerda, a Madona. sentada à direita. As vestes do pai. da máe c do rei envolvem o Cristo menino, encerrado ao centro de um agrupamento triangular das trës cores primárias: o amarelo, o azul e o vermelho. al unificação ë necessaria porque a cena compreende clementos de grande variedade. A história evolui da esquerda para a direita direção em que naturalmente se desloca o sentido da visão ela nos faz chegar com os visitantes e seguir na direçáão do grupo da familia. grupo de cabeças de homens e cavalos, à esquerda, se aclara numa Sequencia linear, que se move para cima e para baixo como as notas de uma melodia. Ela se eleva cm direçao a0 rei em pe. encarmaçao do apogeu do poder terreno, em seguida desce na direção do rei ajoelhado e do rei submissotrés fases de uma ação "estroboscópica unitária -e torna a subir, verticalmente. para a cabeça da Madona. A seqüéncia linear é completada por relações cruzadas. O rei, em pe, e a Vrgem, na mesma linha de altura. se defrontam separados por uma caverna aberta, como os supremos poderes secularese eclesiásticos, exemplo dos Gibelinos e dos Guelfos. O resultado do confronto está retratado no ato de submissáo. O mais digno dos trés soberanos tempo rais poe sua coroa aos pés da Madona. O arranjo das figuras no plano frontal é fortemente dinámico. Ao contrario das notas musicais de uma partitura, que expressam progres- soes de tensao variada mas nao podem. simplesmente, por seu próprio aparecimento. gerar esta tensao, as tormas das figuras de nosso pintor sienense estão cheias de energia dirigida. A entrada dos cavalos por trás do cenário e o grupo das figuras à esquerda devem ser sentidos como eventos. O grupo dos trés cavalariços é como uma concentraçáo de poder, que envia primeiro, na frente, os dois escudeiros, e entao dá um longo salto ate o rei em pé. Nesse ponto, o movimento parece ser contido por uma sübita e respeitosa hesitação: o passo que desce para o rei ajoelhado é mais curto, como que contraído. Outro salto rápido e sincopado alcança a cabeça do ancião de barbas. Entáo, a se- quencia de figuras torna a se reunir num grupo, o da familia, apenas para se dissolver numa superficie obliqua através das cabeças das duas criadas. A menos que esta sequencia dinamica se estabeleça com conti- guidade musical, o quadro não estará surtindo efeito. Nossa deserição subentende que os padróes formais náo se podemn Separar do tema. Os diagramas pelos quais osS intérpretes da arte gostam de expor padróes básicos de compoOsiçáo podem ser válidos, mas apenas se revelam a criatura viva dentro do arcabouço. Em nosso exemplo parti cular, a disposição das formas das figuras é profundamente modificada. SOBRE UMA ADORAÇÃO 7 por exemplo, pela direçáo para a qual as pessoas estão olhando Olhando para trás, para retardatários invisíveis, dois dos cavalariçOs indicam que a história vem de fora da moldura. Um coro de rostos-pagens, reis, animaisestá direcionado para a tríade familiar, que replica com a orientação oposta. Nada disso seria compreensível a um observador que nunca tivesSe vIsto uma cabeça humana. Nem iria ele perceber os pode- rosos vetores criados pelos olhos dos atores. Os olhares voltados da mác e do filho, que vão alem da bénção divina a seus pés e se dirigem ao acontecimento mais amplo como um todo, sáo Cixos de composiçao de fundamental importáncia, os detalhes sendo tao ativos como se tossem portadores de formas tangiveis; o semblante denso de José bloqueia um dos canais de relação mutua entre os dois grupos tão bem quanto uma veneziana fechada. Num sentido mais amplo, cada detalhe de informação sobre o con teúdo representativo de um quadro náo só aumenta o que já conhe cemos, mas modifica o que vemos. E psicologicamente talso supor quee nada é visto além daquilo que estimula a retina dos olhos. Basta compa rar a experiéncia visual de um quadro que narra uma história conhecida, digamos, com uma miniatura persa, igualmente diante dos olhos e, mes mo assim, extremamente enganosa se quem olha não sabe do que se trata. A deia absurda de que a verdadeira apreciaçao da arte ignoraa o tema ao lado dos estudos iconologicos, igualmente restritivos, que exminam apenas o asunto- tem afastado geraçoes de estudantes da comprcensão e expericncia esteticas adequadas. Contudo, c verdade que em obras de arte bem-sucedidas a cstrutura global mais evidente tende a simbolizar o tema básico. O arranjo das guras de G1OVanni di Paolo transmite diretamente a ação de forças VISuais que expresam a chegada, o contronto e a submissao. Cada deta Ihe descritivo do quadro está incluido num padrao altamente abstrato Simples. que taz com que a obra pareça monumental, seja ela vista numa reprodugão, numa tela de cinema ou no pequeno painel de madei- ra onginal, de 31,76 em por 43,08 cm. Este recurso de composição reveste de grandeza o pequeno quadro tanto por real1zar uma completa corres pondéncia e inter-relação de conteudo e forma quanto por apresentar a plenitude do mundo visual à luz do pensamento organizador. Depois de perceber o caráter abstrato do padráo condutor, estamos preparados para considerar a caracteristica mais espetacular de compo Sição do quadro, Ou seja, a formação rochosa da gruta ao fundo da cena da Adoração. O que importa aqui não é que essas formas nao Se pareçam com rochas verdadeiras, mas que contribuem com um elemento visual deci SvO para o quadro. A formação rochosa se cleva da esquerda numa 8 INTUIÇÃO E INTELECTO NA ARTE fuga de ondas rapidas e justapostas cm direçáo à estrela de Belém. que permanece diretamente sobre a cabeça do menino. Este crescendo de Torma pura, tào "abstrato quanto uma obra de arte moderna, conta a história uma vez mais. Aqui. porém. o simbolismo vai até mesmo alem daquele da melodia visual nas figuras de primeiro plano. Ele pres- cinde da narração teatral, da representaçao das complexas relaçoes entre o poder temporal e o poder sagrado. Mostra nada mais que a arremetida do lerreno em direção às alturas da salvação. representadas pelo brilho dourado da estrela. Este desígnio essencial e poderoso, comparável ape- nas a um preludio para órgao, c. afinal de contas, o tema subjacente totalidade do tertil episodio. Vemos entao que as duas versocCs da história se completam. O arco ascendente da caverna é contrabalançado pela inclhnação da sequ�ncia das figuras principais, e até o tabuleiro nchnado do segundo lano apóia, com seus paralelos isométricos, o impeto dominante em direçao a estrela gura ovanni di Paolo, Adoração dos Magos. após 1423, Cleveland Muse um of rt. Holden Fund SOBRE UMA ADORAÇÃO 9 Figura 2 Gientile da Fabriano, Adoração dos Magos, 1423, Galeria dos Uffizi. Florença Nessa altura. se a análise tiver sido inteiramente adequada. o quadro deverá ter começado a falar. Neste caso, será possível, se se quiser, ir além dos limites da obra isolada, e vé-la em seu conjunto. Pintada por volta da metade do século XV, quando o artista estaria mais ou 10 INTUIçÃO E INTELECTO NA ARTE menos com cinqüenta anos, esta composição da maturidade pode se comparar à sua versão um pouco anterior do mesmo tema, hoje no Cleveland Museum of Art (figura 1). O quadro de Cleveland é essencial- mente uma cópia da famosa Adoração dos Magos de Gientile da Fabriano (figura 2), pintada em 1423 para a Igreja de Santa Trinità em Florença e agora na Galeria dos Uffizi; ele mostra, da maneira mais notável, como um artista em evolução, sobo impacto de um mestre de renome, fica tolhido em usar a sua própria imaginação. Falta-lhe a consistência do estilo do outro, e ainda é incapaz de realizar o seu. Após olharo quadro de Cleveland, vemos na Adoração de Washington a liberação de um artista que se encontrou e pode, assim, encontrar em sua própria linguagem uma forma superiormente adequada para a história que quer contar. A partir daí, podemos traçar o desenvolvimento futuro do artista até a série dos São JoãoBatista do Chicago Art Institute, considerada por alguns a mais alta realização de Giovanni (2). Há muitos outros caminhos, históricos, estéticos e sociais, que pode- mos adotar a partir da Adoração de Giovanni di Paolo, e para chegar a ela. Porém, para tornar a enfatizar, nenhum desses acréscimos verda- deiramente se justifica, a não ser que o quadro se tenha revelado. antes de tudo, como uma obra de arte. A experiéncia da arte. proporcionada por um de seus grandes exemplos, deve ser o começo e o fim de todas as investigaçóes deste tipo. Referências 1. Breck, Joseph. "Some Paintings by Giovanni di Paolo". Art in America, vol. 2, 1914. pp. 177ss. 2. Francis. Henry Sayles. "A New Giovanni di Paolo". Arn Quarterly, vol. 5, 1942. pp. 313-22. 3. Sedlmayr, Hans. Kunst und Wahrheit, Hamburgo, Rowohlt, 1958. p. 37.
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