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O ESTADO DE SÃO PAULO
1º. De julho de 2007-07-01
p. D2
Maquiavel era mesmo maquiavélico? 
Persiste até hoje o falso entendimento do pensador que arrancou máscaras e desnudou relações de poder entre os homens 
Renato Janine Ribeiro 
Mudou por completo, ao longo do século 20, a imagem que se tinha de Maquiavel. Ou melhor, mudou a imagem dele para os seus estudiosos, não para o público em geral. Desde que ele escreveu O Príncipe, em 1513 (livro que começou a circular em manuscrito ou resumos antes mesmo de ser impresso, o que só ocorreu em 1532), sua fama foi péssima.
Assim, numa peça de Christopher Marlowe, O Judeu de Malta (1589), aparece um certo italiano de nome Machevill: um trocadilho bem inglês entre o nome de Maquiavel e 'evil', mal. Lembrando que o 'Mac' indica uma origem de família, poderíamos traduzir como Mauquiavel ou Demojúnior. Até um rei como Frederico da Prússia, não exatamente um homem de bem em política externa, escreveu um Anti-Maquiavel, em meados do século 18, para condenar nosso filósofo em nome da moral e do bom governo.
Maquiavel foi assim, se me perdoam a expressão, o maior saco de pancadas da história da filosofia política. E disputa com Platão a condição de filósofo que gerou o maior uso de seu nome na forma adjetiva. Assim como se fala em 'amor platônico', também se diz que alguém é maquiavélico - o que constitui um insulto sério. Ainda se atribui a ele uma frase que nunca escreveu, 'Os fins justificam os meios'.
O que ocasionou essa imagem? É que Maquiavel representa, melhor que ninguém, o rompimento com um modo medieval de ver a política como extensão da moral. O 'bom rei' era um rei que seria bom, isto é, o rei eficaz era o rei que fazia o bem. Suas virtudes eram as de um chefe qualquer. Ora, o que Maquiavel mostra é que os príncipes bem-sucedidos, fosse em seu mundo particularmente belicoso, dos pequenos Estados italianos em guerra entre si, fosse no passado medieval, raramente seguiam a moral convencional e cristã. Ele arranca máscaras. Mostra como de fato agiam, agem e devem agir os que desejam conquistar o poder ou simplesmente mantê-lo.
Isso é insuportável para os bem-pensantes. Acaba com a justificação religiosa para o poder político. Exibe a nudez das relações de poder entre os homens. Mas, ao contrário do que seus inimigos vão dizer, essas relações não são de mera força. A política é muito complicada, e há personagens que tiveram sucesso e glória, como o rei Fernando de Aragão, outros que tiveram sucesso mas não glória, como Agátocles, e ainda quem teve glória mas não sucesso, como César Borgia. Essa sutileza escapa aos acusadores de Maquiavel - e é ela que mostra que a política não é apenas o contrário da ética.
Quando começa a mudar a imagem de Maquiavel? Penso que o grande sinal da alteração está num livro de Max Weber, Ciência e Política: Duas Vocações, que data de 1919. O grande sociólogo alemão distingue uma ética que se pauta pelos fins e outra que se pauta pelos valores. Os políticos, diz ele, têm uma responsabilidade que se mede pelas conseqüências de seus atos. Já os cientistas seguem outra ética. Seu compromisso é com a verdade.
O interessante na distinção de Weber é que ele não opõe ética e política - mas descreve duas éticas. Ou seja, a política passa a ser uma ética. É talvez a primeira vez - desde Maquiavel - que a política se constitui explicitamente como uma ética, mas preservando seus traços próprios. Porque mesmo hoje em dia, quando se fala em 'política ética', tende-se a renegar suas características essenciais e a convertê-la em apêndice da religião cristã. Com Weber, não. O que era negativo na política - sua relativização dos valores morais, sua preocupação com os fins que, se não chegam a justificar os meios, pelo menos pesam tanto quanto estes - passa a ser visto como sua própria natureza.
Weber cita Maquiavel duas ou três vezes nesse livro - e uma delas para dizer que O Príncipe, comparado com uma obra antiga da literatura hindu, o Artashastra de Kautilya, é 'um livro inofensivo'. Mas os ecos do pensador florentino em Weber são visíveis. A política pode agora ser vista como um reino em que as aparências contam, melhor dizendo, em que as aparências são constantemente produzidas, portanto, como um reino que não é da verdade. Contudo, mesmo assim, é um reino que produz um certo bem, o bem coletivo. Weber, aliás, cita elogiosamente uma passagem em que Maquiavel louva os florentinos que preferiram a salvação da cidade à salvação da própria alma.
O que assim acontece na recepção culta de Maquiavel, nos últimos cem anos, é que ele passa a ser visto como o pensador de uma ação política que não é mais uma ética com sinal negativo, ou uma ética com deságio. É uma ética própria, diz-nos Isaiah Berlin, uma ética que se opõe à cristã mas nem por isso deixa de ser ética (pagã, segundo Berlin). Merleau-Ponty até radicaliza: não há ética digna de seu nome a não ser a que se preocupa com as conseqüências dos atos, isto é, a ética que Weber chama da responsabilidade - e que é a maquiaveliana.
E se dá maior atenção ao caráter republicano de Maquiavel. Afinal, ele foi ministro da república de Florença e escreveu um longo tratado em defesa desse regime. É o que leva autores como o inglês Quentin Skinner, o francês Claude Lefort e o brasileiro Newton Bignotto a ressaltarem sua preocupação com o regime do bem comum, da coisa pública, a res publica.
Qual o problema, então? É que essa percepção culta não sai dos muros da academia. Cada vez que um de nós, professor, dá aula sobre Maquiavel tem que dizer o que afirmei acima: que Maquiavel não é maquiavélico. De vez em quando, recebo algum e-mail me perguntando se ele disse mesmo que 'os fins justificam os meios' e, se não disse, de quem são essas palavras (não sei). Em suma, não basta provarmos que Maquiavel não é o personagem da sua lenda. Faz-se preciso entender, senão por que essa legenda surgiu, mais precisamente por que ela continua viva e forte.
Esse é um aspecto importante do grande problema que nosso tempo tem com a política. Por um lado, nunca houve tanta democracia: liberdade de expressão, de organização, de voto, no plano político; no plano pessoal, liberdade para escolher o parceiro, adotar a orientação sexual, procurar o emprego preferido. Essas conquistas não são plenas e precisam ser ampliadas, mas já se deu a partida nesse processo.
Por outro lado, porém, há uma desconfiança enorme - e mundial - em face dos políticos, daqueles mesmos políticos que elegemos. Nem Bush nem Blair têm a confiança da maior parte de seus cidadãos. A corrupção, que alguns dizem ser fenômeno de Terceiro Mundo ou do Brasil, está arraigada nos países mais ricos. Esse é o lado maquiavélico da política, que faz tantas pessoas desconfiarem dela. O estranho é que os próprios eleitores não se sentem responsáveis por seus eleitos, porque tendem a pensar que a representação os trai.
Não será isso tudo curioso? Maquiavel foi republicano, e nosso mundo vive a extensão das liberdades republicanas e democráticas. Mas, com O Príncipe, Maquiavel abriu espaço para a figura do maquiavélico - e aos olhos de muitos, talvez da maior parte, é esse personagem que povoa o poder. Será que a política não cumpriu ainda suas promessas republicanas e democráticas? Ou será que temos dificuldade em aceitar que política não é utopia, que nossa humanidade não é perfeita, e a política é o que nos mostra este espelho em que não queremos nos reconhecer? 
Renato Janine Ribeiro é professor de ética na USP e autor de O Afeto Autoritário - Televisão, Ética, Democracia

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