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Terapia Intensiva 126 Prática Hospitalar • Ano X • Nº 57 • Mai-Jun/2008 INTRODUÇÃO Doenças neuromusculares são causas co-muns de fraqueza muscular prolongada e dependência de ventilação mecânica em UTI. Tradicionalmente, poliomielite, síndro- me de Guillain-Barré, miastenia gravis e outras desordens neuromusculares primárias têm representado a maioria das doenças neurológi- cas que potencialmente resultam em admissão na UTI;(1) porém, dois principais tipos clínicos, patológicos e eletrofisiológicos de acometimento neuromuscular adquirido em pacientes críticos estão sendo descritos nas últimas duas décadas: a polineuropatia do doente crítico (PDC) e a mio- patia do doente crítico (MDC). Essa dicotomia diagnóstica leva a considerações etiológicas independentes de ambas as entidades e o diag- nóstico definitivo somente sendo feito através da eletroneuromiografia e/ou biópsia de nervos/ músculos. No entanto, recentemente a maioria dos autores está trocando essa dupla denomi- nação para o conceito de polineuromiopatia do doente crítico (PMDC).(2) É freqüente a dificuldade para se definir e diagnosticar a fraqueza muscular aguda nos doentes críticos, pois os mesmos na maioria das vezes encontram-se debilitados e somente uma parcela destes indivíduos desenvolve uma desordem neuromuscular levando a um quadro de PMDC. Entretanto, os pacientes críticos são expostos a uma variedade de situações de estresse, como alterações do equilíbrio hidroe- letrolítico, catabolismo, deficiências nutricionais e infusões de medicações, que em combinação ou não podem produzir algum tipo de dano à unidade motora, o que na maioria das vezes leva a um aumento da permanência hospitalar, aumento das taxas de morbimortalidade e dos custos hospitalares.(3,4) Recentemente, a polineuromiopatia do doente crítico (PMDC), uma síndrome de etiolo- gia ainda não completamente definida, entrou na lista de desordens neuromusculares que causam fraqueza generalizada e prolongam o tempo de ventilação mecânica em pacientes gravemente enfermos, tendo uma forte correlação com choque séptico, SIRS e a disfunção orgânica múltipla.(5,6) O diagnóstico clínico de PMDC surge então quando observamos na UTI uma dificuldade no desmame ventilatório do paciente e todas as causas pulmonares, cardíacas e da parede torácica já foram excluídas para tentar explicar a etiologia dessa fraqueza neuromuscular e o insucesso do desmame ventilatório.(4) EPIDEMIOLOGIA A PMDC foi descrita pela primeira vez por Bolton et al. como uma fraqueza muscular generalizada que se desenvolvia em freqüente Polineuromiopatia do Doente Crítico Prof. Dr. Paulo Antoniazzi1 • Dr. Fábio Ferraz2 1 - Médico-Chefe do CTI da Santa Casa de Ribeirão Preto - SP. Professor do Departamento de Clínica Médica (Medicina Intensiva) da Faculdade de Medicina do Centro Universitário Barão de Mauá - Ribeirão Preto - SP. 2 - Ex-Residente do CTI da Santa Casa de Ribeirão Preto - SP. Prof. Dr. Paulo Antoniazzi 127Prática Hospitalar • Ano X • Nº 57 • Mai-Jun/2008 associação com a sepse e falência orgâni- ca múltipla,(1,7) manifestando-se como uma polineuropatia motora-sensitiva axonal levando a flacidez de membros, diminuição dos reflexos extensores musculares, da propriocepção e do reflexo doloroso nas extremidades e fraqueza da musculatura da parede torácica.(8,9) Além da sepse e da falência múltipla orgânica, o uso de bloqueadores neu- romusculares, corticosteróides, drogas citotóxicas, ARDS e o status asmático também estão associados ao apare- cimento da PMDC.(4,10) Em um estudo italiano de 24 pacientes com fraqueza muscular clinicamente significativa, 58% tinham alterações patológicas sugestivas de miopatia do doente crítico. Embora determinado número desses pacientes receberam bloqueadores neuromuscula- res, corticosteróides e aminoglicosídeos, todos os pacientes dessa série tinham em comum o diagnóstico de sepse.(11) A PMDC tem incidência entre 30 a 60% dos pacientes internados em UTI e costuma ocorrer entre o segundo e o quinto dia da presença de sepse ou SIRS (Síndrome da Resposta Inflamatória Sistêmica), porém a suspeita clínica ocorre somente após a primeira semana de ventilação mecânica, sendo que esse retardo na hipótese clínica da doença pode ser explicado pelo apare- cimento de encefalopatia séptica e também principalmente pelo uso de sedativos e/ou bloqueadores neuromusculares para auxiliar a ventilação mecânica.(4,6) Há um aumento no tempo de ventilação mecânica, que é um preditor independente de insucesso no desmame da ventilação mecânica e alto índice de reintubação.(12) Dados de uma análise multivariada mostraram outros fatores de risco tam- bém importantes no desenvolvimento da PMDC, como a hiperosmolaridade, nutrição parenteral, Glasgow menor que 10 e necessidade de diálise. Pacientes do sexo feminino e portadoras de diabetes mellitus são mais freqüentemente acome- tidos pela PMDC.(13,14) QUADRO HISTOPATOLÓGICO E EVOLUÇÃO Na PMDC, a biópsia de nervo perifé- rico revela uma grande diminuição axonal primária dos segmentos terminais com- parados com os segmentos proximais, apresentando características de denerva- ção crônica e em alguns casos evidência patológica de miopatia.(1,6,15) Estas alterações, segundo alguns estudos, estão intimamente relacionadas à fisiopatologia da sepse,(5,16) na qual há distúrbios da microcirculação com perda da auto-regulação dos vasos sangüíneos que nutrem os nervos periféricos associa- dos com liberação de mediadores infla- matórios que aumentam a permeabilidade dos vasos, contribuindo então para a má perfusão e edema endoneural, ocasionan- do hipóxia e resultando em degeneração axonal primária das fibras sensitivas e mo- toras predominantemente distais devido ao seu envolvimento no transporte axonal altamente dependente de energia.(5,15,17,18) Porém, recentes estudos baseados em biópsias de pacientes afetados pela doença não revelaram necrose de fascí- culos nervosos, microangiopatia, edema ou formação de trombos intravasculares e os níveis do Fator de Necrose Tumoral não estavam tão altos em relação aos pacientes controle.(15,19,20) A evolução é monofásica e autolimi- tada, com boa recuperação na maioria das vezes, que depende da extensão da degeneração axonal e pelo tipo de regeneração que ocorre, explicando então a melhora evidente primeiramente em membros superiores e por último em membros inferiores, onde há uma grande extensão em distância de fibras a serem regeneradas. Sobreviventes de quadros sépticos graves que permaneceram ao longo de quatro semanas na UTI e que desenvol- veram PMDC na forma leve a moderada tiveram recuperação em semanas ou meses, ao passo que portadores de forma grave apresentaram déficits clínicos seve- ros ou não tiveram remissão do quadro neurológico; porém, mesmo nas formas leve e moderada, alguns pacientes tiveram evidência clínica e eletroneuromiográfica de neuropatia após quatro anos de hos- pitalização.(8,18) EXAMES COMPLEMENTARES Os exames laboratoriais são pouco re- veladores em relação à PMDC. As anorma- lidades encontradas podem esclarecer a respeito da doença de base e não alertam ao clínico a presença de PMDC. A CPK é freqüentemente normal e sua elevação pode indicar miopatia tóxica ou inflamatória. Tradicionalmente lança-se mão de es- tudos de eletroneuromiografia e os testes eletrofisiológicos fornecem informações valiosas, sendo de simples execução e podendo ser executados à beira do leito. A etiologia da fraqueza muscular restrin- ge-se ao sistema nervoso periférico e deve- se excluir a possibilidade de existência de patologias do Sistema Nervoso Central ou causas não neurológicas de fraqueza mus- cular, como desnutrição e mau condiciona- mento físico. Uma vez localizada no sistema nervoso periférico, o grupo neuromuscular envolvido pode ser exatamente identifica- do e o envolvimento de fibras sensitivas também pode ser verificado. Resultados einterpretações errôneas podem surgir de- vido a bandagens extensas nos membros avaliados, presença de acessos venosos ou punções arteriais que podem ocultar os locais para estimulação ou dificultar o registro das respostas neurofisiológicas e a presença de edema periférico pode produzir baixa amplitude ou ausência de resposta ao potencial evocado do nervo sensitivo, podendo levar ao incorreto diagnóstico de neuropatia. O exame pode também ser limitado quando há pouca cooperação por parte do paciente, dificultando a interpre- tação do teste eletromiográfico, principal- mente durante o exame com agulhas, que Terapia Intensiva 128 Prática Hospitalar • Ano X • Nº 57 • Mai-Jun/2008 requer contração muscular voluntária para avaliar a magnitude da resposta ao estímulo da placa motora.(1) Os exames eletrofisiológicos revelam também sinais de denervação com po- tenciais fibrilatórios com ondas agudas positivas de distribuição extensa; e na maioria das vezes os nervos cranianos estão preservados, porém em alguns casos há degeneração de alguns ramos do nervo facial.(7,17) A neurografia freqüentemente demons- tra a preservação da velocidade de con- dução do impulso no segmento proximal/ distal e decréscimo da amplitude do po- tencial de ação das fibras sensitivas.(7) Na PMDC identifica-se somente uma perda axonal e sinais de desmielinização primária estão ausentes. O estudo da condução do nervo frênico revela ausência ou mínima resposta, e a eletromiografia do diafragma revela denervação aguda.(1) O exame do liquor é normal ou com leves anormalidades inespecíficas. A bióp- sia de nervo mostra degeneração axonal primária sem evidência de inflamação. A disparidade em alguns casos entre os achados patológicos e a severidade da manifestação clínica revela uma base mais funcional do que anatômica da axonopatia.(9) TRATAMENTO Não há tratamento específico para a PMDC; entretanto, o uso de suplementos alimentares e a terapia hormonal têm sido empregados com bons resultados nos pacientes graves e parecem desempenhar papel relevante na evolução da doença. Por exemplo, o uso da glutamina é associado ao aumento da sobrevida e a uma menor permanência desses pacientes na UTI. O uso de aminoácidos de cadeia ramificada aumenta a sobrevivência de pacientes sépticos; o suplemento de arginina e glu- tamato em pacientes pós-cirúrgicos leva ao balanço nitrogenado positivo e previne o catabolismo muscular. A oxandrolona parece trazer benefícios aos pacientes graves, aumentando a força muscular associada a sessões de fisioterapia.(1) O uso de imunoglobulina por três dias nas primeiras 24 horas de início do quadro séptico parece prevenir o desenvolvimento da PMDC,(3) assim como o controle glicê- mico rigoroso mostra também redução da mortalidade e redução da permanência dos pacientes na UTI.(21) Alguns protocolos de fisioterapia são usados para a reabilitação precoce na PMDC. O protocolo cinesioterápico de Laufer tem sido utilizado em pacientes que fizeram uso prolongado de corticói- des e bloqueadores neuromusculares e consiste das seguintes etapas: teste diário de reflexos, cinesioterapia motora passiva durante a sedação; ao despertar da seda- ção emprega-se a cinesioterapia motora ativa assistida associada a facilitação neu- romuscular proprioceptiva, com ênfase ao reflexo de estiramento e crioestimulação, e finalmente emprega-se a cinesioterapia ativa livre seguida de cinesioterapia resis- tida, controle de tronco e ortostatismo, culminando com a deambulação pelo quarto e corredor. CONCLUSÃO Trata-se de uma patologia com etio- logia ainda não totalmente definida, e o seu diagnóstico é na maioria das vezes demorado, devido ser de exclusão, levan- do a um aumento no tempo de desmame da ventilação mecânica, prolongando a estadia na UTI e os custos. Na grande maioria dos casos a evo- lução é benigna, podendo o paciente voltar a sua vida laborativa. O tratamento específico ainda não existe e lança-se mão do trabalho de uma equipe multidisciplinar para condução deste tipo de paciente. t REFERÊNCIAS 1. Khan J, Burnhan EL, Moss M. Acquired weakness in the ICU: Criticall illness myopathy and polyneuro- pathy. Minerva Anestesiologica 2006;72:401-406. 2. Bednarik J, Vondracek P, Ladislav D et al. Risk fac- tors for critical illness polyneuromyopathy. J Neurol 2005;252:343-351. 3. Kane SL, Dasta JF. Clinical outcomes of criti- cal i l lness polyneuropathy. Pharmacotherapy 2002;22(3):373-379. 4. Marammaton BV, Wijdicks EFM. Acute neuromus- cular weakness in intensive care unit. Crit Care Med 2006;34:11:2835-2841. 5. Canineu RFB, Cabral NM, Guimaraes HP e col. Poli- neuropatia no paciente crítico: um diagnóstico comum em medicina intensiva? RBTI 2006;18(3):307-310. 6. Bolton CF. The value of diagnostic imaging techni- ques in the management of diseases of the nervous system. Con Med Assoc J 1984;130:1425-1426. 7. 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