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O que não se pode deixar de saber sobre o hemograma e anemias? 2.1 HEMATOPOESE Hematopoese é o processo pelo qual são formados os elementos do sangue. O tecido hematopoético, localizado no adulto predominantemente na medula óssea, é originado das células- tronco hematopoéticas, que apresentam 3 propriedades: 1. Autorrenovação: capacidade de produzir células idênticas; 2. Diferenciação: produção de todas as linhagens das células hematológicas maduras; 3. Plasticidade: capacidade de transdiferenciação, ou seja, de originar células de outros tecidos. A origem da Célula-Tronco Hematopoética (CTH) pode ser entendida relembrando os conceitos da embriogênese. A Célula- tronco totipotente (zigoto) é a que tem a capacidade de formar todos os tecidos embrionários e extraembrionários. A célula-tronco pluripotente – blastocisto, também chamada célula-tronco embrionária – tem a capacidade de formar qualquer tecido embrionário. A célula-tronco multipotente, também chamada célula-tronco adulta, forma tecidos específicos, como neurológico, epidérmico e sanguíneo, mas com propriedade de plasticidade. A CTH é uma célula multipotente que dá origem a todo componente celular sanguíneo pela sua propriedade de plasticidade. Essa propriedade é fundamental para o desenvolvimento das técnicas futuras de terapia celular, que consistem na reparação, pela célula- tronco adulta, de tecidos lesados, como tecido cardíaco em chagásicos ou coronariopatas, tecido neurológico em acidente vascular cerebral e lesão medular, tecido ósseo e cartilaginoso etc. Figura 2.1 - Embriogênese e propriedades da célula-tronco de diferenciação e transdiferenciação Fonte: elaborado pelos autores. As células que povoam os espaços intertrabeculares da chamada medula óssea vermelha ou hematopoética são as CTHs (stem cells), em pequena quantidade, além das células derivadas da sua diferenciação e maturação, que se desenvolvem devido ao microambiente medular – constituído de vasos sanguíneos, células estromais (fibroblastos e osteoblastos, por exemplo), matriz extracelular e citocinas. No processo de diferenciação celular, a CTH tem a capacidade de originar novas células, mais diferenciadas para uma linhagem específica, os chamados precursores mieloides e linfoides. Esses precursores, por meio de sucessivas divisões e maturação, chegam à formação dos elementos maduros que são, então, liberados para a circulação periférica. A divisão e a maturação dos elementos das diferentes linhagens devem-se à ação de mecanismos intracelulares e à atividade de mediadores humorais, fatores de crescimento e citocinas – stem cell factor, fator de crescimento granulocítico, eritropoetina (EPO), trombopoetina, interleucinas e o fator de necrose tumoral, entre outros –, além da ação das chamadas moléculas de adesão medulares. Assim, a ausência ou o excesso de algumas dessas substâncias pode levar a estados patológicos. Figura 2.2 - Hematopoese Legenda: (CFU) unidade formadora de colônia; (BFU) unidade formadora de “ninhos” de eritrócitos e megacariócitos; (GM) Granulócitos e Monócitos. #IMPORTANTE A eritropoese engloba os mecanismos de diferenciação e maturação da linhagem eritroide e compreende os elementos que podem ser detectados na análise da medula óssea. A eritropoese envolve a diferenciação e a maturação da linhagem eritroide, compreendendo, na sequência, pró-eritroblasto, eritroblasto basofílico, eritroblasto policromatófilo, eritroblasto ortocromatófilo e, por fim, os reticulócitos, que já são células enucleadas e capazes de executar as atividades metabólicas de um eritrócito maduro. Figura 2.3 - Eritropoese Nota: as formas vão desde a célula-tronco até a BFU-E e não apresentam características morfológicas próprias quando visualizadas no esfregaço de sangue medular, mostrando-se apenas como células mononucleares indiferenciadas. A partir do pró-eritroblasto, já existem características morfológicas de cada elemento, e são essas características que indicam sua maturação. Fonte: adaptado de Análise da expressão gênica das peroxirredoxinas em pacientes talassêmicos e com anemia falciforme, 2013. A síntese de Hb faz parte do processo de maturação eritroblástica e começa com os eritroblastos policromáticos. Ao final da maturação, o núcleo, já sem utilidade para a célula, é extraído, dando origem ao reticulócito. Os reticulócitos, portanto, são anucleados e capazes de realizar todas as atividades metabólicas de um eritrócito maduro, mas mantêm restos de material ribossômico em seu interior e têm volume celular discretamente maior do que as formas maduras. Após 3 dias de permanência na medula óssea, o reticulócito cai na circulação periférica, finalizando sua maturação em mais 1 dia, e, com a perda do material ribossômico restante (retirado pelo baço), se transformará em eritrócito maduro. Os fatores necessários para uma eritropoese completa e eficiente são a presença de CTH normal, nutrientes, como ferro, vitaminas B12 e B6, ácido fólico, proteínas e lipídios, e do fator estimulante para a síntese eritroide, principalmente EPO e IL-3. A primeira é uma glicoproteína produzida no parênquima renal, pelas células justaglomerulares, por meio de mecanismo autorregulatório – uma alça de feedback cujo estimulante principal é a hipóxia, e o nível de EPO circulante aumenta em proporção inversa à oxigenação tecidual e à massa eritrocitária. À medida que a anemia se desenvolve, o aparelho sensor dentro do rim aumenta a secreção de EPO, com aumento da síntese eritroide na medula óssea. Após 100 a 120 dias na circulação, o eritrócito senil é destruído pelo sistema reticuloendotelial, principalmente no baço. Cerca de 0,8 a 1% da massa eritroide circulante é reposta diariamente. Figura 2.4 - Controle da eritropoese Fonte: adaptado de Anemia of chronic kidney disease: Treat it, but not too aggressively, 2016. A massa eritroide total do indivíduo é resultado do balanço entre produção e destruição diárias. 2.2 COMPOSIÇÃO DO ERITRÓCITO O eritrócito é composto, essencialmente, por uma membrana envolvendo uma solução rica em eletrólitos (principalmente o potássio) e Hb. É altamente dependente de glicose como fonte de energia (ATP), e, como não existem organelas intracelulares como mitocôndrias, a produção de ATP é quase exclusiva por meio da glicólise. 2.2.1 Membrana eritrocitária A membrana eritrocitária é constituída por uma bicamada lipídica, na qual são inseridas proteínas transmembrana de disposição vertical (proteínas integrais, banda 3 e glicoforina), que têm como base de sustentação um citoesqueleto de proteínas de disposição horizontal (malha de alfa e betaespectrinas). A integridade da membrana é responsável por propriedades importantes dos eritrócitos, que permitem sua passagem pelos vasos sem haver lise celular. Essas propriedades são deformabilidade, elasticidade e reestruturação do eritrócito, as quais se encontram alteradas nos defeitos de membrana (esferocitose). Figura 2.5 - Membrana do eritrócito 2.2.2 Hemoglobina A Hb é a macromolécula presente no interior dos eritrócitos, responsável diretamente pelo transporte de oxigênio até os tecidos. A cor vermelha das hemácias é dada por esse pigmento, e a sua concentração no interior do corpúsculo se traduz em diferentes intensidades e padrões de pigmentação, que podem ser armas propedêuticas importantes no diagnóstico da etiologia das anemias. A concentração considerada normal de Hb para mulheres é de 12 a 16 g/dL e, para homens, de 14 a 18 g/dL. Cada molécula da Hb é composta por 4 cadeias heme e 4 cadeias de polipeptídios de globina. As cadeias globínicas, responsáveis pela caracterização do tipo de Hb, são formadas por 2 cadeias alfa e 2 cadeias não alfa (beta, gama e delta). As formas predominantes no indivíduo normal após o nascimento são: 1. Hemoglobina A (HbA): 2 cadeias alfa e 2 cadeias beta; 2. Hemoglobina A2 (HbA2): 2 cadeias alfa e 2 cadeias delta; 3. Hemoglobina fetal (HbF): 2 cadeias alfa e 2 cadeias gama. Contudo, outros tipos de cadeias globínicas e de Hbs aparecemdurante o desenvolvimento embrionário-fetal ou por mutações específicas, como no caso das talassemias e da doença falciforme. Cada cadeia de globina envolve 1 único núcleo contendo ferro, denominado “porção heme da molécula”. O heme contém 1 anel de protoporfirina e 1 átomo de ferro em seu estado ferroso, e pode ligar-se a 1 única molécula de oxigênio. Portanto, cada molécula de Hb é capaz de ligar 4 moléculas de oxigênio. Em um adulto normal, cerca de 98% da Hb circulante consiste em HbA; aproximadamente 2% da Hb restante aparece na forma A2. Menos de 1% apresenta-se na forma fetal ou F, sendo esta de maior afinidade pelo oxigênio do que as formas A. Figura 2.6 - Hemoglobina A: 4 cadeias de globina (2 alfa, 2 beta) e 4 núcleos heme 2.3 CONCEITOS GERAIS EM ANEMIAS A anemia é definida como o estado em que há diminuição da concentração de hemoglobina (Hb) por unidade de sangue, abaixo da média considerada normal para a raça, o sexo, a idade do indivíduo e a altitude em que ele se encontra. Essa condição caracteriza-se pela redução da capacidade de transporte de oxigênio, resultando, nos quadros mais severos, em disfunções miocárdica e cerebral. Segundo os critérios da Organização Mundial da Saúde, os limites mínimos ao nível do mar são de 14 g/dL para homens, 12 g/dL para mulheres e 11 g/dL para gestantes. Erroneamente, considera-se a anemia uma patologia, e não o sinal de uma doença de base. O raciocínio simplista de considerar a anemia uma entidade individual leva a falhas graves na realização de diagnósticos e no seu tratamento. Diagnosticar a etiologia é essencial, pois, se não corrigida ou controlada, a anemia evolui de forma recorrente ou com piora progressiva. Alguns fatos devem ser citados no estudo da anemia: a anemia congênita é sugerida pelas histórias pessoal e familiar. A causa mais comum de anemia é a deficiência de ferro. Má alimentação pode resultar em deficiência de ácido fólico e contribuir para deficiência de ferro, mas o sangramento é muito mais comumente a causa da deficiência de ferro em adultos. O exame físico demonstra palidez. Deve-se ter atenção aos sinais físicos de doenças hematológicas primárias (linfadenopatia, hepatoesplenomegalia ou sensibilidade óssea), sobretudo no esterno ou na região tibial anterior. Alterações na mucosa, como língua lisa, podem sugerir anemia megaloblástica. 2.3.1 Mecanismos adaptativos 2.3.1.1 Aumento do débito cardíaco Para aumentar o aporte de oxigênio aos tecidos, o sangue circula em maior volume por minuto. Tal procedimento é chamado “efeito hipercinético da anemia”, que é consequência da queda da resistência vascular periférica e do aumento da frequência cardíaca. 2.3.1.2 Aumento do 2,3-DPG no interior da hemácia O 2,3-difosfoglicerato é produzido e destruído enzimaticamente como intermediário da glicólise nos eritrócitos e liga-se à Hb desoxigenada, diminuindo, assim, a afinidade desta pelo oxigênio, liberando-o para os tecidos. Este metabólito reduz a afinidade da Hb pelo oxigênio, facilitando a liberação de O2 nos tecidos e minimizando os sintomas. 2.3.1.3 Aumento da perfusão “órgão-seletiva” Tal aumento forma shunts, para melhorar a perfusão de órgãos vitais. Na perda aguda, as maiores áreas de redistribuição são o leito vascular mesentérico e ilíaco; nas perdas crônicas, pele e rim. 2.3.1.4 Aumento da função pulmonar Este consiste no aumento da frequência respiratória para elevar a oxigenação sanguínea. 2.3.1.5 Aumento da produção de eritrócito Tal aumento é mediado pela produção de EPO. A taxa da síntese desta é inversamente proporcional à concentração de Hb e estimulada pela hipóxia do tecido renal. Quando o sistema de adaptação da anemia está preservado, a liberação tissular de oxigênio pode ser mantida, em repouso, com valores de Hb de até 5 g/dL. Sintomas estabelecem-se com valores abaixo desse no indivíduo em repouso, ao esforço físico ou, ainda, nos casos de falha no sistema de adaptação. 2.3.2 Quadro clínico Os sinais e sintomas associados à anemia devem-se à deficiência do aporte tissular de oxigênio. A chamada síndrome anêmica varia em suas manifestações, de acordo com a idade, o tempo de estabelecimento, a intensidade da anemia e as performances hemodinâmica e respiratória do indivíduo. Idosos com comorbidades, como insuficiência cardíaca ou doença pulmonar obstrutiva crônica, têm menor tolerância ao estado de hipóxia tissular. Pacientes cujo quadro anêmico se estabelece lentamente, como no caso da deficiência de ferro por perdas crônicas, suportam níveis mais baixos de Hb (pela adaptação feita com os mecanismos compensatórios) quando comparados àqueles em que há rápida instalação da anemia, como nas perdas agudas. Os sintomas mais habitualmente associados à síndrome anêmica, independentemente de sua etiologia, são dispneia aos esforços, de forma progressiva – até dispneia em repouso, tontura postural, vertigem, cefaleia, palpitação, síncope, astenia, diminuição dos rendimentos físico e intelectual, alteração do sono, diminuição da libido, alteração do humor, anorexia, dor torácica e descompensação de patologias cardiovasculares, cerebrais ou respiratórias de base. No exame físico, encontram-se palidez da pele e das mucosas, taquicardia, aumento da pressão do pulso, sopros de ejeção sistólicos, diminuição da pressão diastólica e edema periférico leve. Nos casos mais graves, letargia, confusão mental, hipotensão arterial e arritmia cardíaca. A anemia causada por perda sanguínea aguda é acompanhada de sintomas de hipovolemia. De acordo com o volume de sangue perdido, a intensidade do sintoma muda e pode variar desde taquicardia até choque hipovolêmico e perda de consciência. Além disso, os reflexos de adaptação vascular à perda volumétrica aguda são mais intensos, e o quadro pode regredir apenas com reposição de volume. É importante reconhecer a diferença entre sintoma de anemia e hipovolemia, a fim de evitar transfusões de sangue desnecessárias. A transfusão de concentrado de hemácias deve ser considerada aos pacientes das classes III e IV, pois, nos de classes I e II, pode ser feita apenas a reposição volêmica com cristaloides. O cor anêmico é possível em indivíduos previamente hígidos e acontece em razão da insuficiência cardíaca de alto débito. 2.4 INVESTIGAÇÃO ETIOLÓGICA E CLASSIFICAÇÃO A anemia é sinal de doença, portanto nunca deve ser admitida como normal, devendo-se sempre procurar uma causa. A abordagem inicial do paciente com anemia deve acontecer da seguinte forma: 1. História clínica completa: a) Questionar quanto aos sintomas da síndrome anêmica e ao tempo de evolução; b) Investigar história nutricional, incluindo ingestão alcoólica; c) Questionar sobre sintomas de doenças que, sabidamente, cursam com anemia (sangue nas fezes, dor epigástrica, artrite, características da diurese); d) Pesquisar comorbidades e medicamentos em uso; e) Investigar história familiar de anemia e origem étnica, considerando alterações hereditárias da Hb e do metabolismo do eritrócito (talassemias, anemia falciforme, deficiência de G6PD etc.); f) Investigar história ocupacional, à procura de exposição a agentes tóxicos. 2. Exame físico: realizar exame físico completo, além de estar atento para sinais de anemia, como glossite, queilite angular, icterícia (sinal de hemólise ou hepatopatia), sinais de neuropatia, esplenomegalia (hemólise ou outra doença de base) e sinais de doenças associadas como causa da anemia (adenomegalia, esplenomegalia, petéquias); 3. Exames laboratoriais na investigação inicial: a) Hemograma: é importante para a análise dos índices eritroides, auxiliando na classificação morfológica da anemia e na avaliação dos outros componentes celulares sanguíneos; b) Contagem de reticulócito: avalia a função medular, importante na classificação funcional das anemias; c) Avaliação do esfregaço de sangue periférico: contém informações importantes quanto à alteração na produção eritroide e nos mostra diferenças no tamanho e na forma das hemácias. A avaliação da anemia depende da avaliaçãofisiopatológica, que compreende a contagem de reticulócitos e classifica a anemia pela produção medular, e a avaliação morfológica, que inclui os elementos do hemograma e do esfregaço periférico e classifica a anemia conforme as características dos exames laboratoriais. 2.4.1 Classificação fisiopatológica (hemograma e contagem de reticulócitos) O número de reticulócitos (precursores das hemácias) ajuda a estimar a função medular e deve ser pedido na avaliação das anemias. A contagem normal de reticulócitos varia de 0,5 a 2%, e sua contagem absoluta de 25.000 a 75.000 µL, podendo ser utilizada como marcador da eritropoese eficaz, pois eles são formas jovens da hemácia recentemente liberados pela medula óssea. Diante do quadro de anemia, se a EPO e a função medular estiverem preservadas, a produção eritroide aumentará em 2 a 3 vezes o valor normal dentro de 10 dias do início da anemia. Desta forma, se o valor normal da contagem não for ampliado dessa maneira, será indício de resposta medular inadequada. O valor do reticulócito pode ser expresso em número absoluto ou relativo (em porcentagem). Como geralmente é referido em porcentagem, para utilizá-lo como indicador de função medular, são necessários ajustes, descritos a seguir. 2.4.1.1 Ajustar para o grau de anemia Na anemia, a porcentagem de reticulócitos pode estar aumentada, enquanto o número absoluto pode estar baixo. Exemplo: em um caso em que o valor de reticulócitos é de 5%, em uma contagem de eritrócitos de 1.000.000/µL, o número absoluto é de 50.000/µL; isto é, infere-se que não há reticulocitose. Para corrigir esse efeito, utiliza-se o seguinte cálculo: Nota: hematócrito normal para o homem: 45%; para a mulher: 40%. Ambos, o hematócrito (Htc) e o reticulócito são mensurados em porcentagem. A maturação depende do nível de Htc: 1 para Htc > 40%; 1,5 para Htc entre 30 e 39,9%; 2 para Htc entre 20 e 29,9%; e 2,5 para Htc < 20%. Um índice de reticulócito > 3 representa uma reação medular normal, e um índice < 2 representa uma resposta medular inadequada (insuficiente). Outra fórmula que pode ser utilizada é o cálculo do número de reticulócitos absolutos, como segue: Quando o reticulócito é expresso em número absoluto, esse cálculo não é necessário. 2.4.1.2 Índice reticulocitário O reticulócito está presente na circulação pelo período de 1 a 2 dias, tempo suficiente para o catabolismo final dos resíduos de RNAs. Em situações com grande estímulo da eritropoese, o reticulócito pode sair precocemente da medula e ficar mais dias no sangue periférico, fato identificado pelo encontro de policromasia (variação de cor na análise do sangue periférico). Portanto, nessas situações, pode-se ter uma estimativa excessiva da eritropoese. Para corrigir esse efeito, utiliza-se o índice reticulocitário. Calcula-se, de forma prática, dividindo o reticulócito corrigido por 2 (ou o valor absoluto), pois a maioria dos pacientes se apresenta com hematócrito entre 20 e 30%. Porém, quanto mais intensa for a anemia, mais precocemente o reticulócito cairá na circulação e ali ficará por maior tempo. Desta forma, o método correto de calcular o índice é correlacionar com o hematócrito. Quadro 2.1 - Fator de correção, segundo o hematócrito para o cálculo do índice reticulocitári Com a avaliação dos reticulócitos, pode-se dividir a função medular em: 1. Medula hipoproliferativa: apresenta contagem de reticulócito corrigida < 2% ou < 100.000/mm3; 2. Medula hiperproliferativa: quando a contagem atinge valores ≥ 2% ou ≥ 100.000/mm3, indicando resposta medular normal à perda de sangue ou à destruição excessiva dos eritrócitos. Com esses dados, pode-se estabelecer a classificação fisiopatológica das anemias: 1. Anemias hipoproliferativas: diagnosticadas pela reticulocitopenia, resultam da baixa taxa de produção de hemácia. As causas mais comuns são: a) Deficiência nutritiva (em crianças e adultos) por falta de absorção, ingesta inadequada ou perda crônica (especialmente de ferro, folato e vitamina B12); b) Falta de estímulo com diminuição de hormônios estimulantes da eritropoese – EPO (disfunção renal), hormônio tireoidiano, androgênio; c) Doenças da célula-tronco (anemia aplásica, mielodisplasia) ou infiltração medular tumoral; d) Supressão medular: quimioterápicos, medicamentos; e) Anemia de doença crônica secundária a processos inflamatórios, infecciosos ou neoplásicos. 2. Anemias hiperproliferativas: diagnosticadas pela reticulocitose, ocorrem em razão da perda ou destruição excessiva dos eritrócitos, com resposta adequada da medula óssea. Hemólise é a destruição prematura de hemácias e pode ser de causa congênita ou adquirida. Quadro 2.2 - Classificação fisiopatológica 2.4.2 Avaliação da morfologia (hemograma e esfregaço do sangue periférico) A avaliação morfológica das anemias baseia-se, principalmente, na hemoglobina corpuscular média, no volume corpuscular médio e no red cell distribution width (RDW). O VCM (que mostra o tamanho médio dos eritrócitos) e a HCM (que mostra o valor médio de Hb nas hemácias – representado morfologicamente pela cor do eritrócito) podem ser calculados com base nos valores de hematócrito, número de eritrócitos e Hb. Baseia-se na cor (CHCM) e no tamanho (VCM) das hemácias (Quadro 2.3). Quadro 2.3 - Valores de referência para concentração da hemoglobina corpuscular média e volume corpuscular médio 2.4.2.1 Hipocrômicas e microcíticas São caracterizadas por células pequenas e de coloração menos intensa, pelo pouco conteúdo de Hb, que pode ser decorrente de: 1. Diminuição da disponibilidade do ferro: deficiência de ferro, anemia de doença crônica, deficiência de cobre; 2. Diminuição da síntese do heme: intoxicação por chumbo, anemia sideroblástica; 3. Diminuição na síntese de globinas: talassemia, outras hemoglobinopatias. 2.4.2.2 Normocrômicas e normocíticas A média do tamanho e da coloração das hemácias é normal. Nessa situação, a análise do sangue periférico é importante, pois pode tratar-se de estágio inicial de anemia microcítica ou macrocítica. Pode também ocorrer pela falta de estímulo da eritropoese (insuficiência renal, endocrinopatia), pela anemia de doença crônica ou pelas anemias por infiltração medular, entre outros. 2.4.2.3 Normocrômicas e macrocíticas Trata-se de hemácias grandes e de coloração normal, maiores que a média, porém com conteúdo globínico normal. Ocorrem frequentemente em: a) Anemias com metabolismo anormal do ácido nucleico – megaloblásticas por deficiência de vitamina B12 ou ácido fólico, medicamentos (zidovudina, hidroxiureia); b) Reticulocitose importante, pois o reticulócito é uma célula grande – anemia hemolítica, resposta à perda sanguínea aguda; c) Alteração da maturação do eritrócito (mielodisplasia); d) Outras causas, como hepatopatia, hipotireoidismo, alcoolismo. Podem-se ainda classificar as anemias, além dos pontos de vista fisiopatológico e morfológico: 1. Quanto à massa eritrocitária: a) Relativas: aumento do volume plasmático, sem alteração da massa eritrocitária (gestante, macroglobulinemia); b) Absolutas: diminuição real da massa eritrocitária. 2. Quanto à velocidade de instalação: a) Agudas: de instalação rápida; b) Crônicas: de instalação lenta. Após a avaliação e a classificação inicial das anemias, muitas vezes são necessários exames específicos para confirmação diagnóstica, como na anemia hipocrômica e microcítica com RDW alto – analisar perfil de ferro; anemia macrocítica com RDW alto – analisar dosagem de vitamina B12 e folato; anemia normocrômica e normocítica com reticulócito baixo e RDW normal – dosar nível sérico de EPO, avaliar funções renal e tireoidiana e solicitar mielograma. O que não se pode deixar de saber sobre o hemograma e anemias? Convém não esquecer de checar os níveis de hemoglobina, VCM, HCM, CHCM e RDW para poder classificar as anemias em micro/macrocíticas, hipo/hipercrômicas. Quais são as principais causas de anemias hipoproliferativas? 3.1 CONCEITOS GERAIS A baixa resposta reticulocitária perante a anemia é sinal patognomônicodas anemias por deficiência de produção ou hiporregenerativas. A faixa da normalidade no número de reticulócitos por volume de sangue varia entre 25.000 e 100.000/mm3, esperando-se contagens maiores ou iguais a 100.000/mm3 quando há regeneração medular, ou seja, nas anemias hiperproliferativas, e valores menores que 100.000/mm3 quando não há resposta medular eficaz, no caso das anemias hipoproliferativas ou por deficiência de produção. 3.2 ANEMIA POR DEFICIÊNCIA DE FERRO 3.2.1 Conceitos gerais O ferro é um mineral essencial ao organismo humano. Suas funções são as de mediador enzimático para a troca de elétrons (citocromo, peroxidases, catalases e ribonucleotídeo redutase) e carreador de oxigênio (mioglobina e Hb). Nesta, é o componente central da molécula heme e o responsável direto por levar oxigênio até os tecidos. A deficiência de ferro é a causa mais comum de anemia no mundo e uma das doenças mais frequentes na prática médica. Sua distribuição geográfica é mais extensa nos países em desenvolvimento, onde o aporte dietético de ferro e o controle das parasitoses intestinais são insuficientes. Dados norte-americanos revelam que de 1 a 2% dos adultos apresentam anemia ferropriva, sendo a deficiência de ferro sem anemia mais comum, acometendo 11% das mulheres e 4% dos homens. Entretanto, não existe faixa etária de maior prevalência dessa patologia, podendo ser encontrada em qualquer idade, com causas variáveis. Em adultos, as causas mais comuns de anemia por deficiência de ferro são ingestão insuficiente, déficit de absorção, perdas sanguíneas ou aumento rápido da demanda (como no crescimento rápido dos adolescentes e na gestação). O desenvolvimento da deficiência de ferro e a velocidade com que ela se instala dependem da reserva individual. O sexo, a idade e o balanço entre ingestão e perda diária do paciente influenciam nesse caso. 3.2.2 Metabolismo do ferro e fisiopatologia da carência O ferro total do organismo varia entre 2 e 4 g: por volta de 50 mg/kg nos homens e 35 mg/kg nas mulheres. Nos homens, 1 mL de concentrado de hemácias contém, aproximadamente, 1 mg de ferro, portanto 1 mL de sangue total contém entre 0,5 e 0,6 mg de ferro, perfazendo um total estimado de 2.100 mg de ferro no sangue de um indivíduo que pesa 70 kg. Nas mulheres, a concentração é mais baixa; calcula-se encontrar cerca de 1.350 mg de ferro, o que pode ser explicado por perda menstrual, gravidez, lactação e menor ingestão. Quadro 3.1 - Distribuição do conteúdo de ferro no organismo A produção do estoque de ferro é feita principalmente por 2 componentes: 1. Ferritina: formada pela proteína apoferritina + ferro, encontrada virtualmente em todas as células do organismo (principalmente fígado, baço e pulmões) e na corrente sanguínea, por ser hidrossolúvel. Sua dosagem sérica reflete o estoque total corpóreo, visto ser essa a forma de estoque mais abundante. É importante para disponibilizar ferro, conforme a necessidade corpórea; 2. Hemossiderina: não é hidrossolúvel, representando cerca de 25 a 30% do estoque corpóreo; nos indivíduos normais, encontra-se armazenada no sistema reticuloendotelial macrofágico e na medula óssea; porém, em condições patológicas, pode acumular-se em qualquer tecido, principalmente no fígado e no baço. Figura 3.1 - Ciclo da cinética de ferro Fonte: elaborado pelos autores. 3.2.2.1 Ingestão A dieta média nos países desenvolvidos contém aproximadamente 15 mg/d de ferro. No Brasil, calcula-se que a dieta das classes B e C apresente cerca de 10 mg/d de ferro nos alimentos. Está presente na forma de anéis heme (carnes, peixes, aves), a mais biodisponível, e na forma de complexos de hidróxido férrico (nos vegetais). Esta necessita do pH ácido do estômago para ser reduzida à forma ferrosa e para poder ser adequadamente absorvida. 3.2.2.2 Absorção Do total de ferro ingerido, 30% da forma heme e 10% da não heme são absorvidos; o restante é eliminado nas fezes. A absorção diária no homem varia de 0,5 a 1 mg/d, sendo o dobro na mulher, o que é justificado pela perda menstrual, e o quádruplo na gestante, em razão do consumo pelo feto. A absorção pode ser ajustada, de acordo com as necessidades orgânicas. Na deficiência de ferro, a eficácia da absorção do metal pode aumentar até 5 vezes em relação ao basal. O ferro, de maneira geral, é absorvido pela borda “em escova” das células epiteliais da vilosidade intestinal, especialmente no duodeno e no jejuno proximal. Os íons ferrosos (Fe++) são absorvidos mais eficientemente do que a forma férrica (Fe+++); esta, por sua vez, necessita da acidez gástrica para a estabilização e a ligação com a mucina. Com tal ligação, uma enzima chamada redutase férrica transmembrana converte Fe+++ em Fe++, o qual precisa atravessar a membrana apical da célula intestinal pela proteína DMT1 (transportador de metal divalente do tipo 1), saindo, assim, do lúmen intestinal e atingindo o interior celular. Existem substâncias capazes de interferir na absorção do ferro, como o ácido ascórbico, que modifica a valência de férrico para ferroso e melhora a absorção, ou como os fitatos (farelos, aveia, centeio), tanatos (chás), oxalatos (uvas-passas, figo, ameixa, batatas-doces, amêndoas, tomate, chocolate, cacau), fosfatos (leite e derivados), antiácidos, cálcio e até antibióticos (tetraciclina, quinolonas), que reduzem a absorção. O duodeno e a porção superior do jejuno são os locais de máxima absorção; consequentemente, síndromes disabsortivas ou bypass dessas áreas podem levar à deficiência de ferro. Uma vez no interior celular, o ferro tem 2 vias possíveis: é armazenado como ferritina, ou é transportado para o plasma, passando pela proteína transmembrana ferroportina, que, por sua vez, atua em conjunto com a hefaestina para nova transformação de íon ferroso em férrico. Atualmente, sabe-se, ainda, que a regulação da absorção é dada por uma proteína de fase aguda chamada hepcidina; sintetizada no fígado, atua diretamente na inibição da absorção de ferro, bem como na diminuição da sua liberação do interior da célula intestinal, pelo feedback negativo do seu transportador na membrana basolateral ferroportina. Logo, sua superexpressão causa aumento dos estoques de ferro, associado à diminuição da absorção desse íon e de sua quantidade sérica circulante. A hepcidina e a ferroportina são reguladoras da absorção de ferro: aumentam a absorção quando os estoques estão baixos ou ausentes e quando há aumento da eritropoese (principalmente em doenças que cursam com eritropoese ineficaz: mielodisplasia, betatalassemia e anemia sideroblástica); e diminuem a absorção quando os estoques estão repletos. Além disso, a hepcidina regula a liberação de ferro pelos macrófagos que fagocitaram eritrócitos senescentes. #IMPORTANTE A hepcidina está aumentada em infecções, inflamações, doença renal crônica e aumento do estoque de ferro, e diminuída em casos de hipóxia, anemia, deficiência de ferro, eritropoese inefetiva e altos níveis de eritropoetina. 3.2.2.3 Transporte do ferro O ferro ferroso (Fe++), absorvido pelo enterócito, pode ser armazenado na forma de ferritina ou novamente ser oxidado em férrico (Fe+++), para ligar-se à transferrina e ser transportado aos diversos tecidos pela ação da hefaestina, enzima dependente de cobre. Os tecidos que necessitam de ferro possuem receptores de transferrina em quantidade proporcional e suficiente, pois, por meio deles, ligam-se à transferrina e recebem o ferro. Figura 3.2 - Absorção de ferro no duodeno Fonte: adaptado de Iron and multiple sclerosis, 2014. 3.2.2.4 Reaproveitamento do ferro Cerca de 20 a 25 mg de ferro são liberados diariamente pelas hemácias senescentes para os macrófagos. O núcleo heme da hemácia fagocitada pelo macrófago é metabolizado, deixando o ferro livre para a circulação sanguínea por meio da ferroportina ou para armazenamento na forma de ferritina, a depender das necessidades do organismo. 3.2.2.5 Perda Não há nenhum mecanismo de regulação da perda de ferro. Este é perdido pelo suor e pela descamaçãoda pele e do epitélio gastrintestinal, na taxa de, aproximadamente, 1 mg/d; na mulher, em cada ciclo menstrual, a perda é aumentada em 1 a 2 mg/d. Nenhum mecanismo de excreção foi ainda detectado, nem pelo fígado nem pelos rins, portanto, a homeostasia fica balanceada entre a absorção diária de 1 a 2 mg e a perda diária da mesma quantidade. Figura 3.3 - Homeostasia do ferro Legenda: Tf-Fe+++: transferrina ligada ao ferro. Fonte: acervo Medcel. A gravidez pode modificar tal equilíbrio, em razão do aumento da demanda de ferro de até 2 a 5 mg/d. A dieta normal, geralmente, não supre essas necessidades, e a suplementação de ferro é indispensável durante a gravidez. Gestações repetidas, principalmente quando seguidas de amamentação, são causas frequentes de anemia ferropriva, caso não haja aporte de ferro adicional. As perdas crônicas desequilibram o cálculo entre o aporte diário e a absorção de ferro. Deve-se pensar nesse fato como um balanço comercial: se a absorção for equivalente a 2 mL de sangue por dia (1 mg), perdas acima dessa quantidade deverão ser compensadas pelo mecanismo de aumento do aproveitamento do ferro alimentar. Contudo, tal mecanismo nem sempre é suficiente, e os estoques de ferro são lentamente depletados, até que a deficiência se instale. O processo é frequente nas hipermenorreias, em que a mulher pode relatar fluxo intenso e duradouro por muitos anos e considerá-lo normal. A redução da absorção do ferro, como na gastrite atrófica ou na acloridria, na doença celíaca e na gastrite por Helicobacter pylori, leva à deficiência. Contudo, o sangramento em algum local do tubo digestivo é causa muito mais comum dessa condição. Reitera-se que a causa mais frequente de deficiência de ferro em adultos é a perda de sangue, seja menstrual, nas hipermenorreias ou polimenorreias, seja digestiva, em úlceras gástricas, doenças diverticulares ou tumores do trato gastrintestinal. As patologias aparentemente não sangrantes, como a esofagite e a hérnia de hiato, podem estar relacionadas. A hemoglobinúria crônica também pode causar deficiência de ferro, pois é possível perder acima de 1 mg/d por essa via. Esse quadro pode ocorrer por hemólise mecânica, por válvulas cardíacas metálicas e por hemólise intravascular sustentada, como na hemoglobinúria paroxística noturna. O Quadro 3.2 sintetiza os fatores que levam à deficiência de ferro. Quadro 3.2 - Fatores etiológicos da deficiência de ferro Em geral, a falta de ingesta como causa isolada de ferropenia é rara. Deve ser um diagnóstico de exclusão, pois mesmo a quantidade de ferro em dietas de extrema pobreza é suficiente para aporte adequado de ferro, levando-se em conta a capacidade do organismo em aumentar a sua absorção de ferro em até 5 vezes. 3.2.3 Quadro clínico A apresentação clínica pode incluir tanto manifestações da doença de base como do próprio estado anêmico. A privação de ferro manifesta-se com sintomas em outros órgãos e tecidos, independentemente da presença ou não de anemia, como queda de cabelo, redução do rendimento intelectual e mialgia. São queixas frequentes na ferropenia: perversão do apetite (pica – vontade de comer terra, barro, arroz cru), pagofagia (compulsão por comer gelo), unhas quebradiças e finas, língua lisa, com perda das papilas, glossite, queilite angular (Figura 3.6), gastrite atrófica e diminuição da saliva. Coiloníquia, que são as unhas em formato de colher (Figura 3.5) também podem ocorrer na anemia ferropriva. Algumas manifestações clínicas são pouco frequentes, como disfagia, alteração nos mecanismos da imunidade e escleras azuladas. Os sintomas evoluem de maneira gradual e incluem fadiga, taquicardia, palpitação, irritabilidade, tontura, cefaleia e intolerância aos esforços de intensidade variável. Pela instalação insidiosa e prolongada, os mecanismos adaptativos do organismo permitem tolerância de níveis bastante baixos de Hb. Figura 3.4 - Glossite atrófica: atrofia das papilas Figura 3.5 - Coiloníquia Fonte: Iweevy. Figura 3.6 - Queilite angular Fonte: Frank60. 3.2.4 Laboratório Os achados laboratoriais acompanham a evolução do quadro clínico, pois a deficiência de ferro se instala por etapas. Inicialmente, ocorre depleção dos estoques de ferro, com redução dos níveis de ferritina sérica abaixo de 30 ng/mL. A ferritina é o indicador mais confiável do status do ferro no organismo, por ser menos sensível às variações distributivas do que o ferro sérico e seus indicadores de transporte. Contudo, é uma proteína “de fase aguda”, ou seja, aumenta perante quadros inflamatórios, devendo ser considerada com cautela quando há concomitância da anemia com infecções ou inflamações severas. Para dosagens de ferritina extremamente baixas (< 15 ng/mL), a especificidade do teste é de 99%. Devido à falta de ferro, a formação de hemoglobina é deficiente, fazendo que o conteúdo das hemácias seja pequeno, acarretando volumes corpusculares médios mais baixos e anisocitose importante, o que eleva o valor do red cell distribution width (RDW). Posteriormente, a formação dos eritrócitos continua, porém os níveis de ferro circulante e a saturação da transferrina caem, mostrando que não resta mais ferro para ser mobilizado. A Capacidade Total de Ligação do Ferro (CTLF) e a quantidade de receptor de transferrina solúvel aumentam, mostrando que os receptores do ferro estão “vazios”. Outros parâmetros menos utilizados no cotidiano, porém de valor acadêmico, são: receptor de transferrina solúvel, produzido pelos eritrócitos de forma aumentada na carência de ferro, conferindo a essas células maior capacidade de absorção do ferro, e protoporfirina eritrocitária livre, que reflete diretamente a substituição do ferro pelo zinco na formação do heme, estando aumentada nas ferropenias. A falta de ferro para formar Hb leva à formação de hemácias com pouco conteúdo (hipocromia: Hemoglobina Corpuscular Média – HCM – baixa), que, ao se adaptarem a essa situação, alcançam volumes corpusculares mais baixos (microcitose: Volume Corpuscular Médio – VCM – baixo), resultando em anisocitose importante e RDW aumentado. Nas formas mais severas, podem ser notadas formas bizarras das hemácias, apresentando poiquilocitose intensa. A contagem de reticulócitos está diminuída, pois a eritropoese também está. A contagem de plaquetas pode elevar-se em razão do aumento da secreção de eritropoetina (EPO) pela anemia. O padrão-ouro para a avaliação direta do estoque de ferro é a análise da medula óssea com pesquisa do ferro medular, por meio da coloração com azul da Prússia (Perls). Dessa forma, é possível avaliar semiquantitativamente o estoque de ferro nos macrófagos; porém, como sua aplicabilidade é limitada, opta-se por medidas indiretas; Deve-se sempre lembrar de investigar a causa: diante de ferropenia ou anemia ferropriva, sem causa aparente (hipermenorreia, gestação, adolescência ou infância), avaliar inicialmente: endoscopia digestiva alta e colonoscopia, caso não seja identificada nenhuma anomalia, avaliar intestino delgado (exame de imagem – tomografia de abdome e cápsula endoscópica). Quadro 3.3 - Perfil laboratorial da anemia ferropriva Quadro 3.4 - Principais causas de anemia ferropriva, de acordo com a faixa etária Diante de situações como gastroplastia redutora, gastrectomia, doença gastrintestinal inflamatória crônica, nas quais se suspeita de resposta insatisfatória com o tratamento com ferro por via oral devido à má absorção deste elemento, um dos métodos preconizados que pode ajudar a confirmar essa alteração é o teste de absorção intestinal do ferro por via oral. Nesse teste, é realizada a dosagem de ferro sérico em jejum, feita a ingestão de ferro elementar por via oral e, após cerca de 2 horas, é dosado novamente o nível de ferro sérico para comparação com o anterior. 3.2.5 Diagnóstico diferencial Outras causas de anemia hipocrômica microcítica devem ser consideradas na avaliação clínica. Contudo, a história e o exame físico geralmente são suficientes para confirmar o diagnóstico. São diagnósticosdiferenciais: a) Anemia de doença crônica; b) Talassemia; c) Anemia sideroblástica; d) Hemoglobinopatia C; e) Intoxicação por chumbo. É importante ressaltar que, no hipotireoidismo e na deficiência de vitamina C, existe diminuição de ferritina sem depleção dos estoques de ferro. 3.2.6 Tratamento A transfusão para a correção de anemia ferropriva deve ser reservada a quadros de instabilidade hemodinâmica por sangramento excessivo ou situações que apresentem sinais de isquemia tecidual/cor anêmico. Além de oferecer o aporte de ferro para o tratamento da deficiência subjacente, deve-se tratar a causa, ou seja, investigar a fonte de perda sanguínea e tratá-la, já que a persistência da perda é o principal motivo de manutenção e até piora da anemia ferropriva. É extremamente rara a necessidade de transfusão para a correção de anemia ferropriva, pois esta é de instalação lenta, e o organismo adapta-se a níveis bastante baixos de Hb. Deve ser reservada a quadros de instabilidade hemodinâmica por sangramento excessivo ou situações que apresentem sinais de isquemia tecidual/cor anêmico. A primeira opção para o tratamento da anemia ferropriva é o ferro oral, pois é de custo bastante baixo, de fácil administração e sem efeitos adversos graves. O ferro parenteral, por ser mais custoso, com necessidade de infusão em ambiente hospitalar e risco de reações adversas graves e até fatais, deve ser reservado para casos especiais. 3.2.6.1 Ferro oral Apesar do aparecimento de várias formas diferentes de ferro oral, o melhor tratamento para a deficiência continua a ser o sulfato ferroso na dose de 300 mg (60 mg de ferro elementar), 3 a 4x/d, que deve ser ingerido longe das refeições, para garantir o máximo aproveitamento. Em crianças, preconiza-se o uso de 2 mg/kg/d, procurando não ultrapassar 15 mg/d, para não aumentar a toxicidade. Os principais problemas no uso do sulfato ferroso são os possíveis efeitos colaterais: intolerância digestiva, com dispepsia, dor epigástrica, diarreia, constipação, gosto amargo na boca e escurecimento das fezes. Muitas vezes, conseguem-se controlar os efeitos adversos com a ingestão do medicamento junto às refeições, fracionamento ou redução da dose diária, lembrando, porém, que essas medidas podem reduzir o aporte terapêutico de ferro elementar em até 50%, resultando em maior tempo de tratamento. O aporte de ferro oral deverá ser mantido por, pelo menos, 4 a 6 meses após a normalização da Hb, para garantir a repleção dos estoques do mineral. Contudo, recomenda-se realizar nova dosagem de ferritina sérica após o término da reposição, a fim de confirmar a normalização das reservas, que devem estar acima de 50 ng/mL e com saturação de transferrina > 20%, deixando um intervalo de pelo menos 7 dias entre a última dose da medicação e a coleta do exame, já que a ingesta de suplementos de ferro é a principal causa de resultados falsamente normais de ferro sérico e ferritina. Algumas vezes, pode ser necessário manter o aporte de ferro oral por mais tempo, principalmente quando a causa da deficiência ainda não foi resolvida ou ultrapassada. Atualmente, existe o ferro quelato ou quelatado, superior ao sulfato ferroso quanto às queixas de intercorrências gastrintestinais, pois não ocorre liberação de íons ferro no trato gastrintestinal, como acontece com o uso de outros sais de ferro, o que pode estar relacionado ao fato de a absorção desse tipo acontecer principalmente no jejuno. A eficácia da reposição pode ser avaliada por meio do pico reticulocitário, que ocorre de 5 a 7 dias após o início do tratamento, e pela elevação de Hb, em 3 semanas, de pelo menos 2 g/dL (0,2 g/dL/d). Em casos de refratariedade ao tratamento, deve-se pensar em dose inadequada da medicação prescrita, falta de adesão, falta de absorção e persistência da causa da ferropenia. 3.2.6.2 Ferro parenteral O grau de anemia não faz parte das indicações de ferro parenteral; assim, mesmo que o paciente esteja com baixos níveis de hemoglobina, se não estiver sintomático a ponto de realizar transfusão de hemácias e não houver nenhuma contraindicação ao uso de ferro oral, opta-se por essa modalidade de reposição. Em virtude de efeitos adversos graves (choque anafilático em 1% dos casos), a administração de ferro parenteral deve ser reservada a casos estritos: a) Na intolerância ao ferro oral, apesar da alteração da posologia ou da mudança na apresentação; b) Na falta de absorção do ferro oral, como em alguns casos pós- gastrectomia; c) Na vigência de doença gastrintestinal (como as doenças inflamatórias intestinais), pois pode haver piora dos sintomas; d) Nos casos em que há perda intensa, com o ferro oral não sendo suficiente para suprir as necessidades; e) Pacientes em hemodiálise, que apresentam perdas constantes pelo procedimento e pelo déficit de absorção intestinal. Até pouco tempo, a única apresentação comercial de ferro parenteral no Brasil era o sacarato de hidróxido de ferro III (Noripurum®), que se encontra em formulação tanto para aplicação intramuscular quanto para infusão intravenosa após diluição, sendo preferível esta última. A administração de ferro intramuscular é dolorosa, de absorção lenta e incompleta, podendo impregnar-se na região da aplicação, e não é menos tóxica ou mais segura do que a outra administração, estando atualmente proscrito o seu uso rotineiro. O déficit de ferro é calculado pela determinação do decréscimo em massa de células vermelhas do sangue normal, reconhecendo que há 1 mg de ferro em cada mL de células vermelhas do sangue. Foi lançada no mercado uma apresentação de ferro para uso intravenoso, a carboximaltose férrica (Ferinject®), a qual propicia mais comodidade e apresenta posologia e cálculo de dose que levam em conta somente o peso do paciente. Ela oferece excelentes resultados, porém com maior custo para aquisição. 3.3 ANEMIA MEGALOBLÁSTICA A anemia megaloblástica é um distúrbio provocado pela síntese comprometida do DNA. A divisão celular é lenta, em razão da inadequada conversão de desoxiuridilato em timidilato. O desenvolvimento citoplasmático progride normalmente, de modo que as células megaloblásticas tendem a ser grandes, com proporção aumentada de RNA e proteínas em relação ao DNA. O aspecto das células é característico, e o termo megaloblástico refere-se às anormalidades que aparecem nos núcleos celulares dos precursores eritroides, com a presença de grandes núcleos com cromatina rendilhada, traduzida no sangue periférico pelo encontro de macro- ovalócitos. Existem 4 tipos etiológicos de anemia megaloblástica: por deficiência de cobalamina (Cbl – vitamina B12), por deficiência de folato, por drogas e por alterações variadas, que incluem síndrome mielodisplásica, formas raras de deficiências enzimáticas e doenças ainda inexplicáveis, como a síndrome de Lesch-Nyhan. Existem 4 tipos etiológicos de anemia megaloblástica: por deficiência de cobalamina, por deficiência de folato, por drogas e por alterações variadas. As alterações morfológicas afetam todas as linhagens, inclusive a granulocítica e a megacariocítica, podendo ocorrer pancitopenia. 3.3.1 Anemia por deficiência de vitamina B12 3.3.1.1 Considerações gerais A vitamina B12 pertence à família das Cbls e atua em 2 reações importantes: 1. Como metil-Cbl: coenzima da metionina sintetase, que catalisa a transferência do radical metil da metil-Cbl para a homocisteína, formando a metionina, importante na metilação de vários neurotransmissores, fosfolipídios, DNA e RNA. O grupo metil do 5- metiltetra-hidrofolato restabelece a metil-Cbl, doando seu radical metil, o que resulta na formação do tetra-hidrofolato, importante para a síntese de timidilato; 2. Como adenosil-Cbl: cofator para a conversão da metilmalonil- coenzima A em succinil-coenzima A. Figura 3.7 - Papel da metilcobalamina no metabolismo humano Legenda: tetra-hidrofolato (THF). Fonte: elaborado pelos autores. 3.3.1.2 Fisiopatologia A vitamina B12 é encontrada somente em produtos de origem animal (carnes, ovos e derivados do leite),e toda aquela presente no corpo humano provém da dieta. A dose necessária diária é de 2 µg/d para adultos e 2,6 µg/d para gestantes e lactentes. A reserva é de 2.000 a 5.000 mg, sendo metade estocada no fígado. Dessa maneira, desde que o consumo diário esteja entre 2 e 5 µg, a carência pode levar mais de 3 anos para estabelecer-se após a instalação de um bloqueio de absorção. A Cbl da dieta está ligada a proteínas alimentares, precisando sofrer ação da acidez e pepsina do estômago para ser liberada e ligada à proteína R (ou haptocorrina), produzida pela saliva e pelo suco gástrico. A combinação proteína R + B12 impede a absorção da vitamina em meio gástrico. Proteases do suco pancreático produzem meio alcalino no duodeno e liberam o ligante da B12, disponibilizando-o para ligar-se ao Fator Intrínseco (FI), secretado pelas células parietais do fundo gástrico e da cárdia. Vitamina B12 + FI são absorvidos no íleo distal (99%), por meio do complexo receptor cubilina-AMN, que é dependente de cálcio. Posteriormente, a Cbl é transportada através do plasma pelas trans- Cbls e estocada, principalmente, no fígado. As trans-Cbls são proteínas de transporte de vitamina B12 e, até o momento, foram identificados 3 tipos dessa proteína: I, II e III, cada qual com um local de síntese diferente e variações na estrutura de glicoproteínas. Aproximadamente 90% da B12 plasmática circula ligada às trans- Cbls, porém apenas a trans-Cbl II tem a capacidade de transportar a vitamina para o interior das células. Uma vez dentro das células, a Cbl é metabolizada em metil-Cbl e adenosil-Cbl. Dessa maneira, para a absorção adequada da vitamina B12, são necessários os seguintes fatores: a) Ingesta adequada; b) Acidez gástrica; c) Proteases pancreáticas; d) Secreção de FI; e) Receptor ileal funcionante. Figura 3.8 - Absorção de vitamina B12 Fonte: ilustração Claudio Van Erven Ripinskas. A principal consequência da deficiência de cobalamina é o aumento da homocisteína, o que é tóxico ao endotélio, podendo acelerar a arteriosclerose e causar tromboembolismo venoso. Pela síntese inadequada de THF, ocorre eritropoese ineficaz, ou seja, a medula óssea é repleta de precursores, porém, no sangue periférico, há reticulocitopenia relativa e anemia, em consequência de hemólise intramedular por formação de precursores alterados. 3.3.1.3 Causas de deficiência As principais causas de deficiência de vitamina B12 são: anemia perniciosa; gastrectomia/cirurgia bariátrica; doença péptica; ressecção/bypass ileal; doença de Crohn/má absorção; síndrome da alça cega; insuficiência pancreática; dieta vegetariana vegana; gestante vegetariana; medicamentos que alteram a síntese de DNA, como biguanida, neomicina, 6-mercaptopurina e agentes alquilantes (ciclofosfamida); inibidor da bomba de prótons. a) Deficiência de ingesta Uma vez que a vitamina está presente em todos os alimentos de origem animal, a deficiência por ausência de ingesta é raríssima, podendo afetar os considerados vegetarianos veganos (que não ingerem ovos nem produtos lácteos). b) Deficiência de absorção As cirurgias de gastrectomia podem causar deficiência de B12 pela retirada da camada de mucosa produtora de FI, pela diminuição da produção do suco gástrico e pela ocorrência da chamada “síndrome da alça cega”, em que o crescimento bacteriano excessivo leva à competição pela vitamina no lúmen intestinal. Ileostomias em que a porção absorvedora de B12 é retirada também provocam carência. Uma causa rara de deficiência de B12, porém frequentemente citada, é a infestação por Diphyllobothrium latum, um parasita que afeta peixes de águas frias. Essa larva atua competindo com a absorção da vitamina. Na pancreatite e na doença de Crohn grave, há deficiência por retardo da absorção no íleo. Outras doenças que afetam a região de absorção ileal, como tuberculose intestinal, linfoma intestinal e irradiação pélvica, também são fatores que levam à falta da vitamina. Além disso, há relatos entre portadores de Helicobacter pylori, nos quais o tratamento deste supre a deficiência da vitamina. c) Deficiência de fator intrínseco A causa mais comum de deficiência de B12 é a chamada anemia perniciosa, doença autoimune que dificilmente se manifesta antes da idade adulta. O FI diminui por meio de 2 mecanismos principais: 1. Anticorpos antifator intrínseco: detectáveis em 70% dos pacientes com anemia perniciosa, possuem 100% de especificidade; 2. Gastrite atrófica: associada ao anticorpo anticélula parietal (detectável em até 90%), diminuindo a secreção do FI. É mais sensível do que o anticorpo antifator intrínseco, porém menos específico. A gastrite atrófica também está associada ao risco aumentado de neoplasia gástrica e tumor carcinoide gástrico, recomendando-se vigilância com endoscopia anual. Geralmente, a anemia perniciosa associa-se a outras alterações imunológicas, como deficiência de IgA, vitiligo, hipotireoidismo e insuficiência endócrina poliglandular. As causas hereditárias são muito raras, mas podem acontecer por secreção de FI qualitativamente deficiente, mutação do gene do receptor ileal cubilina-AMN e deficiência congênita de trans-Cbl. 3.3.1.4 Quadro clínico Há relato de sintomas relacionados à anemia, geralmente grave, podendo ocorrer também sangramentos quando se instala plaquetopenia. Como a síntese de DNA alterada afeta todos os tecidos com alto turnover, o estado megaloblástico produz mudanças nas mucosas, levando à glossite, assim como a outros distúrbios gastrintestinais inespecíficos, por exemplo, anorexia e diarreia. As manifestações neurológicas associadas incluem polineuropatia, mielopatia, demência e neuropatia óptica. Ocorre também síndrome neurológica complexa e característica chamada “degeneração combinada subaguda”, em que os nervos periféricos geralmente são os primeiros afetados, com queixas iniciais de parestesia simétrica, acometendo mais os membros inferiores do que os superiores. As colunas posteriores da medula espinal começam a sofrer lesão, e os pacientes queixam-se de alterações sensoriais mais graves, caracteristicamente com redução da propriocepção, apresentando ataxia e, nos casos mais severos, paraplegia, incontinência urinária e fecal. Em casos mais avançados, podem ocorrer alterações neuropsiquiátricas e até demência. Os sintomas neurológicos podem aparecer independentemente da anemia; na verdade, de 12 a 25% daqueles com carência de B12 podem evoluir com sintomas neurológicos apenas, sem alteração hematológica. A reposição de folato é capaz de corrigir a anemia, porém não afeta o quadro neurológico ou há até piora deste, nos casos de deficiência de B12. Não é incomum, em pacientes com anemia perniciosa, o diagnóstico de outras doenças autoimunes, como tireoidite de Hashimoto e vitiligo. Ao exame físico, encontram-se palidez e, às vezes, icterícia leve. Durante o exame neurológico, redução da sensação vibratória e da propriocepção pode estar presente, sendo o primeiro sinal de neuropatia periférica. Constitui quadro clássico: pessoa idosa, levemente ictérica e pálida, com língua careca, mentalmente lenta e com passos largos e trôpegos. 3.3.1.5 Alterações laboratoriais A anemia megaloblástica caracteriza-se por macrocitose com VCM aumentado, que pode chegar a 140 fL. A associação à deficiência de ferro não é rara; nesse caso, o VCM pode estar normal ou até diminuído. No esfregaço de sangue periférico, nota-se anisopoiquilocitose acentuada, e o achado característico são os macro-ovalócitos. Os neutrófilos maduros mostram hipersegmentação nuclear (5% com 5 segmentos ou mais, ou 1% com 6 segmentos ou mais – polilobócitos). A contagem de plaquetas e granulócitos pode estar reduzida, e os reticulócitos estão baixos. A morfologia eritroide medular é característica, com hiperplasia eritroide como resposta à produção vermelha ineficaz, e há células grandes, com assincronia de maturação do núcleo e do citoplasma (já que o citoplasma continua a amadurecer, mas o núcleo, pelo defeito de síntese de ácidos nucleicos, retardasua progressão). Na série granulocítica, além dos polilobócitos, podem ser vistos metamielócitos gigantes. A combinação de macro-ovalócitos e neutrófilos hipersegmentados é patognomônica de anemia megaloblástica. Figura 3.9 - Neutrófilo hipersegmentado Fonte: adaptado de Kantarose Boonyuen. Como resultado da eritropoese ineficaz e da destruição intramedular das células anômalas, os níveis séricos de bilirrubinas (principalmente de bilirrubina indireta secundária à hemólise intramedular) e desidrogenase láctica podem elevar-se, com aumento discreto das primeiras e pronunciado da segunda. O diagnóstico de deficiência de vitamina B12 é feito pela dosagem da vitamina no sangue, que deverá estar baixa, desde que o paciente não tenha recebido recentemente aporte exógeno da vitamina. É comum encontrar deficiência de B12, mas com níveis séricos normais, por terem recebido hidratação venosa ou suplementos vitamínicos contendo complexo B. A dosagem sérica da vitamina sofre várias limitações: gestantes com níveis diminuídos sem deficiência, variação individual ampla, alguns com dosagem normal diante do quadro de deficiência; portanto, em casos de dosagem normal de vitamina B12, mas com quadro clínico e hemograma altamente suspeitos, podem-se dosar homocisteína sérica e ácido metilmalônico sérico e urinário (todos estarão aumentados). Essas dosagens são atualmente o padrão-ouro para diagnóstico, tanto que valores normais desses metabólitos intermediários, mesmo com dosagens diminuídas de B12, excluem diagnóstico de anemia megaloblástica. Para o diagnóstico da anemia perniciosa, podem-se dosar o anticorpo antifator intrínseco (especificidade > 95%, mas sensibilidade de 50 a 70%), o anticorpo anticélula parietal (encontrado em 80 a 90% dos pacientes, mas específico para gastrite autoimune) e o anticorpo de dosagem sérica de gastrina (bastante sensível – 90 a 95% –, mas pouco específico). 3.3.1.6 Diagnóstico diferencial Deve-se, primeiramente, diferenciar a deficiência de B12 da deficiência de folato, pela semelhança dos quadros clínico e laboratorial, embora possa haver concomitância. Afastar também a mielodisplasia, capaz de causar alterações morfológicas medulares bem semelhantes, mas sem haver concomitantemente queda dos níveis de B12 (normais na mielodisplasia) nem quadros neurológicos associados. Pelo quadro de pancitopenia que pode acontecer, deve-se diferenciar de anemia aplásica e leucemias agudas. 3.3.1.7 Tratamento Os pacientes com anemia perniciosa são tratados com aporte parenteral de vitamina B12, sugerindo o uso diário de injeção de 1.000 µg IM. O esquema proposto é de 1 injeção/d por 1 semana; após, 1 injeção/sem durante 1 mês; e, depois, 1x/mês por toda a vida. Pode- se, em alguns casos, utilizar a manutenção com Cbl oral de forma alternativa, 1.000 µg/d, continuamente. Também se deve evitar o uso de folato antes do início da reposição da vitamina, pois pode agravar o quadro neurológico. O primeiro sinal de resposta é sensação inespecífica de bem-estar, seguida da redução dos outros sintomas. Já no segundo dia do tratamento, há queda importante de ferro sérico, bilirrubina e desidrogenase láctica, além da normalização das alterações encontradas na medula óssea. Pode acontecer hipocalemia nos primeiros dias de tratamento, principalmente se a anemia é muito grave, pelo aumento da utilização para a eritropoese. Espera-se aumento de contagem reticulocitária em 3 a 4 dias de tratamento, com pico entre o sétimo e o décimo dia. Os neutrófilos hipersegmentados desaparecem ao redor do décimo ao décimo quarto dia. E a normalização hematológica acontece em torno de 2 meses após o início da terapêutica. Os sintomas do sistema nervoso central são reversíveis em até 12 meses, caso haja pouco tempo de evolução (menos de 6 meses), mas podem ficar sequelas permanentes, caso o tratamento não seja iniciado prontamente. 3.4 ANEMIA POR DEFICIÊNCIA DE ÁCIDO FÓLICO 3.4.1 Considerações gerais O Ácido Fólico (AF) está presente na maioria dos vegetais e das frutas, principalmente nos cítricos e nas folhas verdes, na forma de poliglutamato, sendo hidrolisado em monoglutamato no jejuno, onde é absorvido. As necessidades diárias variam entre 50 e 100 µg, aumentando na gestação até 8 vezes. Os estoques corpóreos de folato alcançam cerca de 5.000 µg, nível suficiente para suprir os requerimentos orgânicos por 2 a 3 meses. Os folatos constituem um grupo de compostos heterocíclicos nos quais o ácido pteroico está conjugado com um ou diversos resíduos de ácido L-glutâmico. O AF, para ser biologicamente ativo, necessita sofrer redução, passando pelas formas intermediárias de diidrofolato e THF, por meio da enzima diidrofolato redutase. Pode, ainda, ligar unidades de carbono, que inclui grupos metil (CH3), metileno (CH2), formil (-CHO-) ou formimino (-CHNH-), conferindo ao folato a função de coenzima, em vários sistemas enzimáticos, como carreador dessas unidades de carbono em diferentes graus de oxidação. Os folatos podem ser absorvidos ao longo de todo o intestino delgado, preferencialmente no jejuno. Para sua absorção, os poliglutamatos necessitam ser hidrolisados em monoglutamatos pela enzima intestinal pteroilpoliglutamato hidrolase. Uma vez absorvidos, os folatos monoglutamatos podem ser convertidos em 5-metiltetra-hidrofolato (5-metil-THF), principal forma encontrada no plasma, onde é transportado para o fígado e os tecidos periféricos via circulação porta. O folato é estocado principalmente no fígado e secretado na bile, onde a circulação êntero-hepática será responsável por sua reabsorção e reutilização, diminuindo as perdas orgânicas. A importância dessa vitamina está na participação de reações de transferência de unidades de carbono, como reações de metilação, síntese de metionina, biossíntese de purinas e formação de timidilato (fundamentais para a síntese do DNA). 3.4.2 Causas da deficiência A principal causa de deficiência é falha na ingesta: pessoas anoréxicas, etilistas crônicas, aquelas que não ingerem frutas ou vegetais crus e as que cozinham demasiadamente os alimentos (o AF é termolábil, destruído após 15 minutos de cozimento). O alcoolismo crônico pode resultar em deficiência de folato por diminuição da ingesta alimentar, da circulação êntero-hepática e bloqueio da absorção pela inibição direta do álcool sobre a enzima pteroilpoliglutamato hidrolase. Raramente é vista a deficiência por déficit de absorção. O AF é absorvido no jejuno proximal, por isso a deficiência pode ocorrer principalmente em indivíduos com síndromes disabsortivas crônicas (espru tropical). Existem condições em que os requerimentos diários de folato aumentam intensamente, podendo levar aos quadros carenciais, como na gestação, nas doenças esfoliativas cutâneas crônicas e nas anemias hemolíticas. É muito importante o suplemento durante a gestação, para prevenir malformação fetal, como os defeitos de tubo neural (anencefalia e espinha bífida). Drogas como a fenitoína, que pode interferir na absorção do folato, a sulfassalazina, o sulfametoxazol-trimetoprima (inibidores fracos da diidrofolato redutase) e o metotrexato (inibidor forte da diidrofolato redutase) levam à diminuição da síntese de DNA (diminui a síntese de timidilato) e provocam anemia megaloblástica por deficiência funcional. Paciente em esquema de hemodiálise por Insuficiência Renal Crônica (IRC) pode apresentar deficiência de AF por este ser dialisável, logo, perdido durante as múltiplas sessões às quais é submetido. 3.4.3 Quadros clínico e laboratorial O quadro é semelhante ao da deficiência de vitamina B12, com as mudanças megaloblásticas e as alterações de mucosa, porém não se apresenta quadro neurológico associado. Acontece também a elevação da desidrogenase láctica e das bilirrubinas, porém a dosagem de B12 é normal. O AF sérico está abaixo de 3 ng/mL. Os níveis eritrocitários são mais específicos do que a dosagem no soro, contudo esse é um exame de maior complexidade e menor disponibilidade. Em caso de dúvida diagnóstica, pode-seobservar aumento da homocisteína sérica e urinária, mas, diferentemente do que ocorre na deficiência de vitamina B12, a dosagem do ácido metilmalônico está normal. Quadro 3.5 - Dosagem de metabólitos intermediários 3.4.4 Diagnóstico diferencial Os principais diagnósticos diferenciais de causas de macrocitose são: a) Drogas; b) Alcoolismo/doença hepática alcoólica; c) Hipotireoidismo; d) Mieloma múltiplo (falsa macrocitose); e) Síndrome mielodisplásica; f) Anemia aplásica; g) Leucemias agudas. 3.4.5 Tratamento Utiliza-se AF oral na dose de 1 a 5 mg/d (a maioria das formas comerciais disponíveis no Brasil é de 2 ou 5mg), e espera-se resposta rápida. O tratamento deverá ser continuado até a completa recuperação hematológica ou durante todo o período de aumento da demanda, quando for o caso. 3.5 ANEMIA DE DOENÇA CRÔNICA 3.5.1 Considerações gerais e fisiopatologia A Anemia de Doença Crônica (ADC) é a etiologia mais frequente de anemia entre indivíduos hospitalizados, pois a maioria das doenças sistêmicas crônicas associa-se a quadros de anemia leve ou moderada. Nessa condição, há resposta hematológica insuficiente perante as injúrias sistêmicas dos mais variados tipos, como inflamação, infecção, trauma, neoplasia, hepatopatia alcoólica, insuficiência cardíaca congestiva, diabetes, trombose, doença pulmonar obstrutiva crônica, insuficiência renal, entre outros. Quanto à fisiopatologia, os principais mecanismos que levam à anemia são: 1. Distúrbio na hemostasia do ferro: é o principal mecanismo fisiopatológico; há diminuição na captação e aumento no armazenamento pelo sistema reticuloendotelial, diminuindo o nível sérico do ferro e a disponibilização para os precursores eritroides, com consequente queda do ferro sérico e aumento dos níveis de ferritina; 2. Diminuição da sobrevida e produção eritrocitária: ocorre pela ação de interleucinas, que inibem a proliferação e a diferenciação de precursores eritroides, e pela falha da medula óssea em compensar adequadamente essa redução; 3. Diminuição relativa dos níveis de EPO: embora esta esteja pouco aumentada quando da dosagem, seu nível não é suficiente para aumentar a eritropoese, provavelmente por elevação da apoptose dos precursores eritroides. A hepcidina, já citada, tem sua liberação aumentada diante de quadros infecciosos e inflamatórios, particularmente com liberação de interleucina 6 (IL-6). Tal proteína provoca a retenção do ferro dentro dos macrófagos, impedindo o retorno do ferro estocado à circulação e bloqueando também a passagem daquele presente nos enterócitos para a circulação (inibe a ferroportina), os quais perdem esse metal ao sofrerem a descamação fisiológica. A hepcidina aumentada nos quadros infecciosos e inflamatórios, e o aumento das interleucinas IL-1, IL-6, fator de necrose tumoral e alfainterferona, que diminuem a responsividade da medula óssea à eritropoetina, têm papel importante no desenvolvimento da anemia de doença crônica. Aparentemente, níveis mais elevados de EPO e aumento do estímulo de eritropoese levam à redução da síntese de hepcidina e ao aumento da disponibilidade do ferro. A administração de EPO em doses maiores também pode inibir o efeito de interleucinas, particularmente de alfainterferona. Existe uma variante da ADC, que é a anemia relacionada a eventos agudos: trauma, infarto agudo do miocárdio, pós-cirúrgico e sepse – é a chamada “anemia do doente crítico”, que apresenta a mesma fisiopatologia de baixo ferro sérico e baixa resposta à EPO endógena. Figura 3.10 - Fisiopatologia da anemia de doença crônica Fonte: elaborado pelos autores. 3.5.2 Sinais e sintomas Os achados clínicos são em geral modestos, correlacionados usualmente com a doença de base, devendo-se suspeitar do diagnóstico quando o paciente é portador conhecido de alguma patologia crônica; entretanto, a confirmação será feita somente com os achados laboratoriais. Deve-se investigar a coexistência de causas de deficiência nutricional concomitante, por déficit de ingesta, sangramento ou disabsorção, e observar a presença de sinais/sintomas sugestivos das carências. A sintomatologia é de anemia, e o quadro específico da doença de base pode dificultar o diagnóstico. 3.5.3 Quadro laboratorial A anemia é de intensidade variável. Muitos pacientes apresentam valor de Hb entre 10 e 11 g/dL, mas alguns casos podem ter anemia grave, com Hb < 8 g/dL (até 30% dos casos). Em pacientes com esse tipo de anemia, é sempre importante afastar outras causas de anemia concomitante: insuficiência renal, carência nutricional ou sangramento. A prevalência e a severidade estão relacionadas ao estágio da doença de base e à idade do paciente. A morfologia eritrocitária é normocítica/normocrômica, e a contagem reticulocitária está diminuída como resultado da eritropoese diminuída. Em 30% dos casos, a anemia pode ser hipocrômica e microcítica, especialmente quando em associação à anemia ferropriva. O estudo do perfil de ferro completo demonstra: a) Ferro sérico baixo, às vezes chegando a níveis mínimos; b) CTLF baixa, refletindo o nível de transferrina diminuído; c) Saturação de transferrina normal (mas em 20% dos casos pode estar diminuída); d) Dosagem de receptores de transferrina solúveis diminuída; e) Ferritina normal ou elevada, por tratar-se de proteína de fase aguda e pelo aumento dos estoques de ferro; f) Pesquisa do ferro medular revelando quantidade normal ou aumentada de ferro nos macrófagos e diminuída ou ausente nos precursores eritroides (diminuição ou ausência dos sideroblastos). Substâncias que sugerem atividade inflamatória elevada, como a proteína C reativa, velocidade de hemossedimentação e fibrinogênio, podem estar elevadas. A ADC é um diagnóstico de exclusão, e sempre se devem investigar outras causas de anemia, principalmente as nutricionais. 3.5.4 Diagnóstico diferencial A ADC é uma anemia normocítica e normocrômica, hipoproliferativa e com as demais linhagens celulares normais, tendo como principal diagnóstico diferencial a anemia da insuficiência renal. Outras situações que podem cursar com quadro semelhante são as anemias secundárias às doenças endócrinas graves: hipotireoidismo, hiperparatireoidismo, insuficiência adrenal e mesmo pan- hipopituitarismo. Nas poucas vezes em que a ADC se apresenta como anemia hipocrômica e microcítica, o diagnóstico diferencial mais difícil é da anemia ferropriva. Há de ressaltar que as 2 entidades apresentam ferro sérico diminuído; na anemia ferropriva, porém, existe déficit absoluto de ferro por depleção; já na ADC, existe menor disponibilidade desse íon, que se encontra sequestrado nos estoques teciduais. Assim, os exames mais fidedignos para diferenciar as 2 situações são pesquisa do ferro medular, que, na carência de ferro, está ausente, e dosagem do receptor de transferrina, que está aumentada na ferropriva e diminuída na ADC. A quantificação da CTLF também é um dado importante, pois está aumentada na ferropriva e diminuída na ADC. Deve-se estar atento para o fato de que as 2 situações podem coexistir. Entretanto, na rotina clínica, lança-se mão da ferritina, que usualmente está aumentada na ADC e diminuída na anemia ferropriva. Outros diagnósticos diferenciais de anemia hipocrômica e microcítica: talassemia, anemia sideroblástica, deficiência de cobre, intoxicação por chumbo e hemoglobinopatia C. Quadro 3.6 - Diferenciação entre anemia ferropriva e anemia de doença crônica 3.5.5 Tratamento Na anemia de doença crônica, o tratamento deve ser da doença de base em si, uma vez que a anemia geralmente é discreta e não necessita ser tratada. Em casos mais graves, ou nos quais a doença de base é de tratamento mais difícil, podem ser necessárias transfusões de concentrados de hemácias quando a oxigenação tissular for muito prejudicada. Sangramento, deficiência de vitamina B12, folato e ferro devem ser corrigidos, caso presentes. A EPO recombinante injetável, indicada a pacientes com Hb < 10 g/dL, apresenta boa resposta em 40 a 80% dos casos. O nível sérico de EPO < 500 UI/Lé um bom preditor de resposta. Em 2 semanas de tratamento com EPO, espera-se a elevação de, ao menos, 0,5 g/dL de Hb, com a dose de EPO de 100 a 150 UI/kg, 3x/sem. Se não houver resposta em 6 a 8 semanas, aumentar a EPO para 300 UI/kg, 3x/sem. Se não houver resposta em 12 semanas, suspender e manter apenas suporte transfusional quando necessário. Deve-se fazer reposição de ferro oral concomitante para manter a ferritina > 100 ng/dL e a saturação de transferrina > 20%. Se não houver melhora dos níveis de ferro com a apresentação oral, utilizar ferro parenteral (a hepcidina elevada diminui a absorção intestinal do ferro). De maneira geral, a reposição de ferro somente é indicada a casos de concomitância com anemia ferropriva ou refratariedade ao uso de agentes eritropoéticos por depleção férrica. 3.6 ANEMIA DA INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA Na IRC, o grau de anemia é proporcional ao grau de insuficiência renal, de modo que aproximadamente 90% da população com clearance de creatinina < 25 a 30 mL/min apresenta anemia, muitas vezes, com valor de hemoglobina (Hb) < 10 g/dL. A anemia pode, ainda, surgir mesmo com menores valores de creatinina, como 2 mg/dL. No paciente com IRC, a anemia contribui para a piora dos sintomas relacionados à diminuição da função renal, como fadiga, depressão, dispneia e alteração cardiovascular. Também está associada ao aumento da morbimortalidade por eventos cardiovasculares e maiores frequência e duração das hospitalizações. A fisiopatologia da anemia na IRC pode ser explicada por 3 mecanismos: a) Diminuição da produção de EPO; b) Presença de produtos tóxicos metabólicos que diminuem a meia- vida do eritrócito e inibem sua produção (baixa responsividade à EPO); c) Sangramentos (disfunção plaquetária), hemólise e espoliação. Coletas de exame frequentes, associadas à perda de hemácias durante a hemodiálise, causam espoliação crônica de sangue e depleção de ferro. Mais raramente, em pacientes com síndrome nefrótica, pode ocorrer perda de transferrina (proteína carreadora do ferro) na urina, comprometendo o ciclo do ferro e contribuindo para a anemia. A diálise pode contribuir para a anemia por meio de depleção de AF (dialisável no procedimento); hemólise por trauma mecânico; presença de alumínio na água do banho de diálise, que pode interferir na incorporação do ferro aos precursores eritroides, causando anemia microcítica, além da perda de pequena quantidade de sangue, que fica retido no circuito a cada sessão. Na avaliação laboratorial, encontra-se anemia normocrômica e normocítica leve, na maioria dos casos, com Hb em torno de 9 a 10 g/dL (apesar da possibilidade, em até 30% dos casos, de anemia mais intensa, abaixo de 8 g/dL), com reticulócito normal ou diminuído. Deve ser feita a dosagem do perfil completo de ferro ao diagnóstico da anemia e na monitorização durante todo o tratamento. O tratamento é feito com a reposição de EPO recombinante, na dose de 150 UI/kg SC, 3x/sem. O valor-alvo de Hb desejado com o tratamento é de 10 a 12 g/dL (nunca excedendo 13 g/dL), o que ocorre em mais de 95% dos casos, indicando que a ação dos outros mecanismos na diminuição da eritropoese é mínima. Casos de resistência a EPO decorrem de ferropenia, processo inflamatório/infeccioso associado, hiperparatireoidismo secundário à IRC ou intoxicação por alumínio. Como raros efeitos adversos da EPO, podem-se ter hipertensão arterial, crise convulsiva, eventos cardiovasculares e trombose, principalmente de fístula arteriovenosa. Recomenda-se a reposição de AF e ferro, com controle periódico do perfil deste, que deve manter valores de ferritina entre 200 e 500 µg/L e/ou saturação de transferrina entre 20 e 50%. Para pré- dialíticos ou em diálise peritoneal, a reposição de ferro pode ser feita via oral ou parenteral; para aqueles em hemodiálise, a reposição é feita com ferro parenteral. 3.7 ANEMIAS DAS DOENÇAS ENDÓCRINAS O sistema endócrino age direta ou indiretamente sobre a hematopoese, sendo alguns distúrbios responsáveis por quadro de anemia, que pode ser normo, macro ou microcítica. As principais doenças endócrinas que podem cursar com anemia são: hipo/hipertireoidismo (causa mais comum); hipoaldosteronismo (doença de Addison); hiperparatireoidismo; deficiência androgênica. O tratamento consiste em tratar a doença de base. 3.8 ANEMIAS SIDEROBLÁSTICAS 3.8.1 Considerações gerais As anemias sideroblásticas, congênitas ou adquiridas, compõem um grupo heterogêneo de doenças nas quais há o comprometimento da síntese de Hb, em virtude da falha na síntese de protoporfirina, que, junto ao ferro, forma o núcleo heme da Hb. O metabolismo do heme ocorre nas mitocôndrias e, dessa forma, como está deficiente, o ferro pode acumular-se particularmente nas mitocôndrias dos eritroblastos e macrófagos. A anemia sideroblástica hereditária mais comum é ligada ao X, de baixa incidência e de manifestação precoce. Nessa forma, há deficiência da enzima ácido aminolevulínico sintetase, necessária para a formação da protoporfirina. As formas adquiridas são mais comuns e ocorrem por alcoolismo, toxicidade por drogas (cloranfenicol e agentes antituberculose), intoxicação por chumbo, deficiência de cobre e, mais frequentemente, como manifestação de uma desordem medular (clonal) em célula-tronco hematopoética, a mielodisplasia ou síndrome mielodisplásica, capaz de evoluir para leucemia aguda. Figura 3.11 - Formação do heme Legenda: succinil-coenzima A (SCoA); ácido delta-aminolevulínico (ALA). Fonte: elaborado pelos autores. 3.8.2 Quadros clínico e laboratorial Não há sintomas clínicos além dos relacionados à anemia, que geralmente é moderada, com níveis de Hb entre 7 e 9 g/dL. O diagnóstico é feito por meio do exame da medula óssea, que mostra sinais de eritropoese ineficaz (ou seja, hiperplasia eritroide medular que não se traduz em aparecimento de reticulócitos no sangue periférico) e deficiência na maturação citoplasmática. A coloração de ferro medular pelo corante azul da Prússia, ou coloração de Perls, mostra aumento generalizado nos depósitos de ferro. Em algumas situações, podem-se encontrar sideroblastos “em anel” (depósitos de ferro ao redor do núcleo do eritroblasto). Os níveis séricos de ferro e ferritina e a saturação de transferrina estão elevados, revelando a sobrecarga daquele. 3.8.2.1 Hereditária A anemia aparece nos primeiros meses de vida; pode haver esplenomegalia. Apresenta microcitose e hipocromia, devendo haver diferenciação da anemia ferropriva e das talassemias. 3.8.2.2 Adquirida Tende a ser macrocítica, com subpopulação microcítica. Pode apresentar leucopenia e/ou plaquetopenia. No caso da intoxicação por chumbo, o pontilhado basófilo eritroide é característico, e os níveis séricos desse metal estão acima do normal. Figura 3.12 - Sideroblastos “em anel” pela coloração de Perls Fonte: Avaliação da importância da coloração de Perls na rotina de mielogramas de pacientes com anemia associada a uma ou mais citopenias em sangue periférico, 2005. 3.8.3 Tratamento O tratamento é dependente da causa-base. Quando a etiologia é secundária ao uso de drogas, a retirada delas é suficiente. Na intoxicação por chumbo, está indicada a quelação do metal pesado. Na deficiência de cobre, deve ser feita a suplementação do metal. No alcoolismo, deve ser orientada a suspensão da ingesta alcoólica e feita suplementação vitamínica com AF e vitamina B6. Na mielodisplasia, alguns pacientes têm demonstrado resposta ao uso de piridoxina (vitamina B6, necessária para as etapas iniciais da síntese do heme), porém a maioria dos casos não responde a tal terapêutica, sendo necessário tratamento quimioterápico e, quando possível, transplante de células-tronco hematopoéticas. Na forma hereditária, há ótima resposta com a reposição de piridoxina. O uso de EPO pode ser eficaz em alguns casos; por sua vez, o suporte transfusional depende da sintomatologia de cada paciente e pode ser necessário por toda a vida nas displasias. Por fim, os níveis de ferro devem ser monitorizados, e a quelação
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