Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MOÇAMBIQUE FACULDADE DE DIREITO Euclides Hermes Jaime Fernando Tomo ANÁLISE DO REGIME DE TRANSMISSÃO DO DUAT NA LEI Nº 19/97, DE 01 DE OUTUBRO – LEI DE TERRAS Monografia submetida à Faculdade de Direito – Universidade Católica de Moçambique, como requisito parcial para obtenção do grau de licenciatura em Direito. Supervisor: Ma. Coutinho Quanhiua Nampula 2018 Euclides Hermes Jaime Fernando Tomo ANÁLISE DO REGIME DE TRANSMISSÃO DO DUAT NA LEI Nº 19/97, DE 01 DE OUTUBRO – LEI DE TERRAS Monografia submetida à Faculdade de Direito – Universidade Católica de Moçambique, como requisito parcial para obtenção do grau de licenciatura em Direito. Nampula 2018 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MOÇAMBIQUE FACULDADE DE DIREITO Euclides Hermes Jaime Fernando Tomo ANÁLISE DO REGIME DE TRANSMISSÃO DO DUAT NA LEI Nº 19/97, DE 01 DE OUTUBRO – LEI DE TERRAS ___________________________, _____ de ________ de _____ RESULTADO _____________________________________________________ Membros do Júri Presidente:______________________________________________________________ Supervisor:______________________________________________________________ Examinador:_____________________________________________________________ Estudante:_______________________________________________________________ I Termo de autenticidade Eu, Euclides Hermes Jaime Fernando Tomo, estudante finalista desta instituição de ensino superior, declaro por minha honra que esta monografia é resultado da minha investigação pessoal e das orientações do meu tutor, o seu conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas no texto, e na bibliografia. Por ser verdade, subscrevo-me _____________________________________ Euclides Hermes Tomo II Agradecimentos Em primeiro lugar agradeço ao nosso senhor, Deus todo-poderoso, que me tem iluminado e abençoado, pela vida, saúde e sucessos. Agradecimentos especiais vão ao Ma. Coutinho Quanhiua, pelo rigor e paciência que teve na valiosa orientação e assistência, que sem dúvida foi fundamental para elaboração deste trabalho de final do curso. Paralelamente a ele, outro agrado é merecido a todos os docentes da UCM Faculdade de Direito de Nampula que leccionaram as cadeiras nas turmas em que passei. Agradeço à minha mãe, Helena de Lurdes Jaime Ualaque, aos meus irmãos, Hélio, Hermenegildo, Ivan e Edmundo, e à minha noiva, Adriana Guirrugo, que estiveram presentes em todos os momentos que precisei, dando-me apoio para que eu pudesse formar-me, realizando assim um sonho de vida. Aos meus amigos, familiares e colegas de faculdade, em especial Octávio Roseiro, Hamido Tarmamad, Alter Xavier e Hassamo dos Santos pela compreensão, companhia e amizade durante esta longa jornada. III Dedicatória Dedico este trabalho ao meu falecido pai, Lacerda Fernando Tomo, e minha mãe, pois a eles devo a minha vida assim como a minha formação, aos meus irmãos, amigos e familiares que me acompanharam, ajudaram e suportaram durante esses quatro anos de formação e aos docentes da UCM – Faculdade de Direito de Nampula. IV «Encontrou-se, em boa política, o segredo de fazer morrer de fome aqueles que, cultivando a terra, fazem viver os outros». Voltaire V Abreviaturas ART. Artigo; Act. Actualizada; CC Código Civil Moçambicano; C.COM Código Comercial Moçambicano; CRM Constituição da República de Moçambique de 2004; CRP Constituição da República Portuguesa de 2005; Ed. Edição; Et al E outros; FADIR-UCM Faculdade de Direito da Universidade Católica de Moçambique; Ha ICB LT Ob. Cit. Hectares Infra-estruturas, construções e benfeitorias Lei de Terras Obra citada; P. Página; PNT Rev. Política Nacional de Terras Revista; Reimpr. Reimprimida; RLT Regulamento da Lei de Terras VI RSU Vol. Regulamento do Solo Urbano Volume; ss. Seguintes. VII Resumo A análise do regime de transmissão do Duat na Lei Nº 19/97, de 01 de Outubro– Lei de Terras faz-se necessária pois é uma questão que desperta alguma polémica e vários transtornos socias, económicos e jurídicos, quer pela sua complexidade, quer pela sua morosidade e ambiguidade em algumas questões. Daí faz-se necessário um estudo sobre a transmissão do DUAT (Direito de Uso e Aproveitamento da Terra), tanto inter-vivos, como por mortis causa, visando descobrir quais são os problemas existentes no actual modelo legislativo. Assim, é com a ambição de querer melhorar a situação legal dessa figura jurídica, que surge o presente artigo, e nele propõe-se uma inovação do procedimento administrativo relativo às formas de transmissão do DUAT, sugere-se a criação de um regulamento específico, para além dos já existentes Regulamento da Lei de Terras, aprovado pelo Decreto 66/98, de 8 de Dezembro (RLT), e o Regulamento do Solo Urbano, aprovado pelo Decreto 60/2006, de 26 de Dezembro (RSU), sobre esta figura jurídica, e também de um orgão ou entidade autónoma, cuja única função será regular o processo de transmissão do DUAT, pois enquanto tal não suceder os conflitos e ilegalidades que têm ocorrido actualmente ainda continuarão se verificando. Além disso propõe-se a criação de um mercado de acções que visem a oficialização da transmissão onerosa dos DUATs, pretendendo-se deste modo obter retorno financeiro para os cofres públicos relativos aos negócios de terras que vem ocorrendo clandestinamente. Deste modo, na elaboração deste artigo científico, fez-se uso dos métodos do método sistêmico, método este que procura compreender a complexidade da realidade, bem como suas transformações, através dos processos sistêmicos e do feedback que acontece permanentemente entre o sistema e seu meio externo, sendo os tipos de pesquisa a bibliográfica e a descritiva. Palavras-chave: DUAT, transmissão, terra. VIII Abstract The analysis of the regime of transmission of DUAT in the Law no. 19/97, of October 1 st – Lands Law, it is made necessary because it is a subject that provokes some controversy and several social, economic and juridical conflicts, as for its complexity, as for its slowness and ambiguity in some subjects. Then it is done necessary a study on the transmission of DUAT (Direito de Uso e Aproveitamento da Terra), as for inter-alive, as for mortis-causa, seeking to discover which are the existent problems in the current legislative model. So, it is with the ambition of wanting to improve the legal situation of that juridical figure, that the present article appears, and it intends an innovation of the administrative procedure relative to the forms of transmission of DUAT, it suggests the creation of a specific regulation, besides the already existent Regulation of the Law of Lands, approved for the Ordinance 66/98, of December 8 th (RLT), and the Regulation of the Urban Soil, approved for the Ordinance 60/2006, of December 26 (RSU), on this juridical figure, and also the creation of an autonomous organ or entity, whose only function will be to regulate the process of transmission of DUAT, because if don‟t, such conflicts and illegalities that have been happening now, they will still continue happening. Besides that, we intend the creation of a market of actions that seeks the officialization of the onerous transmission of DUATs, being intended this way to obtain financial return for the relative public treasury to the lands businesses that it is happeningsecretly. In that order, for the elaboration of this scientific article, it was used the systemic method, method this that tries to understand the complexity of the reality, as well as their transformations, through the systemic processes and of the feedback that happens permanently between the system and it external middle, being the research types the bibliographical and the descriptive ones. Key-words: DUAT, transmission, land. IX ÍNDICE INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 12 CAPÍTULO I ............................................................................................................................ 14 1. Referencial teórico: do conceito do DUAT....................................................................... 14 1.1. Características próprias do DUAT ............................................................................. 15 1.2. Regime jurídico do DUAT ............................................................................................ 15 1.3. Sujeitos do DUAT ......................................................................................................... 15 1.4. Do Âmbito ................................................................................................................. 16 1.5. A Comparação entre a posse e Propriedade nos Direitos Reais e no DUAT ............ 16 1.6. Antecedentes no Direito Colonial .............................................................................. 16 1.7. O regime da terra na Constituição e a consequente implicação no tratamento da transmissibilidade do DUAT ................................................................................................ 19 1.8. A transmissão da terra no âmbito da Lei nº 6/79, de 3 de Julho – Lei de Terras de 1979 e respectivo regulamento ............................................................................................. 21 1.9. A transmissão do DUAT na Lei nº 19/97, de 1 de Outubro – Lei de Terras de 1997 e respectivos regulamentos ...................................................................................................... 23 1.9.1. Transmissão “mortis causa”.................................................................................... 26 1.9.2. Transmissão “inter vivos” ....................................................................................... 27 1.9.2.1. Transmissão de Prédios rústicos .......................................................................... 27 1.9.2.2. Transmissão de prédios urbanos .......................................................................... 27 1.9.3. Por desmembramento de áreas das comunidades ................................................... 27 1.9.4. Por acessão .............................................................................................................. 28 1.9.5. Por transmissão de infra-estruturas, construções e benfeitorias .............................. 28 CAPÍTULO II ........................................................................................................................... 29 2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ...................................................................... 29 2.1. Tipo e Natureza de Pesquisa ...................................................................................... 29 2.2. Tipo de pesquisa ........................................................................................................ 30 X 2.3. Técnica de colecta de dados ....................................................................................... 30 2.4. Pesquisa quanto aos objectivos .................................................................................. 31 2.5. Quanto à abordagem do problema ............................................................................. 31 CAPÍTULO III ......................................................................................................................... 32 3. Apresentação e análise de dados ....................................................................................... 32 3.1. Efectividade da Política Nacional de Terras .............................................................. 32 3.2. Outros dados relevantes ............................................................................................. 34 CAPÍTULO IV ......................................................................................................................... 36 4. Discussão dos resultados a luz do quadro teórico ............................................................. 36 CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 43 RECOMENDAÇÕES ............................................................................................................... 44 BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................... 47 XI 12 INTRODUÇÃO Segundo Lakatos & Marconi 1 o tema “é o assunto que se deseja provar ou desenvolver, surge de uma dificuldade de natureza prática enfrentada pelo autor, desafios encontrados na literatura de outros trabalhos ou de teorias”. Portanto, o tema apresentado nesta monografia encontra-se assim delimitado: Análise do Regime de Transmissão do DUAT na Lei Nº 19/97, de 01 de Outubro – Lei de Terras. A Análise do regime de transmissão do DUAT na Lei nº 19/97, de 01 de Outubro – Lei de Terras faz-se necessária pois é uma questão que desperta alguma polémica e vários transtornos socias, económicos e jurídicos, quer pela sua complexidade, quer pela sua morosidade e ambiguidade em algumas questões. Hodiernamente são comuns os conflitos entre privados relacionados à terra, muitos deles devido a transmissões irregulares de DUAT. Assim, como tal problema tem origem? Apercebe-se certa fragilidade no sistema jurídico de transmissão de DUAT, e tal deve-se à normativização desse instituto jurídico, por datar de anos atrás (década de 90), e a sua actualização faz-se pertinente, pois como está limita o investimento privado e condiciona-o, diminuindo o crescimento económico do país. Sendo a transmissibilidade do DUAT fonte potencial de conflitos, se ela não estiver adequada à situação política, económica e social do país e não estiver devidamente regulamentada, esse potencial pode levar a grandes convulsões. Sendo o quadro jurídico e institucional do acesso à terra complexo, será que a transmissão do Duat, como a lei afirma dever se operar, é compatível com o que realmente ocorre na prática e responde aos anseios da sociedade? O quadro jurídico e institucional do acesso à terra é complexo, ultrapassado e representa um desafio na sua implementação. Verifica-se que quando as pessoas realizam a transmissão onerosa do DUAT, passam a usufruir da terra como se o DUAT houvesse sido transferido, daí o escopo principal desta monografia seja analisar legalmente a viabilidade de se simplificarem os procedimentos administrativos e requisitos da transmissão entre vivos da terra, com vista a estimular o desenvolvimento económico e social, através duma apreciação de como o processo de 1 LAKATOS, Eva Maria, MARCONI, Marina de Andrade, Fundamentos de metodologia científica, 6ª. ed., Atlas, São Paulo, 2007, p. 102. 13 transmissão do DUAT é previsto na lei e efectivado na prática, pois se verifica que os procedimentos para a realização de transferência de um DUAT são complexos, obsoletos e morosos. Assim, analisar-se-á a efectivação da legislação referente à transmissão do DUAT inter-vivos e mortis causa, destrinçando as vantagens emergentes de uma nova normatização deste instituto, e sugerir-se-ão formas desimplificação e melhoramento do processo de transmissão do DUAT. Para a realização desta monografia fez-se uso do método sistêmico, método este que procura compreender a complexidade da realidade, bem como suas transformações, através dos processos sistêmicos e do efeito retroactivo que acontece permanentemente entre o sistema e seu meio externo, sendo o tipo de pesquisa a qualitativa; quanto aos procedimentos de recolha de dados a pesquisa bibliográfica (aquela feita a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas) 2 ; quanto à abordagem a pesquisa descritiva (descreve os factos e fenómenos de determinada realidade) 3 . Quanto aos métodos de análise e interpretação de dados, fez-se uso do método dedutivo. Quanto à estrutura, a monografia apresenta para além dos elementos pré-textuais, quatro capítulos, nomeadamente: Capítulo I: Referencial teórico; Capítulo II: Procedimentos metodológicos; Capítulo III: Apresentação e análise dos resultados; Capítulo IV: Discussão dos resultados à luz do quadro teórico, e culminando com a apresentação da conclusão, recomendações e bibliografia consultada para a sua realização. 2 FONSECA, J. J. S., Metodologia da pesquisa científica, UEC, Brasil, 2002, p. 32. 3 TRIVIÑOS, A. N. S., Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação, Atlas, Brasil, 1987, p. 112. 14 CAPÍTULO I 1. Referencial teórico: do conceito do DUAT O DUAT (Direito do Uso e Aproveitamento de Terra) 4 é o “direito que as pessoas singulares ou colectivas e as comunidades locais adquirem sobre a terra, com as exigências e limitações na presente lei”. Trata-se de uma noção legal que consiste na afectação de uma parcela de terra a alguém para dela fazer uso e fruição, em exclusivo, perpétua ou temporariamente. Assim, dizemos perpétua em consonância com o facto de a própria Lei 19/97, de 01 de Outubro o estabelecer no art. 17º, nº 2. Com efeito, o artigo 25º, deste mesmo diploma, fixa que a atribuição do DUAT poderá ser definitiva ou temporária. Na República de Moçambique a terra é propriedade do Estado e não pode ser vendida, ou por qualquer outra forma, alienada, hipotecada ou penhorada 5 . Como meio universal de criação da riqueza e do bem-estar social, o uso e aproveitamento da terra é direito de todo povo moçambicano. As condições de uso e aproveitamento da terra são determinadas pelo Estado. O direito de uso e aproveitamento da terra é conferido às pessoas singulares ou colectivas tendo em conta o seu fim social. Na titularização do direito de uso e aproveitamento da terra o Estado reconhece e protege os direitos adquiridos por herança ou ocupação, salvo havendo reserva legal ou se a terra tiver sido legalmente atribuída à outra pessoa ou entidade 6 . Contudo, a terra é uma potencial origem de conflitos, se a sua aquisição e transmissão não estiver adequada à situação económica, política e social do país e não estiver devidamente regulamentada, esse potencial pode levar a grandes convulsões. Os dispositivos legais relativos à possibilidade, termos e condições para a transmissão de direitos sobre a terra, que constitui tema desta apresentação, são, pois, de grande relevância, apresentando-se a seguir alguns aspectos desta problemática, com base na legislação de terras em vigor em Moçambique e a experiência da sua aplicação ao longo destes anos. 4 http://www.portaldogoverno.gov.mz/por/Cidadao/Informacao/Direito-do-Uso-e-Aproveitamento-de-Terra 5 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei 19/97, de 01 de Outubro, cria a Lei De Terras, Art. 3º. 6 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei 19/97, de 01 de Outubro, cria a Lei De Terras, Art. 12º, alíneas a) e b). http://www.portaldogoverno.gov.mz/por/Cidadao/Informacao/Direito-do-Uso-e-Aproveitamento-de-Terra 15 1.1. Características próprias do DUAT São características próprias do DUAT: A inerência, que é a ligação entre titular e DUAT; A absolutidade, que traduz se no facto de o titular de acesso e aproveitamento de terra ter o direito de opor o seu direito aos terceiros; A prevalência, que quer dizer que o direito de uso e aproveitamento adquire-se, por acto administrativo ou ocupação nos termos do art. 12º da Lei n.º 19/ 97, de 01 de Outubro (Lei da Terra). 1.2. Regime jurídico do DUAT Como qualquer outro direito, o DUAT possui um regime jurídico próprio que importa aqui apresentar. Este direito não se encontra consagrado no nosso Código Civil. Assim, o seu regime jurídico localiza-se na própria Lei de Terra (LT) e no respectivo Regulamento (RLT). Pelo que, na presente monografia o seu estudo e no que concerne à matéria que deve ser tratada, baseia-se nestes dois diplomas. O DUAT é regido pelos seguintes diplomas legais: Constituição da República (CRM), art. 82º e art. 111º; Decreto nº 10/95, de 17 de Outubro, que aprova a Política Nacional de Terras; Lei nº 19/97, de 01 de Outubro, Lei de Terra; Decreto nº 66/98, de 08 de Dezembro, aprova o Regulamento da Lei de Terra; Decreto nº 1/2003, de 18 de Fevereiro, que altera a redacção do art. 20º do Regulamento da Lei de Terra. 1.3. Sujeitos do DUAT Dos Sujeitos do DUAT, nos termos da LT e do respectivo regulamento, podem ser adquirentes ou sujeitos do DUAT, as pessoas nacionais singulares – homens e mulheres -, ou colectivas e as comunidades locais, as pessoas estrangeiras que residem há mais de 05 (cinco) anos em Moçambique e as pessoas colectivas estrangeiras constituídas ou registadas no país, desde que umas e outras tenham um projecto de investimento devidamente aprovado 7 . 7 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei 19/97, de 01 de Outubro, cria a Lei De Terras, artigo 12º, alíneas a) e b), conjugado com artigo 9º e 10º do RLT. 16 1.4. Do Âmbito O DUAT compreende, para além das situações jurídicas activas previstas no art. 13º, nº 1, alíneas, a) e b), com os limites previstos no artigo 14º, todos do RLT, os poderes de uso e fruição da parcela, podendo assim, o titular construir ou fazer plantações naquela mesma parcela. 1.5. A Comparação entre a posse e Propriedade nos Direitos Reais e no DUAT A posse nos Direitos Reais consiste no poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente aos exercícios do Direito de propriedade ou de outro direito. Contudo, no DUAT, a posse sobre a terra não se circunscreve a esta do mesmo modo que ocorre nos Direitos Reais, porque nestes a posse atinge qualquer coisa corpórea enquanto que, no DUAT, em regra, a posse é mais ampla. A propriedade nos Direitos Reais constitui um direito real máximo ou maior, mediante o qual é assegurada a certa pessoa, com exclusividade, a generalidade dos poderes de aproveitamento global das utilidades de certa coisa, em contraposição ao DUAT, que é um direito real menor ou limitado, na medida em que a propriedade da terra pertence ao Estado. Porém, a doutrina e o direito comparado não fixam o conceito do Direito de propriedade, se não por via descritiva. É dai que entende-se, conforme o artigo 1302º CC, que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei, conteúdo este que além de ser taxativamente legal é igualmente fixado pelas partes, facto que no Direito de Uso e Aproveitamento da Terra tal não se verifica. 1.6. Antecedentes no Direito Colonial O direito colonial, ao contrário do que se possa pensar, concedeu menos espaço para a apropriação privada da terra, existia, assim, uma notória preocupação com a salvaguarda do valor da terra, realçando-se a previsão do desenvolvimento de regimes e institutos que promovessem o seu uso e aproveitamento, em detrimento do seu abandono ou apropriaçãopara fins de especulação 8 . A sua análise na presente monografia prende-se, principalmente, ao interesse de demonstrar, primeiro, que nem o princípio de sua propriedade privada sobre a terra era entendido como regra e, segundo, que há aspectos contidos no regime de terra colonial que nos poderão ajudar 8 SERRA, Carlos Manuel; CARRILHO, João, Dinâmica da Ocupação e Uso da Terra em Moçambique, Escolar Editora, Maputo, 2013, p. 52. 17 a melhorar o actual quadro jurídico da terra. Para tal, focaremos no Regulamento da Ocupação e Concessões de Terras nas Províncias Ultramarinas, promulgado pelo Decreto nº 43.894, de 6 de Setembro de 1961, que vigorou praticamente até ao final do período colonial. Deste modo, uma vez salvaguardado um conjunto de terrenos como domínio público do Estado (e que, por natureza, não eram concedíveis, tendo recebido, no regime de 1961, a designação de reservas totais ou parciais 9 ), a regra foi classificar os demais terrenos em categorias distintas, consoante os fins principais para os quais erm ou seriam ocupados. Assim, o regime de 1961 previu três classes: 1ª classe (terrenos abrangidos pelas povoações classificadas, incluindo respectivos subúrbios); 2ª classe (terrenos demarcados para a atribuição conjunta a populações, a fim de serem por elas ocupados e utilizados, de acordo com os respectivos usos e costumes); e 3ª classe (terrenos vagos não contemplados na 1ª e 2ª classes) 10 . Ainda segundo o regime de terras de 1961, os terrenos que tivessem sido classificados como de 2ª classe só poderiam passar para outra classe através do diploma legislativo, devidamente fundamentado, no que diz respeito às razões da mudança, «designadamente quanto aos efeitos desta na vida das populações a que os terrenos estavam atribuídos» 11 . No concernente aos regimes de disposição de terrenos vagos a favor de particulares, o legislador colonial privilegiou a venda, o aforamento e o arrendamento 12 . As duas últimas modalidades tinham em comum o facto de o Estado manter sobre os mesmos a propriedade da terra, ficando os beneficiários vinculados à obrigação de cumprirem os planos de exploração e demais obrigações legal e contratualmente definidas (obrigação de pagamento do foro ou da renda, conforme os casos). O aforamento, também denominado enfiteuse ou aprazamento, era o «desmembramento do direito de propriedade em dois domínios (conteúdo directo e útil), dando lugar ao pagamento de um foro pelo enfiteuta, titular do domínio útil (que podia usar e fruir o prédio como seu, constituindo sobre ele direitos de superfície e servidões ao senhorio (titular do domínio 9 O art. 14º do Decreto nº 43.894, de 6 de Setembro de 1961, que prevê as reservas totais (nas quais não era permitido qualquer uso ou ocupação por entidades públicas ou particulares, salvo os necessários à conservação das reservas ou à exploração para efeitos científicos ou turísticos) e as reservas parciais (em que era permitido o uso ou ocupação para os fins visados na sua constituição), o equivalente, no actual quadro jurídico, às zonas de protecção total e parcial, respectivamente. Veja-se ainda os arts. 6º,7º e 8º da LT 1997. 10 REPÚBLICA PORTUGUESA, Decreto nº 43.894, de 6 de Setembro de 1961, que aprova o Regulamento da Ocupação e concessões de Terras nas Províncias Ultramarinas, art. 42º. 11 Idem, art. 43º. 12 Ibidem, art. 125º e seguintes. 18 directo)» 13 . No caso do aforamento , só após a certificação gradual da capacidade para investir e utilizar devidamente a terra (demonstrando estar o terreno completamente aproveitado e haver no mesmo as construções consideradas indispensáveis ao perfeito funcionamento da exploração), o foro poderia ser remido 14 a requerimento do interessado, salvo as excepções definidas no próprio regime, sendo atribuído o direito de propriedade 15 . Este direito era conferido ao enfiteuta ou foreiro ao fim de quarenta anos de duração e tinha o preço de vinte foros. O aforamento possuía natureza perpétua, sem prejuízo da remissão do foro 16 . O arrendamento é um contrato de locação de coisa imóvel «pelo qual alguém se obriga a proporcionar a outrem o gozo temporário de coisa imóvel mediante retribuição (renda) 17 ». No caso de prédios rústicos, permitia-se o arrendamento parcial, sendo o total proibido 18 . Este contrato possuia, portanto, natureza temporária 19 . O arrendamento poderia dar lugar a uma concessão por aforamento ou a venda, antes do respectivo termo, desde que fosse comprovado o devido aproveitamento 20 . Assim, o legislador previu a venda no caso de terrenos de 1ª classe ocupados por prédios urbanos ou adquiridos para construção deles; o aforamento para os casos de terrenos de 1ª classe e os de 3ª classe destinados a fins agrícolas, agro-pecuários, industriais ou silvicultura; o arrendamento para o caso de terrenos de 3ª classe destinados à exploração de gado ou respectivas industrias ou para exploração florestal. A legislação de terras de 1961 exclui dos negócios de alienação ou concessão os terrenos que só possam ser ocupados por licença especial, os terrenos que estejam abrangidos por uma reserva total e os terrenos de 2ª classe, ou seja, os que fossem demarcados para atribuição conjunta a populações, a fim de serem por elas ocupados e utilizados, de acordo com os respectivos usos e costumes. Neste último caso, abriu-se uma excepção, podendo tais terrenos 13 PRATA, Ana, Dicionário Jurídico, Edição Almedina, Coimbra, Março de 2005, pp. 67 e 495. Cf. os arts. 1491º e seguintes do CC. 14 Por remissão do foro entende-se «direito atribuído ao enfiteuta de fazer extinguir o domínio directo, ao fim de certo período de duração da enfiteuse, pelo pagamento ao titular daquele de uma contraprestação ou preço adequado». In, PRATA, Ana, ob. cit., p. 1053. 15 REPÚBLICA PORTUGUESA, Decreto nº 43.894, de 6 de Setembro de 1961, que aprova o Regulamento da Ocupação e concessões de Terras nas Províncias Ultramarinas, art. 107º e seguintes. 16 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Código Civil, arts. 1515º e 1512º nº 1. 17 PRATA, Ana, ob. Cit., p. 124. 18 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Código Civil, art. 1078º. 19 Veja-se no art. 1065º do CC. Tinham a duração mínima de seis anos e, caso visassem fins silvícolas, tinham a duração máxima de noventa e nove anos. 20 REPÚBLICA PORTUGUESA, Decreto nº 43.894, de 6 de Setembro de 1961, que aprova o Regulamento da Ocupação e concessões de Terras nas Províncias Ultramarinas, art. 135º. 19 ser concedidos aos vizinhos da respectiva regedoria, no caso de o governador autorizar, mediante requerimento do regedor subscrito pelos respectivos conselheiros, que eles se tornassem individualmente apropriáveis, com vista à instalação de povoações e culturas, desde que com carácter estável. Finalmente, importa fazer menção à transmissão de direitos sobre a terra, à partida apenas permitida para as relações entre vizinhos das regedorias, com os condicionalismos previstos no regime em análise. Estabeleceu-se igulamente uma proibição geral de constituir penhoras ou hipotecas sobre prédios rústicos e urbanos dos vizinhos das regedorias. A consequência para os contratos de alienação, troca, hipoteca, arrendamento ou qualquer outra forma de cedência era a nulidade de pleno direito, incorrendo os concessionários ainda na sanção de perda a favor do Estado dos respectivos direitos sobre os terrenos concedidos, bem como sobre quaisquer benfeitorias introduzidas pelos adquirentes 21 . 1.7. O regime da terra na Constituição e a consequente implicação no tratamento da transmissibilidade do DUAT A CRM de 1975 estipulou um princípio que prevaleceu até a actualidade e que influenciou fortemente a percepçãoque se tem sobre a transmissibilidade dos DUATs – «a terra e os recursos minerais do solo e subsolo, nas águas territoriais e na plataforma continental de Moçambique, são propriedade do Estado. O Estado determina as condições do seu aproveitamento e uso» 22 . Em relação às figuras existentes no direito colonial, apenas substituiu a concessão (presente na Lei de Terras de 1979 e 1997, ainda que sob designação diferente), todas as demais foram extintas por se revelarem contrárias à natureza e fins do Estado revolucionário, sendo consideradas como instrumentos de exploração ou especulação colonial. Nas palavras de Tomás Bernardino, como consequência do novo regime de propriedade da terra, «os particulares passaram a ter acesso à utilização e fruição dos benefícios que a terra dá, mas foi-lhes retirado o poder de disposição sobre a terra» 23 . 21 SERRA, Carlos Manuel; CARRILHO, João, ob. cit., p. 54. 22 Art. 8º da CRM. 23 BERNARDINO, Tomás, Transmissibilidade do DUAT (palestra), in Conferência Comemorativa dos 10 anos da Lei de Terras, realizada em Maputo, de 17 a 19 de Outubro de 1997, p. 136. 20 Veja-se que a questão da valorização da terra pode ser lida à luz da norma que estabeleceu que «o Estado promove a planificação da economia, com vista a garantir o aproveitamento correcto das riquezas do País e a sua utilização em benefício do povo moçambicano» 24 . A Constituição de 1990, não obstante ter sido aprovada em momento de profundas transformações poíticas e económicas, marcando formalmente a passagem do Estado Popular (de orientação socialista) para o Estado democrático (de cariz capitalista), não pôs em causa o princípio da propriedade estadual sobre a terra e, consequentemente, o entendimento de que esta não poderia ser objecto de venda, hipoteca, penhora ou qualquer outra forma de alienação 25 , tendo principalmente presente o facto de a nacionalização da terra ser considerada uma das conquistas fundamentais da Independência. No tocante ao valor da terra, esta Constituição proclamou que «o direito de uso e aproveitamento da terra é conferido às pessoas singulares ou colectivas tendo em conta o seu fim social» 26 . Por seu turno, o legislador vincou o entendimento de que a LT deverá estabelecer os termos que regem a criação de direitos sobre a terra, sempre em benefício dos seus utilizadores e produtores directos, proibindo-se o exercício de tais direitos com a pretensão de se criarem situações de favorecimento económico ou privilégio em detrimento da maioria dos cidadãos 27 . Com esta norma, o legislador constituinte pretendeu, formalmente, denegar espaço de actuação a eventuais especuladores no domínio fundiário. A CRM de 2004 reiterou o disposto na sua antecessora, no tocante à terra, designadamente na manutenção do princípio da terra como propriedade do Estado e na proibição geral de venda, hipoteca, penhora e qualquer outra forma de alienação 28 . Contempla igualmente o princípio de valorização da terra, na medida em que se determina que «o direito de uso e aproveitamento da terra é conferido às pessoas singulares ou colectivas tendo em conta o seu fim social ou económico» 29 . Veja-se que, em relação à norma correspondente na Constituiçao de 1990, acrescentou-se o fim económico, reforçando-se, portanto, a dimensão do valor da terra. Este 24 REPÚBLICA POPULAR DE MOÇAMBIQUE, Constituição da República Popular de Moçambique, de 1975, art. 9º. 25 REPÚBLICA POPULAR DE MOÇAMBIQUE, Constituição da República Popular de Moçambique, de 1990, art. 47º, nºs 1 e 2. 26 Idem, art. 47º, nº 2. 27 Ibidem, art. 47º, nº 3. 28 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Constituição da República de Moçambique, aprovada a 16 de Novembro de 2004, art. 109º. 29 Idem, art. 110º. 21 está reconhecido na norma que estipula que, como «meio universal de criação da riqueza e do bem-estar social, o uso e aproveitamento da terra é direito de todo o povo moçambicano» 30 . Muito provavelmente como sinal da nova conjuntura político-económica, constatou-se o desaparecimento da norma prevista na Constituição de 1990 que vinculava a atribuição de direitos sobre a terra à produção de benefícios aos seus utilizadores e produtores directos, proibindo-se a geração de situações de favorecimento ou privilegiamento a partir da especulação fundiária 31 . Todas as tentativas subsequentes de lançar o debate político sobre a privatização da terra redundaram em fracasso, tendo a principal ocorrido em 2001, quando o então Ministro da Agricultura, Hélder Muteia, afirmou categoricamente que era importante equacionar este assunto, facto que poderá estar por detrás do seu desaparecimento da arena política 32 . No contexto do debate sobre a revisão da Constituição, a Frelimo fez uma declaração pública, na defesa da propriedade estatal sobre a terra. Este assunto é, portanto, considerado sagrado para o bloco que detém o poder na Frelimo 33 , e, por arrasto, também o é a questão do mercado de títulos. De facto, conforme o entendimento de João Mosca, a libertação da terra foi e é uma das bandeiras da Frelimo, significando país, pátria e independência, e colocar em cheque este princípio pode ser politicamente problemático 34 . 1.8. A transmissão da terra no âmbito da Lei nº 6/79, de 3 de Julho – Lei de Terras de 1979 e respectivo regulamento Transmissão é «o fenómeno jurídico pelo qual um direito subjectivo – ou uma vinculação jurídica – passa da esfera jurídica dum titular para a esfera jurídica de outro» 35 . A Lei de Terras de 1979 (Lei nº 6/79, de 3 de Julho) inspirou-se fortemente na Contituição de 1975 e no período revolucionário que se vivia no País. Deste modo, o seu preâmbulo é muito expressivo ao dizer que, 30 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Constituição da República de Moçambique, aprovada a 16 de Novembro de 2004, art. 109º. 31 REPÚBLICA POPULAR DE MOÇAMBIQUE, Constituição da República Popular de Moçambique, de 1990, art. 46º, nº 3. 32 Entrevista concedida ao jornal Domingo a 8 de Julho de 2001. 33 HANLON, Joseph, Debate sobre a Terra em Moçambique, Trabalho de investigação encomendado por Oxfam GB – Regional Management Center for Southern Africa, 12 de Julho de 2002, p. 15. 34 MOSCA, João, Políticas Agrárias de (em) Moçambique (1975-2009), Escolar Editora, Maputo, 2011, p. 206. 35 MENDES, Castro, Direito Civil, Teoria geral, 1976/1979. 22 «durante o processo da edificação da nova sociedade nas zonas libertadas, tornou-se claro que a independência política não teria um sentido real para o Povo, não seria uma verdadeira independência se a terra continuasse nas mãos de um punhado de latinfundários estrangeiros ou nacionais (...) [e que] depois da usurpação e espoliação das melhores terras, feita ao longo de quinhentos anos pelo colonialismo português, arrancar a terra à sujeição e exploração estrangeira devolvendo-a ao Povo Moçambicano, era uma exigência do processo histórico, condição de uma independência real e efectiva». Daí que a LT de 1979 tenha reiterado o disposto no artigo 8 da Constituição de 1975 sobre a propriedade estatal da terra 36 , enaltecendo, no Preâmbulo, o entendimento de que, «porque o Estado de operários e camponeses é o único proprietário da terra, toda a terra moçambicana fica integrada no fundo estatal». Consequentemente, o legislador estatuiu que «na República Popular de Moçambique a terra não pode ser vendida ou por qualquer outra forma alienada nem arrendada 37 , hipotecada ou penhorada» 38 . A questão do valor da terra como factor de desenvolvimento foi contemplada ao se proclamar que «o trabalho da terra como meio universal de criação da riqueza e bem-estar social é direito de todo Povo Moçambicano» 39 . Portanto,a transmissão de direitos de uso e aproveitamento da terra foi fortemente restringida, estabelecendo-se tão-somente a possibilidade de transmissão mortis causa: «o direito de uso e aproveitamento da terra só pode transmitir-se por morte do titular do cônjuge e herdeiros, nos termos da lei civil». Esta norma foi objecto de desenvolvimento no Regulamento da Lei de Terras de 1979, aprovado pelo Decreto nº 16/87, de 15 de Julho. Quanto à transmissão inter vivos, esta Lei previu que os titulares de DUAT pudessem transmitir, entre vivos, as infra-estruturas, construções e benfeitorias nela existentes, desde que obtida previamente autorização da entidade competente, tendo o Estado direito de preferência. O legislador condicionou igualmente, em relação à terra sobre a qual tivessem sido erguidas aquelas infra-estruturas, construções e benfeitorias, a um novo procedimento de licenciamento de DUAT. Tendo presente as barreiras jurídico-legais e os condicionalismos administrativos/burocráticos, tratava-se, portanto, de um regime fortemente desfavorável à transmissão de DUATs 40 . 36 REPÚBLICA POPULAR DE MOÇAMBIQUE, Lei nº 6/79, de 3 de Julho, aprova a Lei de Terras de 1979, art. 1º, nº 1. 37 Note que a LT de 1979 proibiu o arrendamento de terras, o que não veio a acontecer nos textos legais posteriores – As Constituições de 1990 e 2004, bem como a LT de 1997. 38 REPÚBLICA POPULAR DE MOÇAMBIQUE, Lei nº 6/79, de 3 de Julho, aprova a Lei de Terras de 1979, art. 1º, nº 2. 39 Idem, art. 1º, nº 3. 40 SERRA, Carlos Manuel; CARRILHO, João, ob. cit., p. 59. 23 1.9. A transmissão do DUAT na Lei nº 19/97, de 1 de Outubro – Lei de Terras de 1997 e respectivos regulamentos A actual Lei de Terras (Lei nº 19/97, de 1 de Outubro) foi aprovada na sequência de um rico, profundo e parcitipativo processo legislativo que ficará para a história do direito moçambicano. Buscou-se, a partir da experiência das virtudes e das desvantagens da legislação de terras anterior, numa conjuntura político-económica muito diferente daquela que caracterizou o período revolucionário, elaborar um instrumento que garantisse o respeito pelos direitos dos cidadãos sobre a terra, sendo que para muitos esta é o principal recurso de sobrevivência, bem como garantia de investimento privado, nacional e estrangeiro 41 . Constatou-se no Preâmbulo: «O desafio que o país enfrenta para o seu desenvolvimento, bem como a experiência na aplicação da Lei nº 6/79, de 3 de Julho (...) mostram a necessidade da sua revisão, de forma a adequá-la à nova conjuntura política, económica e social e garantir o acesso e segurança de posse da terra, tanto dos camponeses moçambicanos, como dos investidores nacionais e estrangeiros (...), [visando] incentivar o uso e o aproveitamento da terra, de modo a que esse recurso, o mais importante de que o país dispõe, seja valorizado e contribua para o desenvolvimento da economia nacional». Na vereda da Constituição de 1990, a Lei de Terras de 1997 sublinhou o princípio da propriedade estatal sobre a terra 42 , proibindo, deste modo, a respectiva venda ou, por qualquer outra forma, alienação, hipoteca ou penhora. Contudo, nota-se que desapareceu a alusão à proibição de arrendamento, por razões que desconhecemos, ficando por clarificar se estará, implicitamente, integrada na categoria geral de alienação. O entendimento oficial presiste no contrário à admissibilidade do contrato de arrendamento como um dos negócios de terra legalmente admissíveis. Tal como na LT de 1979, a nova Lei reconheceu, tão-somente, a existência de direitos de uso e aproveitamento da terra (vulgo DUAT), cuja atribuição poderá realizar-se em qualquer uma das três modalidades previstas, o que significou uma clara inovação do direito moçambicano: (i) ocupação por pessoas singulares e pelas comunidades locais, segundo as normas e práticas costumeiras que não contrariem a Constituição; (ii) ocupação por pessoas singulares nacionais, que de boa fé, estejam a utilizar a terra há pelo menos dez anos; (iii) e autorização de pedido apresentado por pessoas singulares ou colectivas 43 . 41 SERRA, Carlos Manuel; CARRILHO, João, ob. cit., p. 59. 42 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei 19/97, de 01 de Outubro, cria a Lei De Terras, art. 3º, com a epígrafe „„Princípio Geral‟‟, segundo o qual «a terra é propriedade do Estado e não pode ser vendida ou, por outra forma alienada, hipotecada ou penhorada». 43 Idem, art. 12º. 24 No concernemte à transmissão de DUATs, a nova LT manteve o disposto da sua antecessora, com pequenas modificações. Neste sentido, foi estabelecida como regra geral o entendimento de que «os titulares do direito de uso e aproveitamento da terra podem transmitir, entre vivos, as infra-estruturas, construções e benfeitorias nela existentes, mediante escritura pública precedida de autorização da entidade estatal competente», devendo a transmissão ser averbada no próprio título 44 . Trata-se, assim, de um posicionamento legal igualmente contrário à transmissibilidade do DUAT, regra que só conhece duas excepções legais 45 : a primeira, no seguimento do disposto na Constituição de 1990, preceitua que o direito de uso e aproveitamento da terra pode ser transmitido por herança, sem distinção de sexo (é a chamada transmissão mortis causa); a segunda excepção decorre da transmissão de prédios urbanos, na qual a transmissão do DUAT é automática, isto é, ocorrendo juntamente com a transmissão do imóvel 46 . A luz da nova LT, o titular do DUAT pode, no entanto, constituir hipoteca sobre os bens imóveis e as benfeitorias que, devidamente autorizado, edificou no terreno ou sobre os quais legalmente tenha adquirido o direito de propriedade 47 . O Regulamento da Lei de Terras, aprovado pelo Decreto nº 66/98, de 8 de Dezembro, e referente aos prédios rústicos (solo rural), tratou as transmissões de DUATs na linha da Lei de Terras de 1997, determinando que «a compra e venda de infra-estruturas, construções e benfeitorias existentes em prédios rústicos, não implicam a transmissão automática do direito de uso e aproveitamento da terra, a qual está dependente de aprovação dada pela mesma entidade que tiver autorizado o pedido» 48 . Sendo assim, ao contrário do que se verifica em relação ao solo urbano 49 , não há qualquer transmissão automática de DUAT no contrato de compra e venda de infra-estruturas, construções e benfeitorias existentes nos prédios rústicos, obrigando o interessado a iniciar, junto dos serviços de cadastro, o respectivo pedido de 44 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei 19/97, de 01 de Outubro, cria a Lei De Terras, art. 16º, nºs 2 e 3. 45 CALENGO, André, A Natureza Jurídica do Direito de Uso e Aproveitamento da Terra, in, Aspectos Jurídicos, Económicos e Sociais do Uso e Aproveitamento da Terra (Coordenação de Gilles Cistac e Eduardo Chiziane), Imprensa Universitária, UEM, Maputo, 2003, p. 17. Ver ainda CALENGO, André Jaime, Lei de Terras Comentada e Anotada, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2005, p. 140. 46 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei 19/97, de 01 de Outubro, cria a Lei De Terras, art. 4º. 47 Idem, art. 16º, nº 5. 48 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Decreto nº. 66/98, de 08 de Dezembro, aprova o Regulamento da Lei de Terras, art. 15º, nº 2. 49 Relativamente aos prédios urbanos, veja-se o art. 16º do Decreto 66/98 de 08 de Dezembro, que sublinhou a dispensa de prévia autorização do Estado na transmissão de prédios urbanos. 25 transimssão de DUAT, o qual deverá ser acompanhado dos comprovativos de pagamento das taxas anuais e do cumprimento do plano de exploração 50 . Todavia, André Calengo argue que, relativamente aos prédios urbanos, só haverá transmissão automáticado DUAT em caso de transmissão de prédio urbano, não de construções e benfeitorias, pois neste caso a respectiva transmissão não implica a transmissão automática do DUAT, havendo obrigatoriedade de autorização da entidade competente 51 . Finalmente, aluda-se ao Regulamento de Solo Urbano (RSU), aprovado pelo Decreto nº 60/2006, de 26 de Dezembro, por possuir igualmente uma referência à transmissão de DUATs, vincando o disposto na Lei de Terras e no Regulamento do Solo Urbano, determinando que esta operação se faz automática coma transmissão do prédio urbano 52 . O Regulamento do Solo Urbano foi, no entanto, muito longe, no concernente à definição de formas de aquisição de DUAT, extravasando a própria LT ao prever figuras como a hasta pública e a negociação particular 53 , o que faz levantar sérias reservas em termo de constitucionalidade (pondo em causa o princípio da hierarquia dos actos normativos) e legalidade da normas em causa (ao desviar-se do disposto na Lei de Terras, relativamente às formas de aquisição do DUAT) 54 . O RLT prevê, ainda, a figura do contrato de cessão de exploração, condicionando-o, igualmente, à obtenção de aprovação prévia da entidade que autorizou o pedido de autorização ou reconhecimento de DUAT 55 . «É importante observar que, embora a própria terra não possa ser vendida, hipotecada ou alienada, os edifícios e outras benfeitorias implantadas sobre a mesma poderão ser hipotecados ou alienados pela pessoa detentora dos direitos da terra subjacente» 56 , isso não 50 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Decreto nº. 66/98, de 08 de Dezembro, aprova o Regulamento da Lei de Terras, art. 15º, nº 2, segunda parte. 51 CALENGO, André Jaime, Lei de Terras Comentada e Anotada, Ob. Cit., p. 143. 52 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Decreto nº 60/2006, de 26 de Dezembro, aprova o Regulamento de Solo Urbano, art. 35º. 53 Idem, arts. 27º e 28º. Veja-se em relação a este assunto CALDEIRA, José, A Tranmissibilidade do Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (palestra), in Conferência Comemorativa dos 10 Anos da Lei de Terras, realizada em Maputo, de 17 a 19 de Outubro de 1997, pp. 125-126. 54 CALENGO, André, O debate actual sobre a terra em Moçambique – Notas introdutórias (palestra), in Conferência Comemorativa dos 10 Anos da Lei de Terras, realizada em Maputo, de 17 a 19 de Outubro de 1997, p. 25. 55 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Decreto nº. 66/98, de 08 de Dezembro, aprova o Regulamento da Lei de Terras, art. 15º, nº 4. 56 Associação de Comércio e Indústria, Quadro Legal para a Obtenção de Direitos sobre a Terra nas Zonas Rurais em Moçambique, 3ª ed., Moçambique, 2012, p. 60. 26 fere o princípio da intransmissibilidade relativa da terra, segundo o qual «as pessoas às quais o estado reconhece ou atribui direitos sobre a terra e outros recursos naturais não podem, em vida, passar esses mesmos direitos a terceiros, seja por via onerosa ou não, a menos que tenham sido previamente autorizados para o efeito, pela mesma entidade que reconheceu ou atribuiu o direito» 57 . A Lei de Terras e respectivo Regulamento, aprovado pelo Decreto 66/98 de 08 de Dezembro (RLT), bem como o Regulamento do Solo Urbano, aprovado pelo Decreto 60/2006 de 26 de Dezembro (RSU), contêm os princípios e regras fundamentais relativas à transmissibilidade de direitos sobre a terra. Com base nestes diplomas legais, na legislação de direito civil e demais legislação em vigor no País, existem as seguintes formas de transmissão de direitos sobre a terra: transmissão “mortis causa”; transmissão “inter vivos”; transmissão de prédios urbanos; desmembramento de áreas das comunidades; acessão; transmissão de infra- estruturas, construções e benfeitorias (ICB) e o caso das licenças especiais. 1.9.1. Transmissão “mortis causa” Esta encontra-se prevista no artigo 16º da Lei de Terras, e lhe são aplicadas as normas de direito sucessório em vigor no País, constantes dos artigos 2024º e seguintes do Código Civil e não carece duma autorização oficial. A Lei de Terras fez referência expressa à transmissão por herança tanto as mulheres como aos homens, atendendo que ao longo do país existem costumes que podem excluir um ou outro sexo, sendo as mulheres as principais afectadas 58 . Esta transmissão pode dar-se tanto na sucessão legítima, como na testamentária. No caso de haver mais de um herdeiro relativamente ao DUAT, o direito dos mesmos será exercido sob a forma de co-titularidade, nos termos do art. 10º/2 da Lei de Terras e art. 12º do Regulamento da mesma lei. Um DUAT obtido pela autorização dum pedido pode ser transferido aos herdeiros do titular original mediante apresentação de comprovativo da qualidade de herdeiros, através da respectiva certidão ou sentença de habilitação herdeiros. Os herdeiros devem fazer o registo 57 CAZORLA, María José, CHIZIANE, Eduardo (Coords.), Direito Da Terra E Questões Agrárias, Uma Aproximação Entre Espanha E Moçambique, Escolar Editora, Maputo, 2014, p. 41. 58 Associação de Comércio e Indústria, ob. Cit., p. 60. 27 junto da Conservatória de Registo Predial, e depois o DUAT é reemitido no nome dos herdeiros 59 . 1.9.2. Transmissão “inter vivos” A lei permite a transmissão de edifícios, benfeitorias e infra-estruturas por negócios entre vivos. Neste caso, os requisitos serão diversos consoante estejamos perante prédios rústicos ou prédios urbanos. 1.9.2.1. Transmissão de Prédios rústicos «No caso dum prédio rústico a transmissão de infra-estruturas, construções e benfeitorias não implica a transmissão automática do DUAT. Para o DUAT ser transferido juntamente com as construções, a transmissão deve ser aprovada pela entidade que autorizou o DUAT. As partes que pretendem efectuar a transmissão devem primeiro pedir a aprovação através dos SPGC [Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro], que depois canalizarão o pedido para a entidade competente. Será necessário provar que o plano de exploração foi implementado e que os pagamentos anuais da taxa de terra estão em dia. Depois de ter recebida a aprovação, o requerente deve celebrar uma escritura pública da compra e venda junto do notário. A escritura está sujeita ao pagamento de taxas e impostos, como imposto de selo» 60 . «Quando a comunidade for parte de uma destas transações, exige-se o seu consentimento expresso» 61 . 1.9.2.2. Transmissão de prédios urbanos Esta não precisa de autorização do Estado. Apesar de não resultar da lei, a dispensa de autorização estatal só se aplica às situações de edifícios já concluídos, caso contrário estaremos diante de transmissão de infra-estruturas, construções e benfeitorias, prevista no art. 16º, nº 2 da LT, em que aquela autorização é necessária. 1.9.3. Por desmembramento de áreas das comunidades As comunidades locais, que ocupem a terra segundo as práticas costumeiras, adquirem o direito de uso e aproveitamento dessa terra 62 . De acordo com o art.13º, nº 5 da LT e art.15º, nº 1 do RLT, é lícito o desmembramento de áreas da comunidade, emitindo-se títulos 59 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Decreto nº. 66/98, de 08 de Dezembro, aprova o Regulamento da Lei de Terras, art. 20º, nº 2, com a redacção introduzida pelo Decreto n.º 1/2003, de 18 de Fevereiro. 60 Associação de Comércio e Indústria, ob.cit., p. 61. 61 QUADROS, Maria da Conceição de, Manual de direito da Terra, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2004, pág. 108. 62 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei 19/97, de 01 de Outubro, cria a Lei De Terras, art. 12º, alínea a). 28 individualizados para os membros da comunidade. Assim, esta é uma forma de transmissão de direitos sobre a terra, a qual tem como únicas restrições a necessidade de consulta em conformidade coma legislação sobre terras e a proibição de serem abrangidas áreas de uso comum. 1.9.4. Por acessão Esta forma de transmissão de direitos sobre a terra 63 é pouco tratada na doutrina. De facto, mesmo em situação em que não existe propriedade privada da terra, é possível que por força da natureza ou da acção do homem, as infra-estruturas, construções ou benfeitorias de alguém se unam ou confundam com a terra ou ICB de outrem, sem possibilidade de separação ou de cuja separação resulte prejuízo para as partes. Por exemplo, se atribuir-se a alguém o DUAT sobre um terreno sobre o qual já recaía um outro DUAT e este erga uma infra-estrutura ou edifício. Nesse caso teria que recorrer-se às regras e soluções sobre a acessão previstas nos arts. 1327º e seguintes do Código Civil, podendo ter que haver lugar à transmissão do DUAT, em particular nos casos de união ou confusão casual ou de boa-fé. 1.9.5. Por transmissão de infra-estruturas, construções e benfeitorias A legislação em vigor, no tocante à transmissão entre vivos de benfeitorias, construções e infra-estruturas, tem se revelado com uma série de lacunas, tornando o processo moroso, não uniforme, complexo e pouco transparente, o que dificulta o desenvolvimento, particularmente o do empresariado, havendo inúmeros casos de transmissões irregulares de terra em Moçambique. Por não estarem claramente definidos os critérios para a autorização da transmissão pela entidade estatal competente, os interessados ficam sujeitos a uma larga margem de discricionariedade e de incerteza, que pode levar a aproveitamentos ilícitos. Os problemas emergentes relacionam-se com o facto de não estar claro se a construção de uma dependência, de uma parte de um edifício, de uma estrada, de um muro, etc., é suficiente para a obtenção da autorização da sua transmissão. 63 Acessão: meio de aquisição de propriedade, com tudo aquilo que a ela se incorpora, seja móvel ou imóvel. 29 CAPÍTULO II 2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Neste capítulo apresenta-se a descrição dos aspectos metodológicos da pesquisa, onde podemos encontrar, elementos como a estratégia usada na pesquisa, o método ou métodos usados na materialização da pesquisa, a amostragem e as técnicas usadas para a recolha dos dados. Como definição, metodologia é a descrição detalhada dos caminhos utilizados para alcançar os objectivos, implicando na definição do tipo de pesquisa a realizar, técnicas a utilizar, instrumentos de colecta, organização, tratamento e análise dos dados. Assim, nesta monografia a metodologia a ser seguida é a de revisão da literatura e de diplomas legais. Para a realização desta monografia fez-se uso do método sistêmico, método este que procura compreender a complexidade da realidade, bem como suas transformações, através dos processos sistêmicos e do efeito retroactivo que acontece permanentemente entre o sistema e seu meio externo, sendo os tipos de pesquisa a bibliográfica (aquela feita a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas) 64 e a descritiva (descreve os factos e fenómenos de determinada realidade) 65 . 2.1. Tipo e Natureza de Pesquisa A pesquisa usada foi a exploratória que tem como principal finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias, com vista na formulação de problemas mais preciosos ou hipótese pesquisáveis para pesquisas posteriores 66 . Quanto à natureza, optou-se numa pesquisa qualitativa que possibilita mergulhar na complexidade dos acontecimentos reais e indagar não apenas o óbvio, mas também as contradições, conflitos e as resistências, a partir da interpretação dos dados no contexto da sua produção. Este tipo de abordagem, de cunho qualitativo, trabalha os dados buscando seu significado, tendo como base a percepção do fenómeno dentro do seu contexto. O uso da descrição qualitativa procura captar não só a aparência do fenómeno como também suas 64 FONSECA, J. J. S., Metodologia da pesquisa científica, UEC, Brasil, 2002, p. 32. 65 TRIVIÑOS, A. N. S., Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação, Atlas, Brasil, 1987, p. 112. 66 OLIVEIRA, Maxwell Ferreira de, Metodologia científica: um manual para a realização de pesquisas em Administração,UFG, Catalão, 2011, p. 20. 30 essências, procurando explicar sua origem, relações e mudanças, e tentando intuir as consequências 67 . Quanto ao ponto de vista dos procedimentos técnicos, a pesquisa foi bibliográfica, por ser elaborada a partir de material já publicado, constituído principalmente de livros, artigos periódicos e materiais disponibilizados na Internet, para sustentar as ideias recolhidas e fazer a apresentação das alternativas para a solução do problema levantado. Importa aqui ilustrar que para a sua elaboração, apoiamo-nos no método dedutivo, pois apresentam-se teorias e leis sobre uma realidade (da análise da transmissão do DUAT, na Lei de Terras), e o pesquisador como elemento-chave apenas vai descrever e interpretar o fenómeno. Este método trata de sair das questões gerais às particulares, pois a partir das teorias e leis já existentes sobre o tema, determinamos a situação particular do mesmo. 2.2. Tipo de pesquisa Na presente monografia atendendo ao foco do estudo a ser desenvolvido, i.e., ao objecto de análise, a presente pesquisa apresenta-se de carácter qualitativo, feita através de uma análise documental, baseada no critério de viabilidade e de interesse jurídico. Assim se verifica porque o objecto de estudo aqui não pode ser mensurável, tendo este um carácter exploratório. O exposto irá abordar sobre questões legais, as insuficiências patentes na LT e seus regulamentos, bem como o seu impacto para o âmbito do Direito e também no âmbito financeiro para o nosso Estado, apresentando-se possíveis soluções para os problemas existentes. 2.3. Técnica de colecta de dados As técnicas de coleta de dados são um conjunto de regras ou processos utilizados por uma ciência, ou seja, corresponde à parte prática da coleta de dados. Durante a coleta de dados, diferentes técnicas podem ser empregadas, sendo mais utilizados: a entrevista, o questionário, a observação e a pesquisa documental 68 . Esta pesquisa teve como técnica de colecta de dados, análise documental que foi feita em torno da doutrina, até então existente, mas para tal efectivação em concreto, foram feitas também consultas em dispositivos legais, nomeadamente, na Lei de Terras, seus regulamentos e demais disposições normativas relacionadas ao tema. 67 OLIVEIRA, Maxwell Ferreira de, ob. cit., p. 24. 68 OLIVEIRA, Maxwell Ferreira de, idem, p. 35. 31 A pesquisa documental é muito semelhante à pesquisa bibliográfica. A diferença essencial entre ambas está na natureza das fontes: enquanto a bibliográfica se utiliza fundamentalmente das contribuições de diversos autores, a documental vale-se de materiais que não receberam, ainda, um tratamento analítico, podendo ser reelaboradas de acordo com os objectos da pesquisa 69 . Segundo Lakatos e Marconi, a pesquisa documental é a colecta de dados em fontes primárias, como documentos escritos ou não, pertencentes a arquivos públicos; arquivos particulares de instituições e domicílios, e fontes estatísticas 70 . Quanto aos métodos usados na elaboração desta, optou-se pelo método dedutivo. Este método pressupõe que só a razão é capaz de levar ao conhecimento verdadeiro. O raciocínio dedutivo tem o objectivo de explicar o conteúdo das premissas. Por intermédio de uma cadeia de raciocínio em ordem descendente, de análise do geral para o particular, chega a uma conclusão. Usa o silogismo, construção lógica para, a partir de duas premissas, retirar uma terceiralogicamente decorrente das duas primeiras, denominada de conclusão 71 . O método hipotético-dedutivo foi aplicado na elaboração das hipóteses e na medida que se testou a predição da ocorrência do fenómeno abrangido pelas mesmas. O método histórico serviu para pesquisa dos traços possíveis da génese dos tratamento da terra pelo Estado e os seus respectivos antecedentes. 2.4. Pesquisa quanto aos objectivos Quanto aos objectivos a presente pesquisa será qualitativa, pois este método possibilitara a recolha de inúmeras bibliografias que versam sobre o tema aqui discutido e todos os possíveis traços que abordam sobre ele. 2.5. Quanto à abordagem do problema Quanto à abordagem do problema a nossa pesquisa é qualitativa, pese embora em alguns momentos possua um conteúdo altamente descritivo e pode lançar mão de dados quantitativos incorporados em suas análises. 69 GIL, A. C., Métodos e técnicas de pesquisa social, Atlas, 5ª ed., São Paulo, 1999, p. 32. 70 LAKATOS, Eva Maria, MARCONI, Marina de Andrade, Fundamentos metodologia científica, Atlas, 4ª ed., São Paulo, 2001, p. 55. 71 ______, Fundamentos de metodologia científica, Atlas, 6ª ed., São Paulo, 2007, p. 54 32 CAPÍTULO III 3. Apresentação e análise de dados A análise e interpretação de dados, diz respeito à parte onde tem espaço para discussão e detalhe de toda colecta de dados feita mediante os caminhos usados para sua concretização. Neste tópico, serão descritos todos os resultados encontrados na pesquisa empírica 72 . 3.1. Efectividade da Política Nacional de Terras Através da Resolução nº 10/95, de 17 de Outubro, o Governo de Moçambique aprovou a Política Nacional de Terras (PNT) e respectivas Estratégias de Implementação que fixou os principíos gerais de orientação da legislação sobre a terra que viria a ser posteriormente adoptada. Ela foi aprovada no contexto do pós-guerra, tendo como principal preocupação (manifesta na fundamentação do diploma que a aprovou) a reconstrução nacional, a promoção do investimento e do desenvolvimento, a reintegração dos deslocados e a salvaguarda dos direitos ancestrais sobre a terra. A PNT dedicou, no capítulo da respectiva estratégia de implementação, um espaço importante à transferência de direitos, tendo lançado as grandes linhas de uma reforma que não veio a acontecer, muito em parte porque não estavam reunidas as condições, principalmente políticas, para a institucionalização de um mercado de títulos sobre a terra. No tocante à revisão da LT de 1979, previu-se como um dos aspectoss a considerar «a provisão de um sistema de transferência dos direitos de uso e proveitamento da terra» 73 . Ora, estabeleceu-se que esta transferência deveria respeitar a classificação de áreas de uso de terras definida então pelo Ministério de Agricultura e Pescas 74 , assente em quatro tipos diferentes de áreas 75 , propondo-se, para cada caso, um regime especial de transmissibilidade: i. Tipo A – Áreas com densa ocupação e utilização e com vários utilizadores, com maior acesso ao mercado (onde predominam o uso urbano e o sector empresarial rural), tendo como maior problema a capacidade limitada de ampliação de tais recursos. Segundo a PNT, deveriam regular-se os mecanismos que permitiriam «a transferência onerosa de títulos de uso e aproveitamento da terra entre seus 72 OLIVEIRA, Maxwell Ferreira de, ob. cit., p. 60. 73 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Resolução nº 10/95, de 17 de Outubro, aprova a Política Nacional de Terras, ponto 56 (i) b). 74 Idem, ponto 59, segundo o qual «esta classificação deverá acompanhar a dinâmica do uso da terra para diversos fins e ajustar-se às mudanças que venham a ocorrer com o processo de desenvolvimento do país. Isto permitirá que terras de um determinado tipo possam passar de uma categoria para outra». 75 Ibidem, ponto 57. 33 titulares, tanto entre nacionais como de estrangeiros para nacionais, sempre que investimentos tiverem sido feitos no terreno» 76 . Foi igualmente estipulado que deveriam ser regulamentados os tamanhos mínimos dos terrenos, de acordo com as respectivas finalidades, havendo que se introduzir mecanismos que impedissem a especulação ou acumulação de terra e que apoiassem o camponês familiar e o pequeno produtor 77 . ii. Tipo B – Áreas com ocupação e utilização pouco densa, normalmente ocupadas e pelo sector familiar/artesanal, tendo acesso limitado ao mercado. Segundo a PNT, o maior problema que enfrentam os ocupantes destas áreas consistia em garantir o acesso e a segurança de posse e/ou uso futuro, devendo prevalecer, quanto à transmissão de DUATs, o direito consuetudinário. Previu-se igualmente que o acesso do investidor a tais áreas deveria ser negociado e acordado com a comunidade, com apoio dos órgãos estaduais competentes, nos seus diversos níveis 78 . iii. Tipo C – Áreas protegidas ou a proteger, relativamente às quais o uso e aproveitamento está, à partida, proibido. Nos termos da PNT, devido ao respectivo estatuto de protecção, a transferência de títulos deveria ser proibida, com excepção de áreas que fossem identificadas para a implementação de projectos previstos nos planos directores do Governo. iv. Tipo D – Áreas que não tenham sido ocupadas e exploradas, dado o respectivo grau de inacessibilidade, estando dependentes da capacidade de investimento público ou privado. Relativamente a estas áreas, a PNT previu que deveria ser plenamente admissível realizar operações de transferência de DUATs, havendo necessidade de instituir incentivos fiscais e de mercado para atrair investimentos. Contudo, conforme apresentado em seguida, esta previsão não teve seguimento em termos legislativos, tendo ficado de fora da nova Lei de Terras de 1997. A PNT tem como princípios fundamentais, dentre vários, a manutenção da terra como propriedade do Estado, princípio consagrado na Constituição da República; a garantia de 76 REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Resolução nº 10/95, de 17 de Outubro, aprova a Política Nacional de Terras, ponto 60. 77 Idem. 78 Ibidem, ponto 61. 34 acesso e uso da terra à população, bem como aos investidores; a promoção do investimento privado nacional e estrangeiro, sem prejudicar a população residente e assegurando benefícios para esta e para o erário público nacional; a definição e regulamentação de princípios básicos orientadores para a transferência dos direitos de uso e aproveitamento da terra, entre cidadãos ou empresas nacionais, sempre que tiverem sido feitos investimentos no terreno. O documento sintetiza do seguinte modo os princípios mencionados: «assegurar os direitos do povo moçambicano sobre a terra e outros recursos naturais, assim como promover o investimento e o uso sustentável e equitativo destes recursos». Neste contexto, reconhecem-se os direitos costumeiros de acesso e gestão das terras das populações rurais residentes, promovendo justiça social e económica no campo. 3.2. Outros dados relevantes Contudo, não basta a existência normativa desses princípios, o importante é ver a sua efectivação prática, e aí nota-se a já mencionada morosidade e complexidade na tramitação de DUAT, especificamente na transmissão, facto que contribui sobremaneira para o fraco desenvolvimento do país. Outro dado interessante é a necessidade de clarificação da transmissibilidade das Licenças especiais no âmbito da Legislação sobre terras, pois no art. 9º da LT argue-se que «nas zonas de protecção total e parcial não podem ser adquiridos direitos de uso e aproveitamento da terra, podendo, no entanto, ser emitidas licenças especiais para o exercício de actividades determinadas». Ao analisar-se este artigo com atenção, notar-se-á uma lacuna jurídica, poisa LT não se refere, nem proíbe, a transmissão das licenças especiais, pelo que se deve entender que a mesma é permitida. Na ausência de normas sobre a matéria, parece que se terá que recorrer à analogia com as disposições sobre a transmissão do DUAT. Assim os principais problemas encontrados são: Transmissibilidade limitada de DUATs. Os Procedimentos para a realização de transmissão de um DUAT são complexos e morosos; A transmissão de DUATs que envolve edificios/infraestruturas urbanos e rurais tem um tratamento diferente perante a Lei, mesmo quando no segundo caso se trate de pequenas áreas; 35 A ausência de um processo simplificado de transmissão entre vivos de DUATs nas áreas rurais desencoraja o investimento privado; Ambiguidade do termo “benfeitorias” no contexto de transmissão de DUATs. Um grande valor que engrossaria o erário sob forma de impostos sobre transações relativas à transmissão de DUATs é perdido, pois verificam-se transmissões onerosas de terrenos ou parcelas de terrenos, de indivíduos que tenham o DUAT sobre eles, sem que o Estado se beneficie. 36 CAPÍTULO IV 4. Discussão dos resultados a luz do quadro teórico Sendo a terra algo precioso e indispensável para o bem dos cidadãos, a sua aquisição, em conformidade com a lei, já devia ser facilitada pelo Estado através das autoridades locais no que tange à administração municipal para com os cidadãos nacionais. O que se verifica no nosso país, é que apesar de o Estado ser dono da terra, não facilita aos seus cidadãos a sua aquisição, pelo contrário, os estrangeiros são os que facilmente adquirem a terra, principalmente os que vêm com o objectivo de desenvolverem as suas actividades económicas como parceiros do Estado, senão do governo do dia. E, aos moçambicanos reserva-se a maratona de pedido de DUAT cujo processo burocrático incita o recurso à aquisição por vias ilegais violando dessa maneira o artigo 3º da Lei de terras. O processo de aquisição de DUAT é exaustivo. O despacho dos pedidos de direitos uso e aproveitamento de terra, para a habitação, pode durar mais de dois anos por motivos pouco esclarecidos, de modo que é mais fácil conseguir uma parcela de terra para habitação com recurso a compra do que seguir os procedimentos normais embora isso, por sua vez tenha consequências desagradáveis para os visados. No princípio da década de noventa, João Carrilho chamou a atenção para o facto de o mercado de terras constituir uma realidade bastante activa em Moçambique, no qual se vendem, alugam ou alienam terras ou transmitem direitos sobre as mesmas terras, contra o disposto na legislação e á margem de qualquer tipo de controlo oficial por parte do Estado, defendendo este especialista que, na revisão legislativa, se ponderasse seriamente a sua oficialização, tendo presente as diversas vantagens, designadamente: a possibilidade de um aumento das receitas do Estado, a potencial descentralização efectiva na promoção do desenvolvimento, o incentivo à utilização efectiva e mais eficiente do respectivo „proprietário‟ e a possibilidade de uma distribuição mais equitativa da terra, especialmente fora das áreas de ocupação densa 79 . 79 CARRILHO, João, O Debate Actual sobre a Questão das Terras Rurais em Moçambique, in, EXTRA – Revista para o Desenvolvimento e Extensão Rural, Edição Especial, Centro de Formação Agrária e de Desenvolvimento Rural – Ministério da Agricultura, Maputo, Junho de 1992, pp. 33-34. Joao Carrilho enumera, como desvantagens da oficialização do mercado de terras, «a possibilidade de criação de maior desemprego nas 37 Carrilho coloca ainda a questão do mercado de títulos como estando intrinsecamente relacionada com a propriedade da terra. Em documento consultado, intitulado „Síntese do Grupo de Trabalho de Reflexão sobre o Regime Jurídico da Propriedade de Terras‟, datado de 2001, encontramos a seguinte constatação: «O panorama que se vive na prática é de uma tendência de cada vez mais se multiplicarem as situações de transmissões do direito de uso e aproveitamento da terra extra-legais constituindo na prática um verdadeiro costume contra legem. Nesta circunstância é aconselhável que as entidades competentes por legislar procedam a uma ponderação e actuem no sentido de legislar aquilo que está a ser a prática reiterada da comunidade» 80 . Basicamente, estamos diante de uma situação em que a LT não encontra correspondência na realidade prática, no que diz respeito à transmissão de direitos de uso e aproveitamento da terra, revelando-se completamente desajustada das dinâmicas de mercado de terras que, ainda que não tenha sido em momento algum institucionalizado, constitui uma prática. Há efectivamente um défice em termos da sua implementação, agudizado pela inêrcia ou passividade das autoridades em relação aos casos publicamente reportados de venda ou qualquer outra forma de alienação de terras, quer na imprensa, quer nos inúmeros estudos e relatórios publicados, quer ainda nos debates e reuniões que se têm vindo a realizar nos últimos anos. Constata-se ainda a existência de imensos anúncios reportando a venda de „terrenos‟, „propriedades‟ ou „talhões‟, directamente ou por intermédio de empresas imobiliárias em vários meios de comunicação, principalmente jornais e nas redes sociais. Nalguns casos faz-se menção de algumas benfeitorias, noutros somente se alude à terra enquanto recurso dotado de valor económico. O negócio de compra e venda de terra é uma realidade. É um negócio rentável, gera milhões e milhões para os singulares que se envolvem nele. O inquietante é que as autoridades municipais sabem desse cenário, mas nada fazem para reverter a situação. A justificação disso é que eles também são acusados de praticarem e facilitarem essas práticas ilícitas, contudo tal não se pode provar, não passando de especulações até prova em contrário. Daí, que muitos recorrem a formas de transmissão que nem sempre obedecem à lei, que em muitos casos originam os conflitos que podem chegar aos tribunais para dirimi-los. A aprovação de legislação fixando critérios mais objectivos de autorização poderia prevenir esta situação inoportuna. Por exemplo, poder-se-ia estabelecer que, para efeitos específicos de áreas de mais densa ocupação» bem como os problemas advindos da «falta de planeamento do uso da terra com o detalhe suficiente para prevenir ter que se comprar terra vendida no dia anterior, a preço real mais elevado». 80 Idem. 38 transmissão de benfeitorias, construções e infraestruturas, considerar-se-ia haver cumprimento do plano de exploração, sempre que aquelas se inserissem no plano de exploração aprovado e que correspondam pelo menos, certo número de vezes ao valor da taxa anual do direito de uso e aproveitamento da terra, em vigor no momento em que se requer a transmissão e aplicável à parcela de terra onde estão inseridos os bens a transmitir. Caso a transmissão fosse requerida por pessoa que seja membro de uma comunidade local, a transmissão seria paralela a um processo de desmembramento e, de forma a garantir que a porção de terra ocupada pelas comunidades locais não fosse toda transmitida através de desmembramentos para transmissão de benfeitorias, construções ou infraestruturas pelos seus membros, mesmo que sob autorização da comunidade local em causa, cada membro da comunidade só poderia desmembrar até certa percentagem da parcela que lhe cabe. A comunidade local poderia exigir que o desmembramento, em apreciação de cada caso em concreto, seja inferior à percentagem referida, desde que justifique que a parcela restante
Compartilhar