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292 “GRUMP E O ACORDO ORTOGRÁFICO”: COMO AS TIRAS CÔMICAS RETRATAM UMA INTERVENÇÃO DO ESTADO NA POLÍTICA LINGUÍSTICA BRASILEIRA87 Aline da Silva Aparecido (Letras-português e Bolsista Extensionista, UEL) Esméri Malagute Pereira (Letras-português, UEL) Orientadora: professora Dra. Maria Isabel Borges RESUMO: Na tentativa de unificar a Língua portuguesa, desde 1º de janeiro de 2009, o Novo Acordo Ortográfico vigora em todos os países da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa), incluindo Brasil e Portugal. O período de transição para a efetivação das mudanças ortográficas encerra-se em 31 de dezembro de 2015. As principais alterações ocorrem apenas na escrita, buscando padronizar o uso do hífen, da acentuação e da ortografia. Para trazer à tona as principais mudanças, serão utilizadas como objeto de análise as tiras cômicas “Grump e o Acordo Ortográfico” do cartunista Orlandeli. A série possui onze tiras cômicas em que Grump atua como personagem fixo principal, apresentando e ironizando as principais mudanças para o público. Considerando que o gênero em questão possui características próprias (RAMOS, 2010), nossa proposta é retomar as principais mudanças com relação ao uso do hífen, à acentuação e à ortografia, sem deixar de problematizar os aspectos político-ideológicos implícitos no objeto. Trata-se de mais um exemplo de como a política linguística pode ser influenciada pelo Estado. Este trabalho está vinculado tanto ao projeto de pesquisa “Gramática, pragmática e tiras: em busca da organização gramatical de fato e valor”, quanto ao projeto de extensão “Disque-Gramática”. PALAVRAS-CHAVE: Texto. Tiras cômicas. Acordo Ortográfico. 87 Este trabalho integra o projeto de pesquisa “Gramática, pragmática e tiras: em busca da organização gramatical de fato e valor” e o projeto de extensão “Disque-Gramática”, ambos coordenados pela professora Dra. Maria Isabel Borges. 293 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Neste trabalho, nosso objeto de análise é uma série de onze tiras cômicas intituladas “Grump88 e o Acordo Ortográfico”, produzidas pelo cartunista Orlandeli89. O objetivo geral é retomar as principais mudanças com relação ao uso do hífen, à acentuação e à ortografia, sem deixar de problematizar os aspectos político- ideológicos implícitos no objeto. Segundo Neves (2009), no final de 2008, a divulgação de um novo Acordo Ortográfico “caiu como uma bomba”, sem aviso prévio para os povos falantes da língua portuguesa, principalmente em Portugal, pois a nação teria que deixar sua ortografia para se igualar aos demais países. Já em 2009, no Brasil, no início do ano e em Portugal em 13 de maio, o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrou em vigor. Os países tiveram um tempo de transição: no Brasil três anos e em Portugal seis anos. Durante esse período, são válidas as duas normas, a anterior e a nova, introduzida pela reforma. Fiorin (2007) ressalta que o Acordo Ortográfico deve ser visto como um jogo de interesses políticos. As distintas opiniões acerca do Acordo Ortográfico da CPLP (Comunidade Países de Língua Portuguesa) estão mais voltadas para as intenções político-ideológicas do que pela sua real função: a unificação dos povos via língua. Em primeiro lugar, retomaremos brevemente o histórico do Acordo Ortográfico. Na sequência, apresentaremos nosso objeto de análise, a série de onze tiras cômicas de Orlandeli, expondo, assim, as principais mudanças ocorridas e dando ênfase 88 Grump é o personagem mais conhecido de Orlandeli. Caracteriza-se pelo exagero, além de despertar o humor com suas trapalhadas; também aborda assuntos relacionados ao cotidiano, problematizando todos os temas impostos pelo seu criador. 89 As tiras cômicas, segundo Ramos (2010), têm como característica marcante o humor, muitas vezes são nomeadas como piada. São ilustradas com situações exageradas ou mesmo fora do comum e com finais ainda mais surpreendentes. São construídas em uma ou mais vinhetas, com personagens fixos (como é o caso de Grump) ou não. O gênero discursivo em questão é o mais publicado em jornais do mundo inteiro, inclusive em nosso país. 294 naquelas que as tiras exploram. Por fim, apresentaremos alguns aspectos teóricos a respeito da política linguística e do Acordo Ortográfico (CALVET, 2002; 2009; NEVES, 2009; FIORIN, 2009). O NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO E AS TIRAS CÔMICAS O tema central do Acordo ortográfico da Língua Portuguesa é a unificação e simplificação da língua. A explicação para o acordo é: a existência de duas ortografias oficiais, a lusitana e a brasileira (já que os demais países da CLP ― Comunidade de Países de Língua Portuguesa ― usam a língua lusitana) prejudica o prestígio da língua no mundo. No ano de 1911, Portugal estabeleceu o primeiro modelo de referência da língua, mas este não foi extensivo ao Brasil. A partir deste momento, a ortografia da língua começou a ser discutida. Em 1931, foi aprovado o primeiro Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, no entanto a unificação desejada não aconteceu. Em 1945, houve uma nova tentativa para o acordo, mas o Brasil não aderiu, sendo aplicado somente em Portugal. Nos anos seguintes, continuaram as discussões sobre a unificação da língua; e, em 1990, foi assinado um novo Acordo Ortográfico da Língua Brasileira, ratificado em 2004, quando Timor-Leste se tornou independente. O novo acordo entrou em vigor no ano de 2009. As mudanças são com relação à escrita. As principais são: hífen, acentuação, consoantes mudas, trema, maiúsculas em algumas palavras e inclusão do W, Y e K no alfabeto. Analisaremos algumas dessas mudanças nas tiras cômicas do Grump. Tiras 1 e 2: Grump e o Acordo Ortográfico. 295 Fonte: disponível em <http://www.orlandeli.com.br>, publicada em janeiro de 2009. Na primeira tira cômica, Grump descobriu que as regras para o acordo ortográfico já estariam valendo. Percebendo que supostamente seriam muitas as mudanças, resolveu comprar um corretor ortográfico (um aplicativo) para seu computador, acreditando ser mais fácil aprendê-las. Também podemos observar que a língua é implicitamente concebida como mecânica, limitada à perspectiva prescritiva do certo e errado. Já na segunda tira cômica, na busca de uma forma mais fácil para aprender as novas regras, procurou seu sobrinho, mas o menino usa a linguagem da internet. Grump logo percebeu que não era uma boa ideia. Podemos ver que o Grump é um pouco acomodado no que diz respeito aos estudos. Tira 3: Grump e o Acordo Ortográfico. Fonte: disponível em <http://www.orlandeli.com.br>, publicada em janeiro de 2009. 296 Os verbos falados no gerúndio, tão criticados em função do uso não criterioso (não indicando ações ocorrendo simultaneamente), não sofreram alteração, como apontado na terceira tira cômica. Tira 4: Grump e o Acordo Ortográfico. Fonte: disponível em <http://www.orlandeli.com.br>, publicada em janeiro de 2009. As letras K, W e Y são incluídas ao alfabeto da língua portuguesa, passando a ter 26 letras. Mas Grump não caracterizou esta inclusão como mudança, pois já estava acostumado a usá-las. Para ele, tais letras sempre fizeram parte do alfabeto. Tiras 5, 6 e 7: Grump e o Acordo Ortográfico. 297 Fonte: disponível em <http://www.orlandeli.com.br>, publicada em janeiro de 2009. O acento agudo, nas palavras paroxítonas, desaparece nos ditongos abertos “ei” e “oi” e no “i” e “u” tônicos, quando estas vogais vierem depois de ditongos. Para o Grump, as regras do novo Acordo são difíceis, por exemplo, os conceitos básicos de ditongo e paroxítona — também dificuldades de muitos falantes de língua portuguesa. Tira 8: Grump e o Acordo Ortográfico. 298 Fonte:disponível em <http://www.orlandeli.com.br>, publicada em janeiro de 2009. O acento circunflexo também desaparece em palavras terminadas em vogais idênticas, em formação de hiato. Tiras 9 e 10: Grump e o Acordo Ortográfico. Fonte: disponível em <http://www.orlandeli.com.br>, publicada em janeiro de 2009. Com relação ao trema não ser mais usado, Grump se considerou muito inteligente porque já não o usava. Porém, a maioria das pessoas nem sabia que algumas 299 palavras, como linguiça, possuíam trema. A questão é: antes do novo Acordo, quando o uso do trema era necessário, não era empregado pela maioria dos falantes. Tira 11: Grump e o Acordo Ortográfico. Fonte: disponível em <http://www.orlandeli.com.br>, publicada em janeiro de 2009. Grump tem certeza que as mudanças vão demorar a chegar e acha que tem tempo suficiente para se divertir antes de aprender. É o que aconteceu com a maioria das pessoas. Após a leitura das tiras cômicas, tem-se a impressão que o Vândalo, o cachorro do Grump, se mostra mais inteligente que ele. Grump, assim como a maioria dos falantes do português, considera que não existe necessidade de mudanças. As pessoas já falam e escrevem de acordo com algumas regras que estão sendo propostas agora, como o desaparecimento do trema. A dificuldade está em entender os conceitos. Não adianta dizer que desaparecem acentos em paroxítonas se o povo não sabe o que é paroxítona. Existe uma crítica dentro desta série de tiras cômicas contra o novo Acordo e também contra a ineficácia da educação. O NOVO ACORDO COMO UMA POLÍTICA LINGUÍSTICA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Após analisarmos as novas regras do último Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, percebemos que as concepções de língua e gramática propostas correspondem à gramática normativa de uso da língua. 300 Gramática é o conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons escritores. Dizer que alguém “sabe gramática” significa dizer que esse alguém “conhece essas normas e as domina tanto nocionalmente quanto operacionalmente”. (FRANCHI, 2006, p. 16) Nesta concepção, língua e gramática se equivalem, o que supostamente as pessoas que conhecem bem a gramática saberiam falar e escrever de acordo com as normas prescritivas. Logo, confirma-se que língua e gramática seriam equivalentes; e, por consequência, estudar língua e gramática seria estudar a mesma coisa. No entanto, Antunes (2007) diz que é um equívoco pensar que língua e gramática se equiparam: “por essa ótica, saber uma língua equivale a saber sua gramática; ou, por outro lado, saber a gramática de uma língua equivale a dominar totalmente essa língua” (ANTUNES, 2007, p. 39). A língua se estabelece na interação social. Os falantes fazem dela usos diversos, propiciando a emersão de variedades linguísticas. Sob essa ótica, a língua também se constitui pela heterogeneidade e diversidade. Baseada em Antunes (2007), Borges (no prelo) compara a língua a uma moeda, que comporta duas faces: a da potencialidade e a da atualização. Na primeira, as formas linguísticas estariam à disposição dos seus falantes em dois subsistemas, o léxico e a gramática; na segunda, tais formas seriam atualizadas conforme a situação de interação e o gênero do discurso em uso, outros dois subsistemas. Os quatros subsistemas citados mantêm uma relação de interdependência e integração. O novo Acordo Ortográfico visa padronizar e modernizar a língua, fixar uma escrita, além da tentativa de unificar povos. Todo o estudo envolto do Acordo Ortográfico é realizado pelos linguistas, que, por sua vez, se preocupam em levantar dados que esclareceram quais são as mudanças que servirão de contribuição de fato para a evolução de uma língua. (CALVET, 2002). Para tanto, faz-se necessária a intervenção (o veredito) do Governo, como explica Calvet (2002). O Estado analisa todos esses estudos dos linguistas para que, então, sejam decididas quais mudanças e desdobramentos na língua. Os linguistas 301 planejam e a política executa, formando-se, assim, binômios entre estes dois campos. “Chamaremos política linguística um conjunto de escolhas conscientes referentes às relações entre língua(s) e vida social, e planejamento linguístico a implementação prática de uma política linguística, em suma, a passagem ao ato.” (CALVET, 2002, p. 145). A linguística muito tem colaborado para tentar elucidar que a língua não se faz em torno de leis. Os linguistas defendem e explicam ainda que a língua é um produto do homem (de uma comunidade) que evolui perante muitas interferências internas e externas. De acordo com Fiorin (2009), as escolhas ou a preocupação com a língua não partem dos falantes, pois eles, em seu cotidiano, “driblam” quaisquer problemas de comunicação. O Estado, sim, tem como preocupação o domínio absoluto sobre a língua: ordenar, normatizar, criar regras com o objetivo de estabelecer um domínio generalizado e a valoração de uma língua perante outras línguas; e tais aplicações se realizam pelo Acordo Ortográfico. Uma política linguística diz respeito muito mais às funções simbólicas da língua do que a suas funções comunicativas. Não são as necessidades reais de comunicação que pesam na definição de uma política linguística, mas considerações políticas, sociais, econômicas ou religiosas. (FIORIN, 2009, p. 16). Fiorin (2009) ressalta que, por trás das escolhas de uma política linguística, há aspectos ideológicos implícitos. Os Acordos Ortográficos são decisões convencionadas para fins sobretudo políticos. A partir deles se estreitam relações, fortificam-se laços diplomáticos entre muitos países, como é o caso da CLPL (Comunidade de Países de Língua Portuguesa) Calvet (2007) dá vários exemplos de como as escolhas da política linguística podem ser frustradas ou promissoras em uma língua. Na China, para simplificar a aprendizagem e levar a minoria à possibilidade de inserção na sociedade, o Estado, em 1955 (dentre muitas outras e sucessivas escolhas), decidiu por diminuir os 302 caracteres da sua escrita. Mas, com isso, acarretou-se uma perda semântica em algumas palavras. Desde 1919, a China vem tentando a unificação de seu povo (principalmente pela escrita), porém há registros que até hoje no país existam mais de oito línguas diferentes e mais de 600 dialetos. Tal constatação traz à tona que as escolhas (conceitos) que os Acordos Ortográficos adotam ainda estão longe de atingir sua eficácia. De acordo com o pesquisador, a Suíça é um exemplo de que o Acordo Ortográfico foi de suma importância, uma contribuição para seu povo. O país é oficialmente quadrilíngue desde 1938. São administradas ao mesmo tempo e divididas por regiões (germanófonos, francófonos, italófonos e romanchofónos). a Suíça é um exemplo a ser seguido, pois há uma democracia da língua, na qual todas se respeitam; não há imposição da maioria (a língua germanófona) perante as outras três línguas existentes no país. (CALVET, 2007) Azeredo (2008) relata que o Acordo Ortográfico é visto pela maioria dos brasileiros como uma imposição. Todos os países da CLPL falam o português, o que se altera é a fonética. O Acordo no Brasil pode ser avaliado de algumas maneiras, por exemplo: do campo político já citado anteriormente podem ter ocorrido alguns benefícios (a diplomacia entre os países). Mas, quanto ao funcionamento real da língua, não houve grandes contribuições, além do que já existiam. Há opiniões distintas entre os falantes. Portanto, o Acordo Ortográfico da Comunidade de Países de Língua Portuguesa vive em posição de incógnita até a data de sua real efetivação. Por meio de nosso objeto de análise, a série de onze tiras de Grump, evidenciamos como o falante de língua portuguesa lida com oAcordo Ortográfico: uma forte incompreensão pelas mudanças efetuadas, pois pouco se altera na fala e mais alterações ocorrem na escrita. Desse modo, o Acordo Ortográfico da CPLP ainda é motivo de muitos questionamentos, seja pelos falantes (em seu uso real), seja pelos políticos (domínio político). 303 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola, 2007. AZEREDO, José Carlos de. (Inst, Antônio Houaiss). Escrevendo pela nova ortografia: como usar as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. São Paulo: Edições Publifolha, 2008. BECHARA, Evanildo. O que muda com o novo Acordo Ortográfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 2008. ______. A nova ortografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. BORGES¸ Maria Isabel (no prelo). Advérbio: um ponto de partida para reflexões sobre gramática. Capítulo de livro. CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola, 2002. ______. As políticas linguísticas. São Paulo: Parábola; IPOL, 2007. FRANCHI, Carlos. Mas o que é mesmo “gramática”? In: ______.; NEGRÃO, Esmeralda Vailati; MÜLHER, Ana Lúcia. Mas o que é mesmo “gramática”? Organização de Sírio Possenti. São Paulo: Parábola, 2006. p. 11- 33. FIORIN, José Luiz. O acordo ortográfico: uma questão de política lingüística. Revista Veredas (UFJF. Online), v. 24, p. 07-19, 2009. NEVES, Maria Helena de Moura. O acordo ortográfico da língua português e a meta de simplificação e unificação. D.E.L.T.A., n. 26, v. 1, p. 87-113, 2010. RAMOS, Paulo. A linguagem dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2010. Páginas consultadas: <http://www.academia.org.br>. Acessos em: jan. 2009 e 01 maio 2014. <http://www.orlandeli.com.br>. Acesso em: 30 abr. 2014.
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