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Ainda estávamos a uma centena de metros de distância, mas ele insistiu em descer ali mesmo. Fizemos o resto do caminho a pé. A casa número 3 de Lauriston Gardens tinha um aspecto agourento e ameaçador. Juntamente com outras três, ficava um pouco recuada: duas delas estavam ocupadas e duas, vazias. Nestas últimas, duas filas de janelas, tristes e abandonadas, olhavam para a rua como outros tantos olhos vagos e mortiços, exceto nas vidraças turvas em que um papel com o “Aluga-se” fazia o efeito de uma catarata. Um pequeno jardim, salpicado aqui e ali de plantas mirradas, separava da calçada cada uma das quatro construções, e era atravessado por uma vereda estreita, amarelada, que parecia uma mistura de saibro e argila. Todo o terreno estava muito mole em consequência da chuva caída durante a noite. O jardim era fechado por um pequeno muro, com cerca de um metro de altura, rematado por grades de madeira. Apoiado a esse muro via-se um bravo policial, rodeado por um grupo de desocupados, que espichavam o pescoço e aguçavam o olhar na vã esperança de ver o que acontecia no interior da casa. DOYLE, Arthur Conan. Um estudo em vermelho. Tradução de Hamílcar de Garcia. Disponível em: <https://kbook.com.br/wp-content/uploads/2016/08/ umestudoemvermelho.pdf >. Acesso em: 4 set. 2019. 36 K e y s to n e -F ra n c e /G a m m a -K e y s to n e /G e tt y I m a g e s Arthur Conan Doyle nasceu na cidade de Edimburgo, na Escócia, em 1859. Era médico, profissão que exerceu até 1891, quando passou a se dedicar exclusivamen- te a escrever histórias em que um assassinato acontece e ninguém sabe quem o cometeu. E é aí que entra seu personagem principal, Sherlock Holmes, inspirado, dizem, em um ex-professor. Sherlock é um detetive particular muito peculiar: extre- mamente inteligente, dono de uma memória prodigiosa, cheio de excentricidades — um verdadeiro craque na arte de montar um quebra-cabeça com pequenas pistas do crime e de desvendar o mistério como um todo. Tudo isso (quase) sempre acompanhado do Dr. Watson, um médico fascinado pelo detetive e que o assiste no desvendamento dos misteriosos crimes. Conan Doyle faleceu em 1930. 1 Sobre o narrador, responda às questões a seguir. a) Já na primeira linha do trecho lido, o que podemos perceber em relação ao foco narrativo? Justifique sua resposta. Podemos perceber que o narrador é personagem e participa da história, pois fala em 1a pessoa: “Confesso que fiquei bastante desconcertado ante aquela nova prova quanto à utilidade prática das teorias do meu companheiro”. b) Mais adiante no texto, o que percebemos de mais específico sobre esse foco narrativo? Justifique sua resposta com uma ou mais passagens do trecho. Percebemos que o narrador é personagem, mas, pelo que se pode depreender da leitura, não é o protagonista, já que em todo o trecho transcrito se dedica a acompanhar e a narrar o que diz e o que faz Holmes: “— Banal — disse Holmes, mas a sua expressão parecia indicar-me que a minha evidente surpresa e minha admiração lhe eram agradáveis”. Na realidade, trata-se do Dr. Watson, o assistente de Holmes. 2 A finalidade da parte introdutória de uma obra é, co- mumente, apresentar a situação inicial e, em especial, os personagens. O trecho lido pertence ao terceiro ca- pítulo do livro e ainda faz parte da introdução. a) Embora não seja nomeado nesse trecho, quem está narrando a história é Dr. Watson, o assistente de Holmes. Qual é a importância dessa escolha para a ambienta- ção do leitor com os personagens? Explique. Nessa introdução, Watson está começando a interagir com Holmes, ainda o está conhecendo e não sabe exatamente o que pensar sobre o companheiro, pois estranha certos aspectos de sua personalidade tão peculiar. A escolha de um narrador desse tipo (personagem secundário) permite que o leitor seja conduzido por seus relatos, pois, à medida que Watson narra a história e descreve o protagonista, o leitor se sente mais ambientado com a dinâmica apresentada, conforme demonstra o seguinte trecho: “O meu respeito pelas suas faculdades analíticas aumentou enormemente. Todavia, ainda me restava no espírito a desconfiança de que aquilo poderia ter sido arranjado previamente a fim de me deslumbrar, embora eu não pudesse atinar por que motivo ele se daria ao trabalho de assim comprovar as suas asserções”. Agourento: que traz mau agouro, isto é, más notícias. Saibro: areia grossa. 140 PR O D UÇ Ã O D E T EX TO M Ó D UL O 1 2 PH_EF2_7ANO_PT_133a143_CAD2_MOD12_CA.indd 140 11/27/19 15:39 b) Nas narrativas policiais clássicas, o personagem do detetive costuma ser alguém admirável. De que ma- neira a escolha do foco narrativo contribui para a construção dessa figura do detetive? À medida que Watson vai conhecendo Holmes, este se revela cada vez mais admirável e causa mais deslumbre em seu assistente (e, consequentemente, em seu leitor): por seus jogos dedutivos, por sua calma, por sua erudição, por seu agudo senso de observação, etc. Tudo isso leva o leitor a enaltecer o protagonista e a se identificar com ele. 3 Para reforçar ainda mais o brilhantismo do detetive, o au- tor usa também outra estratégia: o contraste entre Holmes e outros personagens. Explique como isso se dá. Ao mencionar os personagens Gregson e Lestrade, ambos ligados à polícia de Londres (Scotland Yard), o autor aumenta, por contraste, o brilho de Sherlock. Nesse caso específico, Gregson, um profissional comprovadamente experiente no assunto, teve de pedir ajuda a Holmes para desvendar o mistério que envolve o assassinato do homem que jaz em uma casa localizada na Lauriston Gardens. Isso passa ao leitor a noção de que o detetive protagonista é mais competente que os demais, mesmo fazendo um trabalho individual e particular. 4 Qual é o conflito dessa parte do livro, isto é, qual é o enigma que terá de ser desvendado? O crime cometido contra o homem que apareceu morto em uma casa vazia sem que houvesse, aparentemente, indícios de como foi parar ali nem de como morreu. O mistério consiste em descobrir a autoria do crime, a motivação e a arma, já que havia sangue no cômodo onde o cadáver foi encontrado, apesar da ausência de ferimentos em seu corpo. 5 Com que intenção o autor do texto teria reproduzido na íntegra a carta de Gregson a Holmes? Ao responder, leve em conta o gênero que estamos estudando e o envolvimento do leitor com a história. A carta contém o ponto de partida do conflito: aparentemente não há pistas sobre os fatos que envolvem o crime, e é por isso que Gregson escreve a Holmes e lhe pede ajuda. Assim, ao reproduzir a carta na íntegra, o autor apresenta ao leitor o que será investigado, para que este possa criar as próprias pressuposições acerca do enigma. De fato, trata-se de uma espécie de desafio que o autor lança ao leitor: será este capaz de descobrir, com as pistas à disposição, como aconteceu o crime? Preferencialmente, não, pois o autor pretende surpreendê-lo ao final. A metodologia de trabalho de Holmes é voltada para indícios práticos: ele só teoriza após ter todos os dados em mãos para não distorcer o raciocínio. Ou seja, ele primeiro coleta todas as informações possíveis e só depois monta a linha investigativa. ENTRELINHAS 6 “São rápidos e enérgicos, mas têm métodos convencio- nais... terrivelmente convencionais.” Essas são palavras de Holmes para caracterizar o método de investigação de Gregson e Lestrade. O que elas revelam sobre a me- todologia de Holmes? Explique. Que a metodologia de Holmes é mais moderna, irreverente, talvez até por não estar ligada a uma instituição ou ter de seguir instruções diretas de outras pessoas. Holmes parece se divertir trabalhando. 141 PR O D UÇ Ã O D E T EX TO M Ó D UL O 1 2 PH_EF2_7ANO_PT_133a143_CAD2_MOD12_CA.indd 141 11/27/19 15:39 7 Qual era o cenário do dia do início dainvestigação? Ao responder, considere os objetivos do gênero “narrativa policial” e explique a importância de descrever esse cenário para o leitor. A investigação começa em uma manhã úmida e nebulosa, consequência da chuva que caiu durante toda a noite, o que atrapalha a visão dos personagens. Isso combina com o clima de mistério em que Holmes e Watson — e os leitores também — estão envolvidos: o de um crime difícil de “enxergar” (desvendar). Ou seja: a descrição do cenário contribui para envolver o leitor nessa atmosfera. 8 Que relação existe entre a descrição objetiva e deta- lhada da casa e o almejado desvendamento do crime, que supostamente ocorrerá no final da história? A cena em que ocorreu o crime foi deixada intacta (Gregson afirma isso na carta), para que os responsáveis pela investigação pudessem perceber todo e qualquer vestígio nela presente. E é assim que a casa é descrita por Watson, mostrando ao leitor a forma como ele e Holmes a captaram visual e intelectualmente. O esperado é que, no final, essa dupla central desvende o enigma do delito, apresentando as relações lógicas estabelecidas com base nas pistas presentes na cena do crime. DESENVOLVENDO HABILIDADES 1 Se as pressuposições feitas pelo leitor com os indícios for- necidos devem, preferencialmente, ser desconstruídas no final revelador e surpreendente, uma característica que pode aparecer nas narrativas policiais com esse intuito é a: a) incriminação de alguém. b) presença de um cúmplice. c) presença de falsas pistas. d) indicação de um álibi. Leia outro trecho do mesmo livro, desta vez um frag- mento do segundo capítulo — anterior, portanto, ao lido na seção Aplicando o conhecimento. […] — Você pareceu surpreso quando eu lhe disse, ao vê-lo pela primeira vez, que voltara do Afeganistão. — Foi informado, sem dúvida. — Nada disso. Eu vi que você voltava do Afeganistão. Devido a um longo hábito, a concatenação do raciocínio é tão rápida no meu espírito que cheguei àquela conclusão sem ter consciência dos elos intermediários. Mas esses elos lá estavam. E o fio que o meu raciocínio seguiu foi mais ou menos este: “Eis aqui um cavalheiro com ar de médico, mas ao mesmo tempo com gestos de militar. É evidentemente um médico do exército. Acaba de chegar dos trópicos, porque tem o rosto amorenado, e essa não é a cor natural da sua pele, visto que os punhos são brancos. Sofreu privações e enfermidades, conforme o demonstra o rosto emaciado. Além do mais, recebeu um ferimento no braço esquerdo, visto 1 2 3 4 que o mantém numa posição rígida e pouco natural. Em que lugar dos trópicos um médico do exército inglês poderia ter passado por tantas dificuldades e ser ferido no braço? No Afega- nistão, naturalmente”. Toda essa série de raciocínios não ocupou mais do que um segundo. Observei-lhe, consequentemente, que você regressava do Afeganistão e vi a sua surpresa. — Explicada dessa forma, a coisa parece bastante sim- ples — disse eu, sorrindo. — Você me faz lembrar Dupin, de Edgar Allan Poe. Não fazia a menor ideia de que tais pessoas existissem na vida real. Sherlock Holmes levantou-se e acendeu o seu cachimbo. — Julga, sem dúvida, fazer-me um cumprimento compa- rando-me a Dupin — observou. — Pois, na minha opinião, Dupin era um tipo medíocre. Aquele seu estratagema de in- tervir nos pensamentos do seu amigo, depois de um quarto de hora de silêncio, é pretensioso e superficial. Concedo-lhe, sem dúvida, certa capacidade analítica, mas não era de modo nenhum o fenômeno que Poe parecia imaginar. DOYLE, Arthur Conan. Um estudo em vermelho. Tradução de Hamílcar de Garcia. Disponível em: <https://kbook.com.br/wp-content/uploads/2016/08/ umestudoemvermelho.pdf >. Acesso em: 4 set. 2019. 2 A lógica utilizada por Sherlock Holmes para descobrir que Watson era um médico do exército foi a mesma empre- gada por ele para chegar à conclusão de que determi- nado homem, descrito no trecho reproduzido na seção Aplicando o conhecimento, era sargento aposentado da marinha. Pela condução do seu pensamento nas duas situações, só n‹o podemos concluir que Holmes é: a) observador. b) sensível. c) vidente. d) inteligente. 5 6 7 Concatenação: encadeamento. Emaciado: emagrecido. 142 PR O D UÇ Ã O D E T EX TO M Ó D UL O 1 2 PH_EF2_7ANO_PT_133a143_CAD2_MOD12_CA.indd 142 11/27/19 15:39 3 Você já sabe que esse trecho de O estudo em vermelho foi extraído do segundo capítulo do livro, intitulado “A ciência da dedução”. O método dedutivo, que está na base das investigações de Holmes e de outros detetives semelhantes a ele, consiste em seguir uma linha de raciocínio que parte: a) do específico para o geral, pois as características da aparência e do jeito de Watson forçam Holmes a achar que todo médico do exército é como Watson. b) do geral para o específico, porque as noções que Holmes tem sobre a maioria dos médicos em serviço militar no Afeganistão ajudam-no a interpretar os indícios presentes em Watson. c) do específico para o geral, porque as noções que Holmes tem sobre a maioria dos médicos em serviço militar no Afeganistão ajudam-no a interpretar os indícios presentes em Watson. d) do geral para o específico, visto que as características da aparência e do jeito de Watson forçam Holmes a achar que todo médico do exército é como Watson. D a v id G . F o ré s /A c e rv o d o i lu s tr a d o r A série televisiva House, M.D. (2004-2012) fez muito sucesso ao apresentar ao mundo uma versão médica de Sherlock Holmes, responsável por resolver enigmas ligados sempre a diagnósticos raros e complicados. O próprio nome do personagem, House, começa com a letra “H” em homenagem a Holmes, ao passo que o nome de seu melhor amigo e companheiro, Wilson, alude a Watson. GOTAS DE SABER 4 Auguste Dupin, personagem citado no final do trecho transcrito, é um famoso detetive criado por Edgar Allan Poe, que, como você sabe, foi o primeiro escritor de narrativas policiais. A única alternativa que n‹o traz uma explicação para a menção à obra de Poe é: a) dar maior aspecto de realidade à narrativa, pois contrapõe um Sherlock “real” a um Dupin fictício. b) reconhecer a contribuição de Edgar Allan Poe para a narrativa policial e, consequentemente, para a própria obra em questão. c) enaltecer a imagem de Sherlock Holmes, comparando-o a um detetive que é um ícone das narrativas policiais (Dupin). d) negar a contribuição de Edgar Allan Poe para a narrativa policial, pois Sherlock diz que Dupin é “medíocre”. Culto, cerebral, extraordinariamente inteligente e observa- dor. Essas são as características principais de Auguste Dupin, o primeiro dos detetives particulares da literatura policial. Ao criá-lo, Edgar Allan Poe provavelmente não imaginava que o famoso chevalier (cavaleiro, em francês) serviria de inspiração e referência para tantos outros personagens das narrativas de detetive. Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle, e Hercule Poirot, de Agatha Christie, são apenas os dois exemplos mais famosos. GOTAS DE SABER 143 PR O D UÇ Ã O D E T EX TO M Ó D UL O 1 2 PH_EF2_7ANO_PT_133a143_CAD2_MOD12_CA.indd 143 11/27/19 15:39
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