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1 DA TOTALIDADE DO CAPITAL À MEDIAÇÃO PADRÃO DE REPRODUÇÃO DO CAPITAL: o concreto refletido no pensamento1 Wendell Magalhães2 Saad Filho, partindo da abordagem da “dialética materialista” do filósofo soviético Evald V. Ilyenkov (1924-1979), nos informa que […] a realidade concreta analisada em O capital (a economia capitalista) é uma totalidade, ou um sistema orgânico de partes ou fenômenos mutuamente condicionantes. […] para reconstruir o concreto no pensamento, a análise precisa refletir a estrutura desse concreto; em outras palavras, ela deve partir do todo em vez de suas partes. (SAAD FILHO, 2011, p. 21, grifo nosso). Na execução desta tarefa, por sua vez, Marx apela para o método dialético em bases materialistas3, no qual este se estabelece como método de investigação da interação entre os fenômenos cuja essencialidade está condicionada pela totalidade social. Esta totalidade, lembra Mészáros (1988, p. 381), deve ser concebida como “um complexo geral estruturado e historicamente determinado”. Mas para reconstruir o concreto no pensamento não basta reconhecermos a realidade como totalidade. Como diz Mészáros (1988, p. 381), a realidade enquanto totalidade existe através de “mediações e transições múltiplas” que “variam constantemente e se modificam”. Nesse sentido, levando em conta o que diz Netto (2011), se temos como princípio que teoria e método em Marx são indissociáveis, é possível identificar três categorias nucleares na concepção teórico-metodológica de Marx que dizem respeito ao modo de constituição efetivo da realidade. Além da categoria totalidade, já aqui destacada, o autor, portanto, se refere à categoria contradição e à categoria de mediação. Quando nos munimos dessas categorias, ganha maior sentido a categoria padrão de reprodução do capital como uma categoria que 1 Este material é parte adaptada de minha dissertação de mestrado, intitulada Do padrão de reprodução do capital nas economias dependentes: a Teoria Marxista da Dependência e a construção de uma categoria de medição de análise (2019); mais especificamente de sua seção 2.2.2 Da totalidade do capital à mediação “padrão de reprodução do capital”. 2 Bacharel e Mestre em Economia pela Universidade Federal do Pará - UFPA. 3 Cabe destacar esta diferença que diferencia o método dialético de Marx do de Hegel, por exemplo. Como Marx mesmo faz questão de destacar no posfácio da segunda edição do Livro I d’O Capital: “Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do método hegeliano, mas exatamente seu oposto. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem.”. Apesar disso, acrescenta: “A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico.” (MARX, [1873] 2013, p. 90-91). 2 visa preencher a lacuna teórica de mediação existente entre a lei geral do modo de produção capitalista, que incorpora sua contínua reprodução e acumulação, e sua maneira de afirmar-se em distintos contextos e espaços geoterritoriais determinados através da lei do valor. Dizemos isso pois, ainda como nos orienta Netto, […] uma questão crucial reside em descobrir as relações entre os processos ocorrentes nas totalidades constitutivas tomadas na sua diversidade e entre elas e a totalidade inclusiva que é a sociedade burguesa. Tais relações nunca são diretas; elas são mediadas não apenas pelos distintos níveis de complexidade, mas, sobretudo, pela estrutura peculiar de cada totalidade. Sem os sistemas de mediações (internas e externas) que articulam tais totalidades, a totalidade concreta que é a sociedade burguesa seria uma totalidade indiferenciada e a indiferenciação cancelaria o caráter do concreto, já determinado como “unidade do diverso” (NETTO, 2011, p. 57, grifo nosso). Salta, portanto, à vista a importância de identificarmos categorias que espelhem as mediações, internas e externas, estabelecidas entre os distintos níveis de complexidade e as diferentes totalidades que compõem a totalidade maior e inclusiva que é a sociedade burguesa. A categoria padrão de reprodução do capital, por sua vez, se revela como uma dessas categorias de mediação e que está, segundo Osorio (2012), no que tange à nível de abstração, abaixo de categorias como modo de produção capitalista e sistema mundial, mas acima de categorias como formação econômico-social e conjuntura e, por isso, é capaz de estabelecer a mediação entre elas4. Antes de nos aprofundarmos mais nisso, cabe, no entanto, dizer que, assim como a realidade concreta se compõe de níveis de complexidade diversos, o que exige níveis de abstração diversos para sua análise e compreensão, podemos também dizer que ela é composta por, basicamente, duas esferas opostas identificadas como aparência e essência.5 As duas são importantes para a apreensão da realidade da sociedade burguesa, dada a necessidade da apreensão da totalidade dessa realidade já destacada. Porém, aquela capaz de revelar as conexões íntimas que estruturam a realidade fazendo-a se apresentar como ela se apresenta na esfera da aparência é a sua essência. Em última instância, é esta que determina suas formas de manifestação, portanto. Ou seja, aquilo que aparece de forma imediata diante de nossos olhos e em nossa consciência. Com isso estabelecido, devemos nos indagar como então identificar a essência que compõem as devidas totalidades e os fatores lógicos, históricos e espaciais que governam 4 Cada uma destas categorias encontram sua explicação em minha dissertação, aqui citada na nota 1. 5 Para esclarecer a diferença entre a essência e a aparência das relações capitalistas, recomenda-se a obra em dois volumes de Reinaldo Carcanholo: Capital: essência e aparência (2011, 2013), publicada pela editora Expressão Popular.. 3 a estrutura interna das dinâmicas sociais capitalistas. A resposta a esta indagação perpassa, primeiramente, pelo conhecimento mais exato dos atributos que qualificam algo como essencial em uma realidade, para que, assim, ao longo da análise, ele não nos passe despercebido, ou mesmo não venhamos a confundir o aparente tomando-o como essencial. Saad Filho (2011, p. 22) nos ajuda nessa tarefa nos apontando, antes de tudo, que a essência é “o aspecto objetivamente mais geral dos particulares”, o que equivale a dizer que ela é a lei que governa a estrutura interna destes mesmos particulares que conformam a realidade. Ainda nesse sentido, o autor nos diz que a essência deve incluir “os aspectos lógica e historicamente determinantes dos particulares”, e por isso se faz “chave de suas relações internas”. Compreendemos com isso que, apreender qualquer totalidade, desta forma, perpassa por identificar sua lógica e sua história a partir de sua essência, a fim de nos fazermos capazes de obter o sentido dos seus elementos e relações particulares que, à primeira vista, aparecem dispersos e desconectados. Três características da essência, segundo Saad (2011, p. 22), são fundamentais ter em conta para a execução dessa tarefa: i) ela é uma categoria lógica que fornece as mediações básicas para a reconstrução do concreto no pensamento; ii) ela é a fonte real ou atual (em vez de apenas teórica ou ideal) dos particulares; e iii) ela é um resultado que emerge historicamente. Vale apontar, no entanto, queisso não implica que a essência é sempre um ente separado, que se encontra atrás ou sob os fenômenos, mas pelo contrário, nos diz que a essência existe apenas nos fenômenos e através deles, não sendo estes somente a manifestação daquela mas, sobretudo, a forma pela qual a essência existe. De acordo com isso, segundo Osorio (2012), a compreensão da essência dos fenômenos implica em ignorar certos aspectos do movimento histórico que são contingentes ou secundários, a fim de apreender, em maior nível de abstração, as relações sociais e processos que fundamentam a realidade social. Contudo, cabe ressaltar, tal abstração não deixa de ser fortemente histórica e real. Como exemplo do modo de existência da essência na sociedade burguesa manifestando-se a partir de sua variedade fenomênica, Osorio (2012, p. 38) nos aponta que “O capital se apresenta como muitos capitais; o trabalho, como muitos trabalhadores; o valor se apresenta como preços; a mais-valia, como lucro”, o que indica que, conforme diminuímos o nível de abstração e aumentamos o nível de concretude com que estamos analisando a realidade, esta se mostra mais variada e complexa e, segundo Osorio (2012, p. 38), “devido à fetichização dominante, com uma elevada capacidade de ocultar as relações sociais que a 4 constituem.”. Nesse sentido, transpor o fetiche que, na sociedade capitalista, se apresenta como fetiche da mercadoria6, é um dos grandes desafios a se superar para se captar, para além da esfera da aparência, a essência dessa realidade. Com base nestas considerações, podemos sumariar os procedimentos necessários para a análise dialética materialista das mediações fenomênicas constitutivas do real, em vista de apreender a essência deste último, tal como indica Saad Filho (2011), da seguinte forma: primeiramente, partir do ponto que os fenômenos ou as particularidades que constituem a realidade concreta são condicionados por essências comuns que se manifestam e existem a partir deles. Segundo, que a relação verificada entre essência e fenômeno perpassa por uma série de mediações como estruturas sociais, leis, tendências, contratendências, eventos contingentes, constituindo diferentes níveis de complexidade. Terceiro, a compreensão da realidade concreta deve partir da essência e identificar as mediações que fazem com que cada parte tenha relação com o todo. Esta forma de proceder aponta para a necessidade e importância de estudos históricos que desvendem as estruturas e contradições da realidade concreta no lugar de se fixar em estruturas puramente conceituais. Como diz Saad, “Esse procedimento permite a reprodução da realidade enquanto expressão mental da articulação real dos fenômenos.” (SAAD FILHO, 2011, p. 27, grifo meu). Para isso, vê-se necessidade de uma categoria de mediação como a de padrão de reprodução do capital, que permita enfrentar o problema de se integrar a análise da valorização do capital com as formas materiais que este assume ao encarnar-se em determinados valores de uso. Em suma, portanto, o que a categoria padrão de reprodução do capital nos possibilita é transpor as limitações mentais impostas pelo fetichismo da mercadoria para vermos como a lei do valor se conforma na complexidade do real concreto especificamente, a partir da captação da essência deste real e das mediações que o acompanham. 6 O caráter fetichista da mercadoria é analisado por Marx e descortinada suas origens no final (item 4) do capítulo 1 do Livro I d’O Capital. Ali, Marx ([1867] 2013, p. 147-8) nos diz que “O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores.”. Logo, a relação social entre os próprios homens, sob o domínio do valor, assume para eles a “forma fantasmagórica” de uma relação entre coisas. Análogo ao mundo religioso, diz Marx, em que “os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens”, assim aparecem às mercadorias, produtos do trabalho humano, na sociedade burguesa, ou seja, sob o véu do fetiche. Eis aí o que Marx chama de fetichismo da mercadoria. 5 Neste sentido, procurando dar fundamentação teórica à categoria padrão de reprodução do capital e oferecendo um caminho possível para sua análise, Osorio (2012) assume que no seio da teoria marxista existe uma dimensão teórica de mediação não preenchida que essa categoria permite enfrentar. A partir do pressuposto metodológico e epistemológico marxista da totalidade que aqui recuperamos e elucidamos, Osorio (2012), primeiramente, detecta uma atividade unificadora presente na vida em sociedade: a lógica do capital. Esta, segundo o autor, é a que confere sentido aos múltiplos processos que aparecem, à primeira vista, de maneira dispersa, desconectados. O resgate epistemológico da totalidade e a colaboração no trabalho de mediação das relações que aí se estabelecem internamente, confrontando totalidades constitutivas diversas não só umas às outras, mas à totalidade maior que as inclui, que é a sociedade burguesa, é, portanto, o que embasa o trabalho e o desenvolvimento da categoria padrão de reprodução do capital, no sentido de possibilitar a melhor apreensão da realidade concreta, determinada, em última instância, pela lei do valor, a qual comanda a produção, acumulação e reprodução do capital. REFERÊNCIAS CARCANHOLO, R. Capital: essência e aparência. Vol. 1. São Paulo: Expressão Popular, 2011. CARCANHOLO, R. Capital: essência e aparência. Vol. 2. São Paulo: Expressão Popular, 2013. MAGALHÃES, W. C. Do padrão de reprodução do capital nas economias dependentes: a Teoria Marxista da Dependência e a construção de uma categoria de mediação de análise. 2019. 182 f. Dissertação (Mestrado em Economia) – Programa de Pós-Graduação em Economia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019. MARX, K. [1867]. O Capital: crítica da economia política, Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013. MÉSZÁROS, I. Totalidade. In: BOTTOMORE, T. (editor). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011. OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias Seibel (Orgs.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012. 6 SAAD FILHO, A. A. O valor de Marx: economia política para o capitalismo contemporâneo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.
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