diz respeito à necessidade dos titulares de direi- tos apoderarem-se das conquistas populares institucionalizadas em tratados internacionais e nas constituições nacionais, pois esses tratados e normas, justamente por consagrarem direitos, impõem obrigações aos países para a garantia dos direitos neles consagrados. O apoderamento das normas, tratados, instrumentos e da linguagem de direitos humanos é fundamental para o fortalecimento da luta por direitos e contribui para a criação de atores sociais que podem intervir de forma mais veemente na vida política de seu país e que sejam sujeitos de direitos, donos de sua própria história. 129 Ponderações sobre a importância do apoderamento e do uso de instru- mentos de exigibilidade para a realização progressiva do DHAA Foram apontados, neste documento, alguns instrumentos e instituições que podem ser usados para exigir direitos. É importante, porém, refletir sobre a importância do apoderamento e do uso desses instrumentos para a realização progressiva dos direitos humanos. O apoderamento e a utilização de instrumentos de exigibilidade para cobrar a realização de direitos humanos, principalmente dos direitos econômicos, sociais e culturais, é imprescindível para garantir que os poderes públicos sejam mais justos e mais eficazes para com a realização concreta destes direitos fundamentais. Além disso, o uso de instrumentos de exigibilidade: • Evidencia ações ou omissões violadoras do Estado, que ficam documentadas através dos instru- mentos jurídicos. • Provoca nova interpretação sobre os direitos - um exemplo é a nova leitura sobre o direito à propriedade que começa a ser entendido não só como o direito de manter a propriedade, mas, antes de tudo, o direito de ter acesso à propriedade, principalmente quando esta é uma condição para sobrevivência. Essa interpretação é inspirada em ações de movimentos sociais e começa a ser desenvolvida por juristas.(4) • Evita a criminalização dos movimentos sociais. Sabe-se que desde a luta por direitos tra- balhistas, iniciada há centenas de anos, há criminalização de movimentos sociais. O uso dos instrumentos pelos movimentos sociais significa o oposto: responsabilizar os detentores do poder por práticas arbitrárias e contrárias aos direitos humanos por meio dos mecanismos do próprio Estado. Ao mesmo tempo, passa-se a reconhecer lideranças de movimentos sociais como defensores de direitos humanos, que devem ser protegidos pelo Estado. É sempre legítimo exigir direitos através da contestação e resistência a ações opressoras que violam direitos humanos. A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, dispõe que “É essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a ti- rania e a opressão”. Assim, movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o movimento de mulheres, o movimento indígena, o movimento negro, os movimentos urbanos, entre outros, não devem, jamais, ser criminalizados quando vão às ruas ou usam estratégias com base no direito de resistência para exigir o respeito à dignidade humana. Ao fazer isto eles e elas estão exercendo o papel de defensores de direitos, e como tal devem ser respeitados e protegidos pelo Estado, e não criminalizados. Foram lutas como essas que possibilitaram a criação e o fortalecimento de mecanismos do próprio Estado para a garantia e exigibili- dade de direitos. E são essas lutas a principal garantia de respeito e promoção dos direitos humanos no Brasil e no mundo. MÓDulo V aula 2 130 • É uma forma eficaz para que, progressivamente, sejam excluídas dos organismos públicos, práticas contrárias aos direitos humanos (assistencialismo, paternalismo, dentre outras). Nesse contexto, o desafio de garantir que os titulares de direitos se apoderem da abordagem de direitos humanos, dos instrumentos de exigibilidade e do uso destes instrumentos para o processo de realização de seus direitos, é uma das tarefas mais importantes, pois é o que vai garantir a exigibilidade de direitos perante os órgãos públicos. É importante ressaltar que, muito mais do que apropriação de conhecimentos técnicos sobre direitos, o processo de apoderamento implica em uma apropriação política por parte dos sujeitos de direito, ou seja, é fundamental entender o contexto político que gera violações de direitos (ausência do Estado, correlação de forças desfavoráveis, posição da sociedade civil, entre outros) e buscar caminhos eficazes para superar essa situação (5). Apoiando a capacidade de grupos e comunidades se apoderarem dos instrumentos de direitos humanos para fortalecer sua luta Jean Pierre Leroy ressalta que, embora usemos o termo “vítimas”, as coletividades que têm seus DHESC violados não podem ser consideradas como “vencidos e impotentes”. Ressalta ainda que essas “vítimas” despertam facilmente para seus direitos quando elas têm a possibilidade de ex- pressar suas necessidades e quando têm possibilidade de se mobilizar (6). É importante considerar que, ainda que uma parte dos grupos e populações que têm seus direi- tos humanos violados esteja mobilizada e tenha algum grau de organização para exigir os seus direitos, parte dessas populações enfrenta enormes dificuldades até mesmo para ter condições mínimas de sobrevivência, dificultando as possibilidades reais e concretas de envolver-se em um processo organizativo, com força suficiente para mudar suas realidades. Certos grupos, princi- palmente comunidades empobrecidas que não têm acesso a direitos mínimos necessários para sobrevivência, como alimento, moradia, saúde, educação, entre outros, nem sempre estão mobi- lizados e a situação de pobreza em que vivem é “naturalizada” pela sociedade em geral. Na prática, o processo de mobilização de comunidades em situação de pobreza para ações de apoderamento, informação e exigibilidade não é um processo simples, pois apesar de expres- sarem o senso de estarem sendo injustiçados, muitos não vêem a situação de miséria como um conflito que exige enfrentamento - e que pode ser superado - com a garantia de direitos e cumprimento de obrigações por parte das autoridades públicas. Esse sentimento é reforçado pelo processo de exclusão a que são submetidas essas populações e, reforçado, muitas vezes, por experiências prévias mal-sucedidas dessas populações com o poder público - e com o Judiciário em particular -, que em alguns casos chegam até a criminalizar a pobreza. MÓDulo V aula 3 131 A “naturalização da pobreza” e a tentativa de responsabilizar as comunidades e pessoas em- pobrecidas pelas violações de direitos a que são submetidas são mecanismos ideológicos de manutenção da exclusão e da exploração. Culpar os pobres por sua situação é uma forma de “desresponsabilizar” o poder público, as elites sociais e econômicas e o processo histórico que gerou essa situação de exclusão. Essa maneira de ver o mundo, portanto, constitui-se em forte obstáculo à apropriação dos instrumentos de exigibilidade existentes. De certa forma a desres- ponsabilização, além de abrir espaço para “justificar” o não cumprimento das obrigações por parte do poder público, paralisa essas comunidades, individualiza os problemas e as responsabili- dades. Isso tudo acaba por limitar sua capacidade de cobrar o comprometimento das autoridades responsáveis em cumprir com suas obrigações. Ao mesmo tempo, pode levar a uma redução da pressão da sociedade como um todo, que deixa de se sentir responsável pela superação dessa situação. Muitas vezes, a formação dos titulares de direitos por si só não é suficiente para garantir que estes interiorizem sua condição de sujeito de direitos, especialmente se os instrumentos e ins- tituições de defesa e exigibilidade de direitos humanos (Ministério Público, Defensoria Pública, Conselhos, CONSEA, etc.) não estiverem disponíveis e funcionando de forma