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IMPRIMATUR Mechliniae, 26 Novembris 1928 J. Thys, can., lib. cens. DIREITOS DESTA VERSÃO RESERVADOS A EDITORA AVE-MARIA PRÓLOGO Leitor amigo: Se o livro “Imitação de Cristo” lhe é familiar, antes de ler esta nova tradução, preste atenção a estas palavras para melhor apreciar tão valioso tesouro. Se, por descuido, ainda não gostar desta santa leitura, não desdenhe do que por acaso aqui ler; e, se bem refletir, conhecerá quanto tem perdido em não se aproveitar de um meio tão seguro de santificação. Depois do Evangelho, que vem de Deus, de todos os livros que saíram das mãos do homem, o mais admirável e o mais popular é a “Imitação de Cristo”: nenhum outro mereceu maior estima entre os homens, nem parece mais bem feito para cada um deles, quando o leem. Este livro não é obra engenhosa do saber humano, no posto que o seu autor conheça a fundo o nosso coração e saiba falar-lhe a linguagem de suas aspirações íntimas; é a efusão de uma alma iluminada do céu e penetrada do profundo sentimento das coisas divinas. O estilo é simples, sem enfeite, e por vezes incorreto; porém, a força e a majestade dos pensamentos imprimem-lhe uma espécie de grandeza maravilhosa, que eleva a alma, derrama nela celestial unção, e como que a encanta com os dons do Espírito Santo. Homens sábios e santos escreveram admiráveis tratados sobre a vida espiritual, mas nenhum deles excedeu, nem ainda se igualou, ao humilde autor da “Imitação de Cristo”. Na verdade, é um mestre na sabedoria divina: ninguém, antes dele, soube melhor expor a sublime e saudável filosofia da piedade cristã, nem depois dele ninguém deu melhores regras para a perfeição evangélica. Descreve-nos com vivas cores o lamentável estado a que o pecado nos reduziu, e com suave eloquência nos impulsiona para que saiamos dele; mostra-nos com afeto a necessidade que temos de nos desapegarmos das coisas mundanas e cativa-nos com a beleza dos bens celestiais; explica-nos como podemos chegar venturosamente ao termo da vida, o que sem dificuldade alcançaremos procurando o Criador pela oração e unindo-nos intimamente a ele pelo amor, de sorte que venhamos a ser homens endeusados, como Jesus Cristo é Deus encarnado. Se ler com atenção este precioso livro, verá, leitor amigo, com que sedutora verdade descreve o seu autor as misérias e as grandezas do homem, a fragilidade de nossas alegrias terrestres e a riqueza de nossas imortais esperanças! Sua mão, como a de um sábio médico, sonda as chagas de nossa natureza, ferida pela culpa original e de novo maltratada por nossos crimes. Assinala as enfermidades e doenças de nossa alma, os desejos que nos agitam, a presunção que nos cega, as incertezas e contradições em que nosso espírito desmaia, as tempestades que o vento das paixões levanta em nosso coração, a guerra, os quais, de contínuo, fazem nossos instintos pervertidos. E ao mesmo passo que a sua ciência descobre os males, o seu zelo indica o remédio: toma, como pela mão, o homem pecador e imperfeito e o leva gradualmente ao subido ponto das mais extremadas virtudes. Olha como ensina, com sua linguagem persuasiva, a fugir de tudo que tira ou diminui a amizade de Deus, a emendar as imperfeições e a falta de fervor pela oração e vida mortificada, a buscar e descobrir nas pisadas de Jesus o caminho da virtude, a luz que desperta e alimenta as resoluções generosas, a fortaleza que nos sustenta no adiantamento da piedade cristã! Repara, leitor amigo, como o autor da “Imitação”, iluminado com o clarão da fé, nos instrui por este modo na ciência dos santos e nos traça a vereda luminosa pela qual podemos chegar à perfeição evangélica. Abre diante de nós os horizontes do mundo sobrenatural e as perspectivas da eternidade, e convida-nos a percorrer com ardor o caminho por onde a Providência nos chama. E, receando não venha o orgulho intrometer-se em nossos progressos, para tudo perverter, sua voz grave nos faz lembrar que o homem nada é por si mesmo, e que só a oração humilde e fervorosa é capaz de inclinar o coração de Deus a favor de nossa profunda miséria e de fazer-nos merecer participar de seus dons celestiais. Então prega a humildade, a abnegação, a vida laboriosa da cruz, o desapego dos bens sem valor, a vida interior e oculta, finalmente tudo o que pode comover a misericórdia de Deus e provocar a efusão de suas graças. Então insiste com força sobre a obrigação que temos de sofrer e perdoar mutuamente as injúrias, de manter paz sacrificando ao bem geral o interesse particular e o amor próprio, de nos resignarmos inteiramente em Deus, em todas as situações e sucessos da vida, finalmente de reproduzirmos, em nós mesmos, quanto seja possessível, a imagem augusta daquele que, sendo sumamente perfeito, não se dignou de chamar-se nosso Pai e ser nosso modelo. Este alto ensino nos é dado por tão sábio mestre com uma elevação acompanhada de candura, que encanta nossa alma e docemente a cativa; suas palavras só respiram verdade ingênua, revestida de suavidade, de graça e de força. Se ler com atenção tão devoto autor, sentirá insensivelmente render-se ao seu pensamento e arrebatar-se com ele, e descer a seu peito como um fogo sagrado que o abrasa e dos olhos lhe brotam suaves lágrimas. Verá como sabe penetrar nos mistérios do sentimento religioso, mostrando a fonte de onde emana o arrependimento que purifica, a fé que salva, a esperança que anima e a caridade que justifica e aperfeiçoa! Com que acerto ele não reproduz todas as vozes da consciência humana! A tristeza causada pelos desgostos da vida e pela aflição da morte, as angústias do pecador que lava com abundantes lágrimas as manchas de suas passadas culpas, os lamentos do cristão desterrado neste vale de lágrimas que suspira pela pátria celestial, os amorosos transportes do justo, provado com tentações e trabalhos, que, na mesa Eucarística, busca o alimento de seu valor, e se consola de seus sofrimentos pela grandeza de sua caridade! Com que arte não sabe ele despertar e nutrir na alma o sentimento das coisas divinas e da bem-aventurada eternidade! Como transporta acima das realidades grosseiras e perecíveis! E, semelhante à águia que ensina os seus filhinhos a voar, como a arrebata, em seu poderoso voo, para as alturas celestes, para a morada da luz eterna, para o castelo do amor sublime em que Deus beatifica os seus escolhidos! Se alguma vez ouvir criticar a nobre doutrina da “Imitação de Cristo”, e duvida que sua leitura produza o saudável fruto de que lhe falo, veja o que escreveu um filósofo, outrora alucinado com as vaidades do mundo, mas em quem não se apagara de todo a luz da fé: “Estava preso”, diz La Harpe, “só, em um quarto sombrio e profundamente triste. “Havia já dias que tinha lido os Salmos, os Evangelhos e alguns bons livros. “Seu efeito foi rápido, posto que graduado. Estava já restituído à fé; via uma luz nova; mas ela me causava espanto e me consternava, mostrando-me um abismo, o de quarenta anos de extravios! Via todo o mal, e nenhum remédio: nada em torno de mim me oferecia os auxílios da religião. De um lado, minha vida estava diante de meus olhos, qual eu a via com o facho da verdade celeste; e do outro, a morte, que todos os dias esperava, medonha e feia como então se recebia. Sobre o cadafalso já não se via o ministro de Deus para consolar o padecente; não subia ali senão para morrer. Combatido o meu coração por estas tristes ideias, eleva-se a Deus, a quem eu mal conhecia, e de meus lábios saíam a furto estas meias palavras: Que devo eu fazer? Que será de mim? Tinha eu em cima da mesa a ‘Imitação’, e tinham-medito que neste excelente livro eu acharia muitas vezes a resposta a meus pensamentos. Abro-o, e deparo-me ao acaso com estas palavras: Eis-me aqui, filho meu! Venho a ti porque me invocaste! Não li mais: a impressão súbita que experimentei é acima de toda expressão, e não me é mais possível exprimi-la que esquecê-la. Caí com o rosto em terra, banhado em lágrimas, sufocado em soluços, dando gemidos e vozes entrecortadas. Sentia meu coração consolado a dilatar-se, mas ao mesmo tempo pronto a partir-se. Assaltado de um tropel de ideias várias e de sentimentos os diversos, chorei largo tempo, sem que me restasse outra lembrança desta situação a não ser que meu coração não experimentou nunca impressão mais violenta nem mais deliciosa, e que estas palavras Eis-me aqui, filho meu! não cessavam: de retinir em minha alma e de comover poderosamente todas as minhas faculdades.” Não espere que te diga, leitor amigo, quem é o autor da “Imitação”, pois há mais de um século que os sábios lidam por saber ao certo quem é ele, mas até aqui suas pesquisas têm sido frustradas. Uns a atribuem a Kempis, cônego regrante de Santo Agostinho; outros a Gersen, abade do mosteiro de Vercelles, no Piemonte; outros a Gerson, cancelário da Universidade de Paris. Críticos modernos supõem, não sem algum fundamento, que a “Imitação”, qual hoje a temos, não é obra de um só autor, mas de vários, e que fora composta cada uma de suas partes em diferentes épocas. É indubitável que os dois primeiros livros foram escritos por um abade de monges para uso de seus religiosos, talvez Gersen; pode muito bem ser que o terceiro, que tem por título Consolação Interior, seja obra de Kempis; e que enfim Gerson compusesse o quarto, O Sacramento do Altar. Deste modo, três insignes arquitetos tenham parte neste admirável edifício. Quanto a esta tradução, você mesmo julgará, comparando-a com o texto latino e com as outras que correm impressas; só lhe direi que fiz quanto pude para que fosse fiel, clara e concisa, sem outro enfeite que não o que pede a elegância da nossa língua. No fim dos capítulos, coloquei algumas piedosas reflexões, coletadas de bons autores, em que achará úteis documentos e algumas aplicações aos tempos em que vivemos, de fé morta, de indiferença descuidada e de caridade sem fervor. Achará no fim do índice uma tabela em que se indicam as leituras e orações que deve fazer, segundo as situações em que se achar, e particularmente para receber de maneira digna o sacramento da Eucaristia. Possam todas estas coisas contribuir para o adiantamento espiritual de sua alma, o aperfeiçoamento de sua virtude e a consumação de sua santidade. J. I. ROQUETE LIVRO PRIMEIRO Avisos úteis para a Vida Espiritual CAPÍTULO I Da imitação de Cristo e do desapego das vaidades do mundo 1. “Quem me segue não anda em trevas” (Jo 8,12). São palavras de Cristo, com as quais nos adverte que imitemos sua vida e costumes, se quisermos verdadeiramente ser esclarecidos e livres de toda a cegueira de coração. Seja, pois, nosso principal desempenho meditar a vida de Jesus Cristo. 2. A sua doutrina excede a de todos os santos; e quem possuir o seu espírito, nela achará o maná escondido. Acontece, porém, que muitos, ainda aqueles que frequentemente ouvem o Evangelho, sentem nele pouco gosto e tiram pouco proveito, porque não têm o espírito de Cristo. Quem quiser compreender com satisfação e proveito as palavras de Jesus Cristo deve conformar sua vida com a dele. 3. Que te aproveita discorrer com sabedoria sobre a Trindade, se não é humilde, e por isso lhe desagrada? A verdade é que não são palavras sábias que fazem o homem santo ou justo, mas sim é a vida virtuosa que o faz agradável a Deus. É preferível sentir o remorso do que saber defini-lo. Ainda que soubesse de cor toda a Bíblia e os ditos de todos os filósofos, que te aproveitaria tudo isto sem o amor e a graça de Deus? Vaidade das vaidades, tudo vaidade, exceto amar a Deus e só a ele servir (Ecl 1,2). A essência da sabedoria é, pelo desprezo do mundo, caminhar para o reino dos céus. 4. É vaidade, pois, buscar riquezas mortais, e colocar nelas a esperança. Vaidade é também desejar honras e extinguir-se com elas. Vaidade é seguir os apetites da carne e desejar aquilo pelo que depois há de ser gravemente castigado. Vaidade é desejar vida longa, sem cuidar de que seja boa. Vaidade é também olhar somente a esta presente vida e não prever o que virá depois. Vaidade é amar o que tão depressa passa e não buscar com fervor a felicidade que sempre dura. 5. Lembre-se sempre daquele provérbio: “A vista não se farta de ver, o ouvido nunca se sacia de ouvir” (Ec1 1,8). Procura, pois, desapegar seu coração das coisas visíveis e afeiçoá-lo às invisíveis, porque os que seguem os atrativos dos sentidos mancham sua consciência e perdem a graça de Deus. REFLEXÕES Não temos neste mundo senão um só interesse: o da nossa salvação, e ninguém pode salvar-se senão em Jesus Cristo e por Jesus Cristo; a fé em sua palavra, obediência a seus mandamentos, à imitação de suas virtudes, eis a vida do verdadeiro Cristão; não há outra; o mais é vaidade. “Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol?” (Ecl 1,3) Riquezas, prazeres, honras, que é tudo isso, quando se lança o corpo na sepultura e a alma vai para a sua eternidade? Pense nisto seriamente desde hoje, porque amanhã talvez já seja tarde! Trabalhe enquanto é dia, antes que chegue a noite eterna! Acumule riquezas que não perecem, nem os ladrões roubam. Estéreis desejos não o salvarão: Deus só quer obras. Imite, pois, a Jesus, se quer fazer obras que agradem a Deus e te mereçam viver eternamente com Jesus. No estudo de sua vida, aprenderá de que pouca valia são palavras e doutrinas bem ditas sem a prática de boas obras. Dai-me, Deus meu, o santo propósito de imitar vosso divino Filho e meu Senhor Jesus Cristo; purificai minha intenção conforme o desejo que me dais, de maneira que todo eu, de dentro e de fora, só a vós olhe, a vós contemple, a vós ame, por vós suspire e em vós descanse. CAPÍTULO II Do humilde sentimento de si mesmo 1. Todos os homens naturalmente desejam saber. Mas, para que serve a ciência sem o temor de Deus? Sem dúvida que é preferível o humilde camponês que serve a Deus; ao orgulhoso filósofo que observa os movimentos dos céus. Aquele que bem se conhece tem-se por vil e não se satisfaz nos louvores humanos. Se eu soubesse de tudo quanto há no mundo, mas não tivesse caridade, de nada me valeria diante de Deus, que me há de julgar segundo as minhas obras! 2. Não tenha demasiado desejo de saber, porque nele achará grande distração e engano. Os sábios gostam de ser tidos e aplaudidos por tais. Muitas coisas há cujo conhecimento pouco ou nada aproveita à alma, e muito insensato é quem se aplica exageradamente às coisas que não conduzem à salvação. As muitas palavras não satisfazem a alma; mas a boa vida lhe dá bem-estar, e a consciência pura causa grande confiança em Deus. 3. Quanto mais e melhor souber, com tanto maior rigor será julgado se não viver santamente. Por isso não se desvaneça por alguma arte ou ciência, mas tema antes o conhecimento que dela adquiriu. Se lhe parece que sabe muito e o entende muito bem, tem por certo que é muito mais o que ignora. “Não te ensoberbeças” (Rm 11,20), mas, pelo contrário, confesse a sua ignorância. Por que quer ter mais que os outros, quando há muitos mais cultos e sábios na lei de Deus que você? Se quer saber e aprender alguma coisa proveitosamente, deseja que não o conheçam nem o estimem. 4. O verdadeiro conhecimento e desprezo de si mesmo é altíssimo e utilíssimo. Grande sabedoriae perfeição é pensar cada um sempre bem e favoravelmente dos outros, e ter-se e reputar-se em nada. Se vir alguém pecar publicamente, ou cometer culpa grave, não deve julgar; porque não sabe quanto tempo poderá perseverar no bem. Todos somos fracos; mas não considere ninguém mais fraco do que você. REFLEXÕES A soberba derrubou o homem. Só a humildade pôde levantá-lo e restabelecê-lo em graça com Deus. Seu mérito não está no que ele sabe, senão no que ele faz. A ciência sem as obras não o justifica no tribunal supremo, antes agravará sua sentença. Não deixa a ciência de ter suas vantagens, pois vem de Deus; mas esconde um grande laço e uma grande tentação: “A ciência incha”, diz São Paulo; ela alimenta a soberba, inspira uma secreta preferência de si própria, preferência criminosa e, ao mesmo tempo, louca, porque a mais vasta ciência não é mais que outro gênero de ignorância, e a verdadeira perfeição consiste unicamente nas disposições do coração. Não esqueçamos nunca de que somos nada e nada possuímos de próprio senão o pecado, que a justiça quer nos abaixemos entre todas as criaturas, e que no reino de Jesus Cristo, “os primeiros são os últimos e os últimos serão os primeiros” (Mt 19,30). Oh! Meu Deus, quantas vezes amigo de mim e esquecido de vós, esvaeço-me como os fumos do mundo! Dai-me, Senhor, o verdadeiro espírito de humildade, a fim de que, sendo no mundo o último dos homens, possa entrar com os primeiros no reino de vosso divino Filho no Céu. Amém. CAPÍTULO III A doutrina da verdade 1. Feliz aquele a quem a verdade ensina, não por figuras e palavras que passam, mas como é em si. Nossa razão e nossos sentidos frequentemente nos enganam e é bem pouco o que conhecem. De que serve a especulação sutil sobre coisas ocultas e obscuras, se, por ignorá-las, não seremos acusados no dia do juízo? Grande loucura é desprezarmos as coisas úteis e necessárias, para nos aplicarmos com gosto às curiosas e nocivas. Tendo olhos, não vemos! 2. Que nos importa o que se diz sobre os gêneros e as espécies? Aquele a quem fala o verbo eterno é libertado de muitas incertezas. Deste verbo único procedem todas as coisas, e tudo nos fala desse verbo único, e ele é também o princípio que nos fala interiormente (Jo 8,25). Sem ele ninguém entende ou julga retamente. Aquele para quem Deus é tudo, que tudo a Deus refere e nele vê tudo, pode estar firme em seu coração e permanecer em paz no seio de Deus. Oh, Deus de verdade! Fazei-me um só convosco em caridade perpétua! Aborrece-me muitas vezes ouvir e ler muitas coisas: em vós acho tudo quanto quero e desejo. Calem-se todos os doutores: emudeçam as criaturas todas em vossa presença: falai-me vós somente. 3. Quanto maior for o recolhimento e a simplicidade do coração, mais e maiores coisas entenderá sem esforço; porque de cima recebe a luz da inteligência. O espírito puro, singelo e constante não se distrai, ainda que se ocupe em muitas coisas; porque tudo faz para honra de Deus e em nada procura o próprio interesse. Que mais te impede e perturba que a afeição de seu coração não mortificada? O homem bom e fiel a Deus regula no seu interior o que há de fazer exteriormente. Assim, não se deixa em suas ações arrastar por alguma inclinação viciosa; mas ele as submete ao arbítrio da reta razão. Quem tem maior combate que aquele que se esforça por vencer-se a si mesmo? Este deveria ser nosso principal empenho: vencer a nós mesmos, e tornarmo- nos cada dia mais fortes e melhores. 4. Toda a perfeição, nesta vida, é misturada de imperfeição; como todas as luzes são mescladas de sombras. O humilde conhecimento de você mesmo é um caminho mais certo para ir a Deus que o esquadrinhar à profundidade da ciência. Não se deve condenar a ciência, nem qualquer conhecimento, porque, considerados em si, são bons e ordenados por Deus; mas sempre lhes há de antepor a boa consciência e a vida virtuosa. Muitos, porém, estudam mais para saber bem viver, por isso erram a cada passo, ou nenhum fruto colhem de seus estudos. 5. Oh! Se eles pusessem tanto cuidado em arrancar os vícios e plantar as virtudes como põem em mover questões, não se veriam tantos males e escândalos no povo, nem haveria tanto desregramento nos mosteiros. Certamente, no dia do juízo, não será perguntado a nós o que lemos, mas o que fizemos; nem quanto bem temos falado, mas quanto honestamente temos vivido. Diga-me, onde estão agora aqueles senhores e mestres que conheceu quando viviam e floresciam nos estudos? Outros ocupam seus lugares e talvez não haja quem se lembre deles. Em suas vidas pareciam alguma coisa; e hoje já ninguém fala deles. 6. Oh! Como passa depressa a glória do mundo! Quisera Deus que suas vidas estivessem de acordo com sua ciência! Então teriam lido e estudado bem. Quantos se perdem neste mundo por sua vã ciência, pouco se importando com o serviço de Deus? E por quererem ser grandes em vez de humildes, fazem-se vãos em seus pensamentos. Verdadeiramente grande é aquele que tem um grande amor. Verdadeiramente grande é o que a seus olhos é pequeno e avalia em nada a maior honra. Verdadeiramente prudente é aquele “que tem por imundície todas as coisas terrenas para ganhar a Jesus Cristo” (Fl 3,8). Verdadeiramente sábio é aquele que faz a vontade de Deus e renuncia à sua própria. REFLEXÕES Há duas doutrinas, mas não há senão uma só verdade Há duas doutrinas, uma de Deus, imutável como ele, outra do homem, mutável como ele. A sabedoria incriada, o verbo divino espalha a primeira nas almas preparadas para recebê-la; e a luz que lhe comunica é uma parte dele mesmo, de sua verdade substancial e sempre viva. A todos se oferece, mas com mais abundância se comunica ao humilde de coração; e como dele não vem, nem de seu entendimento depende, possui sem ser tentado de vã complacência em possuí-la. A doutrina do homem, pelo contrário, adula seu orgulho, pois ele é seu autor: “Esta ideia é minha; eu fui o primeiro que disse isto; nada se sabia a este respeito antes de mim”. Espírito soberbo, eis aqui sua linguagem. Mas bem depressa contestarão a essa poderosa razão, que faz sua alegria; rirão de suas ideias falsas que ele tinha por verdadeiras, de suas descobertas imaginárias; no dia seguinte, já ninguém pensa em tal, e o tempo leva consigo até o nome do insensato que não viveu senão para ser imortal na Terra. Oh, Jesus, dignai-vos inspirar em mim a vossa verdade santa; preservai-a para sempre dos extravios da minha razão. CAPÍTULO IV Da prudência nas ações 1. Não se deve dar crédito a qualquer palavra, nem obedecer a todo o movimento interior; mas com prudência e vagar se deve, segundo Deus, examinar as coisas. Mas, infelizmente, muitas vezes cremos e dizemos mais facilmente dos outros o mal que o bem. Tão fracos somos! Porém, os homens perfeitos não creem facilmente em qualquer coisa que se lhes conte, porque conhecem a fraqueza do homem, inclinado ao mal e leviano em suas palavras. 2. Grande sabedoria é não ser o homem precipitado em suas decisões, nem demasiado apegado ao seu próprio parecer. A esta sabedoria também pertence não crer indistintamente em tudo o que os homens dizem, nem dizer logo a outros no que cremos e o que ouvimos. Toma conselho com o homem sábio e de boa consciência; e deseja antes ser ensinado por alguém melhor que você, que seguia seu próprio parecer. A vida virtuosa faz o homem sábio segundo Deus e experimentado em muitas coisas. Quanto mais humilde for cada um em si, e mais submisso a Deus, será mais sábio e pacífico em tudo. REFLEXÕES Sendo Deus o último fim de nossas ações, como de nossos desejos, é necessário, quando agimos, que evitemos abandonar os movimentos precipitados da natureza, cuja inclinação é tudo referir a si. E comoninguém conhece a si mesmo, não pode desde logo ser seu próprio guia; pede a sabedoria que não empreendamos coisa alguma de importância sem pedir conselho, e espírito de submissão e de humildade. Esta justa desconfiança de si próprio previne as quedas e purifica o coração: “O conselho te guardará, diz o sábio, e te tirará do mau caminho” (Pr 11,12). Se quiser ser bom discípulo de Jesus Cristo, procure a conversação com os servos de Deus, busque seu conhecimento e pratique com eles coisas divinas. CAPÍTULO V Da lição das Sagradas Escrituras Nas Sagradas Escrituras deve-se buscar a verdade e não a eloquência. Toda a Escritura deve ser lida com o mesmo espírito com que foi ditada. Devemos procurar na Escritura a utilidade, e não a sutileza da linguagem! Devemos ler com igual boa vontade tanto os livros singelos e devotos como os sublimes e profundos. Não se atenha à autoridade de quem os escreveu, nem procure saber se tinha muita ou pouca erudição; mas convide-se a ler o amor da pura verdade. Considere o que lhe dizem, sem se importar com quem o diz. 2. Os homens passam, mas a verdade do Senhor permanece para sempre (Sl 38,7; 116,2). Deus fala-nos de diversas maneiras e por diferentes pessoas. Muitas vezes somos perturbados pela nossa curiosidade, ao ler as Escrituras, por querermos esquadrinhar e discutir onde se deveria com simplicidade passar além. Se quiser aproveitar, leia com humildade, com simplicidade e com fé, e não deseje nunca o nome de letrado. Pergunte de boa vontade e ouça em silêncio as palavras dos santos; e não despreze as sentenças dos velhos, porque não as dizem sem causa. REFLEXÕES Que é o que a razão compreende? Quase nada; mas a fé abraça o infinito. O que crê está muito acima do que discorre, e a simplicidade do coração é preferível à ciência que alimenta a soberba. O desejo de saber foi quem perdeu o primeiro homem: buscava a ciência, achou a morte. Deus, que nos fala na Escritura, não quis satisfazer nossa curiosidade vazia, mas iluminar-nos acerca de nossos deveres, exercer nossa fé, purificar e nutrir nossa alma com o amor dos verdadeiros bens, que todos estão encerrados nele. A humildade de espírito é, pois, a disposição mais necessária para ler com fruto os livros santos; e já não é pouco compreender quanto eles são superiores à nossa razão fraca e limitada. Apareceu, luz divina, à gente que estava como em trevas pecados; aparece também ao meu espírito, quando leio e medito vossa palavra na Sagrada Escritura. Oh, luz divina que nunca escureça, oh, resplendor celeste que nunca se tenda às trevas, oh, dia formoso que nunca anoiteça, oh, sol brilhante que não se tenda ao anoitecer, caminhai com vossa formosura e entrai nesta alma que está desejosa de vossa claridade; enchei-a de vosso clarão divino para que em vós entenda a verdade, por vós a pratique e goze de vós, que sois a eterna verdade. CAPÍTULO VI Dos desejos desordenados 1. Todas as vezes que o homem deseja desordenadamente alguma coisa, perde o sossego. O soberbo e o avarento nunca estão sossegados; o pobre, o humilde de espírito vivem em muita paz. O homem que não é perfeitamente mortificado em si bem depressa é tentado e vencido em coisas pequenas e vis. O fraco de espírito e que ainda está inclinado ao que é sensual, com dificuldade pode desapegar-se totalmente dos desejos terrenos. E quando deles se abstém, recebe muitas vezes tristezas e até se enfada caso alguém o contradiga. 2. Porém, se alcança o que deseja, sente logo pesar sobre o remorso da consciência, porque seguiu o seu apetite, o qual de nada lhe aproveitou para alcançar a paz que buscava. É, portanto, na resistência às paixões que se acha a verdadeira paz do coração, e não as seguir. Não há paz no coração do homem sensual, nem no do que se entrega às coisas exteriores, mas no do que é fervoroso e espiritual. REFLEXÕES Um pesado jugo oprime os filhos de Adão, continuamente fatigados pelos apetites da natureza corrupta. Se porventura sucumbem, para logo a tristeza, a inquietação, o dissabor, o remorso se apoderam de sua alma. “Soberbo ainda no abismo da ignomínia, inquieto e cansado de mim mesmo, diz Santo Agostinho, contando as desordens da sua mocidade, apartava-me para longe de vós, oh, Deus meu! em caminhos semeados todos estéreis dores” (Confissões 11,12). Mais custa ao homem ceder às suas inclinações do que as vencer; e se o combate contra as paixões é renhido, dele resulta uma paz indescritível. Neste combate, chamemos o Senhor em nosso auxílio, não temamos o trabalho, cobremos ânimos, perseveramos firmes na fé e na esperança. O que é um dia, um ano, a vida toda em comparação ao bem- aventurado repouso da vida eterna? Como já era tarde quando vos conheci, formosura tão antiga e tão nova. Como já era tarde quando vos conheci e amei! Vinde em meu auxílio, Deus meu, dai-vos pressa em socorrer-me; sois a minha fortaleza nos combates e o meu refúgio no dia da tribulação. “Espere no Senhor e seja forte! Fortifique o seu coração e espere no Senhor” (Sl 26,14). CAPÍTULO VII Como se deve fugir da vã esperança e da soberba 1. É insensato o que põe sua esperança nos homens ou nas criaturas. Não se envergonhe de servir aos outros e parecer pobre neste mundo por amor de Jesus Cristo. Não confie em si mesmo, mas ponha em Deus a sua esperança. Não confie na sua ciência nem na astúcia de nenhum vivente, mas só na graça de Deus, que ajuda os humildes e abate os presunçosos. 2. Se tem riquezas, não se vanglorie delas nem dos amigos, ainda que sejam poderosos, mas em Deus que dá tudo, e sobretudo deseja dar-se a si mesmo. Não se orgulhe da forma ou beleza do seu corpo, que a mais leve enfermidade o deforma e corrompe. Não se desvaneça da sua habilidade e do seu talento, para que não desagrade a Deus, de quem procede tudo o que, naturalmente, tiver de bom. 3. Não se julgue melhor que os outros para que não seja talvez tido por pior diante de Deus, que sabe o que há no homem. Não se ensoberbeça com as suas boas obras, porque muito diferentes são os juízos de Deus dos homens e a ele muitas vezes desagrada o que a estes contenta. Se tiver algo de bom, pense que há muitos melhores que você, e assim conservará a humildade. Não há nenhum mal que se reconheça inferior a todos; mas muito danoso é se preferires a um só. De contínua paz goza o humilde; e no coração do soberbo reinam a inveja e a ira frequentes. REFLEXÕES Considerando a fraqueza do homem, a fragilidade da vida, os sofrimentos que de toda a parte o cercam, as trevas de sua razão, as incertezas de sua vontade sempre propensa ao mal, é para admirar que um só movimento de soberba possa elevar-se em uma criatura tão miserável; e, todavia, a soberba é o mesmo fundo da nossa natureza degradada! “A soberba, diz Santo Agostinho, separa-nos da sabedoria, faz com que queiramos ser nós mesmos nosso bem, como Deus é seu próprio bem; a tanto chega a loucura do crime!” (De Libero Arbitrio III, 24). Busca-se, então, o homem a si mesmo, e admira-se em tudo que o distingue dos outros e o engrandece a seus próprios olhos nas vantagens do corpo, do espírito, do nascimento, da riqueza e até da graça, abusando assim ao mesmo tempo dos dons do Criador e dos benefícios do Redentor. Oh, quanto devemos temer em nós o menor indício de vaidade e o louco desejo de nos preferirmos a um de nossos irmãos! Esqueçamos o fariseu do Evangelho, que desprezava o publicano, e digamos com este: “Meu Deus, tende compaixão de mim que sou um pobre pecador” (Lc 17,13). CAPÍTULO VIII Como se deve evitar a excessiva familiaridade 1. Não abra o seu coração a qualquer homem, mas trate seus problemas pessoais com um homem sábio e temente a Deus (Ecl 8,22). Seja reservado com os jovens e estranhos. Com os ricos não seja lisonjeiro; nem busque aparecer muito na presençados grandes. Procure o convívio dos humildes e dos simples, das pessoas devotas e de bons costumes, e trate com eles coisas de edificação. Não tenha familiaridade com mulher alguma; mas em geral encomende a Deus todas as que forem virtuosas. Deseje ser familiar só com Deus e seus anjos; e fuja de ser conhecido dos homens. 2. É necessário ter caridade com todos; mas não familiaridade. Algumas vezes sucede que uma pessoa desconhecida goza de boa fama; mas, quando presente, ofende os olhos daqueles que a contemplam. Pensamos algumas vezes agradar aos outros com nossa convivência; porém mais lhes desagradamos pelos defeitos que em nós vão descobrindo. REFLEXÕES Havemos de prestar-nos aos homens, e só darmos a Deus. Se no mundo a familiaridade é coisa de menos preço, nas coisas de Deus o demasiado trato com a criatura divide a alma e a enfraquece. Não foi ela criada para a terra, senão para viver em mais alma morada. “Nossa conversação é no céu”, diz São Paulo (Fl 3,20). Enquanto, porém, vivemos com os homens, o melhor é ter geral afabilidade para com todos, e, com ninguém, particular familiaridade. CAPÍTULO IX Da obediência e submissão 1. Grande coisa é viver em obediência, sujeito a um superior, e não ter vontade própria. Muito mais seguro é obedecer que mandar. Muitos estão em obediência mais por necessidade que por amor, os quais têm fadiga e facilmente murmuram e nunca terão liberdade de ânimo enquanto não se submeterem a Deus de todo o coração. Por mais que ande de uma parte para a outra, não achará descanso senão na humilde submissão a um superior. A imaginação de que mudando de lugar se melhora a muitos tem enganado. 2. Verdade é que a cada um agrada seu próprio parecer e de bom grado se inclina para os que pensam como ele. Mas, se Deus está entre nós, é necessário que deixemos algumas vezes nosso parecer, pelo bem da paz. Quem é tão sábio que tudo saiba? Não confie demasiadamente em seu próprio parecer; ouve antes de boa mente o sentir dos outros. Se o seu parecer for bom e o deixar por amor a Deus para seguir o alheio, terá nisto mais merecimento. 3. Muitas vezes ouvi dizer que é mais seguro ouvir e tomar conselho que o dar. Bem pode também acontecer que seja bom o parecer de um, mas não querer ceder aos outros quando a razão ou a ocasião o pede é sinal de soberba ou de teimosia. REFLEXÕES Se o Filho de Deus se fez obediente até a morte, e morte de Cruz, que homem há a que recuse obedecer? No mundo não há ordem nem vida senão pela obediência: ela é o laço dos homens entre si e seu autor, o fundamento da paz, e o princípio da harmonia universal. A família, a cidade, a Igreja, não subsistem senão pela obediência; a mais alta perfeição das criaturas não é mais que uma perfeita obediência: só ela nos preserva do erro e do pecado. Quando obedecemos a um homem revestido de autoridade, obedecemos a Deus; ele é o único monarca, e todo o poder legítimo é uma emanação de sua onipotência eterna e infinita. “Todo o poder vem de Deus”, diz o Apóstolo, e está sujeito a uma regra divina, tanto na ordem temporal como na espiritual; de sorte que, obedecendo ao pontífice, ao príncipe, ao pai, a quem é realmente “ministro de Deus para o bem”, só a Deus obedecemos. Feliz aquele que compreende esta celeste doutrina: livre da escravidão do erro e das paixões, dócil à voz de Deus e da consciência, goza “da verdadeira liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8,21). Deus e Senhor meu, contra cujos conselhos nada pode a humana malícia, dai-me aquele espírito de obediência e sujeição que tanto distingue vossos servos, pelo qual me assemelharei a vosso divino Filho que por minha salvação se fez obediente até a morte, e assim terei parte nos merecimentos do seu sangue preciosíssimo. CAPÍTULO X Como se há de resistir às tentações das palavras 1. Evita, quanto puder, a agitação do mundo; porque o comércio do mundo causa muitos embaraços ainda quando se trata com intenção sincera. Bem depressa somos manchados e cativos da vaidade. Muitas vezes quisera ter-me calado e não ter estado entre os homens. Porém, qual é a causa por que de tão bom grado falamos e praticamos uns com os outros, vendo quão poucas vezes voltamos ao silêncio sem dano da consciência? A razão disto é porque pretendemos ser consolados uns pelos outros com semelhantes conversações e desejamos aliviar o coração cansado de sensações diversas. E de boa vontade nos detemos em falar das coisas ou pensar nas que amamos ou desejamos, ou das adversas que sentimos. 2. Mas, pobres de nós! Tudo é em vão e inútil, porque a consolação exterior é dos maiores obstáculos para a consolação íntima proporcionada por Deus. Por esta causa, vigiemos e oremos, para que não se passe o tempo ociosamente. Se lhe for lícito e conveniente falar, diga coisas que edifiquem. O mau costume e o descuido de nosso aproveitamento são causas do pouco cuidado com que guardamos a nossa língua. No entanto, ajudam muito o progresso interior e os piedosos colóquios sobre coisas espirituais, de modo especial quando entre pessoas de um mesmo espírito e coração que se encontram unidos em Deus. REFLEXÕES Está escrito que no dia do juízo Deus nos há de pedir contas, até de uma palavra ociosa. Não nos admiremos de tanto rigor: tudo é sério na vida humana, cujo menor momento pode ter tão formidáveis consequências. Esse tempo que desperdiça em diversões inúteis foi dado a você para ganhar o céu. Compare o fim para que o receba com o uso que dele faz; e todavia sabe porventura se lhe será concedida uma hora a mais? Calar e sofrer é a mais geral virtude com que a vida passa sem culpa entre a gente, e sem esta virtude não é possível ter quitação na alma. Dê-me, Senhor, esta santa virtude para que, imitando o silêncio de meu divino Mestre, aprenda a meditar em seus trabalhos e mereça por este modo associar-me a seus sofrimentos e por eles alcançar a paz da vida eterna. CAPÍTULO XI Como se deve adquirir a paz interior, e do desejo de fazer progressos na virtude 1. Muita paz teríamos se não nos importássemos com o que os outros fazem, e que não nos dizem respeito. Como pode estar em paz muito tempo aquele que se intromete em cuidados alheios, busca ocasiões exteriores e recolhe? Bem-aventurados os simples, porque terão muita paz. 2. Qual é a causa porque muitos santos foram tão perfeitos e contemplativos? Porque trataram de se mortificar inteiramente em todos os desejos terrenos, e por isso puderam unir-se a Deus no íntimo do coração, e ocupar-se livremente de si mesmos. Ocupamo-nos muito com nossas paixões e temos demasiado cuidado com o que é transitório. E também poucas vezes vencemos um vício perfeitamente, nem nos inflamamos no desejo de adiantar cada dia o nosso aproveitamento, e por isso ficamos sempre fracos, sempre frouxos. 3. Se estivéssemos perfeitamente mortos para nós mesmos e no interior desembaraçados, então poderíamos gostar das coisas divinas e adquirir alguma experiência da contemplação celestial. O que unicamente nos impede é não estarmos ainda livres de nossas inclinações e desejos, e não fazemos nenhum esforço para entrar no caminho da perfeição trilhado pelos santos. Quando uma leve contrariedade nos bate à porta, imediatamente nos deixamos abater, e procuramos logo consolações humanas. 4. Se nos esforçássemos na batalha, em pelejar como homens fortes, veríamos sem dúvida o auxílio do Senhor descer do Céu sobre nós. Porque Deus está pronto a socorrer os que pelejam e esperam em sua graça, proporcionando-nos ocasiões de combate para que alcancemos a vitória. Se colocamos unicamente o progresso da vida religiosa nas observâncias exteriores, bem depressa nos acabará a devoção que tínhamos. Ponhamos, pois, o machado à raiz da árvore, para que, livresdas paixões, possamos pacificar nossas almas. 5. Se cada ano desarraigássemos um vício, não tardaríamos a ser perfeitos. Mas, pelo contrário, muitas vezes experimentamos que éramos melhores e nossa vida mais pura no princípio da nossa conversão que depois de muitos anos de profissão. Nosso fervor e aproveitamento deviam ir crescendo todos os dias, mas agora parece muito alguém conservar parte do primitivo fervor. Se no princípio fizéssemos algum esforço, poderíamos depois fazer tudo com facilidade e alegria. 6. Custoso é deixar os costumes antigos; porém mais custoso ainda é ir contra a própria vontade. Mas se não venceres as coisas pequenas e fáceis, como vencerás as difíceis? Resista no princípio à sua inclinação e deixe quanto antes o mau costume, para que não o leve pouco a pouco a maiores dificuldades. Oh! Se soubesse quanta paz teria e quanta alegria daria aos outros tendo boa vida, creio que seria mais solícito no seu aproveitamento espiritual! REFLEXÕES “Deixo-vos a minha paz, dou-vos a minha paz, não como a dá o mundo” (Jo 14,27). Que amável brandura, que terno amor nestas palavras do Salvador, e, ao mesmo tempo, que profundo documento! Todos os homens desejam a paz, mas há duas pazes: a de Jesus Cristo e a do mundo. O mundo diz ao ambicioso: Perturba-lhe, agita-lhe o desejo das grandezas? Suba, eleve-se. Ao avarento diz: Devora-lhe a cobiça das riquezas? Ajunte, acumule sem nunca parar. Ao licencioso, atormentado de seus apetites, repete-lhe a cada instante: Embriague-se de delícias, desafogue suas paixões, goze dos prazeres mundanos e terá a paz. Enganadora promessa! Cuidados, inquietações, desgostos, enfados, aborrecimentos, tristezas, cruéis pesares, devoradores remorsos, eis a paz do mundo! Jesus Cristo diz: Vença a si mesmo, combata os seus desejos, resista às suas inclinações, enfreie a cobiça, quebrante as paixões; e a alma, dócil a seus preceitos, goze de inefável descanso. Os trabalhos da vida, os sofrimentos, as injustiças, as perseguições, nada pode alterar a sua paz, e esta paz celestial, que excede todo sentimento, a acompanha em seu trânsito e a segue até o céu, onde se consumará sua bem-aventurança. Dai-me, oh Deus pacífico, a perfeita paz do coração, o desprezo de mim mesmo, o vosso puro amor e o desejo constante de só a vós contentar, por vós sofrer, e por vós merecer a paz e o descanso eterno. CAPÍTULO XII Utilidade das contrariedades 1. É vantajoso suportar, de quando em quando, algumas penas e contrariedades, porque elas chamam o homem à compreensão de si mesmo, fazendo-o reconhecer que está exilado neste mundo e que não deve colocar a sua esperança em alguma coisa da terra. É bom padecermos de contradições algumas vezes e que os homens pensem mal ou pouco favoravelmente de nós, ainda que atuemos bem e tenhamos boa intenção. Estas coisas, muitas vezes, ajudam-nos a sermos humildes e nos defendem da presunção. Com efeito, procuramos mais a Deus como testemunha de nossa consciência, quando somos desprezados pelos homens ou pensam mal de nós. Por isso, deveria o homem confiar de tal modo em Deus, que não fosse necessário buscar muitas consolações humanas. Quando o homem de boa vida é atribulado, ou tentado, ou combatido por maus pensamentos, então conhece ter de Deus maior necessidade, experimentando que sem ele não pode fazer coisa boa. Então se entristece, geme, e pede ao Senhor que o livre dos males de que padece. Então sente tédio pela vida que se prolonga e suspira pela morte a fim de se libertar do corpo e estar com Cristo (Fl 1,23). Então, compreende que não há, nem pode haver no mundo, perfeita segurança nem paz completa. REFLEXÕES Na adversidade é que cada um de nós começa a conhecer o que na verdade é: “Que sabe aquele que nunca foi provado?” (Ecl 34,9). O homem na prosperidade a quem tudo corre à medida de seus desejos anda exposto a grandes perigos; muito é para recear que sua alma adormeça em pesado sono e que, ao acordar, ouça aquela palavra que nunca deveria ter esquecido: “Lembre-se de que recebeste os bens da terra” (Lc 16,25). Enquanto somos peregrinos, devemos olhar os trabalhos como uma graça de predileção; eles nos exercem na virtude, procuram-nos novas ocasiões de merecimento e fazem-nos conformes ao divino modelo, de quem está escrito: “Convinha que Cristo sofresse, e que assim entrasse na sua glória” (At 17,3). Tudo com Deus muda de forma satisfatória que nem olho vê, nem ouvido ouve; mas só o amor experimenta. Daí-me, Senhor, a graça de viver do contentamento dos justos no meio de seus trabalhos e tribulações para depois gozar com eles da glória do Paraíso. CAPÍTULO XIII A resistência às tentações 1. Enquanto vivemos no mundo, não podemos estar sem trabalhos e tentações. Por isso está escrito no livro de Jó: “A vida do homem sobre a terra é uma contínua tentação” (Jó 7,1). Cada qual, pois, deve ser muito cuidadoso nas tentações, procurando, vigilante na oração, não dar lugar às ilusões do demônio, “que nunca dorme nem cessa de andar à roda das almas para as devorar” (1Pd 5,8). Ninguém é tão santo e tão perfeito que não tenha algumas vezes tentações; e não podemos viver sem elas. 2. Se bem que inoportunas e penosas, as tentações são muitas vezes utilíssimas ao homem, porque por meio delas se humilha, se instrui e se purifica. Todos os santos passaram por muitas tentações e trabalhos, e foi assim que progrediram na santidade. E os que não quiseram suportá-los falharam e condenaram-se. Não há ordem tão santa nem lugar tão retirado onde não haja tentações e adversidades. 3. Nenhum homem está inteiramente livre de tentações enquanto vive; porque em nós mesmos está a causa de onde elas vêm, pois nascemos com inclinação ao pecado. Passada uma tentação ou tribulação, sobrevém outra, e sempre teremos que sofrer, porque se perdeu o bem de nossa primeira felicidade. Muitos querem fugir às tentações e caem nelas mais gravemente. Mas não é fugindo que podemos vencê-las, porém, é com paciência e verdadeira humildade que nos fazemos mais fortes que todos os nossos inimigos. 4. Quem somente evita as ocasiões exteriores e não arranca o mal pela raiz pouco aproveitará; antes lhe tornarão mais depressa as tentações e se achará pior que antes. Com a ajuda de Deus, mais facilmente vencerá, com paciência e perseverança, do que com seu próprio esforço e fadiga. Tome muitas vezes conselho na tentação, e não seja rude e áspero com o que está tentado, antes procure consolá-lo como quer ser consolado. 5. O princípio de toda a tentação é a inconstância de ânimo e a pouca confiança em Deus. Como um navio sem leme é levado pelas ondas em todas as direções, assim o homem negligente e inconstante em seus propósitos é tentado de todas as maneiras. O fogo prova o ferro; e a tentação, o justo. Muitas vezes não sabemos o que podemos; mas a tentação mostra-nos o que somos. Devemos, pois, vigiar principalmente no princípio da tentação, porque mais facilmente se vence o inimigo quando não o deixamos passar da porta da alma, e lhe saímos ao encontro, logo que bate. Como citou um poeta (Ovídio, De Remediis Amoris 2,91): Resiste no princípio, Tarde chega o remédio Se já, por largo tempo, O mal lançou raízes. Porque, primeiramente, se oferece à alma um simples pensamento, depois, a importuna imaginação, logo o prazer, o movimento desordenado e o consentimento da vontade. E assim, pouco a pouco, entra o inimigo e se apodera de tudo, porque não se resistiu a ele no princípio. E quanto mais preguiçoso for o homem em resistir-lhe, cada dia ficará mais fraco, e o inimigo contra ele, mais poderoso. 6. Alguns padecem graves tentações no princípio de sua conversão; outros, no fim; muitos por toda a vida. Algunssão tentados brandamente, segundo a sabedoria e a equidade da Divina Providência, que pondera o estado e os méritos dos homens, e tudo ordena para a salvação de seus escolhidos. 7. Por isso, não devemos desconfiar quando formos tentados; mas antes rogar a Deus com maior fervor para que se digne ajudar-nos em toda a atribuição; porque, segundo o dito de São Paulo, “nos dará o auxílio junto com a tentação para que lhe possamos resistir” (1Cor 10,13). “Humilhemos, pois, nossas almas debaixo da mão de Deus em toda a tribulação e tentação, porque ele há de salvar e engrandecer os humildes de espírito” (Sl 33,19). 8. É nas tentações e nos reveses que o homem verifica quanto progrediu; por elas maior se toma o mérito, e melhor se revelam as virtudes. Nada custa ser devoto e fervoroso quando o sacrifício não é grande, mas, se no tempo da adversidade se mantém com paciência, haverá esperança de grande progresso. Existem alguns que vencem as grandes tentações, mas muitas vezes são vencidos pelas pequenas de cada dia, para que, humilhando-se, não confiem em si mesmos nas coisas grandes, pois são fracos nas pequenas. REFLEXÕES Nenhum homem está isento de tentações. Permite-as Deus para que nos provem, nos purifiquem, nos instruam e nos humilhem. Não é só pela fuga ou por uma resistência violenta que venceremos, senão também por uma paciência sossegada, por uma inteira confiança em Deus. “Vigiemos, contudo, segundo o preceito do divino Mestre: Vigiemos e oremos para não cairmos em tentação.” Facilmente se vence a tentação quando nasce, mas se a deixarmos crescer e fortificar-se, não teremos força o bastante para resistir-lhe, e sucumbindo, seremos punidos por nossa negligência ou nossa presunção. Assim sucumbiu São Pedro, porque teve demasiada confiança em si mesmo, e se expôs ao perigo sem se fortificar com a vigília e a oração. Se, como São Pedro, formos descuidados ou presunçosos, sejamos como ele pesarosos e arrependidos. Reconheçamos a nossa fraqueza e pouco préstimo, e humilhemo-nos cada vez mais. A humildade será o fundamento da nossa segurança, do nosso aproveitamento, da nossa paz e de toda a perfeição. Bem sei, Senhor, que aos que vos amam e temem tudo se lhes converte em bem; não vos peço, Deus meu, ser isento de tentações, mas luz para conhecê-las, fortaleza para resistir-lhes, humildade para não confiar em mim, conforto para não desfalecer e vitória no combate; permite, Senhor, desarmem em vão todas as cidadas do inimigo e, vencedor dele, eu posso colher os saudáveis frutos da santa humildade, que são a paz interior neste mundo e a glória na pátria dos bem-aventurados. CAPÍTULO XIV É necessário evitar os juízos temerários 1. Ponha os olhos em você mesmo e guarde-se de julgar as obras dos outros. Julgar os outros é ocupação vã para o homem, que de ordinário se engana e facilmente peca; mas, julgando-se e examinando-se, trabalha sempre com fruto. Ordinariamente julgamos as coisas segundo a inclinação do nosso coração, porque o amor próprio altera facilmente em nós o verdadeiro juízo delas. Se procurássemos sempre Deus com pureza de intenção, não nos perturbaria tão facilmente a contradição da nossa sensualidade. 2. Muitas vezes, porém, existe alguma razão oculta ou algum motivo externo que igualmente nos atrai. Muitos, sem o saber, buscam secretamente a si mesmos nas obras que fazem, e não percebem isto. Também lhes parece estarem em perfeita paz quando as coisas correm à medida de seus desejos; mas de outra maneira sucedem, logo se inquietam e entristecem. A diversidade de opiniões e sentimentos produz, muitas vezes, discórdias entre amigos e vizinhos, entre religiosos e devotos. 3. Dificilmente se abandona um velho hábito e ninguém deixa de bom grado seu próprio parecer. Se confia mais na sua razão e habilidade que na virtude e na submissão de que Jesus Cristo nos deu o exemplo, dificilmente e só muito tarde poderá ser um homem esclarecido, porque é vontade de Deus que lhe sejamos perfeitamente submissos, e que prescindamos de toda a humana razão, inflamados no seu amor. REFLEXÕES Há em nós uma secreta malícia que se contenta em descobrir as imperfeições de nossos irmãos, e eis aqui porque somos tão propensos a julgá-los, esquecendo que só a Deus pertence julgar os corações. Em lugar de pesquisar tão curiosamente a consciência alheia, metamos a mão na nossa: ali acharemos bastantes motivos para sermos indulgentes com o próximo e não menos inquietações a nosso respeito. Quem não é superior ou prelado, nenhum encargo tem de vigiar seu semelhante; cada um só se responde: “Não julgues, portanto, para que não sejas julgado” (Mt 7,2). Não cuida o malicioso que se fazem as coisas com santa intenção, e julga o bem que vê pelo mal que se lhe entreolha. Livrai-me, meu Deus, desta propensão maligna; enfreai minha língua para que nunca fale contra o meu próximo, moderai os meus pensamentos para que tudo seja conforme a lei santa de vosso amor e dilatai meu coração com os ardores da caridade para que sempre siga o vosso divino Filho, que na agonia do Calvário vos pediu perdão para os que o crucificavam. CAPÍTULO XV Das obras realizadas por caridade 1. Por nenhuma coisa do mundo, nem por amor de pessoa alguma, se há de fazer o menor mal; mas, para proveito de algum necessitado, se pode alguma vez interromper a boa obra, ou trocá-la por outra melhor. Com isto não se destrói a boa obra, mas se muda em outra melhor. A obra exterior, sem caridade, de nada vale, mas tudo o que se faz com caridade, por pouco e desprezível que seja, produz abundantes frutos, porque Deus olha mais para a intenção do que para a ação. 2. Muito faz quem muito ama. Faz muito quem faz bem aquilo que faz. Bem faz quem serve mais ao bem comum que à sua vontade própria. Muitas vezes parece caridade o que é amor próprio; porque a propensão de nossa natureza, a própria vontade, a esperança de recompensa, o gosto da comodidade raras vezes nos deixam. 3. Quem tem verdadeira e perfeita caridade em nenhuma coisa se busca a si mesmo, mas deseja que em todas Deus seja glorificado. De ninguém tem inveja, porque não ama particularmente nenhum prazer, mas deseja sobre todas as coisas ter alegria e felicidade em Deus. A ninguém atribui bem algum, mas refere tudo a Deus, do qual, como de fonte eterna, brotam todas as coisas, no qual, como em fim último, descansam em plena satisfação todos os santos. Oh! Quem tivera uma centelha de verdadeira caridade! Por certo avaliaria por vaidade todas as coisas da terra! REFLEXÕES Quase todas as ações dos homens nascem de um princípio viciado, daquela tríplice cobiça de que fala São João (11,16), e contra a qual a vida cristã está em contínuo combate. O demasiado amor próprio, tão difícil de vencer inteiramente, corrompe de ordinário as mesmas obras que mais puras parecem. Quantos trabalhos, quantas esmolas, quantas penitências, em que os homens põem grande confiança, serão talvez estéreis para o céu! Deus não se dá senão àqueles que o amam: ele é o prêmio da caridade, daquele amor inefável, sem limites e sem medida, o qual, enquanto tudo o mais passa, permanece eternamente, diz São Paulo (Cor 13,8). “Oh, amor divino, único que fazeis os Santos, Amor que sois Deus”, penetrai, possuí, transformai em vós todas as potências de minha alma, sede a minha vida, a minha única vida, agora e sempre nos séculos dos séculos. Assim seja! (Jo 4,16). CAPÍTULO XVI A tolerância dos defeitos do próximo 1. O que o homem não pode emendar em si ou nos outros deve padecê-lo com paciência, até que Deus ordene de outro modo. Pensa que talvez seja melhor ser assim, para colocares à prova a sua paciência, sem a qual não são dignos de muita estimação os nossos merecimentos. Deves, porém, pedir a Deus que teajude para que possas vencer estes obstáculos ou sofrê-los com resignação. 2. Se alguém, censurado uma ou duas vezes, não se emendar, não discuta com ele; mas encomende tudo a Deus, que sabe tirar bem do mal para que se faça sua vontade, e ele seja honrado em todos os seus servos. Esforce-se por sofrer com paciência quaisquer defeitos e fraquezas alheias, pois há muito em você que os outros têm que suportar. Se não consegue ser o que deseja, como poderá transformar os outros segundo seus desejos? Desejamos que os outros sejam perfeitos, e não somos capazes de corrigir nossos próprios defeitos. Desagrada-nos que aos outros sejam dadas amplas liberdades, mas não suportamos que nos neguem seja o que for. 3. Queremos que os outros sejam apertados por regulamentos, mas de modo nenhum suportamos que nos reprimam. De onde claramente se mostra quanto pouco amamos o próximo como a nós mesmos. Se todos fôssemos perfeitos, que teríamos então que suportar dos outros por amor de Deus? 4. Porém, Deus assim o permitiu para que aprendamos a suportar as faltas dos outros, porque cada um tem o seu fardo e as suas faltas e ninguém se basta a si mesmo nem é suficientemente sábio só por si; por isso temos de nos suportar uns aos outros, de nos consolar mutuamente, de nos prestar mútuo auxílio de nos instruir e censurar. É na hora da adversidade que se revelam melhor as virtudes de cada um. Porque as ocasiões não fazem o homem fraco, porém descobrem o que ele é. Não pode sofrer, diz você, tais e tais defeitos, poderoso motivo este de se humilhar. Porque Deus, que é a mesma perfeição, os sofre, e muito maiores ainda. O que o faz melindroso não é o zelo do próximo, mas um amor próprio, difícil, irritável, suspeitoso. Volte os olhos para você mesmo e veja se seus irmãos não têm nada que receber de você! A verdadeira piedade é branda e sofredora, porque ela nos faz ver o que somos. O que se sente fraco, e sua fraqueza deplora, não se ofende facilmente das fraquezas dos outros; muito bem sabe que todos nós temos necessidade de conforto, de indulgência e de misericórdia; desculpe, compadeça-se, perdoe, e conserve assim a paz interior e dê mostras exteriores de verdadeira caridade. CAPÍTULO XVII Da vida religiosa 1. Convém que aprenda a quebrantar-se em muitas coisas, se quer ter a paz e concórdia com os outros. Não é fácil morar nos mosteiros e congregações, e ali viver sem queixas e perseverar fielmente até a morte. Bem-aventurado aquele que ali vive bem e, ditosamente, acaba! Se quiser perseverar e progredir na virtude, considere-se como exilado e peregrino sobre a terra. Convém fazer-se simples por Jesus Cristo, se queres seguir a vida religiosa. 2. De pouco valem o hábito e o cilício. A mudança dos costumes e a inteira mortificação das paixões é que fazem o verdadeiro religioso. Quem outra coisa busca mais que a Deus e a salvação de sua alma não achará senão tribulação e dor. Não pode estar muito tempo em paz quem não procura ser o menor e o mais submisso de todos. 3. Vieste para servir, não para mandar; convença-se de que foi chamado para trabalhar e sofrer; e não para folgar e divertir-se. Aqui, pois, se provam os homens como o ouro na fornalha. Aqui não pode estar senão quem quiser de todo o coração humilhar-se por amor de Deus. REFLEXÕES O que é um bom religioso? É um verdadeiro cristão ocupado sempre a fazer-se perfeito, tomando como dever rigoroso o que o Evangelho só indica como conselho. A vida monástica não é, pois, outra coisa mais do que uma vida, por assim dizer, mais cristã; e a abnegação de si mesmo é o compêndio de todos os deveres que ela impõe. Ora, estes deveres são também os nossos, pois não a alguns, mas a todos, disse Jesus Cristo; “Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito” (Mt 5,48). Para preencher esta grande vocação, renunciemos a nós mesmos, unamo-nos plenamente ao sacrifício de nosso divino modelo; amemos sobre tudo a submissão, a dependência e as humilhações. A salvação é um edifício que levanta sobre as ruínas da soberba. Deus e Senhor meu, ainda que não siga rigorosamente a vida religiosa, dai-me luzes para compreender quanto mais monta curta vida bem ocupada que a larga, ociosa; quanto pouco tempo basta para grandes virtudes e valiosos merecimentos, quando sabemos empregar o tempo em vosso serviço; dai-me, Senhor, o espírito de humildade, fundamento único das virtudes todas. CAPÍTULO XVIII Do exemplo dos Santos Padres 1. Considere bem os heroicos exemplos dos Santos Padres, nos quais resplandece a verdadeira perfeição da vida religiosa, e verá como pouco ou quase nada é o que fazemos. Ai de nós! Que é a nossa vida, comparada com a deles? Os santos e amigos de Cristo serviram ao Senhor em fome, sede, frio, nudez, trabalhos, fadigas, vigílias, jejuns, rezas, santas meditações, perseguições e muitos vexames. 2. Oh! De quantas e quão graves tribulações padeceram os apóstolos, os mártires, os confessores, as virgens, e todos os demais que quiseram seguir as pisadas de Cristo! “Pois aborreceram neste mundo suas vidas para as possuírem na eternidade” (Jo 12,25). Que vida de renúncia e austeridade foi a dos Santos Padres no deserto! De que longas e graves tentações padeceram! Quantas vezes foram atormentados pelo inimigo! Quão fervorosas e contínuas orações ofereceram a Deus! Quão rigorosas abstinências praticaram! Que zelo, que ardor em seu aproveitamento espiritual! Que forte guerra contra suas paixões! Que intenção pura e reta sempre dirigida para Deus! De dia trabalhavam e passavam as noites em larga oração; ainda que trabalhando, não interrompiam a sua oração mental. 3. Todo o tempo gastavam santamente: as horas lhes pareciam curtas para se darem a Deus; e pela grande doçura da contemplação se esqueciam da necessária refeição do corpo. Renunciavam todas as riquezas, honras, dignidades, parentes e amigos: nada queriam do mundo; apenas tomavam o necessário para a vida, e lhes era pesado servir ao corpo ainda nas coisas necessárias. De modo que eram pobres das coisas da terra, porém riquíssimos de graça e virtudes. No exterior tudo lhes faltava; mas interiormente Deus os fortificava com sua graça e recreava com suas consolações. 4. Eram estranhos ao mundo; mas íntimos e particulares amigos de Deus. Tinham-se por nada a si mesmos, e o mundo os tratava com desprezo, mas aos olhos de Deus eram preciosos e amados. Estavam em verdadeira humildade, viviam em singela obediência; por isso a cada dia cresciam em espírito e alcançavam muita graça diante de Deus. Foram dados como exemplo a todos os religiosos; e mais nos devem mover para nos apromarmos do bem, que a multidão dos fracos, para nos desanimarmos em nossas atividades. 5. Oh! Como foi grande o fervor de todos os religiosos no princípio dos seus sagrados institutos! Quanto ardor na oração! Quanto zelo na virtude! Que severidade de disciplina! Como florescia a submissão e obediência à regra do santo fundador! O que ainda nos resta deles nos atesta a santidade e perfeição daqueles homens insignes que, pelejando esforçadamente, pisaram aos pés o mundo. Agora já se estima em muito aquele que não transgride a regra, e com paciência pode sofrer algum dissabor. 6. Oh! Fraqueza e negligência de nosso estado, que tão depressa declinamos do fervor primitivo, e já nos é molesto o viver em consequência da frouxidão e debilidade! Agrade a Deus que, tendo visto tantos exemplos de santos homens, de todo se não acabe em você o desejo de aproveitar nas virtudes! REFLEXÕES Baseados nos admiráveis exemplos que nos deixaram tantos fervorosos discípulos de Jesus Cristo, envergonhemo-nos de nossa negligência e tomemos ânimo para seguir decididamente suas pisadas. Repitamos com frequênciaaquelas palavras de Santo Agostinho: “Que! Não poderei eu o que tantos outros puderam?!”. E acrescentemos como o Apóstolo: “Eu por mim nada posso, mas posso tudo naquele que me fortifica” (Fl 4,13). Toda a nossa força consiste em sentir nossa fraqueza e em conhecer-lhe o remédio, que é a graça do divino Mediador. Dai-nos, Senhor, a graça especial de amar vossos divinos conselhos, daí-nos fortaleza para guardá-los como mandamentos vossos e fazei não tenhamos maior destino do que sermos sempre fiéis e zelosos em imitar os exemplos dos que, em vosso nome, nos ensinam o caminho da santidade. CAPÍTULO XIX Dos exercícios do bom religioso 1. A vida do bom religioso deve resplandecer em todas as virtudes, para que seja tal no interior, qual parece fora aos homens. E com muita razão deve ser ainda mais perfeito interiormente do que por fora parece, porque Deus está nos vendo e devemos, onde quer que estejamos, venerar profundamente sua majestade, e andar em sua presença tão puros como os anjos. Cada dia devemos renovar nosso propósito, exercitar-nos no fervor, como se hoje fosse o primeiro dia de nossa conversão, e dizer: Ajudai-me, Deus e Senhor meu, em meu bom propósito e em vosso santo serviço, e daime graça para que comece hoje perfeitamente, porque nada é quanto até aqui tenho feito. 2. A firmeza das nossas resoluções é a medida do nosso progresso e uma grande urgência é necessária para quem deseja progredir. Se o que propõe firmemente muitas vezes falha, que será do que tarde ou nunca propõe? De diferentes maneiras abandonamos nossas resoluções, e a menor omissão em nossos exercícios traz sempre consigo algum triste resultado. O propósito dos homens justos se funda mais na graça de Deus que no seu próprio saber; e nele confiam sempre em qualquer obra que empreendem. “Porque o homem propõe e Deus dispõe; e não está na mão do homem o seu caminho” (Jr 10,23). 3. Se omitimos os nossos exercícios ordinários por algum motivo piedoso ou por causa da caridade fraterna, será fácil retomá-los em seguida. Mas se os abandonamos por tédio ou negligência e sem qualquer motivo sério, cometemos então uma falta que nos há de ser fatal. Mesmo fazendo todos os esforços possíveis cairemos facilmente, em muitas ocasiões. Devemos, contudo, propor-nos sempre alguma coisa determinada, sobretudo a respeito do que forma o principal obstáculo a nosso progresso. É necessário examinar e ordenar todas as nossas coisas exteriores e interiores, porque tudo é útil ao nosso aproveitamento. 4. Se não pode recolher-se continuamente, recolha-se de quando em quando; e pelo menos uma vez ao dia, a saber: pela manhã ou à noite. Pela manhã, propõe; à noite, examina tuas ações: como proferiu hoje suas palavras, obras e pensamentos, porque pode ser que tenha ofendido muitas vezes a Deus e ao próximo. Arme-se como homem forte contra as malícias do demônio: refreie a gula: e facilmente refrearás toda a inclinação da carne. Nunca esteja de todo ocioso, mas leia ou escreva ou reze ou medite ou trabalhe em alguma coisa de utilidade para os olhos. Porém, os exercícios corporais devem ser feitos com discrição, porque não são igualmente convenientes para todos. 5. Os exercícios particulares não devem ser feitos publicamente, porque é mais seguro praticá-los privativamente. Tome cuidado, no entanto, em não abandonar os exercícios da comunidade pelos que são de sua preferência. Mas, satisfeitas inteira e fielmente as coisas de obrigação e preceito, se tiver algum tempo, emprega-o em particular, como pedir a sua devoção. Nem todos podem ocupar-se do mesmo exercício: um convém mais a este, outro àquele. Também, conforme a variedade do tempo, assim agradam os diversos exercícios, porque uns são mais apropriados para os finais de semana, outros para os dias de semana. Necessitamos de uns para o tempo da tentação, e de outros para o de paz e sossego. Gostamos de meditar em umas coisas, quando estamos tristes, e em outras quando alegres no Senhor. 6. Nas festas principais, devemos renovar nossos bons exercícios e invocar com mais fervor a intercessão dos santos. De uma festa para outra devemos formar algum santo propósito, como se então houvéssemos de sair deste mundo e chegar à eterna festividade. Por isso, devemos prevenir-nos com cuidados nos tempos devotos, andar com mais atenção e guardar mais estreitamente toda a observância, como quem há de breve receber de Deus o prêmio de seus trabalhos. 7. E se este momento for adiado, tenhamos por certo que não estamos ainda bem preparados, e que não somos dignos de tanta glória como a que se há de manifestar em nós acabado o tempo desta vida; redobremos nossos esforços a fim de nos dispormos melhor para partir. “Bem-aventurado o servo, diz São Lucas, a quem o Senhor achar vigiando, quando vier; em verdade vos digo que o constituirá sobre todos os seus bens” (12,37). REFLEXÕES “A vida do homem sobre a terra é um combate contínuo” (Jo 7,1) contra o demônio, contra o mundo, e contra si mesmo. Uns retiram-se aos claustros para mais facilmente resistirem, outros ficam no meio do século, mas todos não podem vencer senão pelo exercício de uma contínua vigilância. “O hábito de recolher-se em si mesmo, o amor do retiro, uma atenção constante em pensamentos, palavras e sentimentos; a fidelidade aos mais leves deveres e às mais humildes práticas preservam das grandes tentações, e chamam sobre nós as graças do Céu.” “O que despreza as coisas pequenas cairá pouco a pouco”, diz o Espírito Santo (Ecl 19,1). Senhor, tomai à vossa conta a fraqueza desta miserável criatura; tratai-me como quiserdes; tende-me da vossa mão em tudo, e; se vós me guiardes, evitarei até as faltas ligeiras, e, fortalecido por vossa graça, chegarei à perfeição de vossos fiéis servos. CAPÍTULO XX Do amor à solidão e ao silêncio 1. Busque tempo oportuno para atender a si e pense com frequência nos benefícios de Deus. Deixe as coisas curiosas e leia matérias que te deem mais compunção que ocupação. Caso se afaste de conversações supérfluas e passeios ociosos, como também de ouvir novidades e murmurações, achará tempo bastante e oportuno para se entregar a santas meditações. Os maiores santos evitaram quanto podiam a companhia dos homens, e preferiram viver para Deus em seu retiro. 2. Disse um sábio: “Quantas vezes estive entre os homens, voltei menos homem”1. Isto experimentamos muitas vezes quando falamos muito. Mais fácil é calar de todo que falar sempre com acerto. Mais fácil é encerrar-se em uma casa que guardar-se como convém fora dela. Aquele, pois, que pretende chegar às coisas interiores e espirituais deve afastar-se da multidão com Jesus (Jo 5,13). Ninguém aparece com segurança em público, senão quem gosta de viver oculto. Ninguém fala com acerto, senão quem sabe calar a propósito. Ninguém dignamente preside, senão o que perfeitamente aprendeu a obedecer. 3. Ninguém seguramente se alegra, senão o que possui em si mesmo o testemunho de boa consciência. Sempre, contudo, a segurança dos cantos esteve cheia do temor de Deus e, ainda que resplandecessem em grandes virtudes e graças, nem por isso seriam menos cuidadosos e humildes em si mesmos. Porém, a segurança dos malvados nasce da soberba e presunção, e, finalmente, transforma-se em desilusão. Nunca se ache totalmente seguro nesta vida, embora pareça bom religioso e devoto eremita. 4. Muitas vezes os mais estimados no conceito dos homens têm caído em grandes perigos, por causa de sua excessiva confiança em si. Por isso é de grande utilidade, para muitos, serem combatidos por tentações, para que não confiem demasiado em si próprios, nem seexaltem com soberba, nem tampouco busquem com ânsia as consolações exteriores. Oh! Quem não tenha procurado as alegrias passageiras, quem nunca tenha se ocupado com o mundo – como conservar uma consciência pura? Oh! Quem tenha deixado de lado toda a falsa boa vontade apenas medite na sua salvação e nas realidades divinas e em Deus confie – de quanta paz e sossego não desfrutará! 5. Ninguém é digno das consolações celestes, senão quem se exercitar com zelo no santo remorso. Se quer arrepender-se de coração, entre em seu quarto e tire de si todo o cuidado do mundo segundo está escrito: “Refleti em vossos corações, quando estiverdes em vossos leitos e calai” (Sl 4,5). Nele acharás o que muitas vezes perdes por fora. O retiro frequentado causa doçura, e o pouco frequentado gera enfado. Se no princípio de sua conversão se acostumar a ele, e o guardar bem, será a você depois companheiro amoroso e suave consolação. 6. É no silêncio e sossego que a alma piedosa progride e penetra nos segredos da Escritura. Eles lhe farão derramar lágrimas em que, todas as noites, se lavará e purificará, para que possa unir-se ao seu Criador tanto mais familiarmente quanto mais longe viver do tumulto do mundo. Aquele, pois, que mais se afasta de seus amigos e conhecidos mais consegue que Deus se chegue a ele com seus anjos. É melhor viver oculto e ter cuidado consigo do que fazer milagres e esquecer- se de si mesmo. Louvável é no homem religioso sair fora poucas vezes, e não buscar ver os homens nem ser visto por eles. 7. Para que queres ver o que te não é lícito possuir? – Passa o mundo e sua cobiça! Os desejos sensuais nos arrastam a passatempos; mas, passada aquela hora, o que fica senão peso na consciência e distração no coração? A saída alegre faz muitas vezes a volta triste, e a noite de prazeres prepara triste manhã. Assim, todo o prazer dos sentidos entra brandamente, mas por fim atormenta e mata. Que pode ver em outra parte que aqui não veja? Aqui vê o céu e a terra e todos os elementos, e destes foram feitas todas as coisas. 8. Que pode ver em algum lugar que permaneça muito tempo debaixo do sol? Pensa acaso satisfazer o seu apetite? Pois não o conseguirá. Se visse diante de você todas as coisas, que seria isto senão uma visão fantástica? Levante seus olhos a Deus nas alturas e peça-lhe perdão por seus pecados e negligências. Deixe aos vãos as coisas vãs, e você tenha cuidado com o que Deus te manda. Feche-se em seu aposento e chama em seu auxílio seu amado Jesus. Permaneça com ele em seu quarto, que não achará em outro lugar tanta paz. Se não saísse fora, nem ouvisse novidades, melhor permaneceria em santa paz. Mas já que gosta de ouvir novidades, terá que sofrer desassossego de coração. REFLEXÕES Que busca no mundo? A felicidade? Verdadeira felicidade é coisa que não existe. Ouça este grito de dor, esta queixa lamentável que se levanta de todos os ângulos da terra e se prolonga de século em século. Eis a voz do mundo. Que mais busca nele? Luzes, socorros, consolações para cumprir em paz sua peregrinação? O mundo está entregue ao espírito das trevas, a todas as cobiças que ele inspira, a todos os crimes que ele provoca, a todos esses males de que é o princípio; por isso exclamava o real Profeta: “Apartei-me, fugi (do mundo) e moro na solidão” (Lv 8). Ali no silêncio das criaturas, Deus fala ao coração, e sua voz é tão suave e maravilhosa, que a alma não quer mais ouvir senão a ele, até o dia em que, rasgadas todas as cortinas, o veja e o contemple face a face. O Cristianismo povoou o deserto daquelas almas escolhidas, que, furtando-se ao mundo, e pisando aos pés seus prazeres, suas honras, seus tesouros, e a carne, e o sangue, nos oferecem, na pureza de sua vida, uma imagem da vida dos anjos. Não são, porém, todos os cristãos chamados a este sublime estado de perfeição; mas, no meio das ocupações da sociedade e da inquietação do mundo, todos devem criar, no fundo de seu coração, uma solidão na qual possam retirar-se para conversar com Jesus Cristo, e recolher-se em sua presença. Trazidos assim das ideias do tempo ao pensamento das coisas eternas, se desapegarão do que possuem e estarão no mundo como se nele não estivessem. Feliz o estado em que se cumpre para o fiel o que diz o Apóstolo: “Nossa vida está escondida em Deus com Cristo” (Cl 3,3). Por mais recolhido que estejais, não vos vejo, pai, amigo, pastor, guia companheiro, riqueza e bem- aventurança minha! Oh, quando vos verei, meu Deus, como sou de vós visto! Dai, Deus meu, o que quereis; dai, Salvador divino, o que minha alma precisa, e achareis nela o que vosso amor deseja. 1 Sêneca, Ep. VII CAPÍTULO XXI Do remorso do coração 1. Se quiser fazer algum progresso, conserve-se no temor de Deus e não queira ser demasiadamente livre; mas com severidade refreie todos os seus sentidos e não se deixe levar de vã alegria. Dê-se ao remorso do coração e achará devoção. O remorso causa muitos bens, que o desperdício costuma arruinar em breve. É para admirar que o homem possa alegrar-se alguma vez perfeitamente nesta vida, considerando-a como um isolamento, e pensando nos muitos perigos de sua alma. 2. Pela inconstância do coração e pelo descuido de nossos defeitos, não sentimos os males de nossa alma; porém, muitas vezes rimos sem motivo, quando com razão deveríamos chorar. Não há verdadeira liberdade nem perfeita alegria senão no temor de Deus com boa consciência. Afortunado aquele que pode desviar-se de todo o estorvo de distração e recolher-se à união do santo remorso. Afortunado aquele que afasta de si tudo o que pode manchar ou agravar sua consciência. Luta com firmeza: um hábito é vencido por outro hábito. Se souber deixar os homens, também eles o deixarão fazer bem as suas obras. 3. Não se ocupe com coisas alheias, nem se intrometa nos negócios dos grandes. Olhe sempre primeiro para si, e a si mesmo em especial se adverte mais que a todos os seus muito queridos. Se não é favorecido dos homens, não se entristeça por isso; mas aflija-se só por se não portar com o cuidado e a prudência que convêm a um servo de Deus e a um devoto religioso. É muito útil e seguro que o homem não tenha nesta vida muitas consolações, principalmente as que estão em harmonia com a carne. Porém, por nossa culpa não alcançamos ou raras vezes sentimos as consolações divinas, porque não buscamos o remorso do coração nem rejeitamos de todo as vazias consolações exteriores. 4. Reconheça que é indigno da consolação divina, e merecedor de muitas contrariedades. Quando o homem se arrepende, logo lhe é pesado e amargo todo o mundo. O justo acha sempre matéria bastante para afligir-se e chorar; porque, ou se considera a si mesmo ou pensa em seu próximo, sabe que ninguém passa esta vida sem contrariedades. E quanto mais atentamente se considera tanto mais profunda é a sua dor. Matéria de justa dor e entranhável remorso são nossos pecados e vícios aos quais tão miseravelmente estamos presos, que raramente podemos contemplar as coisas do céu. 5. Se mais frequentemente pensasse em sua morte do que em viver largo tempo, não duvido de que se corrigiria com mais fervor. Se, também, de todo o coração, pensasse nas penas futuras do inferno ou do purgatório, creio que de bom grado sofreria qualquer trabalho e dor, e não temeria nenhuma austeridade; porém, como estas coisas não nos entram no coração, e amamos mais o que nos lisonjeia, ficamos frios e preguiçosos. 6. Muitas vezes, por falta de espírito, nosso corpo miserável se queixa facilmente. Rogue, pois, com humildade ao Senhor para que lhe dê espírito de remorso, e diga com o profeta: “Dai-me, Senhor, a comer o pão da lágrima e a beber em abundância
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