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E . H . G om b rich E. H. Gombrich O SENTIDO DE ORDEM Um estudo sobre a psicologia da arte decorativa Em O Sentido de Ordem, E. H. Gombrich volta-se a um tema que o fascinou desde a juventude – a história, a teoria e a psicologia da arte decorativa. O impulso humano universal de buscar ordem e ritmo no espaço e no tempo pode ser encontrado em uma imensa variedade de atividades: em brincadeiras de crianças, na poesia, na dança, na música, na arquitetura – bem como na arte. Considerado pelo próprio autor o seu trabalho mais original, este livro apresenta uma análise rigorosa desse traço humano fundamental e fascinante, tendo em vista a nossa herança biológica. As obras-primas do artesanato decorativo de inúmeras culturas são vistas como manifestações da nossa tendência de procurar um sentido de ordem. Escrevendo com lucidez, profundidade de conhecimento e amplitude de interesses, Gombrich aborda os mais fundamentais problemas de estética e revoluciona a nossa percepção da arte – e, consequentemente, a nossa percepção de nós mesmos. Leitura essencial, este livro é tão acessível quanto sofisticado, e tão envolvente quanto idiossincrático. ARTE www.grupoa.com.br Sir Ernst Gombrich (1909 – 2001) foi um dos maiores e menos convencionais historiadores da arte de seu tempo, destacando-se em três esferas distintas: no meio acadêmico, na popularização da arte e como precursor da aplicação da psicologia da percepção ao estudo da arte. Perspicaz e com uma memória prodigiosa, o autor também foi um fantástico comunicador, com um estilo de prosa claro e vigoroso. Seus trabalhos são modelos de boa escrita histórica e refl etem seu humanismo e sua profunda preocupação com os padrões e valores da nossa herança cultural. E. H. Gombrich O SENTIDO DE ORDEM Um estudo sobre a psicologia da arte decorativa Impossível imaginar uma discussão mais inteligente da história natural da decoração e do ornamento.” JONATHAN MILLER, intelectual britânico, Sunday Times É difícil acreditar que um homem possa combinar, de modo tão feliz, um profundo conhecimento da história da arte com o dom para a exposição clara e um interesse em tantos outros campos do conhecimento, da psicanálise à música.” ANTHONY STORR, psiquiatra e escritor, The Spectator As obras de E. H. Gombrich são referenciais e mantêm a sua atualidade porque não esgotam a interpretação da arte restringindo-a ao seu tempo. Seu diferencial é a erudição a serviço da compreensão.” JORGE LUIZ PADILHA FILHO, artista plástico, designer e professor da Panamericana Escola de Arte e Design Em O Sentido de Ordem, Gombrich reúne, entrecruza, contextualiza e aprofunda, de modo brilhante, dois temas com larga tradição de pesquisa histórica: a teoria da criação e da evolução do ornamento e o estudo do funcionamento da percepção humana.” DANIELA KERN, doutora em Artes Visuais e professora do Instituto de Artes da UFRGS O S E N T ID O D E O R D E M 34424 O_Sentido_de_Ordem prata.indd 134424 O_Sentido_de_Ordem prata.indd 1 30/4/2012 11:54:1730/4/2012 11:54:17 PANT PANT Catalogação na publicação: Fernanda B. Handke dos Santos – CRB 10/2107 G631s Gombrich, E. H. O sentido de ordem [recurso eletrônico] : um estudo sobre a psicologia da arte decorativa / E. H. Gombrich ; tradução: Daniela Pinheiro Machado Kern. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : Bookman, 2012. Editado também como livro impresso em 2012. ISBN 978-85-407-0172-4 1. Psicologia. 2. Arte decorativa. I. Título. CDU 159.9:7 Iniciais_Eletronico.indd ii 30/agosto/12 09:23 VI Formas e coisas Os órgãos dos sentidos recebem padrões de energia, mas raramente vemos padrões: vemos objetos. Um padrão é um arranjo de marcas relativamente sem sentido, mas os objetos têm um conjunto de características para além de seus traços sensoriais. Eles têm passados e futuros; eles mudam e influenciam uns aos outros, e têm aspectos ocultos que emergem sob diferentes condições. Richard Gregory, Eye and Brain 1 O caleidoscópio Em 1819, o cientista escocês Sir David Brewster (1781-1868) publicou seu Treatise on the Kaleidoscope, descrevendo uma invenção que havia criada no ano precedente. Ele creditava a inspiração a numerosos experimentos sobre a polarização da luz, que ele vinha conduzindo desde 1814 e que envolviam o uso de espelhos colocados em ângulo. Tendo encontrado a posição do espelho e do olho mágico que resultaria em um padrão perfeitamente simétrico, ele decidiu patentear sua invenção, que propôs chamar de “visor de bela imagem”, em gre- go, kaleidoskópio. Entretanto, como ele afirmou, “como um dos instrumentos patenteados foi mostrado a alguns oculistas de Londres, as notáveis propriedades do caleidoscópio se tor- naram conhecidas antes que alguns exemplares pudessem ser preparados para venda. O furor provocado em Londres por essa prematura apresentação de seus efeitos não pode ser descrito, e pode apenas ser concebido por aqueles que o testemunharam (…) De acordo com o cálculo daqueles que estavam mais aptos a formar uma opinião (…) não menos do que 200 mil instrumentos foram vendidos em Londres e Paris durante três meses. Desse número imenso, talvez não haja mil capazes de dar uma ideia correta do poder do caleidoscópio.” Brewster tinha expectativas muito altas acerca desse poder. Um dos capítulos de seu livro é devotado à aplicação do caleidoscópio às “artes belas e úteis”. Ele estava certo de que seu instrumento não só pouparia o trabalho dos designers, como também faria muito melhor do que eles: “criaria em apenas uma hora o que milhares de artistas não poderiam inventar no decorrer de um ano; enquanto ele trabalha com inigualável rapidez, trabalha também com a correspondente beleza e precisão.” Ele passa pelas várias artes, do design das rosáceas góticas aos tapetes, mas também recomenda seu instrumento ao encadernador, ao arameiro e ao decorador de papel. De fato, Sir David esperava que o caleidoscópio originasse uma arte inteiramente nova, a arte da música colorida. Deveremos voltar a essa aspiração em outro capítulo. Aqui, vamos parar para perguntar por que mesmo as mais modestas expectativas que ele tinha para o desenvolvimento do design acabaram por se mostrar bastante ingênuas. Afinal, não há dúvida de que gostamos de olhar para as configurações regulares que nos são apresentadas pelo calei- doscópio. Eu mesmo sou um devoto desse instrumento e gosto de compartilhar meu prazer com outros. Normalmente, respondem com deleite, mas, após umas poucas exclamações de “ah” e “oh”, eles o colocam de lado e falam sobre outras coisas. Várias razões podem ser aduzidas para essa reação desapontadora. A primeira surge das considerações às quais o último capítulo foi devotado: a visão através do caleidoscópio, com seus múltiplos espelhos que resultam em múl- tiplas simetrias, exibe máxima redundância. A configuração, como tal, mostra aquele “repouso” e equilíbrio que contribuem para certo grau de monotonia. É verdade que o instrumento de Brewster supera essa falha, porque sempre podemos mudar o padrão, de acordo com nossa vontade, ao girar o caleidoscópio. Naturalmente, apreciamos a surpresa da nova imagem, mas isso logo passa. Quando vimos um segmento, vimos todos eles. Pouco é deixado para que o olho explore. Gombrich_06.indd 149Gombrich_06.indd 149 18/06/12 15:4018/06/12 15:40 150 Segunda parte: A percepção da ordem Sob certo aspecto, porém, essa interpretação explica demais. Não estava certo o inventor quando recordou as rosáceas góticas (Lâm. 45) como configurações do tipo produzido em sua máquina? Alguém chamaria esses milagres do design de monótonos? É verdade que algumas janelas em forma de roseta, como vimos, contrapõem-se aos efeitos da perfeita simetria por meio de al- gum elemento dinâmico da variedade vórtice, que é inacessível ao caleidoscópio, mas isso ainda não é a resposta completa. A resposta é certamente que a ideia de uma forma pura é sempreuma abstração artificial. A janela em forma de roseta em uma catedral gótica não é, evidente- mente, o resultado do acaso produzido em um gracioso brinquedo. Não podemos divorciar a impressão que causa de nosso conhecimento sobre a habilidade do artesão e da compreensão do significado. A incapacidade do caleidoscópio de sobreviver às expectativas de seu inventor deveria oferecer alimento para o pensamento dos defensores da arte computacional. Não é que tanto os computadores, ou mesmo o caleidoscópio, devam ser descartados como instrumentos de exploração, quando se trata de investigar os efeitos visuais da ordem. Originalmente, Brewster usava desenhos simples com linha para seu experimento (Fig. 168). É, de fato, mais interessante ver como o que parece, isoladamente, com uma garatuja sem sentido perde sua identidade no formato maior e se mistura aos padrões gerais estrelados. Inter- rupções e lacunas nos alertam sobre a presença de objetos em nosso campo de visão e, onde essas lacunas são fechadas, tais objetos se fundem em conjuntos maiores. O que é ainda mais interessan- te é que as próprias interrupções ficam, por assim dizer, desvalorizadas, quando se tornam parte do padrão geral. A redundância parece drenar o elemento individual de muito de seu significado e caráter. Podemos ver isso melhor, ao olhar as figuras classicizantes que Brewster recomenda para seu instrumento (Fig. 169). Essas figuras se fundem ao padrão do arranjo de cinco raios, o qual ele ilustra e se tornam meras fichas no jogo da reflexão mútua. O caleidoscópio é, portanto, um ponto de partida ideal para a exploração dessa mútua interação entre coisas e padrões. O tipo que tínhamos quando criança podia ser preenchido Figs. 168 e 169 De Sir David Brewster, Treatise on the Kaleidoscope, 1819 Gombrich_06.indd 150Gombrich_06.indd 150 18/06/12 15:4018/06/12 15:40 VI Formas e coisas 151 com quinquilharias, contas, botões ou fios, e muito de sua magia dependia precisamente do modo como esses pequenos objetos medíocres e triviais eram transfigurados em coisas belas, ao se tornarem constituintes de padrões inesperados. A mais encantadora e mais instrutiva versão do caleidoscópio apenas recentemente che- gou ao mercado. Contém uma fenda através da qual podemos olhar o mundo real, e nos per- mite observar como nosso desorganizado ambiente é transformado em algo de ordenada beleza por meio dos múltiplos espelhos dentro do tubo. É possível fotografar o efeito e mostrar como uma rua comum de cidade ou um objeto não mais romântico do que uma caixa de telefone podem ser metamorfoseados em uma estrela (Lâm. color. VIII). Esse efeito é de fato impres- sionante. Em vez de um mundo que nos inunda com informações variadas e confusas demais para lidarmos com elas, olhamos para um reino de simples ordem, que podemos experimentar com facilidade. Mas adquirimos essa ordem às custas do significado. Mesmo ali onde as coisas individuais visíveis através da abertura não são fragmentadas pela fenda, elas perdem sua identi- dade tão completamente quanto as figuras de Brewster, se não mais. Deve haver um conflito, ou ao menos uma tensão, entre as duas funções da percepção às quais nos referimos no começo, a percepção das coisas e a percepção da ordem. Por coisas, quero dizer aqui, elementos em nos- so ambiente que têm um significado para nós em matéria de sobrevivência e de interesses. As coisas podem ser obstáculos ou objetivos, podem apresentar perigos ou atrativos. Em cada caso, elas têm significado. Pode-se dizer sobre o que chamei de sentido de ordem que serve, antes de mais nada, para nos orientar no espaço e no tempo e para que encontremos nosso caminho em relação às coisas que buscamos ou evitamos. Foi a serviço dessa função que encontramos a “hipótese da simplicidade”, de tão imensa utilidade para o organismo. Ela permite que se con- sidere as coisas como lidas e que se preste atenção seletivamente aos significados individuais. A percepção da regularidade, da repetição e redundância, apresenta uma boa economia. Diante de uma coleção de objetos idênticos, quer sejam as contas de um colar, as lajes de uma calçada, quer sejam as colunas de uma construção, rapidamente formamos a hipótese preliminar de que estamos sendo confrontados a uma disposição ordenada, e de que precisamos apenas classificar os elementos em busca de redundâncias, fazendo nosso olho percorrer o conjunto da série, e apenas nos fixando em um componente repetido. 2 Repetição e significado Os “artistas pop” recentemente exploraram esse efeito com referência direta às tendências despersonalizadoras das mídias multiplicadoras. Coloque um retrato de Marilyn Monroe em uma série (Fig. 170), e o que deveria ter sido um indivíduo se torna um mero estereótipo ou registro. Individual, afinal, significa indivisível, mas o repetido nos convida a desconsiderar essa própria característica. Em vez de nos fazer concentrar na imagem única por meio do escrutínio das feições do retrato, tenta-nos a escolher qualquer elemento, seja o olho, a boca, seja uma mera sombra, que se fundem em um novo padrão, como no caleidoscópio. Olhos repetidos em uma fileira não são mais os olhos de alguém em particular. Uma experiência similar é conhecida pelos psicólogos da linguagem, e muitos de nós a descobrimos de maneira independente em nossa infância. Se uma palavra é repetida por um número de vezes suficiente, parece ser drenada de significado e se torna apenas um mero ruído intrigante. Tentemos pronunciar a palavra “sentido” umas cinquenta vezes seguidas e começaremos a imaginar como jamais conseguiríamos nos expressar por meio desse estranho som. Uma das razões para essa experiência é a desintegração do padrão sonoro pela repetição. Em vez das três sílabas que chegam em sua ordem correta, iremos também ouvi-las agrupa- das ao inverso, “dotisen”, e isso, evidentemente, não faz sentido. Procurar por ordem é testar agrupamentos alternativos, como vimos amplamente no capítulo anterior. Essa tendência irá se fixar em qualquer tipo de redundância às expensas do significado. Ordem e significado parecem exercer impulsos contrários, e sua interação consti- tui a própria trama das artes decorativas. O designer, não menos do que o observador, deve Gombrich_06.indd 151Gombrich_06.indd 151 18/06/12 15:4018/06/12 15:40 http://interesses.as/ 152 Segunda parte: A percepção da ordem experimentar o grau em que a repetição desvaloriza o motivo, enquanto o isolamento su- blinha seu significado potencial. Não é de estranhar que qualquer objeto que se torna um elemento em um padrão repetido quase peça para ser “estilizado”, isto é, simplificado em termos geométricos. Não conheço ilustração mais aguda desse efeito de redundância do que o desenho de Max Beerbohm que ridiculariza a vaidade de Henrik Ibsen (Fig. 171), no qual mesmo o papel de parede ecoa o retrato do grande homem em um floreio decorativo. Brincadeiras à parte, o dever do artista decorativo de subjugar as formas individuais de plantas e animais, ao reduzi-las a motivos “estilizados”, foi um dogma central das escolas de design vitorianas. Encontramos essa hostilidade ao naturalismo na discussão sobre ornamentos murais, têxteis e outros, que a ortodoxia demandava que fossem planos, de modo a não per- turbar o olho com uma profundidade fictícia (Fig. 34). Além do mais, a natureza viva nunca irá repetir a si mesma de modo tão exato quanto o demandado pelo designer de padrões. Ele devia reduzir sua variedade em seus designs florais ou animais, ainda que seu grau de aproximação da abstração geométrica fosse uma questão de gosto e costume (Fig. 172). É bem sabido que os partidários dos designs convencionalizados têm um formidável oponente em John Ruskin, Fig. 170 Andy Warhol: Marilyn Monroe. 1962 Gombrich_06.indd 152Gombrich_06.indd 152 18/06/12 15:4018/06/12 15:40 VI Formas e coisas 153 Fig. 171 Max Beerbohm: Henrik Ibsen recebendo William Archer. 1904 Fig. 172Aster Alpinus e seu tratamento ornamental (F. E. Hulme, 1874) Gombrich_06.indd 153Gombrich_06.indd 153 18/06/12 15:4018/06/12 15:40 154 Segunda parte: A percepção da ordem para quem a Natureza nunca poderia errar. Em vez de depreciar e matar as formas vivas para seu uso degradado como ornamento, ele queria que as formas fossem animadas e imbuídas de vida própria. Portanto, não poderia ter nada além do que admiração pelos monstros grotescos criados por pedreiros góticos, e nada além do que desprezo pelos nítidos padrões florais repe- tidos dos decoradores renascentistas. Ruskin nos fala sobre um memorável debate entre os defensores da ortodoxia decorativa e ele mesmo. A passagem aparece em The Two Paths, no qual discute o estilo convencional dos selvagens, que não podia deixar de admirar, embora o associasse à degradação moral. Ele não nomeia seu oponente, mas sabemos por meio de suas notas que se tratava de R. N. Wornum, autor de The Analysis of Ornament e uma figura proeminente no movimento de reforma. “Meu amigo tem sustentado que a essência do ornamento consiste em três coisas: – contraste, séries, e simetria. Repliquei (por carta) que ‘nenhum deles, nem todos juntos, iriam produzir ornamento. Aqui [Fig. 173a] – (fazendo uma mancha irregular com o dorso de minha caneta no papel) –‘você tem contraste; mas isso não é ornamento; aqui: -1,2,3,4,5,6,’ – (escrevendo os numerais) – ‘você tem uma série; mas isso não é ornamento: e aqui [Fig. 173b]’ – (esboçando a figura ao lado) – ‘você tem simetria; mas isso não é ornamento’. Meu amigo replicou: – ‘Seus materiais não eram ornamento porque você não os aplicou. Mando-os de volta a você, transformados em um elegante e esportivo lenço de pescoço’” (Fig. 174). Não é preciso dizer que Ruskin não era alguém que desistia de sua posição tão facil- mente. Ele corretamente observou que o design de Wornum mostrava mais do que uma mera aplicação mecânica de seus três princípios, e não conseguiu se abster de um comentário des- denhoso sobre lenços esportivos. Cerca de 50 anos depois, um professor de desenho de Birmingham, Frank G. Jackson, ainda achava o experimento suficientemente interessante para incluí-lo em seu livro-texto Decorative Design (Londres, 1897). Tentando responder aos apontamentos de Ruskin, um a um, ele observou que “não devemos presumir que a adaptação feita pelo amigo dos materiais que lhe foram fornecidos tenha sido perfeita, não admitindo nem mudança, tampouco varia- ção (...) Pelo contrário, (... ) esse foi apenas um dos muitos modos em que podiam ter sido reunidos” (Fig. 175). Por meio de hábil manipulação de seu pouco promissor material, Jackson até conseguiu transformar as manchas em sugestão de folhas e o homúnculo de Ruskin em algo parecido Fig. 173 Fig. 174 a b Gombrich_06.indd 154Gombrich_06.indd 154 18/06/12 15:4018/06/12 15:40 VI Formas e coisas 155 com um vaso de flores – demonstrando aquele poder de “leitura interna” que é inseparável dos processos que chamei de “reificação” e “animação”. Mas o que mais diz respeito aos es- tudiosos das formas nessa sequência é, acima de tudo, a complementaridade entre significado e padrão. Coloquemos o borrão de Ruskin no centro de um campo vazio, e ele irá formar o foco de atenção, com todos os efeitos cômicos que contribuem para o significado intencio- nado. Acrescentemos elementos simétricos de cada lado, e qualquer motivo central, não mais camuflado pela repetição, irá se destacar e demandar atenção. 3 “Campos de força” De fato é como se o olho – ou antes a mente – fosse atraído pela linha de menor resistência e desistisse de buscar sentido, a fim de assimilar a ordenação. No capítulo anterior, observa- mos algo sobre essa dinâmica de configurações ordenadas. Não admira que a primeira teoria a explorar essas características procurou encontrar evidência da existência de um campo de força físico real no cérebro. Tendo optado por uma teoria alternativa, o “campo de força” se tornou para nós nada mais do que uma metáfora, mas, como uma metáfora, ilumina o pode- roso efeito das simetrias e correspondências. No caleidoscópio, a simetria radial impulsiona o olho em direção ao centro, a partir do qual as redundâncias são mais facilmente exploradas. Inversamente, os elementos repetidos, como vimos, perdem algo de sua identidade quando se fundem com a forma geral. Se são necessários termos para descrever esses efeitos conhecidos do “campo de força”, eu sugeriria “intensificação posicional” para a mudança para o centro privilegiado, e “atenua- ção posicional” para o dispositivo oposto. A linguagem reconhece essa distinção ao descrever uma matéria como sendo de “central importância” e outra como meramente “marginal” ou “periférica”. O número de arranjos decorativos que aplicam esses efeitos gêmeos constitui uma legião. Quer pensemos em jardinagem, arquitetura ou em nada mais solene do que tra- balhos domésticos, podemos encontrar exemplos onde quer que olhemos. Adornamos um Fig. 175 De F. G. Jackson, Decorative Design. 1897 Gombrich_06.indd 155Gombrich_06.indd 155 18/06/12 15:4018/06/12 15:40 156 Segunda parte: A percepção da ordem prato com uma fileira de pepinos ou ovos cozidos, decoramos um bolo com um padrão de cerejas (Fig. 176). Cada vez que um pedaço é assim posto a serviço de uma ordem visual, sua identidade culinária se torna ligeiramente atenuada, seu sabor importa menos do que sua aparência. O mais estranho é que seja diferente com o centro do prato, que é tão orna- mentado. Aqui, o próprio fato de ser emoldurado realça sua qualidade particular, quase sua dignidade, por assim dizer. Serve como um foco de atenção e expectativa. A cereja no centro do bolo é, sobretudo, uma cereja. Podemos observar reações instintivas a esse campo de força em qualquer atividade que se baseie em arranjo. Tomamos como certo que em uma cerimônia o personagem importan- te estará no centro, flanqueado por figuras cuja identidade ou dignidade é menos importante, e que servem, sobretudo, para destacar aquela do protagonista (Fig. 177). Tanto no ritual como no teatro, no campo de manobras ou em uma plataforma, sabemos muito bem o que significa se mover para o centro do palco, ainda que raramente perguntemos por que o centro adquiriu esse forte acento emocional e perceptivo. Voltamos aqui, mais uma vez, ao estranho objeto que consideramos no começo dessa investigação – a ornamentada e suntuosa moldura da Madonna della Sedia, de Rafael (Lâm. 1). Sem uma moldura, não pode haver centro. Quanto mais ricos os elementos da moldura, mais o centro irá ganhar em dignidade. Não se pretende que os examinemos individualmente, Fig. 177 Um sacrifício a Ísis. Mural de Pompeia Fig. 176 Gombrich_06.indd 156Gombrich_06.indd 156 18/06/12 15:4018/06/12 15:40 VI Formas e coisas 157 apenas que sejam sentidos marginalmente, e mais uma vez “marginalmente” aqui oscila entre uma mera metáfora e uma descrição literal. A moldura, ou a borda, delimita o campo de força, com seu gradiente de significado crescendo em direção ao centro. Tão forte é esse sentimento de um impulso organizador que tomamos como certo que os elementos do padrão são todos orientados no sentido de seu centro comum. Em outras palavras, o campo de força cria seu próprio campo gravitacional. O que está acima ou abaixo, fora da moldura, é uma questão de indiferença comparativa dentro do mundo fechado do padrão. As máscaras e folhas de acanto em torno do Rafael giram com a moldura, e não sentimos desconforto ao ver essas cabeças invertidas. Elas estão na posição correta quando vistas a partir do centro. O que todos esses exemplos indicam é o modo como a ordem trabalha no sentido da coesão. Não há exemplo mais óbvio da importância de tal correspondência do que a arquite- tura. Os tímpanos laterais de um arco irão refletir um ao outro em sua decoração e, portanto, nos darão a sensação de que o arco está perfeitamente unido (Lâm. color. VI). Voltamosaqui à metáfora da sensação de equilíbrio proporcionada pelos “designs equilibrados”. Esse apelo da simetria é tão universal que os arquitetos se submeteram a sua exigência na maior parte dos estilos de construção por todo o globo (Lâm. 5). De fato, não foi realmente antes deste século que surgiu um protesto consciente contra a tirania da fachada simétrica, o domínio da ordem sobre as demandas das considerações práticas no arranjo de quartos e janelas. A casa assimétri- ca parecia, nos séculos anteriores, uma realização meramente fragmentária, o produto de um acidente em vez de planejamento. 4 Projeção e animação É precisamente ao drenar os elementos individuais de sua identidade que a ordem geral os faz fundirem-se em uma unidade maior, que tende a ser percebida como um objeto só. Se o caleidoscópio nos permite estudar esses efeitos contrários da fragmentação e da integração, há outra ferramenta experimental que ilustra o poder dos campos de força na criação de signifi- cados por si mesmos. Refiro-me ao chamado teste de Rorschach, originalmente destinado ao diagnóstico psicológico. O teste usa manchas de tinta que são dadas a sujeitos, a fim de testar suas interpretações dessas formas aleatórias (Fig. 178). O que importa em nosso contexto não é o valor diagnóstico desse procedimento, mas o fato de que se achou vantajoso usar man- chas de tinta simétricas para extrair interpretações. Muito provavelmente a mancha aleatória parece demais com o que realmente é, um borrão de tinta, para estimular a imaginação. Mas qualquer dessas manchas de tinta ou de pintura pode facilmente ser transformada em uma forma predominantemente simétrica, mesmo sem o caleidoscópio, simplesmente dobrando o papel enquanto a tinta está úmida. São tais formas duplas que em geral são usadas nos testes de Rorschach. A configuração simétrica perde seu aspecto acidental e, portanto, nos convida Fig. 178 Gombrich_06.indd 157Gombrich_06.indd 157 18/06/12 15:4018/06/12 15:40 http://padr�o.as/ 158 Segunda parte: A percepção da ordem a procurar por uma descrição significativa. Talvez seja relevante aqui que tantos objetos em nosso ambiente exibam simetrias. Quase todos os organismos o fazem e não é surpreen- dente que borboletas ou rostos sejam vistos nessas manchas. Mas talvez haja algo a mais nessa tendência de projetar algum significado primordial na mancha simétrica. A simetria, como vimos, implica coesão. O conjunto do formato ou campo deve ser governado por um prin- cípio ou lei inerente, e é essa convicção instintiva que faz a forma ordenada se impor como candidata ao escrutínio. Uma vez que é improvável que tenha surgido por uma mera mistura de formas e cores, deve ser classificada como um objeto em si mesma, e como tal, devemos ser capazes de lhe atribuir um significado e um nome. O que deve nos interessar aqui é o fato de que esse processo de identificação, o qual é tecnicamente conhecido como projeção, invariavelmente afeta o modo como a mancha é vista. Encontramos esse efeito quase no final do capítulo precedente, onde usei a figura do “coe- lho ou pato” (Fig. 165) para justificar a distinção entre percepção de padrão e percepção de coisas. Essa é uma distinção feita a partir da “série mental”, mais do que a partir da forma em vista. No caso do teste de Rorschach, somos solicitados a ver a configuração aleatória em termos de coisas, e ao realizarmos esse jogo em nossa imaginação, podemos também atentar para o modo como a escala e a orientação da forma parecem flutuar, à medida que experimentamos novas leituras. Po- demos ver, de cima, a Figura 178 como um inseto com asas abertas; virado de cabeça para baixo, pode facilmente se tornar um rosto com sobrancelhas espessas e bigodes pesados. É sempre diver- tido pensar em outras interpretações, que irão mais uma vez alterar a orientação da mancha. Tão logo uma forma é identificada como uma coisa ou uma criatura, ela se transforma. Não é à toa que artistas não figurativos combatem a tendência de buscar elementos representacionais em suas formas e cores, pois tais projeções podem ter o mais perturbador efeito na pretendida dinâmica da forma. O significado pode subverter a ordem, assim como a forma pode subverter o sentido. É uma vantagem do conceito de projeção não precisarmos perguntar onde, nos designs de padrões, os motivos geométricos terminam e os representacionais começam. Os próprios no- mes que tendemos a dar a algumas configurações básicas indicam que há uma terra de ninguém entre o design abstrato e o figurativo. Falamos em formas estreladas, linhas onduladas, vórtices, formas radiantes, de redes, padrões axadrezados, ovo e dardo, rosetas, sem implicar qualquer in- tenção representacional. Devemos voltar aos problemas dos significados simbólicos atribuídos a tais diferentes motivos em vários estilos. O que nos interessa aqui é o efeito perceptivo de nossa projeção, que vai além do mero reconhecimento de um motivo individual. Nossa resposta a diferentes estilos decorativos é governada pelo modo como lemos seus motivos. Fiz referência ao ditado de que “não podemos achar nem pé nem cabeça” diante de uma visão que nos deixe perplexos. O acréscimo de pés e cabeças não apenas oferece a expli- cação, ele transforma o que era uma mera confusão de linhas em uma contorcida laçaria de dragões em luta, tais como os que conhecemos da arte celta e escandinava (Fig. 179). Onde predominam os motivos vegetais, como no arabesco, somos guiados de modo diferente. Plan- tas podem não ter pés e cabeças, mas têm raízes e ramos ou brotos. Podemos vê-las crescer, girar, entrelaçar-se, estender-se ou espremer-se nos cantos. Não precisamos perguntar por que os motivos florais eram tão frequentemente usados pelos decoradores no mundo todo. O apelo da flor e o desejo de perpetuar sua beleza em Fig. 179 Parte de um arreio em bronze dourado de Vallstena, Gotland. Séc. VII d.C. Gombrich_06.indd 158Gombrich_06.indd 158 18/06/12 15:4018/06/12 15:40 VI Formas e coisas 159 rápido desaparecimento falam por si mesmos. O que pode escapar mais facilmente à nossa atenção é o efeito que a representação das flores pode ter sobre o grau de organização formal. Que isso não é um efeito necessário é demonstrado pelos estilos do antigo Oriente, em que flores, botões de flor e folhas são estritamente formalizados e uniformizados em padrões re- petidos (Fig. 180) – mas esse tratamento está de acordo com a rigidez comparativa de toda a arte figurativa nessas culturas. O outro extremo é atingido na decoração do Extremo Oriente, onde é permitido à planta que cresce livremente produzir seu efeito sem a ajuda da simetria ou da repetição, do enquadramento, preenchimento, e vinculação (Lâm. 41). A medida de li- berdade concedida aos motivos florais como distintos das formas geométricas iria certamente resistir à tabulação. Observamos o contraste no prato grego entre a borda frisada e a coroa on- dulante (Lâm. 25). Há menos liberdade na persistente e influente tradição de designs para seda, bem como outros têxteis que favorecem ornamentos repetidos, também por razões técnicas, ainda que o motivo de planta em forma de uma “romã”, em geral, retenha sua orientação, seu sentido de crescimento, particularmente quando é combinado com um vaso (Fig. 181). Mas aqui, como no exemplo anterior, um maior naturalismo também conduz a uma maior liber- dade nos motivos Mille-fleurs das tapeçarias góticas (Lâm. color. XI). Certamente, designers, em muitas culturas, tentaram espalhar flores por todo o campo em uma profusão e variedade que não teriam sido concedidas a formas não interpretadas (Fig. 182 e Lâm. color. I). Podemos testar essa interação entre forma e significado, tomando o padrão que nos serviu no capítulo precedente como um exemplo de design inquieto (Fig. 130a). Interpre- temos os círculos e triângulos como motivos florais e não mais nos sentiremos atraídos do mesmo modo (Fig. 183). Sabemos que as flores são isentas das demandasde ordenação. Uma das vantagens de espalhar brotos, em vez de flores em crescimento (Fig. 182), tem atraído frequentemente os designers de tecidos – o pano pode ser usado em qualquer direção sem parecer distorcido. Em designs mais formais, o modo como o observador irá reagir depende muito da escolha de motivo e contexto. Notando os pássaros que pousam nas folhas de um damasco Lucchese Fig. 180 Pavimento de Nimrud. Séc. IX a.C. Gombrich_06.indd 159Gombrich_06.indd 159 18/06/12 15:4018/06/12 15:40 160 Segunda parte: A percepção da ordem do século XV (Fig. 184), lemos o conjunto do campo como uma rede de plantas e bagas que obedece à gravitação. Mas, na seda siciliana da Figura 185, os pássaros se tornam subordinados ao “campo de força” criado pela simetria. A habilidade e o tato do designer podem fazer os motivos representacionais, tanto estilizados quanto naturalistas, responderem a esses e a ou- tros impulsos naturais, contrapô-los, ou mesmo joguar com eles. Os florões e remates góticos geralmente seguem a direção ascendente da decoração, mesmo quando as folhas se curvam para trás (Fig. 186). Em estilos posteriores, as guirlandas pendem pesadamente, as fitas ondulam no ar, as borlas ficam balançando em cordões, e as faixas entrelaçadas se retorcem como se seguissem as leis de algum material imaginário. Dentro do contexto representacional, mesmo as estruturas e vinculações geométricas podem chegar a ser “reificadas”, dotamo-las com qua- lidades sensoriais como maciez ou aspereza, elasticidade ou inércia, flexibilidade ou rigidez. As terminações espiraladas sugerem o retorcimento da matéria elástica (Fig. 138), a angularidade parece aguda e frágil. A cobertura esmaltada de um vaso chinês é vista a se espalhar ou gotejar de uma área a outra (Fig. 187). Mesmo motivos inanimados, em outras palavras, começam a participar de nossa experiência de movimento e toque. Percebemos o que J. J. Gibson chama de affordance deles, sua resposta potencial a ser manuseado. Olhando outra vez para o nosso exemplo padrão, a moldura da Madonna della Sedia, de Rafael (Lâm. 1), podemos confirmar essa transição sem esforço da representação à decoração. Fig. 181 (esq.) Design de tecido italiano com padrão de vaso. Final do séc. XV, início do séc. XVI (R. Glazier, 1923) Fig. 182 (sup.) Material florido Fig. 183 Desing de flores espalhadas Gombrich_06.indd 160Gombrich_06.indd 160 18/06/12 15:4018/06/12 15:40 http://rigidez.as/ VI Formas e coisas 161 A pintura nos apresenta, de modo bastante natural, a superfície e o caráter dos corpos em repouso e movimento, a textura e a flexibilidade dos drapeados e orlas, a solidez do torneado e a órbita intangível do halo. Se transferimos nossa atenção para a moldura, também não nos resta dúvida alguma sobre as qualidades táteis de seus motivos. A coroa de louros está tensa- mente esticada, as folhas de acanto no círculo interior se enroscam dentro de seus sulcos, e mesmo as formas que carecem de uma clara identidade representacional são sentidas como espirais e se enroscam elasticamente, como poderiam fazer as aparas de madeira. Aqui tam- bém a introdução de elementos representacionais afeta o modo como olhamos o conjunto da configuração. A animação se estende a quase todas as linhas mais geométricas. Fig. 186 Florões e remates góticos (C. B. Griesbach) Figs. 184 e 185 Damasco Lucchese, séc. XV, e seda siciliana, séc. XIII (R. Glazier, 1923) Gombrich_06.indd 161Gombrich_06.indd 161 18/06/12 15:4018/06/12 15:40 162 Segunda parte: A percepção da ordem É esse jogo oscilante entre representação, ficção e pura forma que estabelece ainda outra dimensão para o decorador em sua construção de hierarquias. Há ficções dentro de ficções, representações dentro de representações, sendo que todas podem, isoladamente ou combinadas, servir para esclarecer ou transformar a estrutura que deve ser decorada. Tomemos o trabalho em gesso sobre chaminé de uma casa escocesa do século XVIII (Fig. 188) (hoje Fig. 187 Jarro chinês de grês. Séc. VIII-IX d.C. Fig. 188 Trabalho em estuque na Fullarton House, Ayrshire. Atribuído a J. Enzer. Cerca de 1730 Gombrich_06.indd 162Gombrich_06.indd 162 18/06/12 15:4018/06/12 15:40 VI Formas e coisas 163 lamentavelmente demolida), com motivos que vão de gregas puramente geométricas a flores, frutos e mesmo putti naturalistas. Nossa reação é inseparável de nossa experiência passada. Os motivos geométricos parecem rígidos, a folhagem, macia e flexível. A voluta simétrica que flanqueia o motivo do tipo concha se espalha e se enrosca, os festões pendem com leveza, as borlas, mais pesadamente. As cornucópias estão cheias a ponto de transbordar, e a urna com as atarefadas crianças é compreendida imediatamente como uma representação dentro da re- presentação. Observando a nós mesmos, descobrimos que nossa resposta depende completa- mente de nossa apreensão dos vários graus de realidade implicados nessa fantasia decorativa. A estrutura da chaminé é mais sólida e permanente do que os motivos dispostos em torno dela, que assim ganham o ar de decoração temporária para uma ocasião festiva. Temporariamente, e ainda assim de modo duradouro, eles perpetuam o tributo floral e a disposição alegre. Este é o momento para recordarmos a convicção dos designers vitorianos de que havia um intransponível abismo entre a representação naturalista e a decoração. Suas razões para ba- nir o naturalismo se amparam especialmente no efeito que observamos de transformar o solo em fundo ou espaço. Experienciam um conflito entre a coisa real no espaço, seja um vaso, um papel de parede, seja um tapete (Fig. 34), e o espaço fictício ou virtual dos motivos pictóricos. Não precisamos negar que tal conflito pode ser dissonante, particularmente se nossa atenção é dirigida a ele. Mas até certo ponto, essa tensão é comum a toda decoração. A decoração, quase por definição, é aplicada a coisas e objetos de nosso entorno. Nós os vemos como coisas e também vemos o padrão decorativo. Os dois processos irão inevitavelmente interagir, e é para essa interação que devemos nos voltar. 5 Decoração No terceiro capítulo deste livro, a decoração foi descrita como um caso especial de superpo- sição de um padrão sobre outro. Coisas feitas pelo homem são normalmente articuladas de algum modo previsível, de acordo com a estrutura e a função. Algumas das razões para essa preferência foram mencionadas na Introdução. Elas radicam em parte na facilidade de monta- gem de unidades simples padronizadas e, consequentemente, também em sua adaptabilidade ao trabalho em grupo. Voltando ao nosso exemplo padrão de lajotas versus pavimento irregu- lar, podemos ainda lembrar que a facilidade de construção e a de percepção frequentemente andam juntas. Tendo há pouco destacado o papel que o hábito e a rotina desempenham em nossa percepção das formas decorativas, podemos então encontrar outro ponto de contato entre o modo como uma coisa é feita e o modo como é vista. No desenvolvimento de técnicas, os engenheiros chamam de chunks as unidades de mo- vimentos a partir das quais uma técnica maior é construída em ordens hierárquicas – assim, os exercícios de cinco dedos ensinam ao iniciante chunks de execução do piano que ele pode usar ou modificar em uma futura performance, sem ter de conscientemente prestar atenção neles. Há também chunks na percepção de estruturas? O exemplo da leitura parece sugerir que há, assim como a experiência de olhar para construções com um estilo familiar também sugere que sim. Podemos captar os elementos constituintes, as portas e janelas, as colunas e pilastras, com muito maior facilidade do que podemos absorver as construções exóticas. Há uma interessante passagem na Óptica de Ptolomeu, datada do século II d.C., que pode ser lida como uma sutil confirmação desse papel dos hábitos perceptivos em nossa reação às construções. Ao discutir ilusões visuais que surgem de inferências errôneas,o autor observa que as partes mais altas tendem a parecer mais amplas do que são – assim, as portas ou fachadas que são retângulos verdadeiros parecem ser divergentes na parte superior. Ele sugere que essa ilusão se deve à nossa expectativa de encontrar a disposição oposta, pois normal- mente a base é mais ampla do que o topo, de modo que o edifício se adelgaça. Talvez o fato de que ele estivesse escrevendo no Egito dê uma pista sobre essa estranha passagem, pois, no Egito antigo, não apenas as pirâmides, mas também os pilones, eram construídos de acordo Gombrich_06.indd 163Gombrich_06.indd 163 18/06/12 15:4018/06/12 15:40 http://constru��es.ao/ Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra. Capa Formas e coisas O caleidoscópio Repetição e significado "Campos de força" Projeção e animação
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