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Um estudo comparativo das seis Cons- tituições brasileiras (as de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967), no que toca à educação e à cultura, faz saltar aos olhos um divisor de águas: a Constitui- ção da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de junho de 1934. 62 NOVOS ESTUDOS N.º 14 Em que consiste esse corte que a sim- ples leitura dos textos legais deixa tão evidente? Não se trata apenas do peso, bem di- verso, conferido à questão do ensino e à sua administração em todo o país. Trata- se de uma diferença qualitativa. É o pró- prio teor das preocupações com o ensino que muda significativamente no período que se segue à Revolução de 1930 e se traduz pela fórmula jurídica de 1934. Nas duas Constituições que a precede- ram, a do Império, outorgada por Pedro I logo depois de ter dissolvido a nossa primeira Assembléia Constituinte, e a da República, recém-proclamada, a concep- ção de Estado, imanente em ambas, tra- zia o selo do iluminismo burguês. O Es- tado do século XIX brasileiro restringia- se a atender, em tudo quanto lhe fosse possível, às demandas de segurança das oligarquias que o sustentavam, relegando a um vasto e obscurecido pano de fundo as necessidades e as aspirações de um po- vo sem terra, sem dinheiro e sem status. A linguagem que exprimia essas ten- dências particularistas aparentava, contu- do, um ar universalizante. O que, longe de ser um paradoxo exclusivamente na- cional, afinava-se com a retórica liberal do Ocidente, onde coexistiam liberalismo e violenta exploração do proletariado. Quando se abre a Constituição Política do Império e se lê, no seu artigo 1.°, "O Império do Brasil é a associação política de todos os cidadãos brasileiros", ressalta um modo de dizer abrangente (todos os cidadãos), mas sabe-se que o seu referente era o contexto oligárquico e escravista, afinal a nossa maneira pe- culiar de viver o capitalismo naquela al- tura da divisão internacional da econo- mia. Os desequilíbrios reais, que se nive- lavam na abertura do texto mediante pro- testos de igualdade formal, seriam camu- flados, no corpo da Carta, pelo processo de omissão, toda vez que a Lei deveria enfrentar carências mais amplas que os interesses da classe privilegiada. Não eram a educação e a cultura, em princípio, direito de todos os cidadãos brasileiros, a crer na perspectiva dos ideais patrióticos que se espraiavam na caudalosa oratória da época? Sim, claro; mas nem a Constituição bragantina nem a republicana irão além do mero enun- ciado daquele mesmo princípio. Em ne- nhuma delas figura título ou secção es- pecial para contemplar os deveres do Es- tado para com a infância e a juventude. Em ambas, a educação vem tratada de forma sumária, em poucos e genéricos artigos, misturados com outros, de teor estranho ao tema, e subordinados ao assunto geral dos "direitos civis e polí- ticos dos cidadãos brasileiros". A Constituição do Império define co- mo "gratuita" a instrução primária (art. 179, § 32), mas não estabelece o seu ca- ráter obrigatório. E apenas prevê, no § 33, a existência de "Colégios e Univer- sidades, onde serão ensinados os elemen- tos das Ciências, Belas-letras e Artes". Nada mais. Durante a Regência, o Ato Adicional de 1834 transfere às Províncias a atri- buição de legislar sobre o ensino primá- rio e secundário, ambos, aliás, precarís- simos no Segundo Reinado¹. A Carta da República, na sua "Decla- ração de Direitos", ainda mais enfática ao proclamar a igualdade dos cidadãos brasileiros, levou ao extremo a sua par- cimônia na hora de propor o modus fa- ciendi pelo qual seria garantido ao povo o acesso àqueles mesmos direitos funda- mentais. Sobre educação, dispõe no ar- tigo 72: "Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos". A exigência de laicidade, cuidado úni- co do legislador, era sinal dos tempos, consumando o divórcio de Igreja e Es- tado, tema dos parágrafos anteriores, que disciplinam o casamento civil e os cemi- térios seculares. Listando as atribuições do Congresso Nacional, a Lei maior preceituava, no seu art. 35: § 2.º — Animar no país o desenvolvi- mento das Letras, Artes e Ciências ( . . . ) ; § 3.° — Criar instituições de ensino superior e secundário nos Estados; § 4.° — Prover a instrução secundária no Distrito Federal. Leia-se com atenção: o parágrafo 2.º é perfeitamente anódino ("animar". . . ) ; o 3.º a nada obriga, apenas lembra uma eventual iniciativa que os deputados fe- derais poderiam tomar ou não; só o 4.° emprega um termo de compromisso, "prover a instrução secundária", mas o limita à capital federal, então a cidade do Rio de Janeiro. O brilho da ausência revela o distan- ciamento do legislador em relação ao pro- blema da escolarização maciça do povo que cumpriria ao Poder Público agenciar. A República Velha funcionava como "um clube de fazendeiros", segundo a 1 Ver Maria de Lourdes Ma- riotto Haidar, O Ensino Se- cundário no Império Brasi- leiro, São Paulo, Grijalbo- Edusp, 1972. FEVEREIRO DE 1986 63 A EDUCAÇÃO E A CULTURA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS feliz expressão de Celso Furtado. Aos la- tifundiários era, de resto, fácil providen- ciar bons colégios particulares para seus filhos até que entrassem em alguma fa- culdade do país ou, melhor ainda, da Eu- ropa. A educação reduzia-se a assunto privado, de que a República poderia, na prática, desonerar-se. Quanto à popula- ção de baixa renda (já não falo da massa egressa da Abolição), não entrava na li- nha de conta da Constituinte de 91. Ape- sar de maioria absoluta, poderia ser tra- tada como quantité négligeable. Tanto é verdade que esse permaneceu o espírito da República Velha até o seu final, que a reforma da Carta de 91, pro- posta e aprovada em 1926, em nada al- terou os artigos então vigentes em ma- téria de ensino público. "Trinta" e a modernização do Estado brasileiro A crise da "República do Kaphet", como a apelidava Lima Barreto, forte- mente entrançada com a do capitalismo internacional em 29, cavaria largas fen- das na hegemonia oligárquica. A Revo- lução de 30, o movimento sindical anar- quista e comunista que a precedeu, o te- nentismo, o impulso reformista do Go- verno Provisório liderado por Getúlio Vargas, e, do lado oposto, o ideário pro- gressista de uma fração dissidente da bur- guesia de São Paulo, constituíam forças que, na sua interação, provocaram revi- sões fundas no quadro institucional do país. Foi nesse clima de "reconstrução na- cional" que se deram discussões acalora- das em torno dos grandes contrastes da nossa vida social e política: federalismo/ centralismo, agrarismo/industrialização, elite/massas. . . A Assembléia Constituinte de 1934 foi o teatro por excelência desses debates dos quais saiu uma Constituição sob vários aspectos inovadora, se comparada às do Império e da Primeira República. A Revolução de 30 e a Carta de 34 nos aparecem hoje, cada vez mais niti- damente, como balizas de um processo de modernização do Estado pelo qual este reconhece as carências de uma nação em desenvolvimento, e busca supri-las. É sintomático que só em torno de Trinta o pólo da responsabilidade social comece a mudar os títulos, os artigos e os parágrafos do texto constitucional. Então, e só então, introduz-se no cor- po da carta um título substancioso cha- mado "Da Ordem Econômica e Social", no qual se encarregam as indústrias e as empresas agrícolas de proporcionar ensi- no primário gratuito a seus empregados analfabetos (art. 139). Então, e só então, abre-se um capítulo especial para a educação e a cultura, incumbindo-se a União de "fixar o Plano Nacional de Educação, compreensivo do ensino de todos os graus e ramos, comuns e especializados; e coordenar e fiscalizar a sua execução, em todo o território do país" (art. 150, a ) . Então, e só então, institui-se como nor- ma "a tendência à gratuidade do ensino ulterior ao primário, a fim de o tornar mais acessível" (art.150, § único, b) . Então, e só então, prevê-se uma dota- ção orçamentária para o ensino nas zonas rurais, por meio de um percentual fixo que durante muitos anos permanecerá o mesmo, ou seja, 20% das cotas destina- das à educação no respectivo orçamento anual (art. 156, § único). A questão da gratuidade do ensino público Merece destaque a proposta de "ten- dência à gratuidade do ensino ulterior ao primário". A rigor, antes de 30, só os quatro primeiros anos de educação for- mal eram contemplados com a previsão da escola pública generalizada A Lei maior de 34, atribuindo à União a tarefa progressiva de fundar e manter escolas secundárias e superiores gratui- tas, dava um passo considerável para am- pliar a esfera da instrução popular. As Constituições seguintes não superariam, nesse campo, a formulação de 34. A Lei do Estado Novo (1937) é inci- siva apenas no caso do "ensino pré-voca- cional e profissional destinado às classes menos favorecidas", que declara ser "o primeiro dever do Estado". Suas dispo- sições, porém, são vagas quando se re- fere aos ginásios e às universidades; estas ficam diluídas no elenco das "institui- ções artísticas, científicas e de ensino" que o Estado deverá proteger ou criar. A Constituição de 46, neoliberal, res- sentiu-se de uma certa timidez no trato da democracia econômica e social. Com- parem-se as formulações sobre o ensino "ulterior ao primário": Na Carta de 34 (texto já citado): "ten- 64 NOVOS ESTUDOS N.º 14 dência à gratuidade do ensino educativo ulterior ao primário, a fim de o tornar mais acessível" (art. 150, § único, b); Na Carta de 46: "o ensino primário oficial é gratuito para todos; o ensino oficial ulterior ao primário sê-lo-á para quantos provarem falta ou insuficiência de recursos" (art. 168, item I I ) . Limitando a gratuidade das escolas se- cundárias e superiores públicas tão so- mente aos alunos que de fato provassem míngua de recursos (isto é, aos que tes- temunhassem, perante a Escola e a Lei, a sua pobreza), a Constituição de 46 abria caminho para uma figura híbrida, o ensino público pago. A Constituição de 67 e a sua Emenda de 69, que até agora nos regem, confun- dem ainda mais as águas do público e do privado que o espírito de 34 tendia a se- parar. Diz a Carta emersa do golpe de 64: "Sempre que possível, o Poder Públi- co substituirá o regime de gratuidade pe- lo de concessão de bolsas de estudo, exi- gido o posterior reembolso no caso de ensino de grau superior" (art. 168, § 3.°, item III) . A redação do mesmo dispositivo na Emenda de 69 (promulgada por uma Junta Militar) tenta alcançar o inverso da proposta socializante de 34: "O Poder Público substituirá, gradati- vamente, o regime de gratuidade no en- sino médio e no superior pelo sistema de concessão de bolsas de estudo, median- te restituição, que a lei regulará" (art. 176, § 3.°, item IV). A Constituinte de 34 propunha "ten- dência à gratuidade"; o tecnocrata de 69 determina que o Executivo substitua a gratuidade, já obtida e efetivada, por bolsas restituíveis: procedimento que, previsto em 67 só para o ensino supe- rior, aqui é estendido também para o en- sino médio. (Eis um exemplo, entre tantos, que ilustra o equívoco — histórico e teórico — de certas interpretações abstratas que vêem no golpe de 64 um fruto do "es- pírito de 30". Ao contrário, o movimen- to político-militar de 64 foi uma revan- che retardada de generais anticomunistas e de rancorosos antigetulistas, insuflados pela UDN e pela CIA, contra tudo o que de socializante e popular o Estado brasi- leiro vinha construindo a partir de outu- bro de 1930. Em 64 imitou-se, em par- te, e potenciou-se o modelo centralizador de 1937, mas agora em função de obje- tivos burocrático-capitalistas bem preci- sos e simetricamente opostos às verten- tes do trabalhismo e do nacionalismo an- teriores.) A questão da gratuidade do ensino pú- blico tem sido a pedra de toque das in- tenções democráticas do legislador bra- sileiro nestes últimos cinqüenta anos. Ela se resolvia, na Carta de 34, em termos de "tendência": o que era um modo feliz e inteligente de vincular o crescimento do sistema escolar oficial às possibilidades financeiras do Estado. Este oscila, na verdade, entre duas opções nascidas de filosofias diferentes: a) ou aumenta, sempre que pode, o montante dos recursos destinados aos ser- viços de educação; b) ou contenta-se em administrar "bol- sas", concedendo-as, a título de emprés- timo, a solicitantes que provarem falta de condições econômicas, ao mesmo tem- po em que cobra mensalidades aos demais. A primeira política é de largo espec- tro. Repensa, de modo coerente, o pro- blema crônico da má distribuição da ren- da nacional. Uma sociedade em que mais de um terço da população vive em esta- do de pobreza (e um quarto, de pobreza absoluta) não pode fugir à responsabili- dade de prover os poderes públicos de meios bastantes para que tenham acesso à escola gratuita, nos três ciclos, os filhos de trabalhadores de baixo salário e de desempregados. A Constituição de 34 foi a primeira a determinar, no seu art. 156, que para o ensino fossem alocados à União e aos mu- nicípios nunca menos de 10% do orça- mento anual; e nunca menos de 20% aos Estados e ao Distrito Federal. O acerto básico dessa política, inspi- rada nos ideais de Trinta, está compro- vado pelas estatísticas. Os índices de ma- trícula na escola pública foram, a partir de 1940, muito mais altos que os índi- ces de crescimento demográfico2. No mesmo espírito, mas acentuando a linha descentralizadora, reza a Constitui- ção de 46: "Anualmente, a União apli- cará nunca menos de dez por cento, e os Estados, o Distrito Federal e os Municí- pios nunca menos de vinte por cento da renda resultante dos impostos na manu- tenção e desenvolvimento do ensino" (art. 169). Os percentuais a serem despendidos pela União foram majorados para 12% em 1961, quando o Presidente João Gou- - Sobre o sentido desse "ar - ranque", em termos de de- mocratização do ensino, ver: Florestan Fernandes, Educa- ção e Sociedade no Brasil, Dominus-Edusp, 1966; Otaíza Romanelli, História da Edu- cação no Brasil (1930-1973), Vozes, 1978; Celso de Rui Beisiegel, "Educação e So- ciedade no Brasil após 1930", em História Geral da Civili- zação Brasileira (dir. Boris Fausto), tomo II I , O Brasil Republicano; vol. 4.°, Econo- mia e Cultura, São Paulo, Difel, 1984 FEVEREIRO DE 1986 65 A EDUCAÇÃO E A CULTURA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS lart promulgou a Lei n.° 4.042, de Dire- trizes e Bases da Educação Nacional, ain- da não integrada, porém, ao corpo da Constituição. Sintomaticamente, a Carta de 67 dei- xou de prever dotações orçamentárias precisas para o sistema de ensino público. Só graças à Emenda Calmon, regula- mentada em 1985, restabeleceu-se a obri- gação constitucional de vincular ao en- sino uma parcela da receita resultante de impostos, arbitrando-se em "nunca me- nos de 13" o seu percentual, no caso da União, e "nunca menos de 25", no caso dos Estados, dos Municípios e do Dis- trito Federal. Faz parte ainda de uma política de au- mento das oportunidades educacionais, encetada em 30, estender a duração do Primeiro Ciclo, que de quatro anos pas- sou a cinco, e chegou a oito, por força da Lei n.° 5.692/71. Esta medida, sem dúvida progressista, tomada em plena di- tadura militar, nos adverte sobre o cará- ter intermitente, mas poderoso, da ética da responsabilidade social do Estado, ca- paz de atuar nos legisladores sob regimes de poder os mais diversos. A opção contrária, privatizante e mer- cantil, conseguiu cortar, em 67, o prin- cípio das dotações fixas para o ensino público, que vinha da Revolução de 30. A filosofia "neoliberal", adotada por um Estado autoritário, investe fartamente na "segurança nacional", mas procura desonerar o Poder Público de encargos sistemáticos em matéria de educação,apelando para o procedimento aleatório de conceder bolsas de empréstimo a cole- giais e a universitários de instituições ofi- ciais. Deixo de lado aqui o problema, aliás nada desprezível, do quantum que atin- giriam as mensalidades e as restituições de bolsas sob um regime inflacionárío. A prática de mensalidades-e-bolsas, corrente na empresa privada de ensino, é discriminatória na escola pública. Se- para o aluno que pode e o aluno que não pode. Alguns, "ricos", ou "remediados", ou "auto-suficientes", deverão pagar di- retamente ao Colégio ou à Faculdade a fim de que a administração venha a em- prestar dinheiro a outros, ditos "pobres" ou "dependentes". Desaparece, de plano, a mediação uni- versal que é a figura do estudante de es- cola pública, cidadão igual aos colegas perante a lei. Essa mediação obtém-se, numa sociedade democrática, pelo bom uso de impostos gerais que todos os ci- dadãos se devem mutuamente, conforme o seu salário e as suas rendas. Os tributos devem ser geridos publica- mente por um governo representativo, o qual aplicará — também publicamente — os seus recursos em áreas considera- das prioritárias para todos os cidadãos. Na verdade, a escola dita "gratuita", acessível a todos, baseia-se no pressupos- to de que TODOS JÁ ESTÃO PAGAN- DO, PROPORCIONALMENTE, VIA ESTADO, PARA O BEM DE TODOS E DE CADA UM. Cada cidadão deve merecer a redistri- buição constante e sistemática do bem público, principalmente em setores vitais que empenham a pessoa e a sociedade por um tempo longo, como é o ensino de 2.º e 3o graus. O mesmo raciocínio vale para os órgãos responsáveis pela saúde pública. A quem não tem, ao "menos favoreci- do", para usar de um velho eufemismo, não é o caso de conceder, nem de em- prestar, mas, sim, de restituir, sob a for- ma de bens materiais e culturais, o que o pobre paga com o seu trabalho, no dia-a- dia, gerando a renda nacional. O Estado democrático, no regime capitalista, não pode fazer menos do que corrigir o mercado e compensar a erosão que a mais-valia produz no salário e na vida do trabalhador. Só para situar a questão, em tempos recentes: Em 1980, segundo fontes do então Ministério da Educação e Cultura, havia cerca de onze milhões de adolescentes, entre 15 e 19 anos, que não tiveram acesso ao curso colegial. Não podendo pagar as mensalidades de uma escola par- ticular, nem contando com cursos notur- nos oficiais em sua vizinhança, eles in- terromperam, talvez para sempre, o seu tempo de aprendizado formal. A pergunta justa é a seguinte: Deveria o Estado ter concedido bolsas, sob empréstimo, a essa massa de jovens sem recursos, quando sabemos que aper- turas de ordem econômica têm causado, já no primeiro ciclo, uma evasão de alu- nos que sobe a mais de 50% nas primei- ras séries? Para estes nem a gratuidade basta. Os nossos problemas de ensino, na sua infra-estrutura, são graves e de longa du- ração. O grau de empenho e de respon- sabilidade do Poder Público não pode 66 NOVOS ESTUDOS Nº. 14 ser equiparado ao tipo de interesse de uma escola privada, que é, em geral, uma empresa centrada em si e eventualmente provisória como qualquer outra firma co- mercial. As universidades e os colégios oficiais, ao contrário, são serviços públi- cos sustentados permanentemente e por toda a nação: eis a diferença. Não convém misturar os dois sistemas, pelo menos enquanto vigorar o princípio do lucro. . . Que a escola particular con- tinue a existir, e seja até amparada pelo Estado com isenção de impostos e me- diante o salário-educação, talvez repre- sente um meio salutar de manter o plu- ralismo democrático. Mas que se garan- tam à escola pública recursos suficientes para que não fiquem ameaçadas nem a sua gratuidade nem a sua qualidade. Uma palavra sobre cultura e Constituição Todas as constituições brasileiras fo- ram lacônicas e genéricas ao tratar das relações entre cultura e Estado. Não creio que se deva propriamente lamentar esse vazio nos textos da Lei maior. Ao Estado, cumpre realizar uma ta- refa social de base cujo vetor é sempre a melhor distribuição da renda nacional. Na esfera dos bens simbólicos esse obje- tivo se alcança, em primeiro e principal lugar, construindo o suporte de um sis- tema educacional sólido conjugado com um programa de apoio à pesquisa igual- mente coeso e contínuo. A maneira mais inteligente de "pro- mover a cultura" e "animar o desenvol- vimento das Ciências, das Artes e das Letras" (fórmulas que costumam apare- cer nos textos legais) ainda é munir subs- tancialmente o ensino e a pesquisa em todos os seus ramos, de tal modo que docentes, discentes e pesquisadores das várias instituições escolares e científicas disponham de meios condignos para per- fazer os seus cursos e projetos. Que o mesmo se faça em relação aos direitos autorais e aos direitos de paten- te sobre os quais a Carta deverá mani- festar-se, ainda que de maneira genérica. Afora esses deveres, que prevêem ações tópicas do Poder Público (criação e manutenção de bibliotecas, editoras, museus, arquivos, discotecas, filmotecas, teatros, orquestras, circos, casas de cul- tura, estações de rádio, canais de TV, etc.), nada mais o Estado poderá fazer "pela cultura". A sociedade brasileira não tem uma "cultura" já determinada. O Brasil é, ao mesmo tempo: um povo mestiço, com raízes indígenas, africanas, européias e asiáticas; um país onde o ensino médio e universitário tem alcançado, em alguns setores, níveis internacionais de qualida- de; e um vasto território cruzado por uma rede de comunicações de massa por- tadora de uma indústria cultural cada vez mais presente. O que se chama, portanto, de "cultura brasileira" nada tem de homogêneo e uniforme, e nunca poderá entrar em bi- tolas jurídicas. A sua forma complexa e mutante resulta de interpenetrações da cultura erudita, da cultura popular e da cultura de massas 3. Se algum "valor" deve presidir à ação do Poder Público no trato com a "cultu- ra", este não será outro que o da liber- dade e o do respeito pelas manifestações espirituais mais diversas que se vêm gestando no cotidiano do nosso povo. Em face dessa corrente de experiên- cias e de significados tão díspares, a nossa Lei maior deveria abster-se de pro- por normas incisivas, que soariam estra- nhas, porque exteriores à dialética das "culturas" brasileiras. Ao contrário, um certo grau de indeterminação no estilo dos seus artigos e parágrafos é, aqui, re- comendável. A liberdade de associação, de culto, de imprensa, de expressão em geral, re- presenta a condição a priori de uma po- lítica democrática a longo prazo. Creio que a competência do Estado não poderá extrapolar os limites do sus- tento, parcial ou global, de instituições e pessoas que, sem interesses mercantis, se proponham a trabalhar na produção e na comunicação de bens simbólicos. Não cabe à Lei predeterminar ou ajui- zar os conteúdos da cultura, que se fa- zem por si no embate das idéias, das ne- cessidades e suas formas. Não há uma diretriz "positiva" a ser atribuída pela Carta ao Estado, a não ser a de prover os cidadãos de meios con- cretos para exercerem uma sociabilidade livre, cordial e responsável. Esta — é nossa esperança — humanizará a cultura e, quem sabe, o próprio Estado. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo n.° 14, pp. 62-67, fev. 86 Alfredo Bosi é professor de Literatura Brasileira da Uni- versidade de São Paulo. ³ Procurei formular mais ex- plicitamente o tema no en- saio "Cultura Brasileira". Em Filosofia da Educação Brasi- leira, org. por D. Trigueiro Mendes, Rio de Janeiro, Ci- vilização Brasileira, 1983, pp. 135-176. FEVEREIRO DE 1986 67
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