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Criminalização do uso drogas APRESENTAÇÃO Seja bem-vindo! A criminalização do uso de drogas é um processo social e político construído ao longo da história da humanidade. Tal processo passa por importantes discussões na atualidade, com legislações apontando soluções em sentidos opostos em sistemas jurídicos contemporâneos. Nesta Unidade de Aprendizagem, focaremos no tratamento do uso e do comércio das drogas no Brasil, a partir das origens do tratamento jurídico internacional, suas influências na legislação pátria e a relação entre o tratamento nacional e a crítica do sistema penal desenvolvida por Foucault. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer o papel das conferências internacionais de 1912 e 1961.• Analisar a evolução da legislação brasileira sobre o uso e comércio de substâncias entorpecentes. • Avaliar a importância da crítica de Foucault em relação ao tratamento do sistema penal brasileiro ao uso das drogas. • DESAFIO Com relação à criminalização do uso de drogas, a aplicação de medidas penais no Brasil é controversa quando são contrastados os aspectos técnicos da crítica do sistema penal como um todo e a visão da corte suprema nacional. Acompanhe a seguir uma situação que servirá de base para este Desafio. Você foi contratado como advogado por Leonardo, para responder a denúncia oferecida pelo Estado contra ele, pelo porte de drogas entorpecentes. De acordo com a teoria de Foucault e a evolução histórica nacional e internacional, construa uma argumentação para afastar a punibilidade de Leonardo. INFOGRÁFICO A criminalização do uso de drogas tem três fases bem definidas entre a liberdade de consumo e a proibição do comércio e consumo de substâncias entorpecentes no âmbito internacional. No Infográfico a seguir, você verá os momentos internacionais que marcaram essas fases e as suas características. CONTEÚDO DO LIVRO A criminalização do uso e do comércio das drogas é um processo criminológico em construção, com soluções higienicistas, proibicionistas e até liberalistas. No capítulo Criminalização do uso de drogas, do livro Psicologia e criminologia, você estudará a evolução histórica do tratamento das drogas no Brasil e a influência de tratados internacionais em sua configuração. Além disso, você verá uma análise da crítica de Foucault ao sistema penal no contexto deste debate. Criminalização do uso de drogas Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Compreender o papel das Conferências Internacionais de 1912 e 1961. � Analisar a evolução da legislação brasileira sobre o uso e o comércio de substâncias entorpecentes. � Avaliar a importância da crítica de Foucault em relação ao tratamento do sistema penal brasileiro ao uso das drogas. Introdução A criminalização do uso de drogas é um processo social e político cons- truído ao longo da história da humanidade e que passa por importantes discussões na atualidade, com legislações que apontam soluções opostas nos sistemas jurídicos contemporâneos. Neste capítulo, você vai estudar as origens do tratamento do uso e do comércio de drogas no Brasil baseadas no tratamento jurídico internacio- nal, suas influências na legislação pátria e a relação entre o tratamento nacional e a crítica ao sistema penal desenvolvida por Foucault. A Convenção Internacional de Haia de 1912 e a Convenção Única de Entorpecentes de 1961 A Conferência Internacional do Ópio resultou, em 1912, segundo Gusmão (2014, p. 10), na assinatura da primeira convenção sobre o controle de drogas no âmbito internacional, alterando as conturbadas relações entre o Oriente e o Ocidente sobre o tema que marcou as duas guerras do ópio entre a China e o Reino Unido. O tratado, denominado Convenção Internacional do Ópio, foi assinado por Alemanha, Estados Unidos, China, França, Reino Unido, Itália, Japão, Países Baixos, Pérsia, Portugal, Rússia e Sião (atual Tailândia) (CAR- VALHO, 2014). Conforme o texto da Convenção, “[...] os Poderes contratantes envidarão os seus melhores esforços para controlar, ou para fazer com que sejam controladas, todos os tipos de fabricação, importação, venda, distribuição e exportação de morfina, cocaína e de seus respectivos sais” (GUSMÃO, 2014, p. 11). O tratado foca principalmente o combate à comercialização do Ópio, ao mesmo tempo em que marca o início da batalha contra os entorpecentes em geral, ainda que de maneira bastante vaga e precária (GUSMÃO, 2014). A Convenção foi implementada em 1915 por Estados Unidos, Países Baixos, China, Honduras e Noruega, e entrou em vigor em nível mundial em 1919, quando foi incorporada ao Tratado de Versalhes (CARVALHO, 2014). Em uma tentativa de unir os esforços de combate às drogas, a Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 fundiu todas as convenções anteriores celebradas no âmbito das Nações Unidas, como a inclusão das drogas sintéticas no tratado de Paris de 1948, a limitação das áreas de cultivo em Nova York, em 1953, e uma sintetização das convenções de Genebra (GUSMÃO, 2014), mantendo os pilares dos instrumentos anteriores. As partes deveriam submeter estimativas das necessidades e estatísticas sobre importação, exportação, manufatura e estoques. O sistema de certificação de importações e exporta- ções foi mantido. Os governos deveriam licenciar produtores, comerciantes e distribuidores, e todos os que manipulassem drogas deveriam manter os registros de suas transações. As listas de controle das substâncias, introduzidas pela Convenção de 1931, foram expandidas de duas para quatro, de acordo com sua destinação (GUSMÃO, 2014). A Convenção declarou ilícitas as plantas que continham substâncias para a produção de drogas entorpecentes ou psicotrópicas (coca, cannabis e palha de papoula). O hábito de mastigação da folha de coca, denominado “acullico”, bem como o fumo e a ingestão de ópio e haxixe, foram proibidos internacio- nalmente. Foi dado um prazo para que os países onde esse costume estava enraizado há séculos lhe pusessem fim. Por fim, para supervisionar a implementação dos tratados sobre drogas, foi criada a Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE). A JIFE resultou da fusão da Comissão Permanente de Controle do Ópio (da Convenção de 1925) e do Comitê Supervisor de Droga (da Convenção de Limitação de 1931). O novo órgão foi encarregado de: recolher estimativas fornecidas pelos Estados Parte sobre necessidades anuais, verificar os relatórios e estatísticas sobre importações, exportações, produção e estoques de reserva e reportar à Assembleia Geral eventuais inconsistências (GUSMÃO, 2014). A essência do tratado de 1961 pode ser depreendida de seu preâmbulo, no qual as partes signatárias declaram estar “[...] preocupadas com a saúde física e Criminalização do uso de drogas2 moral da humanidade” e sua “[...] dor e sofrimento”, e que medidas adequadas devem ser tomadas para garantir a disponibilidade de entorpecentes para tais fins, reconhecendo a toxicomania como um mal grave para o indivíduo e um perigo social grave para a humanidade (HAIA, 1961 apud GUSMÃO, 2014). Destaca-se a proibição da produção, da fabricação, da exportação e im- portação, do comércio, da posse e do uso de tais entorpecentes, uma vez que, no seu conceito, este é o meio mais eficaz de proteger a saúde e o bem-estar público. Tal dispositivo não se aplica às quantidades necessárias para pesquisa médica e científica, incluídas as experiências clínicas com tais entorpecentes feitas sob ou sujeitas à supervisão e fiscalização das ditas Partes. O artigo 36 da Convenção explicitamente sugere o uso de penas de prisão e outras de privação de liberdade para tais atos, além de mencionar que é desejável que tais crimes sejam passíveis de extradição entre os países-parte do tratado (GUSMÃO, 2014). Em suma, as Convenções de 1912 e de 1961 compõem as origensdo com- bate às drogas no âmbito internacional e da sua sistematização baseada no proibicionismo, deixando de lado a política comercial de entorpecentes que antecedeu esse cenário e que serviu como palco das guerras do ópio entre a China e o Reino Unido. Um dos casos mais exemplares da guerra do tráfico é o do narcotraficante colombiano Pablo Escobar, que unificou os cartéis de distribuição de drogas da Colômbia e de outros países das Américas Central, do Sul e do Norte, configurando um poder paralelo em seu país. Essa situação crítica enfrentada por diversos países em relação ao crime organizado pautou o endurecimento do controle das drogas nos âmbitos nacional e internacional durante as décadas de 1960 a 2000, persistindo em alguns estados brasileiros até o momento. A história do combate às drogas no Brasil Segundo Salo de Carvalho (2007, p. 10), a origem da criminalização das drogas não pode ser demarcada, pois o processo criminalizador é invariavelmente um processo modelizador e normalizador, sendo sua origem volátil, impossível de ser delimitada ou relegada a um objeto de estudo controlável. Não obstante, 3Criminalização do uso de drogas é possível identificar na legislação pátria determinadas tendências quanto ao processo de criminalização, ora do comércio de drogas, ora do consumo de substâncias psicoativas. Segundo o estudo desenvolvido por Silva (2008), é possível identificar os primeiros indícios de condenações do uso, do porte e da venda de deter- minadas substâncias na compilação jurídica chamada Ordenações Filipinas, que vigorava no Brasil Colonial. À época, a legislação era voltada a “ma- teriais venenosos”, e a pena consistia na perda da fazenda do condenado e na degradação para a África; a hipótese do uso próprio das substâncias não constituía delito, uma vez que a legislação tinha como objeto a proteção da vida e da saúde alheios. O Código Penal de 1830 ou “Código Imperial” não fez referências expres- sas ao assunto, mas o Regulamento de 29 de setembro de 1851 disciplinou a matéria ao tratar da política sanitária e da venda de substância medicinais e medicamentos e ao manter centralizado o controle das drogas nocivas a partir da outorga de autorização para a comercialização de medicamentos e substâncias “desconhecidas” (SILVA, 2008). Em 1890, o Código Penal Republicano, ao regular os crimes contra a saúde pública, tipificou no artigo 159 as condutas de “[...] expor à venda ou ministrar substâncias venenosas sem legítima autorização e sem as formalidades pres- criptas nos regulamentos sanitários” (BRASIL, 1890 , documento on-line), sendo a sanção prevista a pena de multa. Em 1915 foi fundado o clube de toxicômanos, em São Paulo, acompanhando o aumento do uso de drogas pela burguesia urbana, conforme tendência deli- neada em Paris. Já entre 1912 e 1915, os Decretos nº 2.862/1914 e 11.481/1915 instauraram a política criminal brasileira para as drogas com uma configuração fundada no modelo sanitário, ou seja, preocupado com as repercussões de saúde pública, que prevaleceu por meio século. O Decreto Legislativo nº 4.294/1921, inspirado na Convenção de Haia de 1921 e sancionado por Epitácio Pessoa, revogou o art. 159 do Código Penal de 1890, enquanto o Decreto 14.969/1921 previu a criação do Sanatório para Toxicômanos no Distrito Federal (SILVA, 2008). A consolidação das leis penais de 1932 ampliou a regulamentação sobre o uso e a comercialização de drogas no Brasil ao alterar o caput do artigo 159 do Código Penal de 1890 com a adição de doze parágrafos. Foi acrescentada a prisão juntamente com a pena de multa, ainda que não haja criminalização do usuário de entorpecentes, apenas do comercializador dos mesmos (SILVA, 2008). Criminalização do uso de drogas4 Em abril de 1936, a publicação do Decreto nº 780 é considerada o primeiro grande impulso na luta contra as drogas, registrando a formação do sistema repressivo em consequência da autonomização das leis criminalizadoras a partir da criação do Conselho Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (BRASIL, 1936). Segundo Salo de Carvalho (2007), a pluralidade de verbos nas incrimi- nações, a substituição do termo “substâncias venenosas” por “substâncias entorpecentes”, a previsão de multas carcerárias e a determinação das for- malidades de venda e subministração ao Departamento Nacional de Saúde Pública passam a delinear o novo modelo de gestão repressiva. Com o Decreto-Lei nº 891 de 1938, elaborado de acordo com as disposições da Convenção de Genebra de 1936, houve o ingresso no Brasil do modelo “internacional” de controle de estupefacientes, surgindo na década de 1940 uma política proibicionista sistematizada, composta pelo artigo 281 do Código Penal de 1940 sob a epígrafe “[...] comércio clandestino ou facilitação de uso de entorpecentes” (SILVA, 2008, p. 61). O Código Penal de 1940 foi caracterizado por uma disciplina equilibrada, por um sóbrio recorte dos tipos legais, inclusive com a redução do número de verbos em comparação ao Decreto nº 891 de 1938, art. 33. Determinava uma penalização exclusiva ao comerciante de drogas (BRASIL, 1940), de modo que o entendimento do Supremo Tribunal Federal era o de não abranger os consumidores na penalização. O Decreto-Lei nº 385/1968 viria a mudar esse cenário ao punir o usuário com pena idêntica àquela imposta ao traficante, iniciando o proibicionismo do uso de drogas no país (SILVA, 2008). O ano de 1964, marcado pelo início do regime militar, é identificado como o marco divisor entre o modelo sanitário e o modelo bélico de política criminal para as drogas. O modelo sanitário, no entanto, continuou a operar residualmente, principalmente em relação ao estereótipo do dependente. A homologação da convenção única sobre entorpecentes das Nações Unidas por meio do Decreto-Lei nº 54.216, em 1964, aumentou a legislação nacional sobre entorpecentes com significativos acréscimos. A Lei 4.451 de 1964, por sua vez, incluiu a tipificação do delito do plantio de espécies produtivas de entorpecentes. Já o Decreto-Lei de 1967 igualou os entorpecentes às substâncias capazes de determinar dependência física ou psíquica (SILVA, 2008). A Lei 5.726/71 (BRASIL, 1971) reformulou o art. 281 do Código Penal, modificando inclusive o rito processual, iniciando um processo de alteração do modelo repressivo, de modo que o dependente não seria mais tratado como 5Criminalização do uso de drogas criminoso, embora as penas do usuário e do traficante seguissem as mesmas. Em 1976, a Lei 6.368 vinha com o intuito de acompanhar as orientações dos tratados e convenções internacionais, configurando o estereótipo do narcotraficante. Em 1988, com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil, ao contrário da expectativa político-criminal e da criminologia crítica, apri- morou-se o modelo beligerante vigente no período ditatorial, potencializando o que Silva (2008, p. 62) chamou de “[...] violência institucional programada”. O artigo 5º, inciso XLIII da Constituição (BRASIL, 1988), considera o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Já o artigo 200, inciso VII (BRASIL, 1988), estabelece a competência do Sistema Único de Saúde (SUS) para participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos. O artigo 227 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) ainda institui que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Sendo que o parágrafo terceiro, inciso VII (BRASIL, 1988), prevê que a pro- teção integral abrangerá programasde prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins. O artigo 243 (BRASIL, 1988), finalmente, regulamenta a expropriação de culturas ilegais de plantas psicotrópicas, assim como o confisco de qual- quer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, que será revertido para ações de controle, prevenção e repressão do crime de tráfico. A Lei dos Crimes Hediondos de 1990 ratificou o art. 5º, inciso LXIII da Constituição Federal, ao incorporar o tráfico ilícito no rol de crimes inafiançáveis. Somente com o advento da Lei 10.409/02 o legislador passou a optar pelo rito e penas mais brandos estabelecidos na Lei 9.099/95 que trata dos Juizados Especiais. A manutenção dos dispositivos da Lei 6.368/76, no entanto, causa insegurança jurídica pela antinomia estabelecida. A nova Lei de Drogas, Lei 11.343/06, mantém como características a repressão às organizações criminosas responsáveis pelo comércio ilegal de entorpecentes e a patologização do usuário e do dependente com aplicação de penas e medidas. Segundo Salo de Carvalho (2007), esta nova lei mantém inalterado o sistema proibicionista. Criminalização do uso de drogas6 É nesse sentido que Pacheco Filho e Thums (2005) identificam a saúde pública como o bem jurídico penal tutelado por nosso sistema, tendo como vítima dos crimes ligados às drogas o Estado, e não o próprio consumidor ou adquirente do entorpecente. Isso porque, ao contrário do que é declarado pela convenção de Haia de 1961, as políticas criminalizadoras do tráfico e do consumo das drogas criminaliza o uso do entorpecente, de modo que a preocupação da lei não é evitar os males causados pelas drogas àqueles que a consomem, mas evitar o risco à integridade social que os entorpecentes acarretam. Segundo os autores, “[...] o crime é de perigo comum, presumido em caráter absoluto, bastando a realização de uma das condutas proibidas. Não importa se a droga apreendida é capaz de produzir uma lesão efetiva à saúde pública” (PACHECO FILHO; THUMS, 2005, p. 4). Segundo Pacheco Filho e Thums (2005), o bem jurídico penal tutelado pelo controle nacional das drogas não é a saúde do delinquente, mas a saúde e a segurança pública, uma vez que o risco trazido pelo consumo de drogas é uma presunção da legislação proibicionista. O papel do Estado para criminalizar a circulação e o consumo de drogas, sob a lente teórica discursiva de Foucault O pensamento de Foucault (2014) pode ser interpretado como uma crítica severa ao sistema penal, uma vez que o mesmo, segundo o autor, é destinado ao controle de determinados fatos sociais e que não apresenta uma contraprestação satisfatória à sociedade, senão a criação de reincidências elaboradas no seio do sistema prisional. Esse pensamento põe em xeque a teoria tradicional da construção do sistema prisional como um meio de ressocialização do réu e do cárcere, como condição de reintrodução do delinquente à sociedade enquanto membro reabilitado. Foucault (2014) nega os avanços dos incentivos penais ao delinquente como meio dissuasório, desenvolvidos por Beccaria e outros criminalistas que o antecederam, por entender que o sistema não visa ao fim ou à diminuição do 7Criminalização do uso de drogas comportamento delinquente a partir do sistema penal, mas acaba por incentivar a criação dos delinquentes e da reincidência através da exclusão social trazida pelo sistema prisional e pelo afastamento do encarcerado das condições sociais de desenvolvimento humano. Para Foucault (2014), o sistema penal é um meio de controle do corpo por meio da manipulação da alma do apenado, uma vez que os mecanismos educacionais hierárquicos como o tempo e as atividades vazias desestabilizam o ânimo do delinquente, de modo que seu corpo deixe de ser governado por si mesmo e passe a conformar parte da massa penalizada. A extinção dos suplícios ocorridos antes do século XIX, com o fim do uso da tortura e da dilaceração do corpo em praça pública, no mundo “civilizado”, não trouxe a promessa de abrandamento e humanização do sistema penal. O que ocorre é uma verdadeira correlação entre a vontade política e a sistematização do controle indireto da população, por meio de seu adestramento pelo medo da perda da liberdade, por um lado, e, por outro, pelo impedimento da ressocialização, tendo em vista os métodos de “reeducação” utilizados no presídio. Ressalta-se que o sistema penal apresentou uma relativa evolução desde a antiguidade, a partir do desuso da lei suméria, que se utilizava do jus talionis, ou lei da retribuição, pela qual o Estado chancelava a autotutela. Passou então para um sistema de tratamento privado no Delito Romano que tinha como base a tutela dos juízes, temperada em tempos medievais com amenidades trazidas pela introdução dos valores católicos. A Idade Média trouxe impactos negativos ao tratamento do réu, com a incorporação de elementos de punição divina e desumanização do delinquente que somente se encerrariam com a política internacional de proteção dos direitos humanos e o reconhecimento do delinquente como integrante dessa categoria em tempos secularizados. Dentro dessa perspectiva, a criminalização do usuário afasta o aspecto humanista, que inaugurou o tratamento das drogas no Brasil com a política da higienização. Ela passa a se tornar um meio de controle social puro a partir da política proibicionista, na qual a intervenção do Estado deixa de buscar a melhoria da saúde e das condições de desenvolvimento do cidadão para buscar “adestrá-lo”, ou mesmo desistir da tutela de seus direitos humanos, a partir da política do encarceramento. Alternativas ao sistema prisional clássico e aos julgamentos dos pre- conceitos denunciados por Foucault (2014) encontram-se em pesquisa no âmbito de países-membros do controle internacional de drogas. É o caso de Portugal, que desenvolve planos de distribuição de remédios que diminuem Criminalização do uso de drogas8 o impacto da abstinência das drogas. Nos Países Baixos e no Uruguai, além de em alguns estados-membros dos Estados Unidos, como a Califórnia, são promovidas experiências de liberalização das drogas, tanto na modalidade de uso como na de tráfico, trazendo para o âmbito da legalidade o controle das drogas. No Uruguai e na Holanda é possível consumir entorpecentes lícitos, como a maconha, em casas especializadas autorizadas pelo governo. No entanto, há regras distintas quanto à quantidade lícita ao consumo e ao comércio dentro desses países. Alguns estados americanos já legalizaram entorpecentes para uso medicinal, e outros para fins recreativos. É possível que as alternativas ao sistema hoje apresentado em nosso país, como a liberalização das drogas entorpecentes, apresentem resultados mais avançados no tratamento da violência social e das condições patológicas do usuário, porém não há consenso doutrinário a esse respeito até o momento. 9Criminalização do uso de drogas BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 30 mar. 2018. BRASIL. Decreto nº 780, de 28 de Abril de 1936. Crêa a commissão permanente de fiscali- zação de entorpecentes. Brasília, DF, 1936. Disponível em: <http://www2.camara.leg. br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-780-28-abril-1936-472250-publicacaooriginal- 1 -pe.html>. Acesso em: 23 abr. 2018. BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Brasília, DF, 1890. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm>. Acesso em: 23 abr. 2018. BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF, 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>. Acesso em: 23 abr. 2018. BRASIL. Lei nº 5.726, de 29 de outubro de 1971. Dispõe sobre medidas preventivase repressivas ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes ou que determinem de- pendência física ou psíquica e dá outras providências. Brasília, DF, 1971. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-5726-29-outubro-1971- 358075-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 23 abr. 2018. CARVALHO, J. C. A emergência da política mundial de drogas: o Brasil e as primeiras conferências internacionais do ópio. Oficina do Historiador, v. 7, n. 1, p. 153-176, jan./ jun. 2014. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/oficina- dohistoriador/article/view/15927/11571>. Acesso em: 22 abr. 2018. CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Coimbra: Almedina, 2014. GUSMÃO, L. A. Formação e evolução do regime global de combate às drogas. In: EN- CONTRO DA ABCP, 9., 2014, Brasília, DF. Anais... Brasília, DF, 2014. Disponível em: <http:// www.academia.edu/9771014/Forma%C3%A7%C3%A3o_e_evolu%C3%A7%C3%A3o_ do_regime_global_sobre_drogas>. Acesso em: 22 abr. 2018. PACHECO FILHO, V. V.; THUMS, G. Leis antitóxicos: crimes, investigação e processo: análise comparativa das leis 6.368/1976 e 10.409/2002. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. SILVA, P. M. Uso de drogas: do senso comum às percepções dos operadores do direito na área criminal. 2008. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. Leitura recomendada BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do di- reito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. (Coleção Pensamento Criminológico, n. 1). Criminalização do uso de drogas10 Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra. DICA DO PROFESSOR A crítica de Foucault ao sistema penal é baseada no seu passado de suplícios corpóreos e na substituição dos mesmos pelo castigo à "alma" dos aprisionados a partir de processos de adestramento e desconstrução da psique do apenado. Nesta Dica do Professor, você verá alguns aspectos de sua crítica a partir da obra Vigiar e Punir. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! EXERCÍCIOS 1) A Convenção de 1912 sobre o tratamento do Ópio inaugurou a fase ____________ do tratamento ao comércio de drogas entorpecentes. A) liberalista B) higienista C) proibicionista D) garantista E) de abrandamento 2) A Convenção de 1961 representou para o tema "controle de tráfico de entorpecentes": A) Um retrocesso em relação às convenções anteriores. B) Uma consolidação da discussão sobre o tema. C) O encerramento do tratamento legal internacional. D) Plena sinergia entre os países signatários. E) A sua suspensão no plano internacional. 3) A primeira fase regulatória de entorpecentes no Brasil, em relação ao usuário de drogas, foi marcada pela doutrina: A) higienista. B) proibicionista. C) bélica. D) liberalista. E) protecionista. 4) A Constituição Federal de 1988 foi marcada por um aperfeiçoamento da doutrina ______________________. Sendo marcada pelos avanços da mesma pela Lei de Crimes Hediondos de 1990. A) higienista B) bélica C) legalista D) protecionista E) proibicionista 5) Segundo o pensamento de Foucault, o cárcere é uma política pública que, após as reformas do século XIX e XX do sistema penal, caracteriza-se como uma instituição: A) ressocializadora. B) educativa. C) recreativa. D) criminalizadora. E) laboral. NA PRÁTICA O controle do uso de drogas no Brasil hoje segue com tendência proibicionista, com o entendimento de que o seu uso reforça os crimes associados ao comércio ilegal desses produtos. Esse entendimento pode ser depreendido da ementa a seguir, a qual representa o entendimento unânime do Supremo Tribunal Federal, em que fora rejeitado o agravo regimental com base no princípio da insignificância da conduta criminal, ocasião em que a defesa do réu havia tentado adotar a teoria abolicionista ou liberalista do uso de drogas. SAIBA MAIS Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: Legalização das drogas ilícitas no Brasil Este artigo aborda a legalização do consumo das drogas no Brasil, a partir de influências recebidas de políticas internacionais, encampadas pelos países vizinhos da América Latina. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Portugal celebra 15 anos sem prender usuários de drogas Este vídeo comenta as medidas alternativas à política bélica e proibicionista de combate às drogas, servindo como ponto de reflexão sobre as críticas de Foucault ao sistema penal. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! A redução de danos como medida alternativa à política nacional de drogas: uma reflexão sobre a saúde do usuário Este artigo analisa a política de Redução de Danos como medida alternativa à política nacional de drogas. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino!
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