Buscar

O CRIME DO PADRE AMARO

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 58 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 58 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 58 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

#70 O CRIME DO PADRE AMARO
Olá! Você está no Literatura Oral, podcast de leitura comentada e de sugestões literárias. Eu sou Sabrina Siqueira. Seja bem-vindo!
Fora Bolsonaro, tudo bem com vocês? Gente, que bom que é tá podendo gravar outro episódio! Faz tempo que eu não posto episódio, mas é porque tava sem tempo, trabalhando. Mas deixa eu te falar que, mesmo quando demorar pra aparecer um novo episódio do Literatura Oral, não significa que eu parei o podcast, tá? É só porque eu tô ali correndo, fazendo algum trabalho. Eu adoraria que o podcast fosse a minha fonte de lucro e eu pudesse investir mais tempo aqui, mas enquanto não rola, vai ser assim. Eu não vou mais poder prometer uma periodicidade definida, como eu fazia antes, de postar uma vez por semana. Mas sempre vai chegar um dia que eu vou vir aqui postar outro episódio. Fica essa dica pra ti também. Se não deu tempo de fazer tudo, faz o que é mais urgente e tá tudo bem! A gente faz o que pode! 
No último episódio, li o poema “Todas iguais”, que está no livro A mulher submersa, de Mar Becker. Hoje vou iniciar a leitura comentada de um romance, que faz tempo que não faço. Vai ser O crime do padre Amaro, de Eça de Queiroz. Quem acompanha o podcast já sabe como é, e pra quem é novo por aqui, funciona assim: quando eu faço a leitura de um romance, são vários episódios de leitura, com comentários e análises da narrativa no início e no final de cada episódio. A cada novo episódio, eu retomo brevemente o que foi lido no anterior, e no final, chamo atenção para o que foi lido no dia. Marcando o início e o fim da leitura, vocês ouvem a vinheta do Literatura Oral. Entre uma vinheta e outra é a leitura da obra tal e qual o autor escreveu, nada do que é dito ali é opinião minha. 
Só que com O crime do padre Amaro eu vou fazer uma coisa diferente. Como Eça de Queiroz era muito detalhista em descrições e o livro é grande, para que a gente não tenha uns 20 episódios do mesmo livro, vou suprimir algumas das descrições. Mas a essência da narrativa e as descrições principais serão mantidas. E aí eu vou lendo e fazendo comentários, sem pressa, postando quando der, e fazendo quantos episódios esse livro render. Então te inscreve no canal, deixa teu like, teus comentários pra eu saber o que tu está achando, e bora começar!
José Maria de Eça de Queiroz foi um escritor português, que viveu entre 1845 e 1895. Teve uma vida curta, mas intensa, e escreveu muito. Aliás, um abraço pros ouvintes de Portugal! Ele escreveu mais de dez romances, entre outros gêneros, como contos, cartas, literatura de viagem. A maioria desses trabalhos é publicado depois que ele morre, por um dos filhos. Ele foi também diplomata. Mas a curiosidade é que apesar de ter sido uma pessoa muito influente no seu tempo e bem-sucedido na carreira e na vida pessoal, Eça nasceu de pais não casados, o que na época ainda era um escândalo. Inclusive, o pai dele era brasileiro, só a mãe que era portuguesa. Pra ver como o preconceito não tem fundamento, porque ele foi um sucesso, tanto como escritor como na carreira de diplomata. Quando eu era adolescente e ouvi pela primeira vez o nome desse autor, Eça de Queiroz, em função de uma adaptação de Os Maias pra uma série da Globo, eu lembro de pensar “mas esse nome, Eça, é de homem ou de mulher”? Não que isso importe e que exista nome masculino ou feminino, hoje o mundo tá bem mais livre sobre essa polarização. Mas foi uma dúvida que me ocorreu, por achar o nome muito diferente.
Na primeira metade do século XIX, Portugal vive uma agitação política. A partir de 1851, tem início uma nova etapa na monarquia constitucional portuguesa. Foi um período chamado de Regeneração e uma das principais características foi aproximação com os outros países europeus. Portugal fica no extremo oeste da Europa e é isolado do continente quanto ao idioma, nenhum outro país europeu fala português. Isso tudo deixava Portugal meio de lado, e esse período visou uma aproximação em relação à cultura dos outros países, o que resultou bastante positivo pra Portugal. Com isso, toda uma geração de portugueses chega à idade adulta com uma mentalidade que se aproxima geográfica, cultural e filosoficamente ao que está acontecendo no restante da Europa ocidental. E o que está acontecendo é uma reação contra o ultrarromantismo, que era a estética literária que vigorava até a primeira metade do século XIX. Essa mudança de mentalidade influencia os estudantes da década de 1870, e Eça de Queiroz estava entre esses jovens. O que começa a vigorar na segunda metade do século XIX, em termos de estética literária e artística, é o período do Realismo, como uma reação ao Romantismo anterior. O Realismo coincide com o início da modernidade, surgimento de máquinas a vapor, estradas de ferro. O mundo tá mudando, e essas mudanças aparecem no novo jeito de fazer literatura. 
Os primeiros trabalhos do Eça foram publicados na revista Gazeta de Portugal, e foram depois organizados em livro, publicado postumamente, com o título Prosas Bárbaras. E o Realismo em Portugal inicia justamente com a publicação de O crime do padre Amaro, em 1875. A obra já foi chamada de novela e de romance. Eu vou usar a nomenclatura romance, que eu acredito que é adequada. 
Pela sua produção, o autor é considerado o maior representante da prosa realista da língua portuguesa. E ele foi um inovador na prosa, ousou, criou novas formas de linguagem, neologismos e mudanças de sintaxe. E essa palavra dá uma vontade de pronunciar como táxi, porque é com X, mas não pode. Tem que falar sintasse! E o que que é isso, que o Eça inovou? Tem a ver com a estrutura da frase, relações de concordância, de subordinação. Enfim, tem a ver com o jeito de estruturar o texto. 
Lembra que eu falei que Portugal estava vivendo uma troca cultural com os demais países europeus? Pois com isso entram no país livros de outros lugares, e Eça de Queiroz foi muito influenciado pelo francês Gustave Flaubert, autor de Madame Bovary. De maneira geral, os livros de Queiroz abordam temas simples e do cotidiano, mas o coisinha pra guardar complexidade é o cotidiano, minha gente! É ou não é? O texto dele tem humor, ironia, algum pessimismo, às vezes, e crítica social, que a gente vai ver bastante em O crime do padre Amaro. 
Diferente do idealismo romântico, o Realismo busca narrar de uma forma próxima ao que era visto e percebido pelos autores. Então o Realismo tem crítica social e Queiroz faz duras críticas aos valores da burguesia portuguesa eà corrupção da igreja. Ah, a gente tem que lembrar que Portugal é um país bastante católico, e no século XIX a influência e o domínio do catolicismo era ainda maior. 
Eça de Queiroz escreveu diversos romances nos quais enfatiza a questão da hipocrisia da burguesia, aliada à análise psicológica das personagens, o que também era uma inovação, porque o Romantismo não entra na cabeça das personagens, não vasculha as motivações e angústias secretas. 
Queiroz estava comprometido com uma reforma social, por meio da sua obra. Em 1871, ele entra pra um grupo formado por intelectuais portugueses rebeldes comprometidos com uma reforma social e artística, que ficaram conhecidos como a Geração de 70. Eles achavam que a literatura portuguesa de então não era original e era hipócrita, e queriam fazer diferente. Que fase boa que deve ter sido hein, com pessoas querendo mudar as mentalidades, oxigenar as artes. Agora é um momento de tanta desesperança que dá vontade de entrar numa máquina do tempo e ir lá participar da Geração de 70. Será que admitiam mulher? 
Bom, O crime do padre Amaro vem exatamente com esse ímpeto de crítica à hipocrisia reinante. Pelo título a gente já percebe uma ousadia do autor, porque o crime é de um padre. Isso dito no título, em uma sociedade em que a igreja manda muito e, teoricamente, eram os donos da razão e detentores da moral e dos bons costumes. Nesse aspecto, como o catolicismo português foi menos crítico que o irlandês, por exemplo. Porque acho que o livro de Queiroz não sofreu nenhum tipo de censura, com esse títuloe com o teor de crítica que a gente vai ver. E James Joyce, por muito menos crítica que fez à igreja, e muitos outros escritores irlandeses até pouco tempo atrás, tiveram obras censuradas e impedidas de serem publicadas na Irlanda. Mas não sei, talvez O crime do padre Amaro tenha sofrido censura.
Como O crime do padre Amaro é um texto antigo, aparecem algumas palavras diferentes. Na leitura de hoje, vocês vão escutar “cabido”. Significa um conjunto de clérigos. Vai ter muito vocabulário ligado à religião católica. Outra palavra diferente que aparece também é do jargão da hierarquia eclesiástica: chantre, que é o nome do encarregado do coro na igreja. Coadjutor é outro título no exercício das funções religiosas. Vai aparecer a palavra “baeta”, que é um tecido de lã ou algodão. E os padres entram na igreja “persignando-se”, quer dizer, benzendo-se. 
Eu tenho muito ainda a acrescentar, mas como vão ser vários episódios sobre esse livro, tem tempo! Vamos logo nos jogar na leitura dessa obra que eu adoro!
***
Na leitura de hoje, iniciei o romance O crime do padre Amaro, de Eça de Queiroz. 
Pelo título da obra a gente pode pensar duas coisas: ou esse padre chamado Amaro comete um crime, ou o título é uma figura de linguagem, uma metáfora, ou eufemismo, e na verdade nenhum crime é cometido, mas é uma referência a algum comportamento do padre. Vamos descobrir ao longo da leitura. De qualquer forma, atribuir um crime a um padre no título de uma obra, em um lugar supercatólico, foi uma atitude ousada de Queiroz. 
O romance inicia com indicativos da intensa atividade religiosa no país, contando da morte de um pároco. E dá pistas também da hierarquia que existe na religião católica, com muitos postos a serem ocupados, muitos degraus para ascender na carreira de religioso. Sim, porque não deixa de ser uma carreira. E também tem pistas sobre a conexão entre religião e política. Desse pároco que morreu, diziam que era “miguelista”. Ser miguelista, em Portugal, se referia a apoiar a legitimidade da permanência de Dom Miguel de Bragança na linha de sucessão ao trono português. São defensores, portanto, da causa monárquica. Eles se opunham aos liberais. 
A ação narrativa acontece na cidade de Leiria, no centro de Portugal. É em função da morte desse pároco, que Amaro é transferido para Leiria e assume no lugar dele. Tem boatos de que a nomeação dele foi por politicagem, porque ele é um cara novo, recém saído do seminário. O mais certo é que tenha sido indicação do cônego Dias, que foi seu mestre de Moral nos primeiros anos de seminário. Cônego é um outro degrau na hierarquia do catolicismo e geralmente é alguém que trabalha na administração da igreja. O narrador se refere a esse cônego como alguém que faz lembrar anedotas de frades lascivos e glutões. Vamos ver se esses adjetivos condizem com o comportamento de Dias. 
Dias tem propriedades, tem uma situação financeira boa, mas o que o povo comenta mesmo e da amizade dele com a Augusta, que chamam de Joaneira. Joaneira aluga um quarto na casa dela e tem uma filha de 23 anos, a Ameliazinha. Quando Amaro é nomeado para a paróquia da cidade, Dias arruma pra ele ficar hospedado na Joaneira.
Mas Amaro não será o único padre em Leiria. A gente sabe que tem outro, porque ele foi citado lá no início, quando o narrador diz que as beatas não gostavam de ser confessar com o padre que morreu, e preferiam o padre Gusmão, que tem lábia. Vamos guardar essa informação do Gusmão, que pode ser útil mais adiante, que ele tem lábia. E o cônego Dias cita vários outros padres da cidade, que inclusive moram em casas com meninas jovens. Ele cita quando o adjutor sugere que pode ter algum problema Amaro morando na mesma casa que uma adolescente bonita. 
São muitos padres na cidade de Leiria, mas nenhum se importou com o cão do padre morto. Enxotavam o cachorro que ficou sem dono até que morresse também. Com isso, sabemos que a compaixão dos religiosos da cidade não é das maiores. A cidade tem um toque de recolher às 9h30. Isso significa que existe imposição de autoritarismo sobre a vida dos cidadãos. 
Amaro chega em Leiria, se acomoda na casa da Joaneira e conhece a menina Amélia. Ele não é muito concentrado nas orações antes de dormir, até porque, escuta em cima do quarto dele o barulho de Amélia despindo-se. Que será que vai acontecer? A gente viu que entre o cônego Dias e a Joaneira rola alguma proximidade, que foi insinuada na conversa dele com o adjutor. Sobre as posses dela, para o coadjutor, o cônego Dias diz que é um pedacinho de terra, quase nada. E que ele ajuda financeiramente a mulher. Na frente do Amaro ele aumenta, sugere que a Joaneira possui uma propriedade ampla. 
Ah, na leitura deste episódio, eu li o S. na frente do nome da Joaneira como Sua, Sua Joaneira. Mas eu acho que é melhor senhora, vou fazer assim a partir do próximo episódio, tá?
Eça de Queiroz tentou traduzir a reforma social em Portugal na sua literatura, expondo o que ele considerava serem os males e os absurdos da ordem social conservadora tradicional predominante no país. O crime do padre Amaro é uma crítica à hipocrisia e corrupção na igreja católica, e desde o início diz a que veio, mostrando um lado não muito bom dos religiosos da cidade. 
Hoje iniciei a leitura de O crime do padre Amaro, de Eça de Queiroz. No próximo episódio do Literatura Oral, vamos saber como está sendo a adaptação de Amaro em Leiria. 
#71
Oi pessoal! Sejam bem-vindos ao Literatura Oral, podcast de leitura comentada e de sugestões literárias. Eu sou Sabrina Siqueira, jornalista e pesquisadora de literatura. 
 Fora bolsonaRo, espero que esteja tudo bem com vocês. Com saúde, se cuidando. E por falar em #forabolsonaro, tá chegando o Natal e lembra do nosso poder como consumidores. Se tu discorda da política da naro, não coloca teu dinheiro em empresas que financiam ele. A gente costuma ter a sensação de que não pode fazer nada pra interferir na política, mas o poder de compra, ainda que pequeno, pode fazer diferença. Se junta o teu poder de compra, ainda que pequeno, com o meu, com o de uma outra pessoa, já não fica tão pequeno assim. Boicota as empresas e marcas que apoiam políticas que te prejudicam. O posicionamento da gente tem que ser ativo, inteligente, tem que ser mais que uma # nas redes sociais. E o que a gente pode fazer, além de votar, é boicotar essas marcas e assim diminuir o fluxo de verba pra apoiar políticos que nos prejudicam. Não façam como uma atriz famosa, que se diz #forabolsonaro, ela e o marido tem uma postura de luta por igualdade racial super bacaba, adotaram crianças pretas, sendo que eles dois não são, mas aí ela faz campanha pra uma rede de lojas de departamento que abertamente está com o naro. Quer dizer, ela chama os seguidores dela a comprarem na loja, porque ela é famosa e tem um monte de seguidor, e depois quer sustentar uma postura de politizada. E como ela, tem vários outros exemplos. Não adianta nada. Todo falatório por justiça social vai por água abaixo quando o dinheiro é direcionado pra tal loja. Porque no fim o que sustenta ou derruba um presidente é dinheiro, não é #, não é protesto na rua, não é pichar muro. Então vamos ficar ligados nisso! 
Voltando pra literatura... No último episódio eu comecei a leitura comentada de O crime do padre Amaro, romance de Eça de Queiroz, publicado em 1875. Aqui no Literatura Oral já teve a obra que abre o período literário conhecido como Realismo no Brasil, que foi Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Foram os primeiros episódios do LO. E agora to fazendo a leitura comentada do livro que inicia o Realismo em Portugal, que foi O crime do padre Amaro. 
O livro inicia com um panorama do quanto a cidade de Leiria, e Portugal em geral, é católica e cheia de membros do clero. Vaga uma paróquia e Amaro, recém ordenado, consegue ir pra lá. Ele encontra o mestre de moral do seminário, o cônego Dias, que arranjou um quarto pra ele alugar na casa da Joaneira. Dias e Joaneira são bem próximos, ele mesmo diz que visita todos os dias, recebe doces feitospor ela e ajuda nas contas da casa da mulher. Ela tem uma filha, Ameliazinha, de 23 anos, cujo quarto fica exatamente em cima do quarto ocupado por Amaro. É um tempo sem luz elétrica, numa cidade muito silenciosa, até porque tem um toque de recolher às 9h30. Então Amaro inevitavelmente escuta os movimentos da menina no quarto acima.
Eça é especialista em jogar com os desejos e fantasias do ser humano, mostrando como os indivíduos se prestam ao exercício da sedução e do poder. E é isso que ele está fazendo quando encerra o capítulo dois contando que Amaro tava ali tentando se concentrar nas orações antes de dormir, e começa a escutar um ruído que deve ser Amélia tirando a roupa no quarto acima. Pronto. Ele tá sugerindo uma fantasia da personagem, Amaro, mas tá também jogando com a imaginação do leitor, e nisso ele conta muito, sem dizer nada. Desse anúncio a gente pode tirar conclusões do que vai se desenrolar. Será que vai dar ruim? Pensa que Amaro acabou de sair do seminário e cumpriu um tempo numa paróquia que era frequentada só por pastores. Quer dizer, ele pode estar curioso de uma figura feminina, afinal ele é um cara jovem. 
Na leitura de hoje, vamos ver a origem de Amaro. Afinal, quem é essa figura, cujo título nos sugere que vai cometer um crime? Lembra que eu to lendo quase tudo do romance, mas suprimindo algumas descrições. Vai aparecer a palavra apoplexia, que tanto o pai quanto a madrinha do Amaro morrem disso. Significa a ruptura de um órgão, morte por falência de um órgão, algo assim! Partiu leitura?
*** 
Na leitura de hoje vimos a história de Amaro, da infância até ele chegar a Leiria.
E é uma história esvaziada de afeto. Amaro tem a palavra “amar” no nome, mas amor que é bom ele nunca conheceu. Órfão muito cedo, ele é criado pela patroa da mãe, que é quem decide que ele vai ser padre. Ele é tímido e magro, e então começa a ganhar apelidos e ser visto como afeminado. As criadas da casa vestem o guri de mulher, o que seria bem legal, se partisse da vontade da criança. Mas parece que é uma ação de chacota, uma forma de humilhar o queridinho da patroa, quando ela sai. Além disso, essas criadas, adultas, investem em um tipo de relacionamento abusivo com a criança, em que não cuidam dele, não o veem como criança, e permitem certa lascividade no comportamento com ele. É um tipo de abuso em que elas tratam Amaro como se fosse mais velho. O resultado é que ele é uma criança que não se encaixa. Ele não brinca, não ri. 
Com a irmã ele não tem nenhum contato. E quando vai morar com o tio, é lembrado a todo tempo de que é um estorvo. Então a formação identitária de Amaro é carente de capital afetivo. As manifestações de carinho que ele expressa quando criança são para com objetos inanimados, que ele dota de significado. Ele beija os santos da capela, enquanto limpa o lugar. Parecia que ele buscava refúgio ali, entre as figuras de santos. Ele não recebe atenção e não aprende como organizar os sentimentos de afeto, além de não ter tido exemplo de relacionamentos saudáveis e não ter aprendido como se comportar diante do feminino. Sendo que ele próprio era tido como um ser feminino, sem que isso partisse da vontade dele. Além de afeminarem Amaro, numa espécie de castração da criança, as criadas usavam ele nas suas intrigas, o que inicia o menino ao universo das mentiras. Isso de exercício da afetividade, me parece que a gente não nasce sabendo. A gente aprende com os modelos que vislumbra na vida. É também uma infância marcada por mortes repentinas, o que pode conferir algum sentido da brevidade da vida, da inutilidade de planos a longo prazo, de se preocupar com o futuro, e de se responsabilizar com suas ações.
Lembra que uma das influências literárias de Queiroz foi Gustave Flaubert, autor de Madame Bovary, de 1856. Pois a mulher do tio de Amaro é uma Emma Bovary. Passa os dias lendo romances, enfeitada, sonhando com os conquistadores que passam sob sua janela, e casada com um bronco. Assim como a personagem de Flaubert, ela não tem nenhum interesse em criança. 
 Ninguém nunca pergunta se Amaro quer ser padre, e ele entra no seminário pra escapar da vida ruim com o tio, sem nenhuma vontade ou vocação. Ele vai pro seminário como um livramento, como a única alternativa que tinha na vida. Antigamente, era comum muitas famílias decidirem que algum dos filhos ia ter que ser padre, até pra garantir o futuro daquele um. Mais recentemente a gente viu isso acontecer com o serviço militar, no Brasil. Muitos meninos, sem vontade ou vocação alguma, se alistando pra garantir um salário, porque simplesmente não têm outra oportunidade no horizonte. O narrador inclusive fala que Amaro aceitou a batina como teria aceitado a farda, ambas sem nenhuma inclinação, mas sim por obrigação e meio de vida. E dentro do seminário o clima era de presídio. Os alunos invejavam a liberdade até dos mendigos que viam pela janela. 
O autor propõe uma reflexão sobre a imagem da mulher para a igreja católica, ora como santa, ora como demônio, e toda confusão que esses conceitos antagônicos causam nos jovens seminaristas. Além de Amaro não ter tido nenhuma educação no trato com as mulheres, nenhum exemplo de afeto em uma relação com o feminino, porque a mãe morreu quando ele tinha seis anos e a irmã morava longe, no seminário ele recebe instrução confusa sobre a figura da mulher, que ou é santa inatingível, ou é pecadora da qual ele deve se manter afastado. O autor está cutucando a questão de como a mulher é representada pela igreja católica, talvez até tangenciando o tema do celibato para o clero, e o narrador está nos contando da formação da identidade do homem Amaro, inexperiente no trato com mulheres em todas as esferas, e isso pode sugerir uma explicação da falta de respeito pelo ser mulher, ou da incapacidade dele em ver mulher como alguém tão digno quanto qualquer homem. Essa educação distorcida do seminário, depois do que foi a infância e a adolescência de Amaro, podem explicar, em partes, o comportamento dessa personagem. Um dos mestres que falava da mulher como “porta do inferno” era o mestre de moral, ou seja, o cônego Dias, que recebe Amaro em Leiria e arruma o quarto pra ele alugar, na casa de uma amiga dele. 
Tem uma sugestão de que Amaro pode ter tido alguma coisa com uma pastora, em Feirão, que ele gostava de ver tocando o sino. O fragmento é este: “As exaltações, que no seminário lhe causavam a continência, tinham-se acalmado com as satisfações que lhe dera em Feirão uma grossa pastora, que ele gostava de ver ao domingo tocar à missa, dependurada da corda do sino, rolando nas saias de saragoça, e a face a estourar de sangue”. E aí o Amaro, que era amarelado, magro, corcundo, muda. Adquire postura, engorda, fica bonito. Vai aparecer bastante ambiguidade no texto de Queiroz, de modo que o leitor pode interpretar as entrelinhas e se divertir com um subtexto malicioso. 
A forma com que Amaro conseguiu a nomeação para Leiria, sendo a cidade um lugar importante e ele um recém ordenado, foi por influência de uma das filhas da marquesa, que era meio madrinha dele, e de uma amiga dela, que deixa o padre encantado. Quando ele vai na casa dela pedir a nomeação, tem uma conversa dos homens na casa que mostra o quanto a escolha dos padres para determinadas localidades era um jogo político. A nomeação era intermediada por um ministro e os padres deviam ajudar os partidos. 
Em um texto teórico de 1871, quatro anos antes da publicação de O crime do padre Amaro, Queiroz preconiza a necessidade do Realismo na arte, para que a manifestação artística possa servir à revolução e cumprir o seu fim moral de corrigir e ensinar, propiciando a justiça e ligando-se aos movimentos sociais e à realidade de seu tempo. Para isso, a literatura deveria falar da realidade contemporânea e não da apoteose do sentimento, como fazia o Romantismo.
Por hoje fico por aqui. No próximo episódio, continuo a leitura de O crime do padre Amaro. Fiquem bem, um abraço e até lá!
#72, PARTE 3
Oi pessoal! Sejam bem-vindos ao Literatura Oral, podcast de leitura comentadae de sugestões literárias. Eu sou Sabrina Siqueira e to fazendo a leitura de O crime do padre Amaro, romance de 1875, escrito pelo português Eça de Queiroz, e que abre o período do Realismo em Portugal. 
No último episódio, vimos como foi a infância e a juventude de Amaro. Ele fica órfão cedo, é criado pela marquesa, na casa em que os pais trabalhavam, e não recebe afeto de ninguém. Também não é questionado sobre o que quer fazer da vida. Aos 15 anos é enviado ao seminário, porque foi a decisão da marquesa. E vai de bom grado, pra fugir da vida árida que levava na casa do tio. No seminário, ele só pensa em fugir, em terminar logo os estudos e ser livre. Ele demonstra curiosidade sobre mulheres e chega a pensar que ser padre não é uma boa, porque não vai poder casar, mas como também não tem outra alternativa, termina o curso e é ordenado. Amaro fica confuso quanto à imagem da mulher difundida no seminário, ora santa, ora demoníaca. 
Mais uma vez, o romance de Queiroz nos indica envolvimento da religião com a política, sendo que os padres exerciam muito poder junto às comunidades e podiam influenciar os votos. Assim, as nomeações para as paróquias atendiam a interesses políticos. Mas Amaro consegue nomeação para Leiria, onde a gente viu que ele chegou e encontrou o mestre de moral, o cônego Dias. 
Quando escreveu este romance, Queiroz estava fazendo crítica à corrupção do clero e à hipocrisia da classe média. Será que essa obra ainda nos diz algo, no século XIX. Me parece que sim, e que uma mensagem que podemos extrair da obra hoje é sobre o quanto os poderosos podem manipular o povo. A influência da igreja perdeu força, desde os tempos do lançamento do romance, mas outras instâncias exercem poder e influenciam o pensamento, a conduta das pessoas. 
Os juízes, por exemplo. O judiciário concentra um poder enorme e consegue manipular a opinião pública. O impeachment da presidente Dilma foi influenciado pela atuação do juiz Moro, que agora abraça definitivamente a esfera política, se candidatando a presidente. E uma coisa que não mudou dos tempos do Eça, pelo menos aqui no Brasil, é a ligação entre política e religião. Existe uma bancada evangélica no congresso nacional e nos legislativos estaduais e municipais. E não é raro os candidatos usarem slogans com Deus e família, associarem sua imagem à religião. 
Lembram que eu disse que ia ler o S. na frente de Joaneira como Senhora, porque eu li como “sua” no episódio #70? Só que eu pesquisei, e o S. em frente ao nome significa “santa”. E senhora aparece em outros momentos no romance, com a abreviatura usual sra. Então neste episódio leio como “santa Joaneira”, mas parece tão estranho. Será que foi isso mesmo que Queiroz quis dizer? Pessoal de Portugal que escuta, vocês sabem me dizer qual é a forma mais correta de ler esse S. na frente do nome?
Lembrem que eu não estou fazendo a leitura na íntegra, tenho suprimido algumas descrições. 
As palavras diferentes que vão aparecer na leitura de hoje são: chinó, que é peruca, e reposteiro, que é uma cortina que substitui uma porta. Era comum, em Portugal, chamar moça jovem de rapariga. Então a gente vai ver essa palavra também. 
*** 
Na leitura de hoje vimos o primeiro dia de Amaro em Leiria. Gente, e a locatária levando as amigas no quarto do inquilino e mexendo nas coisas dele? Até nas coisas dentro do baú mexem. Que mexeriquentas! O padre é quase uma celebridade pra elas. Ele repara em Amélia numa reunião social que a dona da casa faz para que as beatas conheçam o padre. Nas conversas delas percebemos como são afeitas a crendices, acreditando nos milagres de uma senhora doente e escarnecendo da visão cientificista que explica o estado da pessoa como uma doença nervosa. Isso é uma crítica à religiosidade que exclui o valor da ciência, uma crítica ao fanatismo das devotas. A personagem que colabora com a visão científica é João Eduardo, rapaz interessado na Amélia e que as velhas consideram estar no mau caminho.
Durante um jogo de bingo, Amaro e Amélia fazem dupla. O cônego Dias parece que tira os números com pouca isenção, e a irmã dele rouba na hora de pagar as apostas. Aliás, os padres jogando a dinheiro, também não parece um comportamento muito adequado, né? 
No final dessa noite, Amaro surpreende Amélia abrindo os botões da roupa na luz da sala, e fica muito envergonhado. Os dois passam a noite em claro, cada um no seu quarto, pensando. Amélia lembrando como a casa delas sempre foi frequentada por padres. Ela cresce num ambiente cheio de carolas e de padres, e com a ideia de Deus associado a sofrimento e morte. Pensa no primeiro namorado, que casou com outra, na vontade que teve em virar freira por causa da decepção. E depois conhece João Eduardo, que quer casar, mas que ela tá mantendo em banho maria, porque não gosta muito. 
A Joaneira sempre recebeu visitas frequentes de religiosos. Desde que ficou viúva, tinha algum padre assíduo em sua casa, quando não grupos deles. E o atual visitante de todos os dias, que aliás ajuda nas despesas da casa, é o cônego Dias, mestre de Amaro. 
Por hoje fico por aqui. No próximo episódio, continuo a leitura comentada de O crime do padre Amaro, de Eça de Queiros. Feliz ano novo, com saúde, entusiasmo, oportunidades e humor pra todos nós! 
#73, PARTE 4
Oi pessoal! Este é o Literatura Oral, podcast de leitura comentada e de sugestões literárias. Sejam bem-vindos e feliz 2022 neste primeiro episódio do ano! Eu sou Sabrina Siqueira, jornalista com doutorado em literatura.
Hoje eu continuo os comentários do romance O crime do padre Amaro, de Eça de Queiroz, que tô lendo partes aqui no Literatura Oral. Quase tudo, tô suprimindo as descrições mais longas só. No último episódio, uma reunião de carolas na casa de Joaneira dá o tom de como é aquela comunidade. Muita influência da igreja, uma fé meio exagerada das beatas e a convivência de padres na casa da Joaneira e da Amélia. Amélia cresce no meio de padres e no ambiente da igreja. Mas é tudo temperado de uma certa perniciosidade e um pseudomoralismo. 
A gente viu sobre o passado de Amélia, que não lembra do pai, só de padres frequentando a casa dela até altas horas. Ela sofreu uma decepção amorosa e pensou em ser freira, até porque tem muita intimidade com o ambiente religioso. Está noiva de João Eduardo, que é uma personagem que destoa por ser a voz da ciência dentro do romance. 
Com este romance, Queiroz está expondo inconsistências e falhas da igreja da época, e apontando a influência do clero na formação de Portugal. Com isso, o autor reafirma o ideal realista de que a arte e os artistas sejam engajados na realidade social. 
Então te inscreve no canal, deixa teu like e vamos à leitura!
*** 
Na leitura de hoje, vimos que Amélia e Amaro têm convivido bastante e tá acontecendo um clima entre os dois. Amaro chega a esquecer por alguns momentos que é padre. E ele é um padre sem vocação. Daí fica mais fácil esquecer e se perder mesmo.
Amaro assiste à amizade do cônego Dias com a Joaneira. Lê livros em que a devoção assume um discurso equivocado. O livro Cânticos de Jesus que quem traduz do francês é um grupo chamado “Escravas de Jesus”. Pelo nome do grupo já dá pra ter uma ideia do equívoco, por se considerarem escravas. O narrador diz que elas dão às orações uma linguagem de luxúria e deixa a crítica de que esse livro, desse jeito, foi aprovado por algum bispo e é dado a estudantes no convento. Um livro que é beato e excitante, ao mesmo tempo. Bem como as relações dos padres com as mulheres daquela comunidade. Tudo com o aval e a participação dos clérigos mais velhos, inclusive do mestre de moral de Amaro, o Dias. O padre lê esse livro, escutando os ruídos de Amélia na casa. E aí que ideia que Amaro tem? Recomenda a leitura dos Cânticos a Jesus pra ela! Não só recomenda como deixa o livro pra ela no cesto de costura. 
Um dia Amaro tá chegando em casa e surpreende Dias e Joaneira no quarto, se vestindo. Putz! Ele que já andava subindo pela parede, agora essa! Com isso, Amaro se sente autorizado. Ao escrever sobre esses relacionamentosescondidos, ou vontades de relacionamentos, Queiroz convida o leitor a refletir sobre a questão do celibato como uma obrigação na igreja. 
A castidade é exigida somente no catolicismo romano. Nas religiões muçulmana, judaica e protestante, os religiosos podem casar. E é muito estranho que padres aconselhem sobre matrimônio, sem poder praticar. Será que a castidade como imposição, e não como opção de cada um, não seria uma determinação errada? Essa é uma das questões que este romance nos propõe. 
Amaro fica chocado. E percebam a visão machista da personagem. Ele pensa um pouquinhho que Dias era mestre de moral, não devia agir assim. Mas quem ele se demora criticando são as mulheres. Pra ele, elas é que são as mais erradas, não o cônego, que fez voto de castidade. E aí coloca Amélia no mesmo balaio da mãe, pressupondo que ela sabe e que é cúmplice. Depois pensa que foi perfeito o mestre ter colocado ele ali naquela casa, que tinha mulher pros dois. O único problema era o noivo, João Eduardo. Amaro morre de inveja do direito de amar que João Eduardo tem, porque ele foi obrigado a ser padre sem nem ninguém perguntar se ele queria. 
Nesse capítulo teve humor. Amaro zangado com Amélia por ela ser honesta. E aí mais uma crítica de Queiroz à hipocrisia da igreja, quando coloca nas palavras da personagem que o bonito dogma que a igreja lega aos padres é que não podem pensar em mulheres decentes, mas como não conseguem ficar sem pensar em mulheres, precisam que elas ajam como prostitutas. Quer dizer, ao impor a castidade, uma regra que não será cumprida, a igreja condena os padres a quebrarem os votos e as mulheres a serem desonestas também. Coloca todos como contraventores. 
Amaro tá passando por um monte de sentimentos nesse dia que descobre o caso de Dias com a Joaneira, e amaldiçoa a marquesa que o condenou a ser padre, porque com essa decisão roubou a liberdade e a sexualidade dele. Nesse ponto da narrativa dá pra sentir pena de Amaro. Afinal, ele caiu em uma cilada, ele não queria renunciar a ter vida sexual, a ter uma família. Se fosse um romance da Romantismo, agora que percebe como será a sua vida, Amaro iria repensar a carreira, talvez abandonar a função de padre e começar nova vida ao lado de Amélia, tentando outra profissão. Porque no Romantismo as relações são idealizadas e tudo conflui para um final feliz ou para o enlace amoroso. Mas aqui é Realismo, o escritor está comprometido em fazer da narrativa um arauto de crítica social e as reações das personagens são mais próximas do que acontece na vida. E na vida, Amaro pensaria na dificuldade que enfrentaria se deixasse a batina e fosse iniciar outra profissão, tendo ainda que sustentar uma mulher, certo? Lembrem que o Realismo acontece paralelamente ao Naturalismo, aquela estética literária que foi muito influenciada pelo cientificismo e pela ideia de que os seres humanos reagem por instinto e por influência do meio. Bom, como é que o meio influencia Amaro? 
Num almoço de aniversário que reúne vários padres, eles falam como têm aumentado o número de mendigos, mas culpam os pobres de não querer trabalhar. A hipocrisia deles, falando na pobreza como se fosse culpa dos pobres, enquanto enchem a barriga no banquete. Repetem aquela máxima de que a pobreza agrada a Deus, quando eles mesmos vivem na abundância. Acham errado os homens e mulheres que andam oferecendo serviço nas fazendas, chamam de maltas. Falam que a causa da miséria é a imoralidade, quando entre eles a imoralidade corre solta. 
As piadas, os gracejos quando os padres se encontram, têm um teor sexual que destoa de como deveria ser a postura deles. Falam da quantidade de solteiras grávidas e que repreendem as mulheres. Eles não repreendem quem engravida as mulheres, talvez até alguns padres, mas criticam elas. Mais uma vez, o machismo dos padres que, lembrem, aprendem no seminário que mulher ou é Maria ou é demônio. Nesse almoço, os padres falam de um caso de um deles de boas, sem problema. Os padres terem seus casos já tinha caído na normalidade. 
O padre Natário coloca a questão do poder dos padres em absolver os pecados e considera a confissão abertamente como um meio de manipulação do povo pela igreja, uma teoria que discorda do que dizia o catolicismo e combina mais com as teses de Martinho Lutero, escritas no século XVI. Quando coloca a discussão dos padres sobre o poder da absolvição, o autor está sugerindo o debate de se precisamos mesmo do intermédio dos padres para absolver pecados, se absolver só cabe a Deus, e os padres são homens pecadores como todos. Queiroz propõe o tempo todo reflexões sobre o funcionamento da igreja.
Amaro se surpreende de novo com eles contando de umas cartas que inventaram pra convencer o povo a votar em determinado candidato, e ameaças do inferno pra quem não votasse, e que as cartas teriam vindo do céu assinadas por Maria e o povo acreditou e votou como o padre queria. Eles enrolam as pessoas e o povo ignorante e morto de fome, faz o que as figuras religiosas mandam. Não muito diferente do que a gente vê agora. Em outubro a gente têm eleição. Não vamos fazer como as pessoas deste romance, que acreditam que precisam votar no candidato que tem slogan de igreja, Deus acima de tudo, família! Vamos aprender com a literatura que por trás de um discurso embrulhado em boa fé pode ter gente mal intencionada, rindo da ignorância do povo, rindo da inocência das pessoas em acreditar que Deus e os santos escolhem este ou aquele candidato. A gente tem que avaliar os candidatos pelo que eles já fizeram enquanto estiveram no poder e pensar no que é melhor pra nós, não votar porque o pastor mandou, ou o padre, ou seja quem for. Eles dizem abertamente que usam a hora da confissão pra manipular as mulheres. Eu não sei como Queiroz não teve que se exilar de Portugal depois de escrever essa história. O que restava da inocência de Amaro acabou nesse almoço. Se restava alguma crença na profissão de padre, na bondade da igreja, nesse almoço ele descobre que é tudo só moral de ocasião, é usurpar o povo em proveito próprio, é fazer conchavo com político que dê lucro pra eles e transar a valer! E Amaro ali, meio estupefato, meio achando que enfim a vida pode ser boa, afinal!
Quando vão caminhar, a perda de paciência de um dos padres com um velho camponês, porque o padre bêbado tropeçou na ovelha dele. E a atitude de subserviência do velho para com o grupo de padres representa o povo crédulo em que aqueles homens são manifestações divinas. Essa cena do aniversário do abade serve para reforçar para o leitor como a igreja católica estava corrompida naquele cenário, com valores distorcidos. 
E é nessa vibe que, na volta desse aniversário, no caminho, Amaro encontra Amélia e dá um beijo nela. Não dá nem pra colocar a culpa no vinho, porque o narrador diz que ele foi o único que saiu do almoço lúcido. Mas a demonstração da fé fraca dos outros padres durante o almoço, e o flagra que deu no cônego dias atrás, encorajam Amaro a agarrar Amélia pra dar um beijo. E ela sai surpresa, mas feliz. Tá apaixonada e nem dá bola que ele é padre. 
Tivemos acontecimentos importantes na leitura de hoje. No próximo episódio do Literatura Oral, continuo a leitura comentada de partes de O crime do padre Amaro, de Eça de Queiroz. Fiquem bem e bom início de ano novo!
#74 – PARTE 5
Oi pessoal! Este é o Literatura Oral, podcast de leitura comentada e de sugestões literárias. Eu sou Sabrina Siqueira. Sejam muito bem-vindos!
Gente, se vocês querem passar calor na vida, venham pra Santa Maria! Eu to gravando este episódio num dia de sensação térmica de mais de 40ºC! Eu to sentindo como se fosse 50ºC! 
Estou fazendo a leitura de partes de O crime do padre Amaro, de Eça de Queiroz. Hoje é a parte 5 da leitura. No último episódio, vimos que Amaro flagrou Joaneira e o cônego Dias no quarto e que Amaro deu um beijo em Amélia. Quando isso aconteceu, ele tinha acabado de sair de um almoço de aniversário, em que um padre chamado Natário falava que padres não tem o poder da absolvição, que isso só cabe a Deus. Elelembra os colegas que são humanos, às vezes estão ouvindo as confissões empanturrados de tanto comer, às vezes com dor de barriga. Isso tudo vai fazendo com que Amaro ande mais pro lado de fazer o que lhe dita o instinto mesmo, e menos pro lado de ser um padre muito convicto. Todas as ações dos padres daquela comunidade são no sentido contrário do que deveriam agir. Falam mal dos pobres, admitem casos com mulheres, comem e bebem demais, usam a confissão pra manipular as mulheres e tomam partido na política, chegando a mentir que têm cartas assinadas por Maria, mandando que votem em determinado candidato. 
Com isso, colocando esse discurso mundano na voz de uma personagem que é padre, o padre Natário, Eça de Queiroz está colocando as duas mãos nos ombros do leitor, sacudindo o leitor e falando “pensa, criatura!”. Pensa se é certo que a religião, que os padres controlem tanto assim a tua vida. Pensa se precisa demasiadamente da confissão, escutada afinal de contas por pecadores como tu! Sejam críticos, leitores! Não sejam adulões desse ou daquele, não chamem político de mito, por exemplo!
Quando Queiroz publica O crime do padre Amaro, em 1875, Portugal está passando por um período que ficou conhecido como “Regeneração”, que durou entre 1851 e 1890. Foi um período de estabilidade e progresso aos moldes burgueses da época. Houve modernização econômica, industrialização, reformas urbanísticas e reestruturação político-partidária. A Geração de 70, da qual Queiroz fez parte, procurou desenvolver uma produção com o objetivo de refletir sobre os rumos da sociedade portuguesa, e a temática da religião em Portugal foi uma das mais debatidas por Eça. 
Então, te inscreve no canal, deixa teu like e vamos à leitura!
*** 
Na leitura de hoje, Amaro está preocupado que Amélia conte do beijo e que ele seja repreendido. Pede ao cônego que arranje uma casa e pra surpresa dele a casa está arrumada no dia seguinte. É que Dias estava incomodado porque preferia a Joaneira dormindo no quarto do primeiro andar, que ficava mais fácil de ele entrar sem ser visto por Amélia e pela empregada delas. E a mulher tinha cedido esse quarto ao inquilino.
Dias também consegue uma criada, que é irmã de uma prostituta famosa em Leiria, que agora está velha e faz pequenos serviços. Há uma menção ao romance Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, de 1848. A protagonista desse romance é uma cortesã, ou uma prostituta de luxo, é esse romance inspirou muitas obras. Lembra que eu comentei que na época que Eça de Queiroz começa a escrever está acontecendo uma troca cultural intensa entre Portugal e outros países europeus? Com isso, entram em Portugal obras literárias de outros países e Queiroz foi influenciado pelos franceses. Quando Amaro pensa que nunca mais terá o conforto de morar junto de Amélia, quando ele está arrumando a mala, e repete “nunca mais, nunca mais”, também lembrei do estribilho do poema “O corvo”, de Edgar Allan Poe. Pode ter sido outra influência para Queiroz. 
Amaro fica triste com a prontidão do outro em arrumar novo endereço pra ele, até porque a nova casa é uma espelunca. E novamente se revolta contra Amélia. Queria que ela tivesse deixado claro que não tinha se ofendido com o beijo. Com isso a gente vê dificuldade da personagem Amaro em admitir quando tem culpa. E a infantilidade de Amaro, pensando em como pode humilhar a menina e fazer inveja.
O capítulo 8 mostra uma certa infantilidade de Amaro. Primeiro, o narrador conta que ele mantém uma atitude de discípulo em pedir conselhos e em julgar Dias mais inteligente, só por estar superior na hierarquia eclesiástica. Depois, embaraçado em contar que beijou Amélia para o padre que ele mesmo viu no quarto da mãe dela. Quando a Joaneira pergunta como foi o jantar de aniversário, Amaro não se limita a dizer quais foram os pratos, mas conta até sobre a discussão teológica que teve com Natário, um assunto que não deveria ter saído dali, porque expõe a falta de fé dos párocos. E por fim a tolice dele em querer se exibir como bispo, achando que vai fazer ciúme pra Amélia se ascender na carreira eclesiástica. 
A descrição da infantilidade de Amaro está aqui pra mostrar ao leitor como ele não é nenhum demônio maquiavélico, como ele sente a vida bem de acordo com um menino da idade dele, com as inseguranças naturais da idade, com a necessidade de ter exemplos para seguir, e que as coisas que acontecem a partir daqui podem não ter sido somente culpa de Amaro, ou somente maldade dele, que afinal de contas, está seguindo seus instintos. Essa descrição nos ajuda a entender a personalidade do protagonista, que é um jovem regular, não muito diferente dos demais, com os desejos iguais aos dos homens jovens que não se tornaram padres. Com isso fica a sugestão de que o que vai acontecer pode não ser culpa somente de Amaro, esse crime do qual nos fala o título. Mas culpa de todo um entorno, de como era a vida ali e do que era permitido naquela comunidade, entre os pares de Amaro. Mas tem pelo menos um aspecto da culpa de Amaro que já está aparecendo, que é atribuir a culpa de estar apaixonado a Amélia, como se ela provocasse racionalmente o inocente padre. Ele não assume que pra ela, assim como pra ele, a atração entre eles foi natural. Fica tentando demonizar Amélia, colocar a culpa no olhar dela, coisas assim. Mas isso também é sinal da imaturidade da personagem Amaro. 
O texto é organizado no sentido de levar o leitor a perceber que é a forma como a igreja se organiza, são as regras da igreja para o exercício do sacerdócio que empurram Amaro a pensar e agir erroneamente. Se não fosse a obrigatoriedade do celibato, ele poderia namorar Amélia livremente. E a raiva que ele sente por ter que reprimir seu desejo faz com que deseje pertencer à igreja de antigamente, do tempo da Inquisição. Pois já que era pra perder direitos, então que tivesse poder de manter as pessoas com medo de queimar na fogueira por heresia. No ponto do catolicismo encenado no romance, ser sacerdote significa somente perdas, o único poder conferido aos padres nessa época em que a personagem Amaro se faz padre é o de absolver pecados, e até isso um outro padre colocou em dúvida e bagunçou a cabeça dele. Amaro tá frustrado e se sentindo logrado. 
Amaro está vivendo mal na casa nova, que é uma casa velha, com uma criada relaxada. O cônego não visita ele e a Joaneira não convida para as reuniões sociais na casa dela. Ele tá deprimido, sozinho e revoltado. E pensando que aquilo ali vai ser a vida dele pra sempre. Enquanto isso, o coração de Amélia sai pela boca toda vez que escuta a campainha, na esperança que seja ele. 
Só que o tempo passa, Amélia encontra na rua uma colega que se apaixonou por um padre, no passado, e agora tá miserável, super mal, e pensa que ela tá seguindo o mesmo caminho, que o melhor é esquecer Amaro. E vocês sabem, né? Longe dos olhos, longe do coração. Mas o que chama atenção aqui é como era comum os romances dos padres com as moças da cidade. Eles eram transferidos e elas ficavam mal faladas. Amélia bem que tentou esquecer o padre Amaro, mas acabava voltando o pensamento pros momentos alegres que passaram na casa.
A leitura deste episódio teve humor e ironia, características do texto de Eça de Queiroz. Como quando Amélia pensa que só quer encher Amaro de beijos. E depois morrer, indicando que ela sabe que é um relacionamento sem futuro. Mas Queiroz escreve de uma forma que dá pra achar engraçado. Tomara que a minha entonação tenha salvo o humor do texto pra vocês. A astúcia do médico, que examina Amélia quando ela adoece de amor por Amaro e recomenda a mãe que case a rapariga o quanto antes. 
Destaco também as superstições de Amaro. Sendo padre, ele não devia ser supersticioso. Então, isso também é uma ironia no romance. Ele passa a rezar direitinho quando tem a certeza que Amélia gosta dele, pra não aborrecer os santos, não atrair nenhuma reprimenda deles. E entra na casa de Joaneira com o pé direito, só pra garantir. E que tal quando Amaro pensa em como Amélia é boa e fala “pobrezinha”? Pareceque ele sabe que pra ela esse envolvimento vai ser bem ruim, bem pior que pra ele, que é homem. 
Eu tô solidária a Amaro quando ele diz que foi impelido para o sacerdócio como um boi ao curral. Essa parte do romance é importante, porque é uma crítica explícita à insensatez do celibato. Amaro diz como pode que alguém acredite que a ordenação, as palavras do bispo possam conter todo impulso da natureza de homens jovens, como é possível que alguém acredite? Parece que são lançados a uma vida de hipocrisia, em que só não podem ter uma relação abertamente, mas que todo mundo sabe que vão procurar mulheres em vielas, ou se envolver às escondidas com as beatas. E, no romance, aquela sociedade parece saber disso e fazer vista grossa. Amélia sente que as amigas da mãe fazem gosto do clima entre ela e Amaro, parece que protegem e incentivam. É bem bacana a constatação de Amaro de que seu pecado é uma infração canônica, não um pecado da alma. No sentido de que é uma infração imposta a homens que não vivem o que ele vive, o que os jovens padres vivem. São regras impostas por autoridades da igreja há muito afastados da vida mundana, e que colocam eles pra viver no meio da comunidade e agir como se fossem santos. Amaro tem o entendimento de que diante de Deus seguir o que é natural não teria como ser pecado. Essa discussão proposta por Eça de Queiroz é muito interessante e incrivelmente é um assunto tabu até hoje. Muito pouco mudou nessa burocracia da igreja desde o lançamento desse romance, se é que mudou alguma coisa. As personagens Amaro e Amélia, nesse ponto do romance, são vítimas de uma organização hipócrita e perversa da religião. 
Em contrapartida, a personagem João Eduardo é lúcida quanto ao que acontece na vida secreta dos padres e segue uma religiosidade que me parece mais próxima do ideal, que dispensa a ida ao culto, mas admira a atitude revolucionária de Jesus, enquanto amigo dos pobres. É dessa religiosidade crítica que o mundo precisa. João Eduardo é acusado pelas beatas de não ser suficientemente católico, no sentido de devoto, mas é a personagem mais cristã do romance, muito mais que os padres e as carolas. 
Por hoje, fico por aqui. No próximo episódio, continuo a leitura comentada de O crime do padre Amaro, de Eça de Queiroz. Fiquem bem, usem máscara e até o próximo! 
#75 PARTE 6
Olá! Este é o Literatura Oral, podcast de leitura comentada e de sugestões literárias. Eu sou Sabrina Siqueira, jornalista com doutorado em literatura. Sejam bem-vindos!
Fora Bolsonaro, tudo bem com vocês? Gente, voltei! Foi mais de mês sem postar episódio, mas vamo que vamo! Vocês lembram o que a gente comentou no último episódio?
Estou lendo o romance O crime do padre Amaro, de Eça de Queiroz, publicado pela primeira vez em 1875. No último episódio, vimos que Amaro saiu da casa da Joaneira, culpado por ter dado uma beijoca em Amélia. Quer dizer, não muito culpado, mais com medo de se dar mal, caso ela contasse. Foi morar numa espelunca e passou um tempo sem ver Amélia, muito revoltado pela solidão a que os padres são condenados. Ele tem esse entendimento de que a forma como a profissão é organizada, proibindo casamento, condena os padres à solidão. Depois ele volta a frequentar a casa da Joaneira nas noites de jogos e mantém um clima de namoro com Amélia. O noivo, João Eduardo, percebe. 
Amaro faz uma reflexão sobre a hipocrisia do celibato imposto aos padres jovens, se revolta por ter se tornado padre contra vontade, sem saber em que estava se metendo. Ele entende que o seu desejo de ficar com Amélia, aos olhos de Deus, não tinha como ser pecado, já que obedece a um instinto natural. Só é pecado frente ao dogmatismo inventado por homens desconectados da realidade, da juventude, da vida pulsante. E isso configura uma crítica à igreja católica. 
E agora Amaro e Amélia estão nessa, de evitar se mostrar interessados um pelo outro, porque João Eduardo tá vendo tudo. Mas as senhoras que frequentam a casa, se estão entendendo, fazem vista grossa pro climão.
Como a gente viu nos primeiros episódios sobre esse romance, Amaro foi criado em um ambiente beato e feminino. Em Leiria, integra uma rede de relações marcada pela falsa devoção. Antes de ser ordenado padre, Amaro era tido pelas pessoas como afeminado. Ele desenvolve uma espécie de perversão. Vivia nos quartos das criadas da marquesa, cheirando as roupas delas, gostava de ficar olhando bonecas nuas nas vitrines das lojas, imaginava cenas eróticas com imagens de santos. Isso tudo nos diz da formação identitária do padre, de como se desenvolveu a sua sexualidade, que depois foi tolhida e tida como pecado durante o seminário. E o ambiente em Leiria deteriora alguma virtude que Amaro tivesse. Claro que Leiria aqui é a escolha do autor para criticar e representar um comportamento que ele via no país. Não quer dizer que especificamente nessa cidade o catolicismo fosse mais corrompido. O autor podia ter usado um nome de cidade fictícia até, mas lembrem que essa obra se insere no Realismo, ela abre o Realismo português, e nessa estética os autores buscam narrar com proximidade à realidade. 
Tem umas palavras diferentes que aparecem na leitura de hoje. Ajanotado, que é uma palavra que vão dizer do padre Amaro, significa que se arruma, afetado no vestir e no portar-se. E impoluta, que vão dizer da Amélia, é honesta, pura, virtuosa.
Lembrem que dessa vez eu não to fazendo a leitura na íntegra, tenho omitido algumas partes de descrição. Vamos à leitura!
*** 
Esse capítulo 10 é longo, hein! Mas é pra compensar o tempo que ficamos sem episódio, também! Na leitura de hoje, vimos que João Eduardo tem ido passar as madrugadas na redação de um jornal, com um amigo com quem ele não queria ser visto junto, mas que se prestava pra aguentar a dor de cotovelo dele. Agostinho é o típico jornalista falido, mas que adora o trabalho. Vocês sabem que o jornalismo é mais que uma profissão, né? É uma vocação, um estilo de vida, e era mais ainda antigamente. Passa as madrugadas sobre as tiras do jornal, que naquele tempo o jornal era montado em tiras, organizado manualmente, o que deu origem à diagramação que a gente tem hoje. Esse jornal é do médico Godinho, que lidera um grupo político, de oposição ao grupo apoiado pelos padres. Por isso, os artigos contra o clero são bem-vindos. 
João Eduardo, chateado com o namorico entre Amélia e Amaro, escreve anonimamente pro jornal falando os podres dos padres, quase citando nomes, e sugerindo a pouca vergonha entre Amaro e uma moça ingênua, que todo mundo sabe que é Amélia. Como o comunicado faz muito sucesso, ele ganha a promessa de promoção no serviço e, assim, pode pedir a mão de Amélia.
Amaro não tinha lido o jornal, porque passou envolvido em escrever uma carta melosa pra Amélia, perguntando porque ela não respondeu um bilhetinho que ele tinha entregue numa noite de jogos. Vejam que já tá rolando uma certa ousadia dele, entregar bilhete na hora do jogo, onde todas as beatas estão. Olhem a forma como ele escreve pra ela, dizendo da pureza das intenções dele e fazendo uma certa chantagem emocional com a menina. Ele usa a autoridade dele de padre pra convencer de que o afeto deles não é desagradável aos anjos. E que pecado seria ela não corresponder ao amor dele, que isso seria uma forma de tortura. Mas ao mesmo tempo que ele é articulado pra enredar Amélia, a carta também é meio bobinha pra um homem adulto. Lembra que Amaro é essa identidade fragmentada entre o desejo e a imaturidade afetiva, já que ele não foi instruído em relações de afeto. Na carta que Amaro que escreve pra Amélia e não chega a entregar, ele compara a aproximação deles com o sacrifício de Jesus, que seria uma forma de agradecer por esse sacrifício. Ele, que tem um horizonte maior de leituras, de interpretação do mundo, se aproveita da fé dela e da autoridade que ele tem como padre, pra falar de assuntos religiosos, pra convencer a garota de que o caso deles é não só aceitável, como seria ainda uma demonstração de fé. E aí ele se despede como amante e pai espiritual, ao mesmo tempo.Enquanto Amaro tá revoltado com a condição que a igreja católica impõe aos padres, que é uma vida de solidão, obrigando os homens jovens a agirem na surdina quando querem sexo, ele tem razão. Porque aí ele tá pensando criticamente uma realidade na qual está inserido. Mas quando usa de sua autoridade como padre pra enredar Amélia, aí ele está sendo tão inescrupuloso como quem faz as regras da igreja. Porque sabedor de como as coisas funcionam, uma vez que não concorda, ele devia sair da ordem religiosa e ir viver conforme o que ele acha correto.
Depois da publicação do comunicado, quando Amaro chega na casa da Joaneira, é surpreendido por uma reunião de padres apavorados. Ao invés de se envergonharem das atitudes, a reação dos padres é de revolta com quem expôs os defeitos. A máxima daquela sociedade é a hipocrisia. Tudo bem as coisas acontecerem, só não podia se falar a respeito. Os padres são mostrados com os defeitos que eles deviam saber reprimir. São vingativos, rancorosos. E o pior é que não ficam com vergonha do que foi escrito no jornal no sentido de mudar de comportamento, só querem saber quem foi que escreveu e se vingar. 
A Joaneira é super astuta. Destorce as palavras de João Eduardo pra Amélia, dizendo que ele ficou preocupado com o falatório do que saiu no jornal. Mas que nada, se foi ele mesmo que escreveu. Diz que, no lugar da filha, casaria logo. E pro João Eduardo diz que Amélia gosta muito dele, sabendo que a guria não liga pro escrevente. Quer dizer, Joaneira entendeu muito bem a indireta do comunicado, porque ela vê o que acontece ali na casa dela. 
Convencida pela mãe a casar, Amélia escreve para João Eduardo. E que diferença da carta que faz pra Amaro. Pro noivo ela começa como “senhor”, pro padre é “meu adorado”. Amélia teve uma ideia de fugirem, mudarem de cidade, começar vida nova. Será que Amaro aceitaria? Como ela é muito infantil, pensa que a grande dificuldade seria tirar o baú de roupas de casa escondida da mãe. O narrador diz que Amélia tem um cérebro de beatas, e sendo assim só encontra soluções devotas.
O secretário geral é o representante do racionalismo, defende a liberdade de imprensa. As luzes que ele fala fazem referência ao Iluminismo, movimento intelectual e filosófico que aconteceu na Europa, no século XVIII. O Iluminismo enaltece a razão e diminui o poder da religião. A ironia dele em dizer que a liberdade de imprensa é um princípio tão sagrado que nem as leis da imprensa o permitem. Com isso ele coloca a imprensa, a liberdade de expressão, como lei maior. Enquanto isso, o padre Natário, que foi falar com ele, representa a inquisição, o passado feudal, medieval, quando a igreja exercia poder de decretar a morte dos hereges, mandava nas pessoas e em todas as instituições. Com esse fragmento, sabemos que o tempo da narrativa é um momento de perda de força da igreja, é um momento de transição para um pensamento guiado pela razão, pela ciência, até porque as ordens religiosas estão definhando na própria corrupção. E aí, sem a concordância do secretário em banir o jornal, o padre ameaça com a retirada da ajuda nas eleições, usando a sua influência junto aos católicos como moeda de troca. Um padre devia ter como prioridade a orientação espiritual da comunidade que atende, mas nesse romance os padres usam da influência que possuem para manipular e barganhar com os políticos, em causa própria. Mas aí ele se dá muito mal porque o secretário tá mais interessado nos ideias iluministas do que na meia dúzia de votinhos que os padres arrancam das beatas. Na verdade, no que o secretário se assegura é nas relações entre os atores sociais da política, que só são oposição para o público, mas que se acertam nos bastidores, sempre saem ganhando. O médico Godinho, por exemplo, é oposição aos padres, mas acha que religião é uma coisa boa pras mulheres. O que será que isso significa, quando um líder político diz que é bom que as mulheres tenham a religião pra se entreter, sendo que ele não vê grandiosidade na religião, não tem fé? Isso dá uma ideia de como as mulheres eram manipuladas, tidas como inferiores, que deviam passar tempo na bobice da religião, enquanto aos homens caberiam os assuntos sérios, a política, o regimento da sociedade real. Mal sabem o talento pra diplomacia da Joaneira!
Não há uma comunicação clara entre Amélia e a mãe. E na imaginação da Amélia o filho dela com João Eduardo teria os olhos do padre Amaro! Essa Amélia! Imagina que depois do casamento vai poder ter em Amaro o seu confessor. E aí a imaginação dela voa e imagina que tá jogando carta com as amigas, sentada nos joelhos do padre. 
Gostaram da parte de hoje? Vou tentar não demorar um mês pra colocar novo episódio! Fiquem bem e até o próximo!
#76 Parte 7
Oi pessoal! Este é o Literatura Oral, podcast de leitura comentada e de sugestões literárias. Eu sou Sabrina Siqueira.
Sejam bem-vindos! Como é que vocês estão?
Gente, que doideira essa guerra na Ucrânia. Como se não bastasse o mundo estar se recuperando de uma pandemia, Rússia invade a Ucrânia no dia 24 de fevereiro. Eu tô gravando este episódio em 28 de fevereiro. Como a proposta do Literatura Oral é fazer análise literária pra que a gente tenha mais facilidade em interpretar os textos em geral, vamos dar uma olhada para o que está sendo dito sobre essa guerra. Não sei se vocês viram alguém comentar “como é que pode, em pleno 2022, uma guerra!”. É incrível mesmo que estejamos assistindo mais um conflito bélico, enquanto tem bilionário construindo nave pra ir a Marte, o meio ambiente todo lascado e ao invés do povo usar tempo e energia para soluções ambientais ou na direção de igualdade social, fazem guerra por território. Parece que não aprenderam nada com a pandemia. Mas a verdade é que nunca houve um tempo sem guerra. Só que os conflitos saem do foco da imprensa, então a gente acaba esquecendo. Mas a guerra da Síria continua há anos, o Afeganistão tá tomado pelo grupo fundamentalista Taliban, o que significa uma guerra ideológica, principalmente contra mulheres. Faz tempo que eu não vejo sobre a Líbia, no norte da África, mas acho que ainda tem conflito por lá. E sabe qual outro país está em guerra? O Brasil. A gente tá enfrentando uma guerra contra a miséria e a ignorância. É o povo contra os grupos políticos e financeiros que promovem miséria e ignorância. Principalmente quem morre nessa guerra são pobres, mulheres, pretos e minorias. E recentemente perdemos uma batalha grande, a da reforma do ensino médio, pela qual os pobres vão ser ensinados disciplinas básicas, que vai preparar essa juventude para ser explorada sem pensar criticamente. E quem puder pagar por escola particular, poderá ter acesso a conteúdo que estimule criatividade e criticidade. Por isso que a gente tem que continuar lendo e pensando criticamente por nossa conta, porque os poderosos nunca vão querer os pobres como massa crítica, para não contestar salários baixos e exploração. 
Ainda sobre a Ucrânia. Eu não sei nada sobre esse país, só que é onde nasceu Clarice Lispector. Mas ela veio de lá ainda bebê, com a família fugindo da guerra. Agora, tem uma coisa que eu aprendi sobre a Ucrânia com a decisão dos Estados Unidos de não ir se meter a defender o território contra a Rússia. Posso estar enganada, mas pela atitude dos EUA, a Ucrânia não deve ter nem uma gotinha de petróleo, porque se tivesse, ah que já estaria cheio de bandeira americana com tanque, míssil, soldado que não caba mais, molho especial, cebola e picles num pão com gergelim! Onde tem petróleo, tem EUA se metendo, decidindo quem vai ser o presidente. Vale lembrar também que as guerras acontecem porque pessoas que nem sabem direito quais são os interesses em jogo se dispõem em ir lutar. Eu sei que ser soldado é um emprego, é uma carreira que algumas pessoas escolhem, com possibilidade de ascensão, de promoções pra quem sobrevive, ainda que sobreviva sequelado. Mas se as pessoas pensassem criticamente, no sentido de não se colocar em risco por uma causa que não é sua, não haveria conflito. Porque os poderososque iniciam as guerras, das suas salas grandes e bem equipadas, nunca se colocam em risco. 
Por aqui no LO, estou lendo o romance que iniciou o período do Realismo em Portugal. É O crime do padre Amaro, de 1875, do escritor Eça de Queiroz. Queiroz foi escritor de dezenas de romances, mas poucos ele viu serem publicados em vida. O crime do padre Amaro ele publicou, mas a maioria de sua obra foi publicação póstuma. 
No último episódio, João Eduardo, noivo de Amélia, escreve um comunicado anônimo pro jornal de Leiria, falando os podres dos padres que frequentam a casa da Joaneira. Amaro fica todo errado de ver o namorico dele exposto no jornal. O padre Natário tenta fechar o jornal com ajuda da autoridade local, mas o homem no cargo representa o ideal do Iluminismo, da razão sobre a religião. Nenhum deles percebe que o comunicado só podia ter sido escrito por alguém que também frequenta a casa. O João Eduardo é quem se deu bem no capítulo 10, fica orgulhoso da sua publicação, afasta Amaro da casa da Joaneira, recebe a promessa da promoção no emprego e, com isso, pode pedir a mão de Amélia. 
Para que a noiva aceitasse casar, no entanto, teve o trabalho diplomático da mãe, mentindo que o noivo esteve preocupado com o falatório na cidade e dizendo que se fosse ela, casaria logo. Amaro fica louco de raiva quando sabe do casório, raiva de Amélia, raiva da cilada que a vida lhe pregou, porque ele está condenado a viver na solidão. Somente Amélia pensa na possibilidade de Amaro abandonar a batina pra que eles possam viver juntos. Mesmo com raiva da situação, não passa pela cabeça dele começar uma nova vida, em que pudesse ser livre. Isso significa que Amaro é comodista e não é assim tão apaixonado por Amélia. Fossem personagens do Romantismo, Amaro e Amélia não poupariam sacrifícios para ficarem juntos, porque na estética do Romantismo, as personagens são idealizadas e não pensam nas consequências dos atos, agem por impulso. Mas essa obra pertence ao Realismo, estética em que os autores optam por construir as personagens com reações mais prováveis, mais parecidas com o que pessoas fariam. Então, por mais que Amaro quisesse ficar com Amélia, ele não estava pronto para abrir mão do conforto de uma carreira estável, de uma posição de privilégio naquela sociedade católica, podendo ascender a bispo, como ele diz. Vocês preferem as narrativas e as personagens dos textos do romantismo, mais idealizadas, ou as do realismo, mais perto do “a vida como ela é”? Quem quiser escutar uma amostra de ultrarromantismo português, no episódio #28 do LO começa a leitura comentada de Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, um clássico da segunda geração do Romantismo, que foi a mais sentimental. 
O humor no texto de Queiroz aparece quando Amaro lamenta não estar vivendo no tempo da Inquisição, quando a igreja mandava queimar os hereges em fogueiras, pra poder queimar Amélia e João Eduardo. Aí ele se conforma desejando que o casal tenha muitos filhos e fique muito pobre. Mas mesmo com essas pragas, eu sinto pena do Amaro, aqui nesse ponto da narrativa, porque o que ele tem pra fazer inveja ao casal de noivos é a probabilidade remota de ser tornar bispo. E convenhamos, Amélia e João não tão nem aí pra isso. E o episódio terminou com a notícia, entregue pelo confessor do chantre, de que essa autoridade da igreja de Leiria iria tomar providências sobre o comunicado e inclusive mandar um dos padres pra outra cidade. E aí vejam como o segredo de confissão é mais uma vez desrespeitado e como os padres se ocupam de fofocas. É a crítica do autor sobre como o clero estava corrompido, em Portugal.
Na leitura de hoje vai a parecer a expressão “pedreiro livre”. Significa maçon, alguém que não segue os preceitos do catolicismo. Os padres dizem que João é pedreiro livre, como se fosse uma coisa horrível. 
Vamos à leitura!
*** 
E hoje a gente conheceu Amaro, o fofoqueiro! Na leitura de hoje, o padre Natário está empenhado em achar o autor do comunicado. Faz amizade com Silvério, um padre com quem ele brigou feio anos atrás, porque ele é o confessor da mulher do dono do jornal. Mais uma vez, uma crítica ao desrespeito dos padres com a confissão. Natário consegue descobrir o segredo da autoria e quando conta a Amaro, já propõe que ele convença Amélia a desmanchar o casamento, porque vai trabalhar pela demissão de João Eduardo. Essa parte do romance é narrada com humor, quando o padre Natário diz que se a inquisição respondia com fogo, tudo bem eles responderem com fome, que vão fazer João Eduardo perder tudo. Mas é uma crítica a como os padres usavam o seu poder em causa própria. E são cheios de defeitos, vingativos, rancorosos. A frase de Natário de que “tudo é permitido a quem serve uma causa santa”. Quanta gente já morreu por conta dessa frase! Desde a época das Cruzadas até hoje, com os fundamentalistas religiosos, essa ideia de uma causa santa é usada pra aniquilar inimigos. 
O próprio Amaro se assusta com a vingança, a princípio, mas logo fica feliz com a possibilidade de tirar Amélia do noivo. Só que quando dorme e sonha, a culpa vem à tona no sonho. Ele sonha com Deus prometendo pragas e castigos pelo pecado de ter tirado Amélia de um rapaz honrado. Esse sonho dele é bem simbólico dos pensamentos que ele evita, da admissão de que está errado em se envolver com Amélia e do medo que ele tem de ir pro inferno. O sonho também mostra a incapacidade dele em prover a Amélia o básico que o marido devia dar a esposa. Ela reclama no sonho de fome e frio, porque Amaro sabe que, sendo padre, não poderia ser um marido provedor. Afinal, ele é inconsequente, mas no fundo é alguém envolvido também pelo discurso de culpa que a igreja impõe. Ele sabe que como ser humano teria direito a namorar, mas lá no fundo, não esquece que está desrespeitando os votos, e a culpa se expressa como sonho. Nossa, isso foi quase uma terapia dos sonhos do Amaro!
Esse sonho é muito freudiano, com a culpa abafada durante o dia e que se revela em sonho, e com a tensão sexual que aparece em imagens no sonho, em que ele e Amélia são pegos em flagrante transando, ou quase transando, e são observados por muita gente, expostos, e no caso os observadores são todos santos. O início da teoria da psicanálise, de Freud, foi em 1881, com análise dos sonhos, conceitos de sub e inconsciente. O crime do padre Amaro é de 1875, anterior, portanto. Não teria como dizer que Queiroz escreveu esse capítulo inspirado pelas teorias de Freud. Só se essas ideias dos sonhos simbólicos já circulavam pela Europa escritas por outros terapeutas. Ou o espírito do tempo, do final do século XIX, sussurrava essa ideia no inconsciente coletivo. E também, outra possibilidade, é que Queiroz fez ajustes em edições posteriores do romance. E num desses ajustes ele pode ter aí sim, lido Freud e incluído essa ideia de sonho simbólico para Amaro. Eu não sei dizer qual é a explicação de Queiroz ter escrito uma cena anterior a uma teoria que viria a casar direitinho com essa cena e que só existiria uns cinco anos depois. O que eu sei dizer é que Freud gostava de usar a literatura pra explicar seus conceitos, por isso o Complexo de Édipo se chama assim, por causa do protagonista da peça Édipus Rei, de Sófocles, escrita mais ou menos no ano 425 a. C. E Amaro teria dado uma análise e tanto pro psicanalista. A história de Édipo é que ele mata o pai, casa com a mãe, Jocasta, e tem filhos com ela. E Freud usou para explicar a competição dos filhos homens com a figura paterna, a competição do filho homem com o pai pela atenção da figura materna. E a busca inconsciente dos homens pelas suas mães nas amantes. Um dia vou fazer um episódio sobre essa peça. 
Falando nisso, a psicanálise, de certa forma, substitui o hábito da confissão, quando a igreja perde força para a ciência, no mundo moderno. Nas duas práticas, o sujeito deve elaborar uma narrativa sobre si mesmo, de modo a passar a limpo as suas ações e, assim, achar soluções para os problemas, resolver seus conflitos. Claro, salvo as devidas proporções. Bom, Amaro revelasua culpa em sonho, mas acordado ele é bem persuasivo pra fazer Amélia acreditar que João Eduardo é o diabo em pessoa, e mente que se ela casar com ele vai ter que abandonar a fé e os amigos, vai viver um inferno. Ele enrola Amélia, mas Amelinha é fácil de ser enrolada, porque nem queria o João Eduardo mesmo. Amaro não pensa no que é melhor pra ela, não tá nem aí que ela vai perder o noivo, vai ficar sozinha e sem ninguém pra sustentar, porque é uma narrativa de um tempo em que mulheres não tinham independência financeira. Além de mentir um monte, Amaro ameaça Amélia dizendo que, se casar com João Eduardo, ela perde para sempre a graça de Deus. Isso é muito ameaçador pra uma moça carola. Aí o fofoqueiro passou dos limites. Lembrem do título do romance. Será que mentir sobre o noivo é o crime do padre Amaro? Ou será que ele vai ainda mais longe?
O capítulo XII ficou um pouco cortado, porque eu li apenas as partes mais importantes. Amaro pede que a irmã do cônego convença Amélia a passar a se confessar com ele. Os dois já queriam esse arranjo, o pedido pra Dona Josefa era só pra fazer parecer uma formalidade. Ela leva Amélia pra se confessar com Amaro às oito da manhã e vai esperar na farmácia, que eles chamam de botica. Esse fragmento eu não coloquei voz, mas todo o tempo que está lá, Josefa fica fofocando sobre João Eduardo e aumentando a história, dizendo que até em roubos ele está envolvido, pra fazer a caveira do rapaz na comunidade. Quando volta pra igreja pra buscar Amélia, às 11h, ela e Amaro ainda estão de papos no confessionário. Toda essa manobra envolvendo a irmã do cônego mostra como aquele grupo de pessoas incentivou o relacionamento dos dois. A dona Josefa literalmente leva Amélia pro padre, para que passem uma manhã de sábado juntos, numa confissão de três horas, e sai da igreja, pra deixar os dois a sós. 
Uma fala do padre Amaro reforça a ideia de inferioridade feminina, que a gente tinha visto na fala do médico, quando disse que a religião era uma coisa boa para entreter as mulheres. Amaro diz que as mulheres não sabem se dirigir, precisam, portanto, de uma figura que as guie. E que o confessor deve ser alguém de quem as mulheres tenham medo. Naquela parte da fala em que ele compara o estar no velório junto de João Eduardo com o misturar-se com os maus, e compara com quando um fidalgo tem de estar ao lado de um trabalhador de enxada, Amaro expõe preconceitos contra os trabalhadores, um defeito que já tinha aparecido no romance naquele almoço de aniversário de um dos padres. Sugere que os ricos são superiores em virtude. Ou seja, é uma mostra da forma de pensar do clero naquela sociedade, do quanto a igreja ali está distante do que deveria ser. E Amaro tá se sentindo seguro naquele grupo de padres e de carolas pra se aproximar mais de Amélia. 
E a personalidade do cônego, indignado porque roubaram tempero da fazenda, manda o caseiro atirar nos ladrões, mostra que os padres só estão preocupados com interesses mundanos e com a própria vida e os próprios prazeres. 
Por hoje fico por aqui. Tomara que não estoure mais nenhuma guerra até nosso próximo episódio. E que as atuais terminem como num passe de mágica. Fiquem bem e até o próximo episódio, com mais leitura comentada de O crime do padre Amaro! Abraço!
#77 – PARTE 8
Oi todo mundo! Este é o Literatura Oral, podcast de leitura comentada, análise literária, leitura crítica. Eu sou Sabrina Siqueira. Fora Bolsonaro, como é que vocês estão?
Com essas notícias de guerra o dia inteiro, eu fiquei com vontade de conversar com vocês sobre duas coisas. Uma é a obediência acrítica. A gente aprende o conceito de obediência como algo positivo, mas nem sempre é. Acatar ordens sem questionar pode ser ruim e errado. O melhor é sempre ponderar se as ordens fazem sentido. Mesmo que nem sempre a gente possa externar opinião e tenha que obedecer, como em um ambiente de trabalho, que a gente não faz só o que quer e precisa seguir as regras, é sempre possível refletir sobre o que foi determinado, sobre se é o melhor a fazer, se haveria outra possibilidade. E quando uma ordem contraria nossos valores ou é abertamente no sentido de prejudicar alguém, a obediência passa a ser conivência. Eu to falando isso pensando nas pessoas que fazem os conflitos armados, seja nas favelas do Brasil, seja na Ucrânia. Duvido que todos estejam imbuídos de uma ideologia. Muitos agem sem pensar, porque foi o que se apresentou pra fazer na vida, porque é o trabalho, é a carreira. Quem faz as guerras não são os dirigentes de Estado, são os soldados que executam as ordens. Se esses indivíduos pensassem criticamente, não fossem obedientes passivos, talvez percebessem a inutilidade e a crueldade de andar atirando e manipulando bombas. O presidente da Ucrânia, logo nos primeiros dias de conflito, foi inteligente em se dirigir aos soldados russos invadindo o país. São esses anônimos que fazem a maior parte do estrago. 
E a outra coisa que me ocorre é por que será que as pessoas por aqui se sensibilizam muito mais com conflitos na Europa do que com o que acontece em outras partes do mundo? Eu lembro quando a Notre Dame, em Paris, incendiou, em 2019, a Síria já enfrentava a aniquilação pela guerra há anos, e muitos outros países, e muitos brasileiros colocaram bandeira da França nos avatares de rede social em solidariedade à França. Nunca vi um avatar com bandeira do Iêmem ou da Somália. Nunca vi tamanha comoção com o patrimônio cultural brasileiro, que é depredado diariamente nesse governo de agora. A única explicação é que essas pessoas têm a esperança de estar estreitando laços com a Europa, mas isso é uma ilusão. Coloque o avatar que quiser, seremos sempre terceiro mundistas. Não to falando que a gente não pode se sensibilizar com a Ucrânia, claro. Mas é muito estranha a diferença de atenção que até os canais de notícias dão quando é um país europeu. Isso não é por acaso. 
A realidade tá muito louca, vamos nos refugiar um pouco na literatura. Estamos lendo O crime do padre Amaro, romance do português Eça de Queiroz, de 1875. É o romance que abre a estética do Realismo em Portugal, o que quer dizer que não encontramos nessa obra personagens idealizadas, mas sim personagens que sofrem influência do meio e construídas de forma a parecer mais plausíveis, com comportamentos mais próximos ao que se vê na vida. E esse romance especificamente faz uma crítica à situação de corrupção que havia na igreja católica em Portugal, aos hábitos viciados dos padres, ao exagero das carolas e a quanta influência a igreja tinha sobre a sociedade portuguesa, no final do século XIX. 
No último episódio, vimos que o autor do comunicado foi descoberto pelo padre Natário, por meio das confissões da esposa do dono do jornal. Agora, ele e Amaro estão decididos a fazer João Eduardo perder tudo, o casamento com Amélia, a promessa de promoção, o emprego atual, a amizade da Joaneira, tudo. E saem difamando o rapaz pela cidade, com a ajuda da irmã do cônego Dias, a dona Josefa, que é uma fofoqueira. Nesse romance, a gente quase não encontra qualidades nas pessoas envolvidas com a religião, sejam padres ou beatas. Todos eles vivem engordando os seus vícios e fazendo vista grossa aos vícios dos amigos. Amélia passa a se confessar com Amaro, e já na primeira confissão, demoram três horas conversando. 
Já vinha aparecendo e vai aparecer de novo hoje a expressão “banhos publicados”, que é a formalidade de anunciar um casamento. Era como era chamado.
Vamos à leitura! 
*** 
Na leitura de hoje, passamos da metade do romance. Lembrem que eu não tô lendo tudo, tenho suprimido algumas descrições. 
João Eduardo recebe a carta de Amélia, desfazendo o noivado. Ele vai pedir ajudar para aqueles que ele chama de doutores, que são o advogado e o médico da cidade. O advogado é o dono do jornal, Godinho, que escorraça e proíbe que ele escreva outros artigos. Quando precisou do escrevente para publicar algo que alfinetasse o clero, achou bom, mas agora não quer se indispor com os padres. Agora que João pede para escrever novamente,

Outros materiais