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HUIZINGA, O Jogo como Elemento da Cultura (1)

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fiLOSOFIA
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120102
estudos
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!: EDITORA PERSPECTIVA
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Homo Ludens
oleção Estudos
Dirigida por J. Guinsburg
Equipede realização - Tradução: João Paulo Monteiro; Revisão:Mar)' 1\l11a-
zonasleite de Barros; Produção:Ricardo W. cvcse ylvia Chamis,
Johan Huizinga
HOMO LUDENS
o JOGO COMO ELEMENTO DA CULTURA
~\\II/,
~~I\~ 1111 RA
Título do original:
Homo Ludens - 110m Unprung der Kuttur im Spiel
Copyright © by Johan Huizinga
4~edição
L.\ ' LP I
Direitos em línguaportuguesareservadosà
EDITORA PERSPECTIVA SA.
Avenida Brigadeiro LuísAntonio, 3025
01401-000- SãoPaulo- SP- Brasil
Telefone: (011)885-8388
Fax: (011) 885-6878
1993
Prefácio
Em épocamais otimista que a atual, nossaespécierece-
beua designaçãode Homo sapiens. Com o passardo tempo,
acabamospor compreenderque afinal de contas não somos
tão racionais quanto a ingenuidade e o culto da razão do
éculo XVIII nos fizeram supor, e passou a ser de moda
designar nossa espécie como Homo faber. Embora [aber
não seja uma definição do ser humano tão inadequadacomo
sapiens,ela é, contudo, ainda menos apropriada do que esta,
vi to poder servir para designar grande número de animais.
Mas existe uma terceira função, que se verifica tanto na vida
humana como na animal, e é tão importante como o racio-
ínio e o fabrico de objetos: o jogo. Creio que, depois de
1/ mo [aber e talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a
sxpressão Homo ludensmerece um "lugar em nossa nomen-
clatura.
Seria mais ou menos óbvio, mas também um pouco
fó il, considerar "jogo" toda e qualquer atividade humana.
/vqu los quepreferirem contentar-secom uma conclusãometa-
I'H;1 a deste genero farão melhor não lerem este livro. Não
vejo, todavia, razão alguma para abandonara noção de jogo
t mo um fator distinto e fundamental, presenteem tudo o
'111 11 ntcce no mundo. Já há muitos anos que vem cres-
•'li 10 m mim a convicçãode que é no jogo e pelo jogo que
11 lviliza urg e desenvolve. ];; possívelencontrar in-
11 do I, li pini m minhas obra desd 1903. Foi ela
o lema de meu discurso anual como Reitor da Universidade
de Leyden, em 1933, e posteriormente de conferênciasem
Zurique, Viena e Londres, neste último caso sob o título
The Play Element of Culture (O jogo como elementoda cul-
tura). Em todas as vezes,meus hóspedespretenderamcor-
rigir o título para "na" cultura, mas sempre protestei e
insisti no uso do genitivo, pois minha intençãonão era definir
o lugar do jogo entre todas as outras manifestaçõesculturais,
e sim determinar até que ponto a própria cultura possui um
caráter lúdico. O objetivo deste estudo mais desenvolvido
é procurar integrar o conceito de jogo no de cultura.
Assim, jogo é aqui tomado como fenômenocultural e não
biológico, e é estudado em uma perspectiva histórica, não
propriamente científica em sentido restrito. O leitor notará
que pouca ou nenhumainterpretação psicológicautilizei, por
mais importante que fosse,e que só raras vezesrecorri a con-
ceitos e explicaçõesantropológicos,mesmonos casosem que
me refiro a fatos etnológicos. Não se encontrará uma úni-
ca vez o termo maná e outros semelhantes,magia, só muito
pouco. Se eu quisesseresumir meus argumentossob a forma
de teses,uma destasseria que a antropologia e as ciências
a ela ligadas têm, até hoje, prestado muito pouca atenção
ao conceito de jogo e à importância fundamental do fator
h.dico para a civilização.
O leitor destaspáginas não deve ter esperançade en-
contrar uma justificação pormenorizada de todas as palavras
usadas. No exame dos problemas gerais da cultura, somos
constantementeobrigados a efetuar incursõespredatórias em
regiões que o atacante ainda não explorou suficientemente.
Estava fora de questão, para mim, preencher previamente
todas as lacunas de meus conhecimentos. Tinha que esco-
lher entre escrever agora ou nunca mais; e optei pela pri-
meira solução.
Leyden, 15 de junho de 1938
Sumário
1. Natureza e Significado do Jogo como Fenômeno
Cultural. . . . . . . . . . . . . . .
A Noção de Jogoe sua Expressãona Linguagem
O Jogo e a Competiçãocomo FunçõesCulturais
O Jogo e o Direito .
O Jogo e a Guerra .
O Jogo e o Conhecimento .
O Jogo e a Poesia ; .
A Função da Forma poética .
Formas Lúdicas da Filosofia .
FormasLúdicas da Arte .
Culturas e Períodos sub specie lude .
O lemento Lúdico da Cultura Contemporânea
3
33
53
87
101
119
133
151
163
177
193
217
237
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11 .
12.
Indlc ..............................
1. Natureza e Significado do Jogo
como Fenômeno Cultural
o jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta,mes-
mo em suas definições menos rigorosas, pressupõesempre a
sociedadehumana; mas, os animais não esperaramque os
homensos iniciassemna atividade lúdica. f:-nos possívelafir-
mar com segurançaque a civilização humana não acrescen-
tou característicaessencialalguma à idéia geral de jogo. Os
animais brincam tal como os homens1. Bastaráque observe-
mos os cachorrinhos para constatar que, em suasalegresevo-
luções, encontram-sepresentestodos os elementosessenciais
do jogo humano. Convidam-seuns aos outros para brincar
mediante um certo ritual de atitudes e gestos. Respeitam a
regraque os proíbe morderem,ou pelo menoscom violência,
a orelha do próximo. Fingem ficar zangadose, o que é mais
importante, eles, em tudo isto, experimentamevidentemente
imenso prazer e divertimento. Essas brincadeiras dos ca-
chorrinhos constituem apenasuma das formas mais simples
de jogo entre os animais. Existem outras formas muito
mais complexas, verdadeiras competições, belas representa-
ç s destinadasa um público.
Desde já encontramos aqui um aspecto muito impor-
tant : mesmo em suasformas mais simples, ao nível animal,
o jogo é mais do que um fenômenofisiológico ou um reflexo
"si '01 gico. Ultrapassa os limites da atividade puramente
fisi a u biol6gica. ~ uma função signijicante, isto é, encerra
(I) A diferença entre as principais línguas européias (onde sptelen, to
,.//1 V 1lllItr. II/iar significam tanto [ogar como brlncar) e a nossa nos obriga
11 1111 nt 111"I 1I olh r um ou outro destes dois sacrificando assim à
."11<1 n 1111Ir tdu <l UII1I unldod tcrmlnol6alcn que 86 naquele Idioma seria
1", •• lv I (N do )
4 HOMO LUDENS
um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa "em
jogo" que transcende as necessidades imediatas da vida e
confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa.
Não se explica nada chamando "instinto" ao princípio ativo
que cons.titui a essência do jogo; chamar-lhe "espírito" ou
"vontade" seria dizer demasiado. Seja qual for a maneira
como o considerem, o simples fato de o jogo encerrar um
sentido implica a presença de um elemento não material em
sua própria essência.
A psicologia e a fisiologia procuram observar, descrever
e explicar o jogo dos animais, crianças e adultos. Procuram
determinar a natureza e o significado do jogo, atribuindo-lhe
um lugar no sistema da vida. A extrema importância deste
lugar e a necessidade, ou pelo menos a utilidade da função
do jogo são geralmente consideradas coisa assente, consti-
tuindo o ponto de partida de todas as investigações científicas
dêsse gênero. Há uma extraordinária divergência entre as
numerosas tentativas de definição da função biológica do
jogo. Umas definem as origens e fundamento do jogo em
termos de descarga da energia vital superabundante, outras
como satisfação de um certo "instinto de imitação", ou' ainda
simplesmente como uma "necessidade" de distensão. Segundo
uma teoria, o jogo constitui uma preparação do jovem para
as tarefas sérias que mais tarde a vida dele exigirá, segundo
outra, trata-se de um exercício de autocontrole indispensável
ao indivíduo. Outras vêem o princípio do jogo como um
impulso inato para exercer uma certa faculdade, ou como
desejo de dominar ou competir. Teorias há, ainda, que o
consideram uma "ab-reação", um escape para impulsos pre-
judiciais, um restaurador da energia dispendida por uma
atividade unilateral, ou "realização do desejo", ou uma ficçãodestinada a preservar o sentimento do valor pessoal etc.".
Há um elemento comum a todas estas hipóteses: todas
elas partem do pressuposto de que o jogo se acha ligado a
alguma coisa que não seja o próprio jogo, que nele deve
haver alguma espécie de finalidade biológica. Todas elas se
interrogam sobre o porquê e os objetivos do jogo. As di-
versas respostas tendem mais a completar-se do que aex-
cluir-se mutuamente. Seria perfeitamente possível aceitar
quase todas sem que isso resultasse numa grande confusão
de pensamento, mas nem por isso nos aproximaríamos de uma
verdadeira compreensão do conceito de jogo. Todas as res-
postas, porém, não passam de soluções parciais do problema.
(2) Sobre estas teorias, consultar H. Zondervan, Het Spel bij Dleren
Kinderen en V'olwassen Menschen (Amsterdã, 1928) e F. J. J. Buytendijk, Heí
Sne! van Mensch en Dtet aIs openbaring van levensdrtiten (Amsterdã, 1932).
NATUREZA E SIGNIFICADO DO JOGO 5
Se alguma delas fosse realmente decisiva, ou eliminaria as
demais ou englobaria todas em uma unidade maior. A grande
maioria, contudo, preocupa-se apenas superficialmente em
saber o que o jogo é em si mesmo e o que ele significa
para os jogadores. Abordam diretamente o jogo, utilizando-se
dos métodos quantitativos das ciências experimentais, sem
antes disso prestarem atenção a seu caráter profundamente
estético. Por via de regra, deixam praticamente de lado a
característica fundamental do jogo. A todas as "explicações"
acima referidas poder-se-ia perfeitamente objetar: "Está tudo
muito bem, mas o que há de realmente divertido no jogo?
Por que razão o bebê grita de prazer? Por que motivo o
jogador se deixa absorver inteiramente por sua paixão? Por
que uma multidão imensa pode ser levada até ao delírio por
um jogo de futebol?" A intensidade do jogo e' seu poder de
fascinação não podem ser explicados por análises biológicas.
E, contudo, é nessa intensidade, nessa fascinação, nessa ca-
pacidade de excitar que reside a própria essência e a carac-
terística primordial do jogo. O mais simples raciocínio nos
indica que a natureza poderia igualmente ter oferecido a
suas criaturas todas essasúteis funções de descarga de energia
excessiva, de distensão após um esforço, de preparação para
as exigências da vida, de compensação de desejos insatis-
feitos etc., sob a forma de exercícios e reações puramente
mecâniccs. Mas não, ela nos deu a tensão, a alegria e o
divertimento do jogo.
Este último elemento, o divertimento do jogo, resiste
a toda análise e interpretação lógicas. A palavra holandesa
aardigheid é extremamente significativa a esse respeito. Sua
derivação de aard (natureza, essência) mostra bem que a
idéia não pode ser submetida a uma explicação mais prolonga-
da. Essa irredutibilidade tem sua manifestação mais notável,
para o moderno sentido da linguagem, na palavra inglêsa [un,
cujo significado mais 'corrente é ainda bastante recente. É
curioso que o francês não possua palavra que lhe corresponda
exatamente e que tanto em holandês (grap e aardigheid) como
.rn alemão (Spasse Witz) sejam necessários dois termos para
xprimir esse conceito 3. E é ele precisamente que define a
'ssência do jogo. Encontramo-nos aqui perante uma cate
zoria ab olutamente primária da vida, que qualquer um é
.apaz d identificar desde o próprio nível animal. É legitime
. msid rar o jogo uma "totalidade", no moderno sentido da
( 1) T unhérn em português a palavra divertimento é apenas a maneira
011 1111 III\ltI quudn de exprimir esse conceito, que para o autor corresponde
111<1/11111 , n ill do )0110 (v. InCra), e está ligado também a noções como
I' .11 1" \I I. u~rldl\. 1 ~rI" I. (N. do .)
HOMO LUDENS
palavra, e é como totalidade que devemosprocurar avaliá-lo
c cornpreendê-lo.
Como a realidade do jogo ultrapassa a esfera da vida
humana, é impossívelque tenha seufundamento em qualquer
elemento racional, pois nesse caso, limitar-se-ia à humani-
dade. A existência do jogo não está ligada a qualquer grau
determinado de civilização, ou a qualquer concepçãodo uni-
verso. Todo ser pensante é capaz de entender à primeira
vista que o jogo possuiuma realidade autônoma, mesmo que
sua língua não possua um termo geral capaz de defini-lo.
A existência do jogo é inegável. É possível negar, se se
quiser, quase todas as abstrações:a justiça, a beleza, a ver-
dade, o bem, Deus. É possível negar-se a seriedade,mas
não o jogo.
Mas reconhecer o jogo é, forçosamente, reconhecer o
espírito, pois o jogo, seja qual for sua essência,não é ma-
terial. Ultrapassa, mesmo no mundo animal, os limites da
realidade físíca. Do ponto de vista da concepção determi-
nista de um mundo regido pela ação de forças cegas,o jogo
seria inteiramente supérfluo. Só se torna possível, pensável
e compreensívelquandoa presençado espírito destrói o deter-
minisrno absoluto do cosmos. A própria existência do jogo
é uma confirmação permanente da natureza supralógica da
situação humana. Se os animais são capazesde brincar, é
porque são alguma coisa mais do que simples seres mecâ-
nicos. Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso,
é porque somos mais do que simples seresracionais, pois o
jogo é irracional.
Ao tratar o problema do jogo diretamente como função
da cultura, el não tal como aparecena vida do animal ou da
criança, estamosiniciando a partir do momento em que as
abordagensda biologia e da psicologia chegamao seu termo.
Encontramos o jogo na cultura, como um elemento dado
existente antes da própria cultura, acompanhando-ae mar-
cando-a desde as mais distantes origens até a fase de civili-
zação em que agora nos encontramos. Em toda a parte en-
contramospresenteo jogo, como uma qualidadede açãobem
determinada e distinta da vida "comum". Podemos deixar
de lado o problema de saberse até agora a ciência conseguiu
reduzir esta qualidade a fatores quantitativos. Em minha
opinião não o conseguiu. De qualquer modo, o que importa
é justamente aquela qualidade que é característicada forma
de vida a que chamamos"jogo". O objeto de nosso estudo
é o jogo como forma específicade atividade, como "forma
significante", como função social. Não procuraremosanalisar
os impulsos e hábitos naturais que condicionam o jogo em
NATUREZA E SIGNIFICADO DO JOGO 7
geral, tomando-o em suas múltiplas formas concretas, e~-
quanto estrutura propriamente social. Procuraremos consi-
derar o jogo como O' fazem os próprios jogadores, isto é,
em sua significação primária. Se verificarmos que o jogo se
baseiana manipulação de certas imagens, numa certa "ima-
ginação" da realidade (ou seja, a transformação desta em
imagens), nossapreocupaçãofundamental será,então, captar
o valor e o significado dessasimagense dessa"imaginação".
Observaremosa ação destas no próprio jogo, procurando
assim compreendê-lo como fator cultural da vida
As grandesatividadesarquetípicasda socie~adehumana
são, desde início, inteiramente marcadas pelo Jogo. Como
por exemplo, no caso da linguagem, esseprimeiro e supr~mo
instrumento que o homem forjou a fim de pode~Co~u~lca~,
nsinar e comandar. É a linguagemque lhe permite distinguir
as coisas,defini-Ias e constatá-Ias,em resumo, designá-Iase
com essa designaçãoelevá-Ias ao doniínio do espírito. Na
criação da fala e da lin~age~, brincando cOI~.essa ~ara-
vilhosa faculdade de designar,e como se o espírito estivesse
constantementesaltando entre a matéria e as coisas pen-
sadas. Por detrás de toda expressãoabstrata se oculta uma
metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao
dar expressãoà vida, o homem cria um outro mundo, um
mundo poético, ao lado do da natureza.
Outro exemplo é o mito, que é também uma transfor-
maçãoou uma "imaginação" do mundo exterior, mas implica
m um processomais elaborado e complex~ d.o.que ocorre
no aso das palavras isoladas. O homem pnml~vo procur~,
,I av do mito dar conta do mundo dos fenomenos atn-
buindo a este um fundamento divino. Em todas as capri-
-hosas invençõesda mitologia, há um espírito fantasista que
10 ru no extremo limite entre a b~ncadeira e a serie~~de.
'~ finalmente observarmos o fenomeno doculto, verifica-
I 1;10S que as' sociedadesprimitivas celebram seus ritos sa-
\1 ,tios, seussacrifícios, consagraçõese mistérios,destinados31
I. iurarem a tranqüilidade do mundo, dentro de um espi-
1110 ti puro jogo, tomando-se aqui o verdadeiro sentido da
11 iluvrn.
)ra, é no mito e no culto que têm origem as grandes
1111 'IS instintivas da vida civilizada: o direito e a ordem, o
11/11 I ,i c o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a s~be-
dodl 11 ciência. Todas elas têm suas raizes no solo prime-
VII do jo I •
finalidade d te c tudo consiste em mostrar que o
11111 dll ulturn .\"IIh specie ludi mai ti qu uma cornpa-
ROMO LUDENS
ração retórica. Não se trata de modo algum de uma idéia
nova. Houve uma épocaem que era geralmenteaceita, em-
bora num sentido limitado e muito diferente daqueleque aqui
se adotou: o início do século XVII, quando surgiu o grande
teatro laico. Numa brilhante série de figuras, desde as de
Shakespeareaté as de Calderón e Racine, o teatro dominava
a literatura ocidental. Era costumecompararo mundo a um
palco, no qual cada homem desempenhavaseu papel. To-
davia, isto não significa que o elementolúdico da civilização
fôsse claramente reconhecido. O costume de comparar a
vida a um palco, bem analisada,revela-secomo pouco mais
que um eco do neoplatonismoentão dominante, com um tom
moralista fortemente acentuado. Era uma variante do velho
tema do caráter vão de todas as coisas. A estreita ligação
entre o jogo e a cultura não era observadanem expressa,ao
passoque a nós importa apenasmostrar que o puro e simples
jogo constitui uma das principais bases da civilização.
Em nossa maneira de pensar, o jogo é diametralmente
oposto à seriedade. À primeira vista, esta oposição parece
tão irredutível a outras categoriascomo o próprio conceito
de jogo. Todavia, caso o examinemosmais de perto, verifi-
caremosque o contrasteentre jogo e seriedadenão é decisivo
nem imutável. É lícito dizer que o jogo é a não-seriedade,
mas esta afirmação, além do fato de nada nos dizer quanto
às característicaspositivas do jogo, é extremamentefácil de
refutar. Caso pretendamospassar de "o jogo é a não-serie-
dade" para "o jogo não é sério", imediatamenteo contraste
tornar-se-á impossível, pois certas formas de jogo podem
ser extraordinariamente sérias. Além disso, é facílimo de-
signar várias outras categorias fundamentais que também
são abrangidaspela categoria da "não-seriedade"e não apre-
sentam qualquer relação com o jogo. O riso, por exemplo,
está de certo modo em oposição à seriedade,semde maneira
alguma estar diretamente ligado ao jogo. Os jogos infantis,
o futebol e o xadrez são executadosdentro da mais profunda
seriedade,não severificando nos jogadoresa menor tendência
para o riso. É curioso notar que o ato puramente fisioló-
gico de rir é exclusivo dos homens, ao passo que a função
significante do jogo é comum aos homense aos animais. O
animal ridens de Aristóteles caracteriza o homem, em opo-
sição aos animais, de maneira quase tão absoluta quanto o
honw sapiens.
O que vale para o riso vale igualmentepara o cômico.
O cômico é compreendido pela categoria da não-seriedade
e possui certas afinidades com o riso, na medida em que o
provoca, mas sua relação com o jogo é perfeitamente se-
NATUREZA E SIGNIFICADO DO JOGO
cundária. Considerado em si mesmo, o jogo não é cômico
nem para os jogadoresnem para o público. Os animais mui-
to jovens, ou as crianças,podem por vezesser extremamente
cômicosem suasbrincadeiras,mas observarcãesadultosper-
seguindo-semutuamente dificilmente suscita em nós o riso.
Quando chamamos "cômica" a uma farsa ou uma comédia,
f'azemo-Io levando em conta o não jogo da representaçãopro-
priamente dito, mas, sim, a situação e os pensamentosex-
pressos. A arte mímica do palhaço, cômica e risível, dificil-
mente pode ser consideradaum verdadeiro jogo.
A categoria do cômico está estreitamenteligada à da
loucura, ao mesmotempo no sentido mais elevadoe no mais
baixo do termo. Mas não há loucura no jogo, já que se
itua para além da antíteseentre a sabedoriae a loucura. Na
baixa Idade Média, os dois modos fundamentais de vida, o
jogo e a seriedade,eram expressosde maneirabastanteimper-
feita através da oposição entre folie et sens,até o momento
m que, em seu Laus stultitiae, Erasmo mostrou a improce-
dência dessecontraste.
Todas as idéias, aqui vagamentereunidas num mesmo
rrupo - jogo, riso, loucura, piad~, .gracejo,cômi~ etc. --:-
participou daquela mesmacaracterísncaque nos vimos obn-
rados a atribuir ao jogo, isto é, a de resistir a qualquer
tentativa de redução a outros têrmos. Sem dúvida, sua
ratio e sua mútua dependênciaresidem numa camada muito
I J' funda de nosso ser espiritual.
Quanto mais nos esforçamospor estabeleceruma sepa-
ração entre a forma a que chamamos"jogo" e outras formas
11parentementerelacionadasa ela, mais se evidencia a abso-
luta independênciado conceito de jogo. E sua exclusão do
li mínio das grandes oposiçõesentre categoriasnão se de-
I m aí. O jogo não é compreendido pela antíteseentre s~-
h d ria e loucura, ou pelas que opõem a verdade e a íalsí-
dud , ou o bem e o mal. Embora seja uma atividade não
Illut rial, não desempenhauma função moral, sendo impos-
v I aplicar-lhe as noções de vício e virtude.
e portanto, não for possível ao jogo referir-se direta-
111 nt às categorias do bem ou da verdade, não poderia ele
tulv 'I. ser incluído no domínio da estética? Cabe aqui uma
duvid porque, embora a belezanão seja atributo inseparável
1ft j g enquanto tal, este tem tendência a assumir acen-
lu rd s lementos de beleza. A vivacidade e a graça estão
1111 innlrn nte ligadas às formas mais primitivas do jogo. É
\I t qu a b lcza do corpo humano em movimento atinge
\I 'P) u. sm suas formas mais complexas o jogo está
9
10 ROMO LUDENS
saturado de ritmo e de harmonia, que são os mais nobres
dons de percepção estética de que o homem dispõe. São
muitos, e bem íntimos, os laços que unem o jogo e a beleza.
Apesar disso, não podemos afirmar que a beleza seja
inerente ao jogo enquanto tal. Devemos, portanto, limitar-
-nos ao seguinte: o jogo é uma função da vida, mas não é
passívelde definição exata em termos lógicos, biológicos ou
estéticos. O conceito de jogo deve permanecer distinto de
todas as outras formas de pensamentoatravés das quais ex-
primimos a estrutura da vida espiritual e s~)Ci~1.. Teremos,
portanto, de limitar-nos a descrever suas pnncipars caracte-
rísticas.
Dado que nosso tema são as relaçõesentre o jogo e a
cultura, não é indispensávelfazer referênciaa todas as formas
possíveisde jogo, sendo possível limitarmo-nos a suas ma-
nifestaçõessociais. Poderíamos considerar estas as formas
mais elevadas de jogo. Geralmente são muito mais fáceis
de descrever do que os jogos mais primitivos das crianças
e dos animais jovens, por possuírem forma mais nítida e
articulada e traços mais variados e visíveis, ao passo que na
interpretação dos jogos primitivos deparamosimediatamente
com aquela característica irredutível, puramente lúdica, que
em nossaopinião resiste inabalavelmenteà análise. Faremos
referência aos concursose às corridas, às representaçõese
aos espetáculos,à dança e à música, às mascaradase aos
torneios. Algumas das,característicasque vamos indicar são
próprias do jogo em geral, enquanto outras pertencem aos
jogos sociais em particular.
Antes de mais nada, o jogo é uma atividade voluntária.
Sujeito a ordens, deixa de ser jogo, podendo no máximo ser
uma imitação forçada. Basta esta característicade liberdade
para afastá-lo definitivamente do curso da evolução natural.
E um elementoa esta acrescentado,que a recobre como um
ornamento ou uma roupagem. E evidente que, aqui, se
entende liberdade em seu sentido mais lato, sem referência
ao problema filosófico do determinismo. Poder-se-iaobjetar
que esta liberdade não existe para,o animal e a criança, por,
serem esteslevadosao jogo pela força de seu instinto e pela
necessidadede desenvolveremsuas faculdadesfísicas e sele-
tivas. Todavia, o termo "instinto" levanta uma incógnita e,
além disso, apressuposiçãoinicial da utilidade do jogo cons-
titui uma petição de princípio. As crianças e os animais
brincam porque gostam de brincar, e é precisamenteem tal
fato que reside sua liberdade.
Seja como for, para o indivíduo adulto e responsávelo
jogo é uma função que facilmente poderia ser dispensada,é
NATUREZA E SIGNIFICADO DO JOGO 11
algo supérfluo. Só se torna uma necessidadeurgente na me-
dida em que o prazer por ele provocado o transforma numa
necessidade,E possível,em qualquer momento, adiar ou sus-
pendero jogo. Jamais é imposto pela necessidadefísica ou
p 10 dever moral, e nunca constitui uma tarefa, sendo sem-
pre praticado nas "horas de ócio". Liga-se a noçõesde obri-
ração e dever apenasquando constitui uma função cultural
r conhecida,como no culto e no ritual.
Chegamos,assim, à primeira das característicasfunda-
mentaisdo jogo: o fato de ser livre, de ser ele próprio liber-
dade. Uma segunda característica, mtimamente ligada à
I rimeira, é que o jogo não é vida "corrente" nem vida
"rcal". Pelo contrário, trata-sede uma evasãoda vida "real"
para uma esfer~temporária de ~tividade com orient~ç~opró-
pria. Toda cnança sabe perfeitamente quando esta so fa-
v. ndo de conta" ou quando está "só brincando". A seguinte
stória,: que me foi contada pelo pai de um menino, constitui
11rn excelente exemplo de como essa consciência está pro-
fundamente enraizada no espírito das crianças. O pai foi
11 ontrar seu filhinho de quatro anos brincando "de trenzi-
I~h " na frente de uma fila de cadeiras. Quando foi beijá-lo,
dis e-lhe o menino: "Não dê beijo na máquina, Papai, senão
(I carros não vai acreditar que é de verdade". Esta car_ac-
I rística de "faz de conta" do jogo exprime um sentimento
til inferioridade do jogo em relação à "seriedade", o qual
pnrccc ser tão fundamental quanto o próprio jogo. Todavia,
onforrne já salientamos, esta consciência do fato de "só
I 1'1. 'r de conta" no jogo não impede de modo algum que ele
processecom a maior seriedade,com um enlevo e um
utusiasmo que chegam ao arrebatamento e, pelo menos
I mporariamente, tiram todo o significado da palavra "só"
dll fra e acima. Todo jogo é capaz, a qualquer momento, de
rbsorvcr inteiramenteo jogador. Nunca há um contrastebem
uuid entre ele e a seriedade,sendo a inferioridade do jogo
cmpre reduzida pela superioridadede sua seriedade.Ele se
I!lina seriedadee a seriedade,jogo. É possívelao jogo al-
Inçar extremos de beleza e de perfeição que ultrapassam
1111 muito a seriedade. Voltaremos a referir-nos a problemas
di!' ' is deste tipo quando analisarmosmais minuciosamente
I r lu õcs entre o jogo e o culto.
No que diz respeito às característicasformais do jogo,
f lido )8 bservadoresdão grande ênfase ao fato de ser ele
.k-sintrrrssudo. Visto que não pertence à vida "comum",
II situa fora d mecanismo de satisfação imediata das
11 II .• tI.<I' do' desejo,' ,pelo contrário, interrompe este
12 HOMO LUDENS
mecanismo. Ele se insinua como atividade temporária, que
tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista
uma satisfação que consiste nessa própria realização. É
oelo menos assim que, em primeira instância, o ele se nos
apresenta: como um intervalo em nossa vida quotidiana.
Todavia, em sua qualidade de distensão regularmente veri-
ficada, ele se torna um acompanhamento,um complementoe,
em última análise, uma parte integrante da vida em geral.
Ornamenta a vida, ampliando-a, e nessa medida torna-se
uma necessidadetanto para o indivíduo, como função vital,
quanto para a sociedade,devido ao sentido que encerra, à
sua significação, a seu valor expressrvo, a suas associações
espirituais e sociais, em resumo, como função cultural. Dá
satisfaçãoa todo o tipo de ideais comunitários. Nesta medida,
situa-senuma esferasuperior aos processosestritamentebio-
lógicos de alimentação,reprodução e autoconservação. Esta
afirmação está em aparente contradição com o fato de que
os jogos ligados à atividade sexual se verificam justamente
na época do cio. Mas seria assim tão absurdo atribuir ao
canto, à dança e o "paradear" das aves um lugar exterior
ao domínio puramente fisiológico, tal como no caso do jogo
humano? Seja como for, este último pertence sempre, em
todas as suas formas mais elevadas,ao domínio do ritual
e do culto, ao domínio do sagrado.
Mas o fato de ser necessário,de ser culturalmente útil
e, até, de se tornar cultura diminuirá em alguma coisa o
caráter desinteressadodo jogo? Não, porque a finalidade a
que obedeceé exterior aos interessesmateriais imediatos e à
satisfação individual das necessidadesbiológicas. Em sua
qualidade de atividade sagrada, o jogo naturalmente contri-
bui para a prosperidadedo grupo social,masde outro modo e
através de meios totalmente diferentes da aquisição de ele-
mentos de subsistência.
O jogo distingue-seda vida "comum" tanto pelo lugar
quanto pela duração que ocupa. É esta a terceira de suas
característicasprincipais: o isolamento, a limitação. :f: "jo-
gado até ao fim" dentro de certos limites de tempo e de
espaço. Possuium caminho e um sentidopróprios.
O jogo inicia-se e, em determinado momento, "aca-
bou". Joga-seaté que se cheguea um certo fim. Enquanto
está decorrendo tudo é movimento, mudança, alternância,
sucessão,associação,separação. E há, diretamente ligada à
sua limitação no tempo, uma outra característicainteressante
do jogo, a de sefixar imediatamentecomo fenômenocultura1.
Mesmo depois de o jogo ter chegadoao fim, ele permanece
NATUREZA E SIGNIFICADO DO JOGO 13
corno uma criação nova do espírito, um tesouro a ser con-
. rvado pela memória.· :f: transmitido, torna-se tradição.
Pode ser repetido a qualquer momento, quer seja "jogo
infantil" ou jogo de xadrez, ou em períodos determinados,
mo um mistério. Uma de suas qualidades fundamentais
/ ide nesta capacidadede repetição, que não se aplica ape-
IlUS ao jogo em geral, mas também à sua estrutura interna.
Em quase todas as formas mais elevadas de jogo, os ele-
mentosde repetição e de alternância (como no refrain) cons-
tituem como que o fio e a tessitura do objeto.
A limitação no espaço é ainda mais flagrante do que
I limitação no tempo. Todo jogo se processae existe no
Interior de um campo previamente delimitado, de maneira
material ou imaginária, deliberadaou espontânea. Tal como
11 há diferença formal entre o jogo e o culto, do mesmo
111<do o "lugar sagrado" não pode ser formalmentedistinguido
do terreno de jogo. A arena, a mesa de jogo, o círculo
111 igico, o templo, o palco, a tela, o campo de tênis, o
II ibunal etc., têm todos a forma e a função de terrenos de
o ,isto é, lugares proibidos, isolados, fechados, sagrados,
111 cujo interior se respeitam determinadas regras.. Todos
I I li ão mundos temporários dentro do mundo habitual, de-
dI indos à prática de uma atividade especial.
Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica
I nbs luta. E aqui chegamos a sua outra característica,
111tis positiva ainda: ele cria ordem e é ordem. Introduz na
onfusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição
u-ruporária e limitada, exige uma ordem supremae absoluta:
I 11I 'n r desobediênciaa esta "estraga o jogo", privando-o
di S li caráter próprio e de todo e qualquer valor. E tal-
v n ti vido a esta afinidade profunda entre a ordem e o jogo
'1" ste, como assinalamosde passagem,parece estar em
1.1<' lar a medida ligado ao domínio da estética. Há nele
11111 I t ndência para ser belo. Talvez este fator estético seja
111 IIli 'o aquele impulso de criar formas ordenadasque pe-
111I/li o jogo em todos os seus aspectos. As palavras que
"11' znrnos para designar seus elementospertencem qua~e
11,li I ( estética. São as mesmas palavras com as quais
I"1It'1" (1I11 S descrever os efeitos da beleza: tensão, equilí-
111111, -ompcnsação, contraste, variação, solução, união e de-
11111 \11. jogo lança sobre nós um feitiço: é "fascinante",
I Illv 1111". tá cheio das duas qualidadesmais nobres que
1111111 .npuzc de ver nas coisas: o ritmo e a harmonia.
) I~111 nu d t nsã , a que acabamosde nos referir,
li I 'li' I nhn no jo um pap I specialrnnt importante.
14 HOMO LUDENS
Te~são si~ifica incerteza, ac~so. Há um esforço para levar
o Jogo ate ao desenlace,o Jogador quer que alguma coisa
"vá" ou "saia", pretende "ganhar" à custa de seu próprio
eSforço.. Uma ~nançaestendendoa mão para um brinquedo,
um gatinho bnncando com um novelo, uma garotinha jo-
g~ndo bola, todos elesprocuram conseguiralguma coisa difí-
cil, ganhar, acaba~com uma tensão. O jogo é "tenso",
como se.costumadizer. :f: esteelementode tensãoe solução
que_domma em todos os jogos solitários de destrezae apli-
caçao, como.?s 9uebra-c.abeças,as charadas,os jogos de ar-
mar, as paciencias, o tiro ao alvo, e quanto mais estiver
presenteo elementocompetitivo mais apaixonante se torna o
Jogo. Esta tensãochegaao extremo nos jogos de azar e nas
competiçõesesportivas. Embora o jogo enquanto tal esteja
para além do domínio do bem e do mal, o elementode tensão
lhe confere um certo valor ético, na medida em que são
postas à prova as qualidades do jogador: sua força e tena-
c~dade,sua habilidade e coragem e, igualmente, suas capa-
Cidadesespirituais, sua "lealdade". Porque, apesar de seu
ardente desejo de ganhar, deve sempre obedecer às regras
do jogo.
Por sua vez, estas regras são um fator muito impor-
tante para o conceito de jogo. Todo jogo tem suasregras.
Sãoestasque determinamaquilo que "vale" dentro do mundo
t~mporário por ele ~ircunscri.to. A~ regras de todos os jogos
sao absolutas e nao permitem discussão. Uma vez, de
passagem,Paul Valéry exprimiu uma idéia das mais impor-
tantes: "No que diz respeito às regras de um jogo, nenhum
ceticismo é possível,pois o princípio no qual elas assentam
é uma verdade apresentadacomo inabalável". E não há
dúvida de que a desobediênciaàs regras implica a derrocada
do mundo do jogo. O jogo acaba: O apito do árbitro quebra
o feitiço e a vida "real" recomeça.
O jogador que desrespeitaou ignora as regras é um
"desmancha-praze~es". Este, porém, difere do jogador de-
so~esto,do batoteiro, já que o último finge jogar seriamente
o Jogo e aparenta reconhecer o círculo mágico. :f: curioso
notar como os jogadoressão muito mais indulgentespara com
o batoteiro do que com o desmancha-prazeres;o que se deve
ao !ato de este ~timo abalar o próprio mundo do jogo.
Retirando-se do Jogo, denuncia o caráter relativo e frágil
dessemundo no qual, temporariamente, se"havia encerrado
com os outros. Priva o jogo da ilusão - palavra cheia de
sentido que significa literalmente "em jogo" (de inlusio illu-
dere ~u inludere). Torna-se, portanto, necessárioex~ulsá-
-10; pois ele ameaçaa existênciada comunidad d jogadores.
NATUREZA E SIGNIFICADO DO JOGO 15
A figura do desmancha-prazeresdesenha-secom mais niti-
dez nos jogos infantis. A pequenacomunidade não procura
averiguar se o desmancha-prazeresabandonao jogo por in-
capacidadeou por imposição alheia, ou melhor, não reco-
nhecesua incapacidadee acusa-ode falta de audácia. Para
ela, o problema da obediênciae da consciênciaé reduzido ao
do medo ao castigo. O desmancha-prazeresdestrói o mundo
mágico,portanto, é um covarde e precisaser expulso. Mesmo
no universo da seriedade,os hipócritas e os batoteiros sempre
tiveram mais sorte do que os desmancha-prazeres:os após-
tatas, os hereges,os reformadores, os profetas e os objetores
de consciência.
Todavia, freqüentementeaconteceque, por sua vez, os
desmancha-prazeresfundam uma nova comunidade, dotada
de regras próprias. Os fora dá lei, os revolucionários, os
membrosdas sociedadessecretas,os heregesde todos os tipos
têm tendências fortemente associativas,se não sociáveis, e
todas as suas ações são marcadas por um certo elemento
lúdico.
As comunidadesde jogadores geralmentetendem a tor-
nar-se permanentes,mesmo depois de acabado o jogo. É
.laro que nem todos os jogos de bola de gude, ou de bridge,
I varn à fundação de um clube. Mas a sensaçãode estar
"separadamentejuntos", numa situação excepcional, de par-
tllhar algo importante, afastando-sedo resto do mundo e
1 • u ando as normas habituais, conserva sua magia para
ti m da duração de cada jogo. O clube pertence ao jogo
I ti como o chapéu pertenceà cabeça. Seria demasiadosim-
plista explicar todas as associaçõesa que os antropólogos
-h unam "fratrias" (como por exemploos clãs, as irmandades
I tc.) apenas como sociedadeslúdicas. Mas, mais de uma
v 'I. 'e verificou como é difícil estabeleceruma separação
11 lida entre, de um lado, os agrupamentossociais perma-
1111\( s (sobretudo nas culturas arcaicas, com seus costumes
t r marnente importantes, solenese sagrados) e, de outro,
u domínio lúdico.
caráter especiale excepcional do jogo é ilustrado de
111111 ira flagrante pelo ar de mistério em que freqüentemente
-uvolvc, Desde a mais tenra infância, o encanto do jogo
I 11 fOI çad por se fazer dele um segredo. Isto é, para nós,
I 11 111 para o outros. O que os outros fazem, "lá fora", é
111 I ti momento não nos importa. Dentro do círculo do
1" 'li, , I 'is c turnesda vida quotidiana perdem validade.
1111111 dif r nt s faz mos coi as diferentes. Esta supressão
t "'IIU 11 ia d mundo habitual int iram nt manifesta no
16 HOMO LUDENS
mundo infantil, mas não é menos evidentenos grandesjogos
rituais dos povos primitivos. Na grande festa de iniciação
em que os jovens são aceitos na comunidade dos homens,
não são apenas os neófitos que ficam. isentos das leis e
regras da tribo; há uma trégua geral de tôdas as querelas
e uma suspensãode todos os atos de vingança. Desta
suspensãotemporária da vida social normal, durante a época
dos jogos sagrados,existem também numerososindícios em
civilizações mais evoluídas. Todas as saturnais e costumes
carnavalescossão exemplosdisso. Ainda recentementeentre
nós, em época de costumeslocais mais rudes, privilégios de
classe mais acentuadose uma polícia mais tolerante, acei-
tavam-seas orgias dos jovens de classealta como "estudan-
tadas". Estas ainda subsistemnas universidadesinglesas,sob
o nome de ragging, o qual o Oxiord Englisli Dictionary de-
fine como an extensive display of noisy and disorderly con-
duct carried out in dejiance of authority and discipline 5.
A capacidadede tornar-se outro e o mistério do jogo
manifestam-sede modo marcante no costume da mascarada.
Aqui atinge o máximo a natureza "extra-ordinária" do jogo.
O indivíduo disfarçado ou mascaradodesempenhaum papel
como se fosse outra pessoa,ou melhor, é outra pessoa. Os
terrores da infância, a alegria esfusiante,a fantasia mística
e os rituais sagradosencontram-seinextricavelmentemistura-
dos nesseestranho mundo do disfarce e da máscara.
Numa tentativa de resumir as característicasformais do
jogo, poderíamosconsiderá-Iouma atividade livre, conscien-
temente tomada como "não-séria" e exterior à vida habitual,
mas ao mesmotempo capazde absorvero jogador de manei-
,ra intensa e total. É uma atividade desligada de todo e
qualquer interessematerial, com a qual não se pode obter
qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciaise tem-
porais próprios, segundouma certa ordem e certas regras.
Promove a formação de grupos sociais com tendência a ro-
dearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em
relação ao resto do mundo por. meio de disfarces ou outros
meios semelhantes.
A função do jogo, nas formas mais elevadasque aqui
nos interessam,pode de maneira geral ser definida pelos dois
aspectosfundamentais que nele encontramos: uma luta por
alguma coisa ou a representaçãode alguma coisa. Estas
duas funções podem também por vezesconfundir-se, de tal
modo que o jogo passea "representar" uma luta, ou, então,
(5) Uma intensa manifestação de comportamento barulhento e desordeiro,
levada a cabo lIum espírito de desrespeito tl autoridade e tlt/l.rlpllllll. (N. do T.)
NATUREZA E SIGNIFICADO DO JOGO 17
se torne uma luta para melhor representaçãode alguma
coisa.
Representarsignifica mostrar, e isto pode consistir SIm-
plesmentena exibição, perante um público, de uma caracte-
rística natural. O pavão e o peru limitam-se a mostrar às
fêmeaso esplendor de sua plumagem, mas aqui o aspecto
essencialé a exibição de um fenômeno invulgar destinadoa
provocar admiração. Se a ave acompanha essa exibição
com alguns passosde dança passamosa ter um espetáculo,.
uma passagemda realidade vulgar para um plano mais ele-
vado. Nada sabemosdaquilo que o animal sente durante
essesatos, mas sabemosque as exibições das crianças mos-
tram, desde a mais tenra infância, um alto grau de imagi-
nação. A criança representaalguma coisa diferente, ou mais
bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente
é. Finge ser um príncipe, um papai, uma bruxa malvada
ou um tigre. A criança fica literalmente "transportada" de
prazer,superando-sea si mesmaa tal ponto que quasechega
a acreditar que realmente é esta ou aquela coisa, sem con-
tudo perder inteiramente o sentido da "realidade habitual".
Mais do que uma realidade falsa, sua representaçãoé a reali-
zaçãode uma aparência: é "imaginação", no sentido original
do termo.
Se passarmos agora das brincadeiras infantis para as
representaçõessagradasdas civilizações primitivas, veremos
que nestas se encontra "em jogo" um elemento espiritual
diferente, que é muito difícil de definir. A representação.sa-
rrada é mais do que a simples realização de uma aparência
até mais do que uma realização simbólica: é uma realiza-
ção mística. Algo de invisível e inefável adquire nela uma
r rma bela, real e sagrada. Os participantes do ritual estão N
.crtosde que o ato concretizae efetua uma certa beatificação, ~
faz surgir uma ordem de coisas mais elevadado que aquela
m que habitualmente vivem. Mas tudo isto não impede
que essa"realização pela representação"conserve,sob todos '-~
os aspectos,as característicasformais do jogo. É executada \)
110 interior de um espaçocircunscrito sob a forma de festa, 1\
isto é, dentro de um espírito de alegria e liberdade. Em +-
sua intenção é delimitado um universo próprio de valor L
I mporário. Mas seusefeitos não cessamdepois de acabado ~
jogo; seu esplendor continua sendo projetado sobre o -
mundo de todos os dias, influência benéfica que garante a ~
gurança, a ordem e a prosperidadede todo o grupo até à ~
pr xima época dos rituais sagrados. J
m toda a parte do mundo podem encontrar-seexem-
di so. S gund uma v lha crença chines a música e a
( " ti
IH HOMO LUDENS
ti Inça têm a finalidade de manter o mundo em seu devido
cur o e obrigar a naturezaa proteger o homem. A prosperi-
dade de cada,ano dependeda fiel execuçãode competições
sagradasna epoca das festas. Caso essasreuniões não se
realizem, as colheitas não poderão amadurecer6.
O Eitual é um ,dromenon, i~to ~, uma coisa que é feita,
uma a~ao. A matena desta açao e um drama, isto é, uma
ve~ mais, um ato~uma ação representadanum palco. Esta
açao pode revestír a forma de um espetáculoou de uma
c?mpetiçã~: ? rito, ou "ato ritual", representaum aconte-
cimento cosmico, um evento dentro do processo natural.
Contudo, a palavra "representa" não exprime o sentido exato
da ação, pelo menosna conotaçãomais vaga que atualmente
predomina; porque aqui "representação" é realmente identi-
ficação, a repetição mística ou a reapresentaçãodo aconteci-
I?ento. O ritual pro~uz um efeito que, mais do que figura-
tivamente mostrado, e realmente reproduzido na ação. Por-
ta~to, a função do rito está longe de ser simplesmenteimi-
tativa, leva a uma verdadeira participação no próprio ato
sagrado7. É um fator helping the action out 8.
Para a ciência da cultura, o problema não é determinar
como a psicologia concebeo processoque se exprime nestes
fen?I?enos. .A psicologia poderá tentar arrumar a questão
d~flllllldo o r~tualcomo identificaçãocompensadora,uma espé-
c~e.?e substituto, "um ato representativo devido à impos-
sibilidade de levar a cabo uma ação real e intencional" 9
O que é importante para a ciência da cultura é procurar com-
preendero significado dessasfiguraçõesno espírito dos povos
que as praticam e nelas crêem.
Tocamos aqui no próprio âmagoda religião comparada:
a natureza e a essênciado ritual e do mistério. Todos os
antigos sacrifícios rituais dos Vedas baseiam-sena idéia de
que a_cerimônia- seja ela sacrifício, competição ou repre-
sentaçao,- representandoum certo acontecimentocósmico
que se deseja, obriga os deuses a provocar sua realização
efe~iva. Há, portanto, um jogo, no sentido pleno do termo.
Deixaremos agora de lado os aspectosespecificamente reli-
gIOSOS,concentrando-nosna análisedos elementoslúdicos nos
rituais primitivos.
(6) . M. Granet: F,êtes e/ Chansons anciennes de Ia Chine, Paris, 1914, pp.
150, 2~2. Danses. et Légendes de Ia Chine ancienne, Paris, 1926, p. 351 e 55.'
La civilisation chinoise, Paris, 1929, p. 231. J
~7) As the Greeks would say, rathar methectic than mtmetic, Jane E.
Harríson, Themis; A Study 01 the Social Origins 01 Greek Religian, Cambridge,
1912, p. 125.
(8) R. R. Marett, The Threshold ot Religion, Londres, 1912, p. 48.
. (9) Buytendijk, Het Spel I'an Mensch en Dier ai s openbarlng !'an levens-
driiten, Amsterdã. 1932, pp, 70-71.
NATUREZA E SIGNIFICADO DO JOGO 19
O culto é, portanto, um espetáculo,uma representação
dramática, uma figuração imaginária de uma realidade dese-
jada. Na época das grandes festas, o grupo social celebra
os acontecimentosprincipais da vida da natureza levando a
efeito representaçõessagradas,que representam a mudança
das estações,o surgimento e o declínio dos astros, o cresci-
mento e o amadurecimentodas colheitas, a vida e a morte
dos homens e dos animais. Como escreve Leo Frobenius,
a humanidade "joga", representa a ordem da natureza tal
como ela está impressaem sua consciência10. Num passado
remoto, segundo Frobenius, os homens começaram por to-
mar consciênciados fenômenosdo mundo vegetal e animal
'6 depois,adquirindo as idéias de tempo e espaço,dos meses
c das estações,do percurso do sol e da lua. Passaramde-
p is a representar esta grande ordem da existência em ce-
imônias sagradas,nas quais e através das quais realizavam
de novo, ou "recriavam", os acontecimentosrepresentados,
contribuindo assim para a preservaçãoda ordem cósmica. E
h mais. As formas desse jogo litúrgico deram origem à
ordem da própria comunidade, às instituições políticas pri-
mitivas. O rei é o sol, e seu reinado é a imagem do curso
do sol. Durante toda sua vida o rei desempenhao papel do
01, e no final sofre o mesmo destino que o sol: deve ser
morto, de forma ritual, por seu próprio povo.
Podemosdeixar de lado o problema de saber até que
ponto esta explicação do regicídio ritual e toda a concepção
'111 que ela assentapodem ser consideradas"demonstradas".
() problemaque aqui nos interessaé o seguinte:que devemos
li nsar.desta projeção concreta da primitiva consciência da
11 itureza? Como devemos encarar um processo espiritual
qu se inicia com uma experiênciainexpressados fenômenos
m. micos e conduz a sua representaçãoimaginária no jogo?
Frobenius tem razão ao rejeitar a fácil explicação que
. ntcnta com a noção de um "instinto de jogo" inato.
I H ele que o termo "instinto" é "uma invenção, uma
nllfis. ão de impotência perante o problema da realidade" ".
('011\ idêntica clareza, e com mais razão ainda, rejeita, como
v I li de uma maneira ultrapassadade pensar, a tendência
li "I xplicar todo progresso cultural em termos de uma
"Iin rlidadc especial", de um "porquê'" ou um "por que
I 11. o", orno critério para julgar a capacidadecriadora de
1111111111 d uma comunidade. Ponto de vista este que qua-
( 1(1) ( 1\ 1 rol> 1111", Kulturgesclüchte Alrtkas, Prolegomena zu einer histo-
1/•• 11 li tt ItlJltl hre, Ph ridon Vertag. 1933; Schlcksalskunde im Sln e des Kul-
"'""" 1iI, I 111/1)1, 19 2.
( II ) li.lillM ~.Ii'''','/iI~. fll'. n, 122.
20 HOMO LUDENS
Iifica como "a pior forma de tirania da causalidade" e como
"utilitarismo antiquado" 12.
A concepção deste processo espiritual defendida por
Frobenius é mais ou menos a seguinte: a experiência, ainda
inexpressa da natureza e da vida, manifesta-se no homem pri-
mitivo sob a forma de "arrebatamento" 13. "A capacidade
criadora, tanto nos povos quanto nas crianças ou em qualquer
indivíduo criador, deriva desse estado de arrebatamento. "Os
homens sãoarrebatados pela revelação do destino." "A
realidade do ritmo natural da gênese e da extinção arrebata
sua consciência e este fato leva-o a representar sua emoção
em um ato inevitável e como que reflexo" 14. Assim, se-
gundo ele, trata-se aqui de um proce~s.o espiritual ~e trans-
formação que é absolutamente necessano. A emoçao, o ar-
rebatamento perante os fenômenos da vida e da natureza é
condensado pela ação reflexa e elevado à expressão poética
e à arte. É esta a maneira mais aproximada para dar conta
do processo de imaginação cri~dora, l1l:ase3tá longe ?e pod:r
ser considerada uma verdadeira exphcaçao. Continua tao
obscuro como antes o caminho que leva da percepção estética
ou mística, ou pelo menos metalógica, da ordem cósmica até
aos rituais sagrados.
O grande estudioso da cultura emprega freqüentemente
o termo jogo, sem contudo definir com exatidão qual o sen-
tido que lhe atribui. Parece até por. vezes aceitar ~ubreph-
ciamente aquilo mesmo que tão e~ergtcame?t~ repudia ~ que,
de maneira alguma, corresponde a característica essencial do
jogo: o conceito de finalidade. Porq?e na descrição proposta
por Frobenius, o jogo serve exphcltamen~e para represen-
tar IS um acontecimento cósmico, de certo modo tomando-o
presente. Há um elemento quase racion~lista que irresisti-
velmente se impõe. Afinal de contas, o Jogo e a represen-
tação têm para Frobenius sua razão de ser na expressão de
qualquer coisa de ~ife~ente, que é o, "~rrebatamento" por
um acontecimento cosnuco. Mas o propno fato de a drama-
tização ser representada par~ce ter para ele i~portânc~a se-
cundária. Pelo menos teoncamente, a emoçao podena ser
transmitida de maneira diferente. De nosso ponto de vista,
pelo contrário, o que é importante é o próprio jogo. O ritual
(12) tu«, p. 21.
(13) /bid., p, 122. A Ergrifjenheit (arrebat,,;mento) como mor;nento dos
jogos infantis, p. 147; veja-se o termo de Buytendijk, to~ado de Erwin Strauss,
que significa "disposição patética" ou "estado de comoção", como fundamento
dos jogos infantis. Obra citada, p. 20.
(14) Schicksalskunde, p. 142.
(15) O termo alemão spielen significa ao mesmo tempo jogar e representar,
tanto no sentido de figurar como no da representação teatral (1;11 como em
il1~lê,10 ,,1,,>, e o francês iouer y . (N. do T.)
NATUREZA E SIGNIFICADO DO JOGO 21
11 10 difere de maneira essencial das formas superiores dos
111 'os infantis ou animais, e dificilmente po~eria afirmar-se
tlu e tas duas últimas formas tenham _sua~n~em numa. ten-
I ruva de expressão de qualquer emoçao cosnnca. Os Jogos
ínfuntis possuem a qualidade lúdica em sua própria essência,
lia forma mais pura dessa qualidade.
eria talvez possível descrever o processo que conduz
d" "arrebatamento" pela natureza até à realização do ritual
111 I rmos ligeiramente diferentes dos de F~obeni~s, ~em pre-
I IId r oferecer a explicação de uma reahdade mtelramen~e
IIIIJl netrável, mas procurando apenas dar cont~ de um~ s~-
1\1 11,:110 de fato .. Diríamos, então, que, na SOCIedadepnml-
üv I, verifica-se a presença do jogo, tal como ~~s cnanças
III1S animais, e que, desde a origem, nele se verificam todas
I .uracterfsticas lúdicas: ordem, tensão, movimento, mudan-
I. olcnidade, ritmo, entusiasmo. Só em fase mais tardia da
'" dade o jogo se encontra .associado à expressão de a~~-
1111 -oisa nomeadamente aquilo a que podemos chamar VI-
II" ou "~atureza". O que era jogo desprovido de expressão
I 11111 adquire agora uma forma poética. Na forma e na
1\111 10 do jogo, qu~ em si mesm~ é uI?a entidade independente
di provida de sentido e de racionalidade, a cons~len:la que
11 hlllll m tem de estar integrado numa ordem cosmica en-
"11111 I sua expressão primeira, mais alta e mais sagrada. Pou-
I li I pouco, o jogo vai adquirindo a signi~icação de ato sa-
I ,,111 culto vem-se juntar ao jogo; foi este, contudo, o
I 1111 IlIi ial,
hll ntrarno-nos aqui em regiões difíceis de penetrar,
I 111111 P 'Ia psicologia quanto pela filosofia. São questões que
111. 11111 IlO que há de mais profundo em nossa consciência.
I I I \1110 a forma mais alta e mais sagrada da seriedade.
I ""111 pode ele, apesar disso, ser jogo? Começamos por
1111 I 1(11 todo jogo, tanto das crianças como dos adultos,
I,,,h l f luar-se dentro do mais completo espírito de serie-
I"h Ma irá isto a ponto de implicar que o jogo continua
"'111 li ado à emoção sagrada do ato sacramental? Quanto
I I 111. nossus conclusões são de certa maneira obstruídas pela
I1 'Id, /, de nossas idéias habituais. Estamos. habituados a
"11 Idll Ir o j go e a seriedade como constituindo uma antí-
I, I 1111 ulula, ontudo, parece que isto não permite chegar
111 11I1 do I r blcma.
mos um momento de atenção aos seguintes as..
rian a joga e brinca dentro da mais perfeita
qu a ju t título podemos considerar sagrada.
JI I f iturn nt qu qu stã fazendo é um jogo.
HOMO LUDENS
Também o esportista joga com o mais fervoroso entusiasmo,
ao mesmo tempo que sabe estar jogando. O mesmo verifi-
camos no ator, que, quando está no palco; deixa-se absorver
inteiramente pelo "jogo" da representação teatral, ao mesmo
tempo que tem consciência da natureza desta. O mesmo
é válido para o violinista, que se eleva a um mundo superior
ao de todos os dias, sem perder a consciência do caráter
lúdico de sua atividade. Portanto, a qualidade lúdica pode
ser própria das ações mais elevadas. Mas permitirá isto
que prolonguemos a série de maneira a incluir o culto, afir-
mando ser também meramente lúdica a atividade do sacer-
dote que executa os rituais do sacrifício? À primeira vista
isto parece absurdo, pois, aceitá-lo para uma religião nos
obrigaria a aceitá-Io para todas. Assim, nossas idéias de
culto, magia, liturgia, sacramento e mistério seriam tôdas
abrangidas pelo conceito de jogo. Ora, quando lidamos com
abstrações devemos sempre evitar o exagero de sua impor-
tância, e estender demasiado o conceito de jogo não levaria
a mais do que a um mero jogo de palavras. Mas, levando
em conta todos os aspectos do problema, não creio que seja
um erro definirmos o ritual em termos lúdicos. O ato de
culto possui todas as características formais e essenciais do
jogo, que anteriormente enumeramos, sobretudo na medida
em que transfere os participantes para um mundo diferente.
Esta identidade do ritual e do jogo era reconhecida sem
reservas por PIatão, que não hesitava em incluir o sagrado
na categoria de jogo. "É preciso tratar com seriedade aqui-
lo que é sério", diz ele 16. "Só Deus é digno da suprema
seriedade, e o homem não passa de um joguete de Deus, e
é esse o melhor aspecto de sua natureza. Portanto, todo
homem e mulher devem viver a vida de' acordo com essa ~
natureza, jogando os jogos mais nobres, contrariando suas
inclinações atuais ... Pois eles consideram a guerra uma coisa
séria, embora não haja na guerra jogo ou cultura dignos
desse nome 17, justamente as coisas que nós consideramos
mais sérias. Portanto, todos devem esforçar-se ao máximo - ~ .
por viver em paz. Qual é, então, a maneira mais certa de (L
viver? A vida deve ser vivida como jogo, jogando certos
jogos, fazendo sacrifícios, cantando e dançando, e assim o ~
homem poderá conquistar o favor dos deuses e defender-se ~
de seus unmigos, triunfando no combate 18." j:,
(16) Leis, VII, 803 CD. )
(17) 0IrC OU" 'It4Io814 ..• olh' ati 1ta~liEla ... a!;~óÀ.oyo,
. ( 18) Cf. Úi6. VII, 796 B, onde Platão fala da~ danças SI~gradasdos cure~;1>
GOmo'tWV xoop1}'t(a)'11 EVcm:À.141tà.~'Y"I4' As intimas relações existentes emrc
o iôllO e os mi"'étm sqrados são tratadas de maneira extremamente sugestivaj~'7no;u.";ln~;(~ct~ ~tV/tur tais Spteld~ seuVom~rl')irI! ~
1 1 [) I '(,
NATUREZA E SIGNIFICADO DO JOGO
A identificação platônica entre o jogo e o sagrado não
11 qualifica este último, reduzindo-o ao jogo, mas, pelo con-
u nrio equivale a exaltar o primeiro, elevando-o às mais altas
I 10 's do espírito. Dissemos no início que o jogo é anterior
cultura' e em certo sentido, é também superior,, , .
\I pelo menos autônomo em relação a ela. Podemos situar-
1111. no jogo, abaixodo nível da seriedade, como faz a
uunça; mas podemos também situar-nos acima desse nível,
I".tndo atingimos as regiões do belo e do sagrado.
Adotando este ponto de vista, podemos agora definir de
11111\ ira mais rigorosa as relações entre o ritual e o ,iogo. ~
Irema semelhança das duas formas não nos deixa mars
I 'I lexos e nossa atenção continua presa ao problema de
,Ih r até' que ponto todos os atos de culto são abrangidos
1,,11 categoria do jogo.
Verificamos que uma das ca~acterísticas ~ai~ i~portan-
I do jogo é sua separação espacial em relaçao a VIda quo-
1111111\<1. É-lhe reservado, quer material ou idealmente,
11111 'spaço fechado, isolado .do ambiente quotidiano, e é
ri 1111'l) desse espaço que o jogo se processa e que suas regra~
I 111 validade. Ora, a delimitação de um lugar sagrado e
I IIlIh 'm a característica primordial de todo ato de culto.
I II xigência de isolamento para o ritual,. incluindo a magia
I vida jurídica, tem um alcance superior ao meramente
JlI -1111 e temporal. Quase todos os rituais de consagração e
111 I - implicam um certo isolamento artifical tanto dos
111111 I o como dos neófitos. Sempre que se trata de profe-
111 11111voto de ser recebido numa Ordem ou numa confraria,
" IIZ r um juramento ou de entrar para uma socie~ad.e
, 'I 111 de uma maneira ou de outra há sempre essa delimi-
I I 11\ de um lugar do jogo. O mágico, o áugure e o sacri-
I , 111111' meçam sempre por circunscrever seu espaço sagra-
.1" () sacramento e o mistério implicam sempre um lugar
IIlldl'ado.
I) um ponto de vista formal, não existe diferença al-
1111\I entre a delimitação de um espaço para fins sagrados
, 1l1I. ma operação para fins de simples jogo. A pista de
• ,11' ,li I. • campo de tênis, o tabuleiro de xadrez ou o ter-
I 111\ ti" amarelinha não se distinguem, formalmente, do tem-
1,111 1111do írculo mágico. A extrema semelhança que se verifi-
, 111, os rituais dos sacrifícios de todo o mundo mostra que
III tum devem ter suas raizes em alguma característica
23
4 HOMO LUDENS
fundamentale essencialdo espírito humano. É costume re-
duzir esta analogia geral das formas de cultura a qualquer
causa"racional" ou "lógica", explicandoa necessidadede iso-
lamento e separaçãopela ânsia de proteger os indivíduos
consagradosde influênciasmaléficas,pois eles,em seu estado
de consagração,são particularmente vulneráveis às práticas
dos espíritos malignos, além de constituírem elesmesmosum
perigopara os que os rodeiam. É uma explicaçãoque coloca
na origem do processo cultural em causa uma reflexão de
ordem racional e uma intenção utilitária, precisamenteaquilo
que Frobenius recomendavaevitar. Mesmo que não volte-
mos aqui a cair na antiquada teoria da invenção da religião
pela classe.sacerdotal,continuamos, mesmo assim,a introdu-
zir um elementoracionalista que deveria ser evitado. Se,por
outro lado, aceitarmos a identidade essenciale original do
jogo e do ritual, limitamo-nos a reconhecero lugar santifi-
cado como um campo de jogo, sem chegara colocar a ilusó-
ria questãodo "por que e para que".
Mesmo estabelecidaa identidade formal do ritual e do
jogo, continua sendonecessáriosaber se esta semelhançavai
mais longe que o aspecto puramente formal. É surpreen-
denteque a antropologiae a religião comparadatenham pres-
tado tão pouca atençãoao problema de saber até que ponto
as práticas rituais, desenrolando-sedentro do quadro formal
do jogo, são marcadastambém pela attiude e pela atmosfera
do jogo. Mesmo Frobenius, que eu saiba, não colocou este
problema.
Escusado seria dizer que a atitude espiritual de um
grupo social, ao efetuar e experimentar seus.ritos sagrados,
é da mais extrema e mais santa gravidade. Mas insistamos
uma vez mais: o jogo autênticoe espontâneotambémpode ser
profundamente sério. O jogador pode entregar-sede corpo
e alma ao jogo, e a consciênciade tratar-se "apenas" de um
jogo pode passar para segundoplano. A alegria que está
indissoluvelmente ligada ao jogo pode transformar-se, não
só em tensão, mas também em arrebatamento. A frivoli-
dade e o êxtasesão os dois pólos que limitam o âmbito do
jogo.
O jogo tem, por natureza, um ambiente instável. A
qualquer momento é possível à "vida quotidiana" reafirmar
seusdireitos, seja devido a um impacto exterior, que venha
interromper o jogo, ou devido a uma quebra das regras, ou
então do interior, devido ao afrouxamento do espírito do
jogo, a uma desilusão,um desencanto.
NATUREZA E SIGNJFICADt DO JOGO 25
Quais são, então, a atitude e o '1'nbientepredominantes
11,1. celebraçõessagradas? A palavi a celebrar quasediz tudo:
11 ItO sagradoé celebrado, isto é, -erve de pretexto para uma
11 lu. A caminho dos santuários, o povo prepara-se para
uma manifestaçãode alegria co'ctiva. As consagrações,os
li orifícios,as danças e competí-oes sagradas,as representa-
I1 s, os mistérios, tudo isto vai constituir parte integrante de
111111 festa. Pode acontecer que os ritos sejam sangrentos,
1" as provas a que é submetido o iniciado sejam cruéis,
qllt as máscaras sejam atemorizantes, mas tudo isso não
11111 de que o ambiente dominante seja de festividade, impli- I'
utd a interrupção da vida quotidiana. A festa é acompa- !('~
1111 Ida, em toda sua duração, por banquetes, festins e toda It\t't, (J
I • P ie de extravagâncias. Tanto nas festividadesda Gré- pl cl
I1 nntiga como nas das religiões da África atual, seria difí-~' ;
I Iruçar um limite preciso entre o ambiente da festa em9'
I I 11 c a santa emoção suscitadapelo mistério central.
uase ao mesmo tempo que a primeira edição deste
II 11'. sábiohúngaro Karl Kerényi publicou um estudosobre
I uníureza da festa cuja ligação com nosso tema é das mais
til ltas 19. Segundo Kerényi, também as festas possuem
lifll( I caráter de independênciaprimeira e absolutaque atri-
l'IIflllOS ao jogo. "Entre as realidades psíquicas", diz ele,
I Il.'ta é uma entidade autônoma, impossível de se assimi-
111 I qualquer outra coisaque existano mundo" 20. Tal como
111' em relação ao conceito de jogo, também Kerényi con-
ItI 111 que a festa foi tratada de maneira insuficiente pelos
lodiosos da cultura. "O fenômenoda festa pareceter sido
11111 11 1111 nte ignorado pelos etnólogos21." O fato real da
I I I ignorado, "como se não existissepara a ciência" 22.
I 1I 1111 .nte da mesma maneira que o jogo, poderíamosnós
eentar.
I' rstcrn entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais
I1 11.1 r lações. Ambos implicam uma eliminação da vida
IIlIlultillW. Em ambos predominam a alegria, embora não
I " 11lamente,pois também a festa pode ser séria. Ambos
I lunuadosno tempo e no espaço. Em ambosencontramos
1111 I IlIllIbina ão de regras estritas com a mais autêntica li-
I IIll1dl sm resumo, a festa e o jogo têm em comuns suas
I I 111 I Ii as principais. O modo mais íntimo de união de
I1III l'óll"l' P der encontrar-sena dança. SegundoKeré-
1I rndi s ra, da costa oriental do México, chamam
I i'Jt I "11I 1 ~,\ "
I I • (,I, 11I11111 ti
1111 /", d/ .• I'
111 ''/ •• " M
I I li! , I /tI
ti ,I' ,.·6S18S, Paidcuma, Mitteilungen zur Kulturkunde, J,
198). pn. 59·74.
l,'.
26 HOMO LUDIoNS
a suas festas religiosas realizadas por ocasião da trituração
e da torrefação do milho o "jogo" de seu deus supremo23.
As idéias de Kerényi sobre a festa como conceito cul-
tural autônomo consolidam e ampliam as idéias que servem
de basea este livro. Não se pense,todavia, que o estabele-
cimento de uma estreita relação entre o espírito do jogo e o
ritual possaservir para explicar tudo. O jogo autêntico pos-
sui, além de suas característicasformais e de seu ambiente
de alegria,pelo menosum outro traço dos mais fundamentais,
a saber a consciência, mesmo que seja latente, de estar
"apenas fazendo de conta". Permanecede pé a questãode
saber até que ponto essa consciência é compatível com os
atos rituais efetuadosdentro de um espírito de devoção.
Se nos limitarmos aos ritos sagradosdas culturas primi-
tivas, não será impossíveldeterminar o grau de seriedadecom
que são efetuados. Tanto quanto me consta, os etnólogos
e antropólogosconcorda.mtodos coma idéia de que o estado
de espírito que preside às festas religiosas dos povos selva-
-gens não é de ilusão total. Existe uma consciência subja-
cente de que as coisas"não são reais". Podemosencontrar
uma viva descriçãodesta atitude no livro de Ad. E. Jensen
sobre as cerimônias de circuncisão e puberdade nas socie-
dadesprimitivas 24. Os indivíduos parecem não sentir terror
algum em relação aos espíritosque circulam por toda a parte
no decorrer da festa e aparecemperante os olhos de todos
no ponto culminante desta. Não é de se admirar, pois são
sempre os mesmos,os homens encarregadosda direção do
conjunto das cerimônias; foram eles mesmosque confeccio-
naram as máscarasqueusame que, depoisde tudo terminado,
ocultam-sedos olhos das mulheres. São elesque emitem os
ruídos que anunciam o aparecimentodos espíritos, que de-
senham as pegadasdestes na areia, que tocam as flautas
que representamas vozes dos antepassados,que agitam os
ruidosostamborins. Em resumo,conclui, Jensen,sua situação
assemelha-seem tudo à dos pais que brincam de Papai Noel
com seusfilhos: conhecema máscara,mas escondem-nade-
les25. Os homenscontam às mulheresestóriasfictícias acer-
ca do que se passanos bosquessagrados26. A atitude dos
neófitos oscila entre o êxtase,a loucura fingida, o frêmito de
horror e a afetaçãodos garotos27. Além disso, nem as mu-
lheres, em última análise, são inteiramente iludidas. Elas
(23) Id., p. 60, segundo K. Th. Preuss, Die Nuiarit-Expedition, 1, 1912,
p. 106 e seguintes.
(24) Beschneidung und Reife zerernonten bei Naturvolkern, Stuttgart, 1933.
(25) Id., p. 151.
(26) Id., p, 156.
(27) Id., p. 158.
NATUREZA E SIGNIFICADO DO JOGO 27
li, m exatamentequem se escondepor trás destaou daquela
.u.rscara. Apesar disso, quando uma máscara se aproxima
111 atitude ameaçadoraapoderam-sedelas uma extrema agi-
1I 'U e terror, e fogem gritando para todas as direções.
iundo Jensen,estasmanifestaçõesde terror são, em parte,
1111 irarnente autênticas e espontâneas,e, apenas em parte,
11111 papel imposto pela tradição. É assim que "é costume
luzcr". Em resumo, as mulheres desempenhamo papel do
I t li'O da peça, e sabem que não podem comportar-se como
I ti smancha-prazeres"28.
E impossível determinar de maneria rigorosa qual é o
11111110 mínimo a partir do qual a gravidade religiosa passa a
I simplesdivertimento (fun) , Entre nós, um pai que seja
11111 tanto ou quanto pueril poderá ficar seriamentezangado
us filhos o surpreenderemno exato momento em que
tiver preparandoos presentesde Natal. Na Colômbia Bri-
I lIi 'ti, um pai Kwakiutl matou a filha por esta o ter sur-
1'11' ndido no momento em que talhava os objetos para uma
I I I imônia tribal 29. A natureza instável do sentimento reli-
, Ii I ntre os negros Loango é descrita por Pechuel-Loesche
, III Irmos muito semelhantesaosde Jensen. A crença desses
I IVII rcns nos espetáculose nas cerimônias sagradasé uma
111 -i de semicrença,sempre acompanhadapor uma atitude
,I 110 a e de indiferença, O essencial,conclui esseautor,
I 111 no ambiente30. No capítulo intitulado Primitive Cre-
Iuutv, de seulivro The Threshold of Religion, R. R. Marette
li I a idéia de que em todas as religiões primitivas se en-
11111111 um certo elemento de "faz de conta" (make-believe).
1.11110 feiticeiro como o enfeitiçado são ao mesmo tempo
1111 'i entes e iludidos. Mas um deles escolhe o papel do
1I11111do 31. "O selvagemé um bom ator, capaz de dei~ar-se
di til V 'r inteiramente por seu papel, tal como a cnança
111.111110 brinca; e, também tal como a criança, é um bom
li tudor, capaz de ficar mortalmente assustadocom o ru-
'1.111 de uma coisa que sabeperfeitamente não ser um ver-
d 1111110 leão32." O indígena, diz Malinowski, sente e teme
II I 'I nça mais do que a formula de maneira clara para si
1111 1110 n, 'Emprega certostermos e expressões,que devemos
1\ rulh 'r c mo documentos da crença, tais como são, sem
1'1111 111111' intcgrá-los numa teoria estruturada, O comporta-
I 'HI
1'/111" /",/
11111
I 111
1\ I
I 111
ItI., p, ISO.
I, I)u" I Flu: Social Organísatíon and lhe Secret Societies Df lhe
1/1(1/1111', Wnshíngton, J897. p. 435.
I III~ ,klllllll' von Loanua, S11I11g1rt. IS'07, p. 345.
t.t., I'P. 41 44.
111., I' 4',
/I" I'NfII""I/, 11/ ,111' W",/t'''. 1'''''1/"., r.ondon, 1922, n, 239.
2t{ HOMO LUOENS
mento dos indivíduos aos quais a sociedade primitiva atribui
poderes sobrenaturais pode freqüentem ente ser definido como
um playing up to the role (manter-se fiel ao papel) 34.
Apesar desta consciência parcial do caráter fictício das
coisas na magia e nos fenômenos sobrenaturais em geral, os
mesmos observadores insistem que daí não deve concluir-se
que todo o sistema de crenças e práticas seja apenas uma
fraude inventada por um grupo de "incrédulos", tendo em
vista dominar os "crédulos". É certo que esta interpretação
não só é defendida por muitos viajantes, mas aparece até nas
tradições dos próprios indígenas, mas, mesmo assim, não
é possível que ela seja correta. "A origem de qualquer ato
religioso só pode assentar na credulidade de todos, e sua
manutenção espúria em defesa dos interesses de um grupo
só pode ser a fase final de uma longa evolução 35. Em minha
opinião, também a psicanálise tende a cair nesta antiquada
interpretação das cerimônias da circuncisão e da puberdade,
que Jensen com tanta razão rejeita 36."
De tudo isto decorre claramente, pelo menos para mim,
uma conseqüência: que é impossível perder de vista, por um
momento só que seja, o conceito de jogo, em tudo quanto
diz respeito à vida religiosa dos povos primitivos. Somos
forçados constantemente, para descrever numerosos fenôme-
nos, a empregar a palavra "jogo". Mais ainda: a unidade
e a indivisibilidade da crença e da incredulidade, a indisso-
lúvel ligação entre a gravidade do sagrado e o "faz de conta"
e o divertimento, são melhor compreendidas no interior do
próprio conceito de jogo. Embora admita a semelhança entre
o mundo da criança e o do selvagem, Jensen pretende estabe-
lecer uma distinção de princípio entre a mentalidade de am-
bos. Quando colocada em presença da figura de Papai Noel,
a criança, segundo Jensen, encontra-se perante um "con-
ceito acabado", no qual "se encontra imediatamente" graças.
a seu próprio talento e lucidez. Mas "a atitude criadora do
selvagem em relação às cerimônias aqui em questão é algo
de inteiramente diferente. Ele não se encontra perante con-
ceitos acabados, e sim perante seu meio ambiente natural,
o qual exige uma interpretação; ele capta o misterioso de-
monismo desse meio ambiente e procura dar-lhe uma forma
representativa" 37. Reconhecemos aqui os pontos de vista de
Frobenius, que foi professor de Jensen. Há, contudo, duas
objeções que se impõem. Em primeiro lugar, quando afirma
(34) u., p. 240.
(35) Jensen, loc. cit., p. 152.
(36) Id., pp, 153, 173-7.
(37) lâ., p, 149 e 55.
NATUREZA E SIGNIFICADO DO JOGO 29
li 1 O processo mental do selvagem é, "algo de. inteiramente
Ihf rente" do da criança, Jensen esta se refenndo, de um
lido aos originadores do culto, e, de outro, à criança de hoje.
M I 'nada sabemos dêsses originadores. Tudo aquilo que se
tios oferece como objeto de estudo é uma comunidade reli-
tu a que recebe as imagens de seu culto sob a forma de
11111material tradicional tão "acabado" como acontece no
I I de criança, e que reage a essas imagens de maneira
melhante. Em segundo lugar, e mesmo que desprezemos
I primeiro aspecto, continua intei~~mente for~ ~o alcan~e
11 n ssa observação o processo de interpretação do meio
unbiente natural, assim como o de sua "captação" e "re-
1" scntação" numa imagem ritual. Só através de metáforas
uitasiosas Frobenius e Jensen conseguem forçar a uma
ihordagem do problema. Sobre a função 9ue _opera n<: ~ro-
de construção de imagens, ou imagmaçao, o maximo
qu podemos afirmar é que se trata de uma função pc:,ética;
1 melhor maneira de defini-Ia será chamar-lhe funçao de
III o u função lúdica.
ssim, o problema aparentemente simples de saber O!
11" na realidade o jogo n~s faz penetrar l?rofund.aI?ente
1111prblema da nat~reza e ori~e~ do~ ~oncelto.s ~ehgIOsos.
I 11I1I(se sabe, esta e uma das idéias básicas mais importan-
I pura todo estudioso de religião comparada. Quando uma
11I f rma de religião aceita uma identidade sagrada entre
.Iun isas de natureza diferente, como por exemplo um ser
111111110 e um animal, não podemos definir corr~tamente esta
I I te o como uma "ligação simbólica", no se~tIdo em que ~
1111111 mos. A identidade e unidade essencial de ambos e
1I11111umais profunda do que a relação entre uma substância
11I imagem simbólica. É uma identidade mística. Um se
'''"11111 outro. Em sua dança mágica, o selvagem é um can-
'11111 Devemos sempre ter o máximo cuidado com as defi-
I uclns e as diferenças de nossos meios de expressão. Para
'''IIII\llarmos uma idéia mínima dos hábitos mentais. do s~l-
11 I 111,S mos obrigados a traduzi-los em nossa termmolo~la.
I 'til' queiramos quer não, sempre transpo,?<?,sa~ concepçoes
11I pIOS{\S do selvagem para o plano de exatI~a~ ngorosamen_te
I" I I de nosso tipo de pensamento. ~xpr:-~lmos a relaçao
IItll I e o animal com o qual se Identifica como sendo
11111I "r ilidadc" para ele, e um "jogo" para nós. O sel.vagem
dll qUl s ap derou da "essência" do canguru, e nós dizemos
1'" ·1 "hrin a" de canguru. Mas o selvagem nada sabe das
11111111. . n ptuai entre "ser" e "jogo", nada sa~e sobre
Id 1I11111d" "irna y m" u " ímb 10". Portanto, continua em
III I til I 11\1'til) ti snh 'r 11 11!TI lh r maneira de apreender
30 HOMO LUDENS
c tado.de.espírito do selvagemno momento em que celebra
seusntuais não será o recurso à noção primária e univer-
~almentecompreensívelde "jogo". Em nossaconcepçãodo
Jogo,desaparecea distinçãoentre a crençae o "faz de conta".
A noçãode jogo associa-senaturalmenteà de sagrado. Qual-
quer prelúdio de Bach, um verso de qualquer tragédia é
prova disso. Decidindo considerar toda a esferada chamada
cultura primitiva como um domínio lúdico, abrimos caminho
para uma compreensãomais direta e mais geral de sua natu-
reza, de maneira mais eficaz do que se recorrêssemosa uma
meticulosa análise psicológica ou sociológica.
O jogo sagrado,pelo fato de ser indispensávelao bem-
-estar da comunidade e um germe de intuição cósmica e de
d~s.envolv~mentosocial, não deixa de ser um jogo que, como
dizia Platao, se processafora e acima das austerasnecessida-
des da vida quotidiana.
É nos domínios do jogo sagradoque a criança, o poeta
e o selvagemencontramum elementocomum. O homem mo-
~erno, graças à sua sensibilidadeestética, conseguiuaproxi-
mar-se dessesdomínios muito mais do que o homem "escla-
r~cido" do século XVIII. Pensamosaqui no encanto espe-
cial da m~scar~,como objeto artístico, para o espírito,mo-
derno. Ha hoje um esforço para sentir a essênciada vida
primitiva. Esta forma de exotismo é por vezesacompanhada
de uma certa afetação,mas mesmo assim é muito mais pro-
tunda de que a moda dos turcos, dos indianos e dos chineses
~o.~éculoXVIII. O homem moderno tem uma aguda sen-
sibilidade para tudo quanto é longínquo e estranho. Nada
o ajuda melhor a compreender as sociedadesprimitivas do
que seu gosto pelas máscarase disfarces. A etnologia de-
monstrou a imensa importância social deste fato, e por seu
lado todo indivíduo culto sente perante a máscara uma
emoção estética imediata, composta de beleza, de temor e
de mistério. Mesmo para o adulto civilizado de hoje, a más-
cara conservaalgo de seu poder misterioso, inclusive quando
a ela não está ligada emoçãoreligiosa alguma. A visão de
uma figura mascarada,como pura experiência estética, nos
transporta para além da vida quotidiana, para um mundo
onde reina algo diferente da claridade do dia: o mundo do
selvagem,da criança e do poeta, o mundo do jogo.
Mesmo se pudermos legitimamente resumir nossa con-
cepção do significado dos ritos primitivos a um irredutível
conceito de jogo, continuará de pé uma questãoembaraçosa.
Po~eremospassar das formas religiosas inferiores para as
mais eleva~as? Dos est:anhose bárbaros rituais do indíge-
nas da Africa, da América e da Au trália lhnr pu a na-
NATUREZA E SIGNIFICADO DO JOGO 31
turalmente para os sacrifícios rituais dos Vedas, os quais
. ontêm já, nos hinos do Rig- Veda, toda a sabedoria dos
t Jpanishads,para as profundamentemísticashomologiasentre
d 'us, homem e animal na religião dos egípcios, para os
IIIistérios de Orfeu ou de Elêusis. Tanto quanto à forma
101110 quanto à prática, todos estesestão intimamente ligados
,I chamadasreligiões primitivas, mesmo quanto aos porme-
uorcs mais cruéis e bizarros. Mas o elevado grau de sabe-
dOiia e de verdade que neles vemos, ou julgamos ver, nos
111'1 cde de a elesnos referirmos com aquele ar de superiori-
.I.ulc que, afinal de contas,era igualmente despropositadono
, ISO das culturas '''primitivas''. É preciso determinar se esta
I mclhança formal nos autoriza a aplicar a noção de jogo
.onsciência do sagrado, à crença que essasformas supe-
Irores contêm. Se aceitarmosa definição platônica do jogo,
11 Ida haverá de incorreto ou irreverente em que o façamos.
\. lindo a concepçãode Platão, a religião é essencialmente
unstituída pelos jogos dedicados à divindade, os quais são
pura os homens a mais elevada atividade possível. Seguir
til concepçãonão implica de maneira alguma que se aban-
dlluc o mistério sagrado, ou que se deixe de considerar este
I 11Iai alta expressãopossíveldaquilo que escapaàsregrasda
1I1 ica. Os atos de culto, pelo menossob uma parte importan-
II de seus aspectos,serão sempre abrangidospela categoria
dI jogo, mas esta aparente subordinaçãoem nada implica o
\I o reconhecimentode seu caráter sagrado.
2. A Noção de Jogo
e sua Expressão na Linguagem
-e
Ao falarmos do jogo como algo que todos conhecem e
ao procurarmos analisar ou definir a idéia que essa palavra
exprime, precisamos ter sempre presente que essa noção é
definida e talvez até limitada pela palavra que usamos para
xprimi-la. Nem a palavra nem a noção tiveram origem num
pensamento lógico ou científico, e sim na linguagem criadora,
isto é, em inúmeras línguas, pois esse ato de "concepção" foi
.fetuado por mais do que uma vez. Não seria lícito esperar
que cada uma' das diferentes línguas encontrasse a mesma
idéia e a mesma palavra ao tentar dar expressão à noção de
i go, à semelhança do que se passa com as noções de "pé"
ou "mão", para as quais cada língua tem uma palavra bem
ti if'inida. O problema é menos simples que isso.
Devemos aqui tomar como ponto de partida a noção de
logo em sua forma familiar, isto é, tal como é expressa pelas
pu lavras mais comuns na maior parte das línguas européias
111 dernas, com algumas variantes. Parece-nos que essa no-
o to poderá ser razoavelmente bem definida nos seguintes
(ermo : o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exer-j P ~
lida dentro de certos e determinados limites de tempo e de~ t
p:l o, segundo regras livremente consentidas, mas absolu- ~. ,'"
I uncnt - obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acom- " ~
I' mhndo de um sentimento de tensão e de alegria e de uma ~~
llln.'·j ncia de ser diferente da "vida quotidiana". Assim
til flni lu, a n ção parece capaz de abranger tudo aquilo a
que -h imum . "j "entr . animai ,a crianças e os adul-
111 10 'o ti f( r a ti, ti str 7.11, i s ti s rt , de adivi-
34 ROMO LUDENS
nhação, exibições de todo o gênero. Pareceu-nos que a
categoria de jogo fosse suscetível de ser considerada um dos
elementos espirituais básicos da vida.
Mas acontece que a categoria geral de jogo não foi
distinguida com idêntico rigor por todas as línguas, nem sem-
pre sendo sintetizada em uma única palavra. Em todos os
povos encontramos o jogo, e sob formas extremamente se-
melhantes, mas as línguas desses povos diferem muitíssimo,
em sua concepção do jogo, sem o conceber de maneira tão
distinta e tão ampla como a maior parte das línguas euro-
péias modernas. Poderíamos, adotando uma perspectiva no-
minalista, negar a validade de um conceito geral, afirmando
que em cada grupo humano o conceito "jogo" encerra apenas
o que é expresso na palavra, ou antes,

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