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O FENÔMENO DA ALIENAÇÃO Waldemar Milanez “Nós vos pedimos com insistência: Nunca digam - Isso é natural! Diante dos acontecimentos de cada dia. Numa época em que reina a confusão Em que corre o sangue, Em que o arbitrário tem força de lei, Em que a humanidade se desumaniza... Não digam nunca: Isso é natural! A fim de que nada passe por ser imutável.” Bertold Brecht A um grupo de alunos foi perguntado o que é que eles entendiam pela afirmação: Fulano é alienado. A resposta imediata foi: Significa que é um sujeito de poucas informações, que está por fora de tudo o que acontece. Esta resposta, evidentemente, repousa no senso comum, mas é a partir dela que desenvolveremos a reflexão sobre a questão da alienação, pois como afirma Aranha e Martins: “O senso comum precisa ser transformado em bom senso, este entendido como a elaboração coerente do saber e como explicação das intenções conscientes dos indivíduos livres. Segundo o filósofo Gramsci, o bom senso é o núcleo sadio do senso comum.”1 Na resposta do aluno fica evidente que um sujeito é alienado na medida em que não tenha o número suficiente de informações para estar por dentro do que acontece. Ora, na era da informação, com tantas informações veiculadas pelos diferentes meios e pelas quais somos bombardeados cotidianamente, somos levados a concluir que alienados são os que estão fora do alcance dessas informações maciçamente veiculadas. É necessário fazer uma distinção entre conhecimento e informação. “Desde a nossa perspectiva, a geração de dados não estruturados não conduz automaticamente à criação de informação, e nem toda a informação pode ser equiparada a conhecimento. Toda informação pode ser classificada, analisada e refletida e processada de várias maneiras para gerar conhecimento.”2 A informação é essencial para a construção do conhecimento, mas a informação por si só não permite uma melhor compreensão e explicação da realidade. Isto só é possível se as informações forem processadas, interligadas em novas estruturas constitutivas de conhecimento. Desta forma afirma-se que o fenômeno da alienação vai para além da questão de possuir ou não possuir informações. Mesmo porque, se isto fosse verdade, ele não ocorreria nas classes sociais mais informadas, que tem acesso fácil aos diferentes meios de comunicação. Ora, sabemos que não existe informação neutra, notadamente as 1 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Martins. Filosofando – Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna. 1993. p. 129 2 ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação: Rumo à sociedade aprendente. Petrópolis, Vozes. 1998. p.49 veiculadas na mídia, elas revestem-se de fortes conotações ideológicas e a função da ideologia é de ocultar a realidade. Assim pode ocorrer que, quanto mais informações o indivíduo possua, mais alienado ele seja. Por outro lado, a resposta dada revela a essência da alienação que é “estar por fora” sentir-se alheio. O termo se origina etimologicamente de alienare, alienus que significa “que pertence a outro” – o outro em latim é alius. Desta forma, alienar é tornar alheio e transferir para outro o que é seu. Portanto afirmar que um indivíduo é alienado é dizer que as informações que possui não são suficientemente articuladas para permitir a construção do conhecimento necessário para a compreensão e explicação da realidade em que está inserido. Isto não está no seu controle, portanto pertence a outro, alguém alheio que não é ele. O certo é que, no conceito de alienação, está sempre presente a perda de algo que lhe pertence e passa a pertencer a outro, alguém que é alius, alheio. Observemos como isto fica claro nos exemplos dados sobre os vários significados de alienação. No Direito: Alienação significa a perda do usufruto ou da posse de um bem ou direito. Por exemplo, no caso da compra de um carro, recomenda-se que o mesmo não esteja alienado. Na Psicologia: Alienação significa perda do controle por parte do indivíduo das próprias faculdades mentais. O indivíduo perde a lucidez, é identificado como louco. O médico especialista em alienados mentais é chamado de alienista. Na Política: No conceito de democracia o poder pertence ao povo, mas como as nossas democracias são representativas, o poder passa a pertencer aos representantes. “Para Rousseau a soberania do povo é inalienável, isto é, pertence somente ao povo, que não deve outorgá-la a nenhum representante. Devendo ele próprio exercê-la. É o ideal da democracia direta.”3 Na Religião: O homem, ao buscar o transcendente, encontra-se profundamente consigo mesmo. Isto não acontece no fenômeno da idolatria que caracteriza a sociedade moderna. “Para Feuerbach alienação religiosa consiste no processo antropomórfico segundo qual o homem projeta no céu a sua própria imagem idealizada. Não foi Deus que criou o homem; ao contrário foi o homem que criou Deus. Mas ao adorar esse Deus projetado por ele mesmo o homem religioso se despersonaliza, não mais se pertence, se aliena.”4 No senso comum: Considera-se alienado todo indivíduo que demonstra total desinteresse por assuntos importantes para a vida em sociedade como questões políticas e sociais. É como se estas questões não lhe dissessem respeito e ele se sente incapaz de participar delas. Assim o conceito de alienação é marcado por forte polissemia e, no uso comum, serve para indicar múltiplas alienações, o que, de certa forma, desvaloriza a utilização do conceito no discurso científico por ser pouco preciso. No entanto, a noção de alienação possui uma dimensão crítica humanista, que a ciência não consegue apreender, pois assinala fundamentalmente um fenômeno dos tempos modernos e sua base é a pretensão do sujeito à emancipação, posição histórica da subjetividade ocidental que 3 Aranha e Martins. Obra citada, p.12 4 Idem. p tormentosamente oscila, em equilíbrio sempre precário, entre a auto-afirmação e a oposição a si mesmo, aos outros e à natureza e a propósito de problemas econômicos, políticos, éticos, psicológicos etc. “Alienação é o fenômeno pelo qual os homens criam ou produzem alguma coisa, dão independência a esta criatura como se ela existisse por si mesma e em si mesma, deixam-se governar por ela como se ela tivesse poder em si mesma, não se reconhecem na obra que criaram, fazendo um ser, outro, separado dos homens, superior a eles e com poder sobre eles”5 Vejamos isto mais de perto analisando o trabalho humano. A rigor, se é trabalho só pode ser humano. A expressão “trabalho humano” seria uma redundância, pois o Homem é o único animal que trabalha, os demais animais não produzem sua própria existência, apenas a conservam agindo instintivamente. O homem é um ser que trabalha e produz o mundo e a si mesmo. Ou seja, através do trabalho, ao mesmo tempo que transforma a natureza, adaptando-a às necessidades humanas, o homem se altera a si próprio desenvolvendo suas faculdades. Isto significa que, pelo trabalho, o homem se auto- produz. Enquanto o animal permanece sempre o mesmo na sua essência já que repete os gestos comuns a espécie, o homem muda as maneiras pelas quais age sobre o mundo, estabelecendo relações também mutáveis, que por sua vez alteram a maneira de perceber, de pensar e de sentir. No belíssimo poema de Vinícius de Moraes “O operário em construção” encontramos esta passagem: “Mas ele desconhecia / este fato extraordinário: / Que o operário faz a coisa / e a coisa faz o operário.” O filósofo personalista Mounier afirmava: “Todo trabalho trabalha para fazer um homem ao mesmo tempo que umacoisa.”6 Desta forma poderíamos afirmar que quem não trabalha não pertence ao mundo dos humanos pois é através do trabalho que somos capazes de transcender, de superar os determinismos da natureza, de transformá-la. A transcendência é propriamente liberdade. Por isso a liberdade não é alguma coisa que é dada ao homem, mas o resultado de uma ação transformadora sobre o mundo. Nesse sentindo é sempre uma conquista. Mas, apesar do trabalho ter todo esse lado positivo, historicamente está ligado a uma visão negativa, visão essa muito bem observada por Karl Marx ao fazer a crítica a Hegel, dizendo que este possuía uma visão otimista do trabalho pelo fato de ter sido incapaz de identificar o fenômeno da alienação. Sim, porque uma coisa é o trabalho, por exemplo, de um agricultor autônomo, que decide plantar, prepara a terra, escolhe as sementes e as plantas, acompanha o desenvolvimento cuidando, colhe os frutos para alimentar-se e partilhar com o grupo a que pertence. Esta é uma situação de trabalho humanizante, de realização plena. Outra realidade é o trabalho no sistema capitalista, onde seu trabalho é uma mercadoria que se vende por um salário que está sob a lei do mercado, a lei da oferta e da procura (é bom que se diga que historicamente a oferta é sempre maior que a procura) onde você não decide o que vai fazer, nem quando, nem onde, nem como. Não é dono do que faz, pois isso pertence a outro. “Nessa negação de si você se transformou na coisa que você produz, você passa a ser a coisa e a coisa passa a ser você. O seu produto rompido, separado da existência do produtor, passa a ter vida independente; por outro lado você produtor se transforma em mercadoria igual à qual foi vendida na loja.”7 5 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática . 1994. p.170 6 Aranha e Martins. Obra citada, p. 9 7 CODO, Wanderly. O que é Alienação. São Paulo, Brasiliense. 1995. Coleção Primeiros passos.p.30 A diferença entre as duas formas de trabalho é evidente. No entanto, vende-se a idéia de que o contrato de trabalho é um livre acordo. Mas desde o momento em que não se escolhe o que fazer, nem o horário, nem o ritmo de trabalho, na realidade se submete a um comando alheio à sua consciência e que, na maioria das vezes, não é representado pelas pessoas mas pelas próprias relações de produção. Este fenômeno Karl Marx identifica como Fetichismo da mercadoria e reificação do trabalhador. “O fetichismo é o processo pelo qual a mercadoria, ser inanimado, é considerada como se tivesse vida, fazendo com que os valores de troca se tornem superiores aos valores de uso e determinem as relações entre os homens, e não vice-versa. Ou seja, a relação entre os produtores não aparece como sendo relação entre eles próprios (relação humana), mas entre os produtos do seu trabalho. Por exemplo, as relações não são entre alfaiate e carpinteiro, mas entre casaco e mesa. A mercadoria adquire valor superior ao homem, pois privilegiam-se as relações entre coisas, que vão definir relações materiais entre pessoas. Com isso, a mercadoria assume formas abstratas (o dinheiro, o capital) que, em vez de serem intermediárias entre indivíduos, convertem-se em realidades soberanas e tirânicas”8 De fato, a soberania destas realidades torna-se visível no fato de que elas, que são simples meios, tornam-se fins e passam a ocupar o destino do homem. E o homem então torna-se o meio e vai ser mobilizado existencialmente para alcançar estes fins. E isto passa a ser visto como um processo natural, e normalmente poderíamos considerar alienados mentais, loucos, todos aqueles que tentassem ver algo diferente, ou seja, imaginar que esta realidade poderia ser diferente. Este é o fenômeno da naturalização, que é uma característica da ideologia para manter as coisas como estão. Assim, o dinheiro, o capital, enfim as exigências do mercado determinam as finalidades da vida humana. O trabalho então deixa de ser uma finalidade e passa a ser um meio para acumular dinheiro. Para isto é preciso aumentar a produção e então descobre-se que a produção em grande escala só é possível com a fragmentação do trabalho. A divisão de trabalho mostrou sua eficiência definitivamente no início do século XX quando Henry Ford introduziu o sistema de linha de montagem na indústria automobilística. Sucesso absoluto, o fordismo provou que, na prática, se a finalidade é o aumento de produção, deve-se alterar o meio, que é o trabalho, e reorganizá-lo em função desta finalidade. A inteligência humana então põe-se a serviço desta nova realidade, surgem estudos científicos que buscam a fundamentação teórica que legitima a fragmentação do trabalho. No livro Princípios de administração científica, Frederick Taylor apresenta os parâmetros necessários de racionalização científica para o aumento da produtividade, economia de tempo. O Taylorismo é a fundamentação científica que legitima ideologicamente a fragmentação do trabalho, que doravante não será mais questionado, pois que cientificamente comprovado ser mais eficiente. “Taylor parte do princípio de que o trabalhador é indolente, gosta de ‘fazer cera’ e usa os movimentos de forma inadequada. Observando seus gestos, determina a simplificação deles, de tal forma que a devida colocação do corpo, dos pés e das mãos possa aumentar a produtividade. Também a divisão e o parcelamento do trabalho se mostra importante para a simplificação e maior rapidez do processo. São criados cargos de gerentes especializados em treinar 8 Aranha e Martins. O. cit. P. 12 operários, usando cronômetros e depois vigiando-os no desempenho de suas funções. Os bons funcionários são estimulados com recompensas, os indolentes, sujeitos a punições. Taylor tentava convencer os operários de que tudo isso era para o bem deles, pois, em última análise, o aumento da produção reverteria em benefícios também para eles, gerando a sociedade da opulência.”9 Seria por acaso loucura afirmarmos que Taylor parte do princípio de que o trabalhador é humano e, para a eficiência da produção, ele precisaria robotizar-se, desenvolver gestos mecanicamente programados, em outras palavras, mudar a sua natureza humana, esquecer de si, abdicar de sua individualidade, abandonar o mundo do ser e ingressar definitivamente no mundo do ter? Sim, porque no mundo em que vive ele não será reconhecido pelo que é e sim pelo que tem. Charles Chaplin foi capaz de perceber este homem esquizofrênico, reduzido a gestos mecânicos, imagem de sua ação produtiva, no clássico filme “Tempos Modernos”. A alienação, neste sentido, nos acompanha estruturalmente e, evidentemente, ela estará presente em outros momentos da nossa existência. Por isso é ela que se manifesta nos diferentes momentos de nossa vida cotidiana. Será então que o nosso lazer é alienado? Será que o nosso consumo é alienado? Reflita. Existe uma questão que nos angustia... Como romper com esta alienação? Basta tomar consciência? Ou tudo isto é uma grande loucura e, a exemplo de Erasmo, a ela devemos tecer elogios, por nos garantir um mínimo de salutar insanidade?10 Hegel, na dialética relação do Senhor e Escravo, afirma que o escravo, por trabalhar, produz a própria identidade e adquire a consciência. No poema de Vinicius de Morais este momento é assim descrito: “De forma que, certo dia, / à mesa, ao cortar, o pão / o operário foi tomado / de uma súbita emoção / ao constatar assombrado / que tudo naquela mesa / - garrafa, prato, facão / era ele quem os fazia / ele, um humilde operário, / um operário em construção. / Olhou em torno: / gamela, banco, enxerga, caldeirão, / vidro, parede, janela, casa, cidade, nação! / Tudo, tudo o que existia / era ele quem o fazia / ele, um humilde operário/ um operário que sabia / exercer a profissão”11 Esta tomada de consciência permite que o homem se reconheça no que ele faz e ele se humaniza. Ele deixa de ser coisa e descobre-se como ser humano e o poeta continua: “Ah! Homens de pensamento / não sabereis nunca / o quanto aquele humilde operário / soube naquele momento! / Naquela casa vazia / que ele mesmo levantara / um mundo novo nascia / de que sequer suspeitava. / O operário emocionado / olhava sua própria mão / sua rude mão de operário / de operário em construção. / E olhando bem para ela / teve um segundo a impressão / de que não haveria no mundo / coisa que fosse mais bela./ Foi dentro da compreensão / desse instante solitário / que, tal sua construção / cresceu também o operário. / Cresceu em alto e profundo / em largo e no coração / e como tudo o que cresce / ele não cresceu em vão / pois além do que sabia / - exercer a profissão -/ o operário adquiriu uma nova dimensão / a dimensão da poesia”.12 9 Idem. P.13 10 ROTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura. Rio de Janeiro,s/d, Edições de Ouro 11 MORAIS, Vinicius de. Novos Poemas (II)Rio de Janeiro . São José .1959. “O operário em construção” é o último poema da obra – disponibilizado no site oficial de Vinicius de Morais: http://www.viniciusdemoraes.com.br/ 12 Idem O poeta aqui é a identificação do humano. No mundo mecânico, padronizado, ser poeta é ser diferente. Otto Lara afirma: “Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: o modo de ver. O diabo é que de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio. (...) Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de tão visto, ninguém vê.”13 A partir deste novo olhar, tudo muda, muda o homem e mudam suas relações, pois quando o trabalhador é humanizado pelo trabalho, descobre a própria identidade e humaniza as relações. “E um fato novo se viu / que a todos admirava: / O que um operário dizia / outro operário escutava. E foi assim que o operário / do edifício em construção / que sempre dizia sim / começou a dizer não. / E aprendeu a notar coisas / a que não dava atenção”. Quem é esse novo homem que surge? Um sábio ou um louco? Erasmo de Roterdam afirma não existir nenhuma diferença entre os sábios e os loucos, a não ser que estes últimos são mais venturosos. Quanto aos “sábios são em número tão reduzido que nem se deve se perder em discorrer sobre eles e eu gostaria de saber mesmo se se pode descobrir algum.” (Roterdam, 2003, p.96). E não é loucura o que este operário fez? Recusar as vantagens de uma vida sem preocupações, tranquila? Recusar aquilo para o qual tantos, por tanto tempo, ao longo de toda a história, despenderam seus esforços? E tudo para poder afirmar com todo o vigor e veemência a recuperação de sua identidade humana e dizer em bom tom: “ Mentira! disse o operário / não podes dar-me o que é meu.” (Morais, 1959) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHAUÍ, Marilena. O que é Ideologia. São Paulo, Brasiliense. 1994. Coleção Primeiros passos. __________ Convite à Filosofia. São Paulo, Ática . 1994. CODO, Wanderly. O que é Alienação. São Paulo, Brasiliense. 1995. Coleção Primeiros passos. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Martins. Filosofando – Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna. 1993 ROTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura. Rio de Janeiro,s/d, Edições de Ouro ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação: Rumo à sociedade aprendente. Petrópolis, Vozes. 1998 MORAIS, Vinicius de. Novos Poemas (II)Rio de Janeiro. São José .1959. “O operário em construção” é o último poema da obra – disponibilizado no site oficial de Vinicius de Morais: http://www.viniciusdemoraes.com.br/ RESENDE, Otto Lara de. Vista cansada. Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 23 de fevereiro de 1992. http://www.releituras.com/olresende_vista.asp 13 Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 23 de fevereiro de 1992. http://www.releituras.com/olresende_vista.asp LEITURA COMPLEMENTAR O ANALFABETO POLÍTICO O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, não participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do sapato e do remédio depende decisões políticas. O ANALFABETO POLÍTICO É TÃO BURRO QUE SE ORGULHA E ESTUFA O PEITO, DIZENDO QUE ODEIA A POLÍTICA. Não sabe que de sua ignorância nasce a prostituta, o menor abandonado, o assaltante e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e o explorador das empresas nacionais e multinacionais. ( Bertold Brecht. 1898-1956 ) Antologia poética. O analfabeto Político: http://www.culturabrasil.pro.br/brechtantologia.htm Quadro brasileiro premiado em Cannes. O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO Vinícius de Morais Peça “Favela”- Do Instituto Akatu, produzida pela agência de publicidade Leo Burnett e ganhadora do Cannes de Ouro 2004. http://www.akatu.org.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm MORAIS, Vinicius de. Novos Poemas (II)Rio de Janeiro . São José .1959. “O operário em construção” é o último poema da obra – disponibilizado no site oficial de Vinicius de Morais: http://www.viniciusdemoraes.com.br/ Era ele que erguia casas Onde antes só havia chão. Como um pássaro sem asas Ele subia com as casas Que lhe brotavam da mão. Mas tudo desconhecia De sua grande missão: Não sabia, por exemplo, Que a casa de um homem é um templo Um templo sem religião Como tampouco sabia Que a casa que ele fazia Sendo a sua liberdade Era a sua escravidão. De fato, como podia Um operário em construção Compreender por que um tijolo Valia mais do que um pão? Tijolos ele empilhava Com pá, cimento e esquadria Quanto ao pão, ele comia... Mas fosse comer tijolos! E assim o operário ia Com suor e com cimento Erguendo uma casa aqui Adiante um apartamento Além uma Igreja, à frente Um quartel e uma prisão: Prisão de que sofreria Não fosse, eventualmente, Um operário em construção. Mas ele desconhecia Este fato extraordinário: Que o operário faz a coisa E a coisa faz o operário. De forma que, certo dia, À mesa, ao cortar, o pão O operário foi tomado De uma súbita emoção Ao constatar assombrado Que tudo naquela mesa Garrafa, prato, facão Era ele quem os fazia Ele, um humilde operário, Um operário em construção. Olhou em torno: gamela, Banco, enxerga, caldeirão, Vidro, parede, janela, Casa, cidade, nação! Tudo, tudo o que existia Era ele quem o fazia Ele, um humilde operário Um operário que sabia Exercer a profissão. Ah! Homens de pensamento Não sabereis nunca o quanto Aquele humilde operário Soube naquele momento! Naquela casa vazia Que ele mesmo levantara Um mundo novo nascia De que sequer suspeitava. O operário emocionado Olhava sua própria mão Sua rude mão de operário De operário em construção. E olhando bem para ela Teve um segundo a impressão De que não haveria no mundo Coisa que fosse mais bela.Foi dentro da compreensão Desse instante solitário Que, tal sua construção Cresceu também o operário. Cresceu em alto e profundo Em largo e no coração E como tudo o que cresce Ele não cresceu em vão Pois além do que sabia Exercer a profissão O operário adquiriu Uma nova dimensão A dimensão da poesia. E um fato novo se viu Que a todos admirava: O que o operário dizia Outro operário escutava. E foi assim que o operário Do edifício em construção Que sempre dizia sim Começou a dizer não. E aprendeu a notar coisas A que não dava atenção. Notou que sua marmita Era o prato do patrão Que sua cerveja preta Era o uísque do patrão Que seu macacão de zuarte Era o terno do patrão Que o casebre onde morava Era a mansão do patrão Que seus dois pés andarilhos Eram as rodas do patrão Que a dureza do seu dia Era a noite do patrão Que sua imensa fadiga Era amiga do patrão. E o operário disse: não! E o operário fez-se forte Na sua resolução. Como era se esperar As bocas da delação Começaram a dizer coisas Aos ouvidos do patrão. Mas o patrão não queria Nenhuma preocupação “Convençam-no” do contrário Disse ele sobre o operário E ao dizer isso sorria. Dia seguinte, o operário Ao sair da construção Viu-se súbito cercado Dos homens da delação E sofreu, por destinado Sua primeira agressão. Teve seu rosto cuspido Teve seu braço quebrado Mas quando foi perguntado O operário disse: Não! Em vão sofrera o operário Sua primeira agressão Muitas outras se seguiram Muitas outras seguirão Porém, por imprescindível Ao edifício em construção Seu trabalho prosseguia E todo seu sofrimento Misturava-se ao cimento Da construção que crescia. Sentindo que a violência Não dobraria o operário Um dia tentou o patrão Dobrá-lo de modo vário. De sorte que foi levando Ao alto da construção E num momento de tempo Mostrou-lhe toda a região E apontando ao operário Fez-lhe esta declaração: dar-te-ei todo esse poder e a sua satisfação por que a mim me foi entregue e dou-o a quem bem quiser dou-te tempo de lazer dou-te tempo de mulher. Portanto tudo o que vês Será teu se me adorares E, ainda mais, se abandonares O que te fez dizer não. Disse, e fitou o operário Que olhava e que refletia Mas o que via o operário O patrão nunca veria. O operário via as casas E dentro das estruturas Via coisas, objetos Produtos, manufaturas. Via tudo o que fazia O lucro do seu patrão E em cada coisa que via Misteriosamente havia A marca de sua mão E o operário disse: não! Loucura! gritou o patrão Não vês o que te dou eu? Mentira! disse o operário não podes dar-me o que é meu. E um grande silêncio fez-se Dentro do seu coração Um silêncio de martírios Um silêncio de prisão Um silêncio povoado De pedidos de perdão Um silêncio apavorado Como o medo em solidão. Um silêncio de torturas E gritos de maldição Um silêncio de fraturas A se arrastarem no chão E o operário ouviu a voz De todos os seus irmãos Os seus irmãos que morreram Por outros que viverão. Uma esperança sincera Cresceu em seu coração E dentro da tarde mansa Agigantou-se a razão De um homem pobre e esquecido Razão porém que fizera Em operário construído O operário em construção.