Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Thaís Morghana - UFPE-CAA Queimaduras INTRODUÇÃO A queimadura é uma lesão tecidual devido a trauma elétrico, térmico, químico ou radioativo, com destruição parcial ou total da pele e seus anexos. EPIDEMIOLOGIA A mortalidade tem distribuição bimodal: imediatamente após o trauma ou semanas após (falência orgânica, sepse e choque). ● 66% das queimaduras ocorrem no ambiente doméstico. ● Os óbitos predominam nos extremos de idade (crianças e idosos). ETIOLOGIA Chama/fogo → lesão pelo ar oxidado superaquecido. Escaldadura → lesão por contato com líquidos quentes. ● Mais comum em crianças < 5 anos. Contato → lesão por contato com sólidos quentes ou frios. Químicas → contato com agentes químicos nocivos. Eletricidade → condução de corrente elétrica pelos tecidos. CLASSIFICAÇÃO E QUADRO CLÍNICO 1º GRAU → lesão localizada na epiderme. ● Dolorosas, eritematosas e empalidecem ao toque. ● Ex.: queimaduras solares e pequenas escaldaduras. ● Não resultam em cicatrizes. 2º GRAU SUPERFICIAL → lesão da epiderme e derme superficial. ● Dolorosas, eritematosas, empalidecem ao toque e formam flictenas. ● Ex.: escaldaduras e curta exposição ao fogo. ● As feridas têm reepitelização espontânea em 1-2 semanas. ● Cicatrização: pode ter descoloração cutânea a longo prazo. 2º GRAU PROFUNDO → lesão da epiderme até a derme profunda. ● Dolorosas, pálidas e mosqueadas, não empalidecem ao toque. ● Reepitelização em 2-5 semanas. ● Cicatrizes graves devido à perda da derme. ● Necessita de enxerto para cicatrização. 3º GRAU → lesão da espessura total (atinge até a gordura subcutânea). ● Escara dura (parece couro), indolor, preta, branca ou cor de cereja. ● Reepitelização a partir das bordas cutâneas. ● Necessita de enxerto para cicatrização. 4º GRAU → atinge pele, gordura subcutânea, osso e músculo subjacente. QUEIMADURA ELÉTRICA → a área de necrose tissular representa uma pequena porção do tecido destruído. ● A corrente elétrica penetra em uma parte do corpo e progride através dos tecidos, geralmente nervos, vasos sanguíneos e músculos. ● O músculo é o tecido que tem menor resistência, sendo o mais danificado. ● Lesão de baixa voltagem: similar às queimaduras térmicas. ● Lesão de alta voltagem: graus variáveis de queimaduras cutâneas e destruição oculta de tecidos profundos. QUEIMADURA QUÍMICA → pode ocorrer por exposição prolongada aos agentes químicos. Causam lesão proteica, desnaturação, oxidação, formação de ésteres proteicos ou desidratação do tecido. Thaís Morghana - UFPE-CAA FISIOPATOLOGIA ● As lesões por fogo, líquidos e objetos sólidos causam dano celular pela transferência de energia, com consequente necrose de coagulação. ● As lesões químicas e elétricas atingem diretamente as membranas celulares, além da transferência de energia. Podem causar necrose de coagulação ou de liquefação. A lesão cutânea é dividida nas seguintes zonas: ● Zona de coagulação: área necrótica com células destruídas. O dano ao tecido é irreversível. ● Zona de estase: localizada adjacente à zona de coagulação. A lesão é moderada, com perfusão tissular reduzida. Pode ser reversível ou evoluir para necrose. - Nessa zona há dano vascular com extravasamento de fluidos. - Altas concentrações de tromboxano A2 (vasoconstritor potente). ● Zona de hiperemia: área de vasodilatação circunjacente à queimadura. O tecido é viável, onde se inicia o processo de cicatrização. ALTERAÇÕES SISTÊMICAS ● Ocorrem nos pacientes com queimaduras > 20% nos adultos e > 40% nas crianças. ● A queimadura dá origem a uma resposta de estresse, inflamação e hipermetabolismo. ● Principais efeitos sistêmicos: resposta circulatória hiperdinâmica (↑ temperatura, glicólise, proteólise, lipólise). Resposta hipermetabólica ● Aumento de catecolaminas, glicocorticóides, glucagon, dopamina, IL-1, IL-6, fator de necrose tumoral, óxido nítrico, complexos de coagulação. ● Fase ebb: primeiras 48h. Redução do débito cardíaco, consumo de oxigênio e taxa metabólica; além de hiperglicemia. ● Fase flow: começa a partir do 5º dia. Resposta hipermetabólica e circulação hemodinâmica, com altos níveis de glicose e insulina. ● As alterações hipermetabólicas podem durar até 3 anos após a queimadura. ● O aumento no catabolismo causa redução na proteína corporal total, na defesa imunológica e na cicatrização. ● Pacientes em sepse têm aumento nas taxas metabólicas e no catabolismo protéico de cerca de 40%. Inflamação e edema ● O edema generalizado é uma resposta às mudanças nas forças de Starling na pele queimada e não queimada. ● O edema é maior nos tecidos queimados devido a menor pressão intersticial. ● Mediadores que causam alterações na permeabilidade: histamina, bradicinina, aminas, prostaglandinas, serotonina, tromboxano A2, leucotrienos, complemento e catecolaminas. Efeitos cardiovasculares ● Alterações microvasculares causam perda de volume plasmático, aumento da resistência periférica e redução do débito cardíaco e da contratilidade cardíaca. ● Pacientes com > 40% SCQ: apresentam aumento do débito cardíaco e da frequência cardíaca. ● O estresse cardíaco causado pela queimadura pode dar origem à depressão miocárdica. Efeitos renais ● Redução do fluxo sanguíneo renal e da taxa de filtração glomerular. ● O paciente fica em oligúria, que se for prolongada, pode levar à necrose tubular aguda e insuficiência renal. Efeitos gastrointestinais ● Atrofia da mucosa intestinal, alterações na absorção digestiva e aumento da permeabilidade intestinal às macromoléculas. Efeitos imunes Thaís Morghana - UFPE-CAA ● Depressão global da função imunológica, com redução da função celular em todas as partes do sistema imune. AVALIAÇÃO INICIAL ATENDIMENTO PRÉ-HOSPITALAR 1. Garantir segurança da equipe; 2. Afastar o paciente da fonte de calor: retirar roupas, joalheria; 3. ABCDE do trauma 4. Resfriar a lesão: jogar água na lesão se o atendimento ocorrer até 15-30 minutos após o trauma. - Água em temperatura ambiente ou ≥ 12 ºC. - Água morna, se a queimadura for química. 5. Prevenção da hipotermia: envolver o paciente em lençóis ou cobertores secos. 6. Podem ser administradas pequenas doses de morfina IV por médico experiente, que possa garantir a segurança do uso da droga. 7. Decidir se precisa de tratamento em centro de queimados: pacientes grandes queimados. SUPERFÍCIE CORPORAL QUEIMADA Obs.: as queimaduras de 1º grau não são levadas em consideração no cálculo. Grande queimado (American Burn Association): ● Queimadura ≥ 25% de SCQ em faixa etária de 10-40 anos. ● Queimadura ≥ 20% de SCQ em faixa etária < 10 anos ou > 40 anos. ● Queimadura de 3º grau com > 10% de SCQ ● Queimadura em locais especiais: face, mão/pé, grandes articulações, olhos, ouvidos, períneo/genitália, que resulte em comprometimento funcional. ● Lesões por inalação ou queimadura complicada por trauma grave. ● Queimadura química ou elétrica graves. ● Comorbidade que pode piorar pela queimadura. ATENDIMENTO HOSPITALAR ABCDE do trauma Evidências de envolvimento da via aérea - Queimaduras cervicais ou faciais. - Chamuscamento de cílios e vibrissas nasais. - Inflamação aguda da orofaringe. - Escarro carbonado. - Rouquidão. - Confusão mental e/ou confinamento no local do incêndio. - Explosão com queimadura de cabeça e tronco. - Carboxi-hemoglobina > 10%. Indicações de IOT precoce - Sinais de obstrução: rouquidão, estridor, uso de musculatura acessória ou retração esternal. - SCQ > 40-50%. - Queimaduras faciais profundas e extensas. - Queimadura no interior da boca. - Edema significativo. - Dificuldade de deglutição. - Comprometimento respiratório: fadiga respiratória, oxigenação/ventilação insuficientes. - Rebaixamento do nível de consciência. - Transferência de grande queimado com equipe não treinada para acesso à via aérea. Reanimação volêmica Thaís Morghana - UFPE-CAA ● Recomenda-se o estabelecimento de 2 acessos venosos periféricos. ● É preferível obter o acesso em pele não queimada e com cateteres curtos. Mas, se não houver essa possibilidade, pode-se obtero acesso em pele queimada. ● O fluido de escolha para as primeiras 24h é o Ringer lactato. Fórmula de reanimação: 2 mL x Peso corporal (kg) x %SCQ ½ do volume infundido nas primeiras 8h ½ do volume infundido nas demais 16h Sonda nasogástrica ● A sonda deve ser inserida em todos os pacientes com grandes queimaduras. ● O paciente não deve receber nada por via oral. Profilaxia antitetânica ● Todos os pacientes com > 10% SCQ devem receber 0,5 mL de toxoide tetânico. ● Imunização prévia inexistente ou incerta ou último reforço há mais de 10 anos: deve-se administrar 250 unidades de imunoglobulina antitetânica. Escarotomia ● Está indicada quando há queimaduras de 2º e 3º graus envolvendo a circunferência de uma região, com consequente comprometimento da circulação periférica. ● O paciente pode apresentar insensibilidade e parestesia no membro e hiperestesia nos dígitos. ● A escarotomia é realizada pela incisão lateral e medial do local afetado, com bisturi ou eletrocautério. ● Nos casos de síndrome compartimental, pode-se realizar a fasciotomia. TRATAMENTO ESPECÍFICO LESÃO POR INALAÇÃO ● Cerca de 80% das mortes em incêndios são devido a inalação de produtos tóxicos da combustão. ● O diagnóstico padrão é através da broncoscopia das vias aéreas superiores. ● O tratamento deve começar imediatamente com a administração de oxigênio 100% por máscara facial ou cateter nasal. ● Realizar IOT precoce, se houver indicação. ● Nebulização: pode ser realizada com broncodilatadores (albuterol), heparina, acetilcisteína, salina hipertônica ou epinefrina racêmica. Aplicada 2-6 vezes por dia. ● Antibioticoterapia: só está indicada em casos que haja infecção pulmonar documentada. Não deve ser feito como profilaxia. CUIDADOS COM AS FERIDAS ● O tratamento começa após avaliação da extensão e profundidade, além de limpeza e desbridamento das feridas. Curativo adequado - Proteção do epitélio danificado; - Redução da colonização bacteriana e fúngica; - Imobilização para manter a posição funcional adequada; - Redução da perda de calor e agressão pelo frio; - Conforto à ferida dolorosa. ● Lesões de 1º grau não necessitam de curativo. São tratadas com pomadas tópicas para redução da Thaís Morghana - UFPE-CAA dor e manutenção da umidade da pele. Além disso, podem ser prescritos AINEs para controle da dor. ● Lesões de 2º grau necessitam de trocas diárias de curativo com antibióticos tópicos, compressas ou gazes e ataduras. Ademais, também pode-se utilizar revestimento temporário sintético ou biológico. ● Lesões de 2º grau profundas ou de 3º grau exigem excisão cirúrgica e enxerto (xenoenxertos ou aloenxertos). Pomadas antibióticas → Sulfadiazina de prata a 1%, acetato de mafenida a 11%, bacitracina, neomicina, polimixina B, nistatina, mupirocina. - A sulfadiazina é a mais utilizada pois cobre a maioria das bactérias gram negativas e gram positivas, além de ação antifúngica. Soluções antibióticas → nitrato de prata a 0,5%, acetato de mafenida a 5%, hipoclorito de sódio a 0,025%, ácido acético a 0,25%. ATENUAÇÃO DA RESPOSTA HIPERMETABÓLICA Suporte nutricional ● O objetivo do suporte nutricional é manter e melhorar a função orgânica e evitar desnutrição protéico-calórica. Fórmula de Curreri (adultos) 25 kcal/kg/dia + 40 kcal/% SCQ/dia ● A composição dietética ideal contém 1-2 g/kg/dia de proteína. ● As calorias não proteicas são fornecidas com carboidratos e gorduras. ● A dieta pode ser realizada por via enteral (cateteres enterais) ou via parenteral (cateteres intravenosos). ● A nutrição parenteral total só é recomendada nos pacientes que não tolerem a nutrição enteral. ● Em geral, a nutrição parenteral é realizada por cateter central. ● Nutrição + agentes anabólicos: tem o objetivo de melhorar a cinética proteica e aumentar a massa magra. Suporte ambiental ● Aumento da temperatura ambiente para 33 ºC pode diminuir o gasto energético do corpo necessário para a manutenção da temperatura 2ºC acima do normal após grande queimadura. ● Programa de fisioterapia: exercícios de resistência que previnem contratura das feridas, melhoram a massa corporal e força muscular. Terapêutica farmacológica - agentes anabólicos ● Hormônio de crescimento recombinante humano (rhGH) 0,2 mg/kg/dia. ● Fator de crescimento insulina-símile. ● Oxandrolona. ● Propranolol: terapia anti-catabólica mais eficaz. - Redução da FC, da infiltração gordurosa do fígado e da perda de massa muscular. - Aumento da massa corporal magra. - Redução da necessidade de administração de insulina. ● Insulina: redução da glicemia, aumento da replicação de DNA e síntese proteica, aumento na síntese de ácidos graxos e diminuição da proteinólise. Além disso, exerce efeitos anti-inflamatórios. - Recomenda-se a manutenção dos níveis de glicose abaixo de 150 mg/dL (Surviving sepsis campaign). ● Metformina: redução da glicemia e ação anabólica para proteínas musculares. - Deve-se ter cuidado com a possível acidose láctica. QUEIMADURAS ELÉTRICAS ● Reanimação cardiopulmonar, caso o paciente apresente fibrilação ventricular. ● Escarotomia e fasciotomia, se necessário. ● Exploração dos leitos musculares e desbridamento dos tecidos desvitalizados. ● Alguns casos necessitam de amputação precoce. ● Fechamento dos ferimentos: enxertos e retalhos. ● Hidratação vigorosa e infusão de bicarbonato de sódio IV e manitol, para solubilizar mioglobina e manter o débito urinário (2 mL/kg/h). QUEIMADURAS QUÍMICAS ● Lavagem com quantidade abundante de água limpa por pelo menos 20-30 min e remoção de todas as roupas. ● Monitorar distúrbios metabólicos e do pH. Thaís Morghana - UFPE-CAA ● Avaliar sinais de perfusão e individualizar a reanimação volêmica. ● Desbridamento cirúrgico. ● Cobertura das feridas com antimicrobianos ou substitutos cutâneos. ENCAMINHAMENTO UTQ Espessura parcial > 10 % SCQ. Queimadura em face, mãos, pés, genitália, períneo ou articulações principais. Qualquer queimadura de espessura total. Queimadura elétrica ou química. Lesões por inalação. Pacientes com comorbidades prévias que possam complicar o tratamento. Trauma concomitante. Crianças atendidas em serviço sem equipamentos ou equipe especializada. Pacientes com necessidade de intervenção social, emocional ou reabilitação a longo prazo. REFERÊNCIAS AMERICAN COLLEGE OF SURGEONS. Advanced Trauma Life Support (ATLS). 10 ed. The Committee on Trauma, 2018. TOWNSEND, Courtney M. et al. Sabiston Tratado de Cirurgia: a base biológica da prática cirúrgica moderna. 20. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2019.
Compartilhar