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Edições Achiamé Ltda. Rua da Lapa, 180 sobreloja Tel.: 222-0222 20021 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Editor Robson Achiamé Fernandes Gerente Comercial Jaques Jonis Netto George de Cerqueira Leite Zarur OS PESCADORES DO GOLFO Antropologia Econômica de uma Comunidade Norte-Americana achiamé Rio de Janeiro OS PESCADORES DO GOLFO Copyright © 1984 by George de Cerqueira Leite Zarur Direitos reservados desta edição a Edições Achiamé Ltda É vedada a reprodução total ou parcial desta obra sem prévia autorização da editora Composição Linotipia Cordeiro À memória de JORGE ZARUR, meu pai, um dos fundadores da moderna Ciência da Geografia no Brasil SUMÁRIO Prefácio - Charles Wagley 11 CAPÍTULO I - DESCOLONIZANDO A ANTROPOLOGIA 15 Antropologia e Poder 15 Relações de Poder e Metodologia Antropológica 18 Invertendo uma Lógica de Dependência 22 Representatividade e Hipóteses 30 CAPÍTULO II - O CONDADO E A VILA 37 Um Condado Norte-Americano 37 A Vila 40 Capítulo III - História 47 Uma Vila do Sul dos Estados Unidos 47 História da Indústria Pesqueira 52 CAPÍTULO IV - A DISTRIBUIÇÃO NA ECONOMIA E AS RELAÇÕES BÁSICAS DE UM SISTEMA DE CLASSES SOCIAIS 57 O Mercado de Produtos do Mar 57 O Sistema de Fishhouse e as Relações Essenciais de um Sistema de Classes 61 CAPÍTULO V - ECONOMIA: PRODUÇÃO 65 Tecnologia e Equipamento 65 A Captura de Peixes 67 A Captura de Caranguejos 69 A Coleta de Ostras 71 CAPÍTULO VI - VALORES E PROBLEMAS DE ORGANIZAÇÃO 73 "Smart" e "Proud" 73 Associações Voluntárias 78 Sindicatos e Cooperativas 85 CAPÍTULO VII - PARENTESCO 89 A Família Nuclear 89 Grupos Maiores de Parentesco 93 CAPÍTULO VIII - NATIVOS E "OUTSIDERS" 101 O Grupo dos Nativos 101 Nativos e. "Outsiders" 104 CAPÍTULO IX - CLASSES SOCIAIS E RENDA 113 A "Classe Alta" 113 Pescadores e Empregados 116 As Visões do Sistema de Classes 118 Classe, Parentesco e Estilo de Vida 122 CAPITULO X - CONCLUSÕES 125 Racionalidade, Irracionalidade, Ideologia e Realidade 125 Uma Perspectiva Comparativa: Racionalidade e o Quadro para Mudança Sócio-Econômica 128 Bibliografia 135 NOTA INTRODUTÓRIA Este é um livro de Antropologia escrito para um público maior do que o dos especialistas no campo. Já foi uma tese, no passado, mas espero que com o sacrifício no que foi possível, do jargão antropológico e de longas tabelas, tenha se transformado em uma leitura mais amena. Este é um trabalho escrito em 1974, na sua forma original de tese. Não está porém fora dos tempos de hoje. A realidade que ele retrata continua presente na cidadezinha de MuIlet Springs, conforme pude perceber em uma visita realizada anos depois (1979), e de informações que recebo pelo correio, de amigos que lá vivem. Mais do que nunca atuais, são as razões que me levaram a escrever este livro, conforme o leitor poderá perceber na sua introdução: O estudo da sociedade politicamente dominante inverte a lógica cortente da Antropologia. Resta prestar um esclarecimento aos meus colegas antropólogos, pois este livro também é para eles. Procurei fazer uma boa etnografia, partindo portanto do quadro teórico mais adequado à realidade com que trabalhei. Este é um estudo de Antropologia Econômica, em primeiro lugar. O problema central é o da relação entre produtividade na organização da produção (racionalidade ao nível individual) e acesso a mercados externos. Esta relação no entanto, ocorre e é explicada por um meio sócio-cultural abrangente. Estivesse eu trabalhando com o Brasil, enfatizaria como instrumento, para alcançar a realidade, o conceito de campesinato, como aliás já o fiz em outras ocasiões. No caso da realidade norte-americana, não há nada com ela tão coerente como o conceito de "comunidade", para se apreender o caso de grupos humanos corporativos, especialmente delimitados, e com um grande grau de autonomia relativa. O conceito permite, dado o holismo nele implícito, uma comparação com outras populações que por ele têm sido estudadas, como aquelas retratadas em clássicas monografias sobre populações tribais da África, Ásia e Américas. Não há porque não se entender norte-americanos através dos conceitos usados para aquelas populações, e, através do método monográfico, que explica e descreve, da tecnologia às "relações sociais", aos "valores" e à "religião". Espero que fique claro, a partir dessas reflexões, que não houve, neste trabalho, uma preocupação maior com modismos, mas tão somente a escolha da teoria mais adequada à realidade estudada. e à própria intenção com que foi ele escrito. Brasília, 03 de agosto de 1983. George de Cerqueira Leite Zarur PREFACIO Há muitos anos atrás, Clyde Kluckholn, um antropólogo dotado de enorme capacidade de percepção, infundiu um pensamento desagradável na minha mente, uma idéia que me tem preocupado até os dias de hoje. Numa longa noite de conversa, Kluckholn formulou a retórica pergunta: "Será que a Antropologia Social nada mais é do que a visão ocidental das culturas não- ocidentais e assim chamadas primitivas"? Neste tempo (por volta de 1940) era verdade que a Antropologia Sócio-cultural florescia predominantemente na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos. Grandes antropólogos sócio- culturais viveram e trabalharam em outros países, mas quase sem exceção, seu treinamento ou estímulo provinha de fontes norte-americanas, inglesas ou francesas (a antropologia alemã já tinha então sido distorcida pelos nazistas). Além disto, os antropólogos estavam ainda essencialmente envolvidos com culturas de tribos primitivas na África, Oceania, Américas do Norte e do Sul e Ásia. Estudos de sociedades camponesas e de comunidades componentes de sociedades complexas contemporâneas apenas tinham se iniciado. Pode-se imaginar como faz George Zarur neste livro, como nossa cultura e sociedade apareceria para um "índio antropólogo" que decidisse estudá-Ia. Porém, para que fosse antropólogo, um índio xinguano teria que ser treinado em antropologia, que é parte ,da tradição ocidental, envolvendo teorias e métodos dessa origem. Estaria a sua visão contaminada pelo treino e teoria provenientes da tradição intelectual do ocidente? Após a 2ª Guerra Mundial, os antropólogos voltaram-se para estudos de pequenas comunidades participantes de sociedades nacionais e também a se interessar por cidades (como os estudos de Lloyd Warner e associados em Yankee City, partes de cidades como as favelas do Rio de Janeiro ou os bairros de Lima, instituições como hospitais, associações como uma escola de samba do Rio de Janeiro (conforme, Maria Julia Goldwasser - O Palácio do Samba, Rio de Janeiro, 1975) e outros aspectos de sociedades complexas. Mas exceto pelos antropólogos ingleses e norte-americanos, que viajaram pela América Latina, África e Ásia, tais estudos foram realizados dentro dos confins da sociedade e cultura dos pesquisadores. Assim, Robert Lynn e Helen Lynd estudaram Yankee City e James West (Carl Withers) estudou Plainville, USA. Nasce uma nova pergunta. Estariam estes estudos da própria cultura do antropólogo, distorcidos pelas dificuldades de se observar e interpretar o que parece sertão comum e natural como o ar que se respira? Seria capaz um antropólogo de outra origem de ver uma comunidade norte-americana de um ponto de vista diferente? Observadores de fora têm freqüentemente trazido novas visões e compreensões de sociedades que não a deles. Alexís de Tocqueville em seu livro Democracia na América, publicado pela primeira vez em 1835 ainda é uma das fontes mais citadas para o sistema social norte-americano; e em 1940 quando a Carnegie Corporation decidiu deslanchar uma pesquisa gigante sobre relações raciais nos Estados Unidos, procurou Gunnar MyrdaI, um sueco, para dirigir o estudo. Assim outsiders sensíveis, pessoas de uma outra cultura, parecem capazes de levantar idéias novas e distintas quandoestudam uma cultura diversa da sua. É compreensível, por estas razões, que historiadores brasileiros tenham tão freqüentemente citado viajantes e residentes estrangeiros do século XIX, como Daniel P. Kidden, lohn Luccock, John Mawe, Thomas Ewbank, Henry Bates, Maria Graham e outros. Os Estados Unidos têm tido sua porção de visitantes estrangeiros como a senhora Fannie Trollope e o grande Charles Dickens e nem todos nos acharam simpáticos. Mas poucos antropólogos sociais treinados nos acharam merecedores de um estudo. Talvez porque já tenham passado mais de 200 anos desde que os Estados Unidos deixaram de ser uma dependência colonial exótica. Como coloca George Zarur, na primeira página deste livro, "a Antropologia implica normalmente uma relação colonial entre sociedade da qual o antropólogo é membro e a sociedade estudada. . . " . É possível que isto seja historicamente verdadeiro. Talvez os antropólogos norte-americanos tenham sido motivados a estudar a América Latina devido a relações similares às coloniais entre os Estados Unidos e os países ao nosso Sul. Mas se este é o caso, parece ser apenas um lado do problema, pois seria de igualou mais importância que uma sociedade dependente entendesse a sociedade dominante. Sempre me pareceu estranho que nos Estados Unidos mantenhamos institutos e centros de estudos latino- americanos enquanto não há institutos ou centros similares de estudos norte- americanos na América Latina. Se nós temos nossos brazilianistas treinados para analisar e interpretar a sociedade brasileira, por que o Brasil não tem os seus (norte) americanistas para fazerem o mesmo nos Estados Unidos? Seria de grande importância para o Brasil compreender o outro colosso mais ao norte. Para repetir um bem conhecido ditado mexicano: "Quando os Estados Unidos espirram, a América - Latina fica gripada". Assim por muitos anos e várias razões eu esperei que meus colegas brasileiros em antropologia social voltassem seu interesse para o estudo das sociedades e cultura norte-americanas. Hoje a antropologia brasileira é uma disciplina séria e bem desenvolvida, com a necessidade de seguir uma orientação de pesquisa comparativa. Tais estudos dos Estados Unidos, por brasileiros podem fazer importantes contribuições substantivas à disciplina da antropologia social. Suas observações podem ajudar a nós, norte-americanos, a nos compreender de uma perspectiva comparativa. Eles' podem funcionar para um entendimento mútuo, melhor que as traduções portuguesas de fontes norte-americanas, na medida em que explicam os Estados Unidos aos brasileiros, como eles são segundo as "lentes" brasileiras. A antropologia tem neste particular uma contribuição muito importante. Como explica George Zarur, os antrópologos sociais não se limitam a áridas estatísticas, visitas casuais a New York ou San Francisco, ou entrevistas com algumas poucas figuras poderosas, mas, pelo contrário, tentam penetrar na densidade dos problemas humanos, aspirações, comportamento e ideologia de um segmento limitado da sociedade. Exatamente como fez George Zarur na cidadezinha que ele chama de Mullet Springs, o antropólogo vive, torna-se um membro e participa da vida da pequena comunidade que ele estuda. Neste livro George Zarur faz uma importante contribuição ao entendimento das sociedade e cultura norte-americanas tanto para o público brasileiro como para o norte-americano. Ele freqüentemente descobre atitudes explícitas e normas de comportamento dos quais nós (norte-americanos) temos apenas uma vaga consciência. Os conceitos ideológicos que ele expressa pelas palavras smart e proud seriam provavelmente não captados pelo observador local. E sua interpretação do papel da esposa em Mullet Springs como menos conservadora e em "contato com a corrente principal de valores da sociedade americana" é um outro exemplo de observações valiosas encontradas nesta obra. O Dr. Zarur está preocupado com a racionalidade ou irracionalidade do comportamento econômico. Seus amigos pescadores de MuIlet Springs não são nem mais nem menos racionais que as pessoas de outras cidadezinhas do Brasil, México ou qualquer lugar do mundo. Afinal MuIlet Springs é um pedacinho de uma nação (os Estados Unidos) que gasta milhões de dólares todo ano para subvencionar plantações de fumo e gasta milhões de dólares no mesmo ano, em campanhas para ensinar seu povo sobre os perigos do cigarro. Racionalidade está ao que parece na mente das pessoas; o que parece irracional para o antropólogo ou o economista pode ser racional no pensamento do povo de uma dada cultura e sociedade. Finalmente, George Zarur descreve neste livro um segmento da sociedade americana pouco discutido, a gente das pequenas cidades e vilas. Não são eles as pessoas sofisticadas das metrópoles ou os membros da enorme classe média da sociedade de consumo. Há centenas de milhares de MuIlet Springs nos Estados Unidos da América e cada qual tem suas peculiaridade e diferenças. De baixo da crosta de uma cultura de massa homogeneizada que é mostrada na televisão, no cinema e nos jornais e revistas de grande circulação, diferenças locais e regionais da herança cultural norte-americana são preservadas. E de uma MulIet Springs de certa forma mais rica, a menos de 300 quilômetros ao norte no Estado da Georgia, que o presidente Jimmy Carter vem. Mas nem MuIlet Springs ou Plains (Georgia), onde o presidente Carter nasceu são como as muitas vilas da Nova Inglaterra, ou como as cidadezinhas das grandes planícies do meio oeste, ou ainda como os povoados típicos da Califórnia. Há muitas Américas nestas vilas e distritos rurais, da mesma maneira como há muitos Brasis nas pequenas cidades que se espalham do Rio Grande do Sul ao Amazonas. Nestas duas nações gigantes do Novo Mundo, Brasil e Estados Unidos da América, o regionalismo ainda é um fator importante que deve ser considerado e compreendido. Seja bem vindo o leitor a este estudo humano e penetrante da vida em uma pequena cidade no assim chamado novo Sul dos Estados Unidos. Charles Wagley Capítulo I DESCOLONIZANDO A ANTROPOLOGIA Antropologia e Poder Quando fui para a Universidade da Flórida em setembro de 1972, meu objetivo era não apenas o meu doutoramento, mas também dar início a um projeto novo nas Ciências Sociais Brasileiras: o de estudar algum aspecto da sociedade e cultura norte-americanas. A Antropologia implica normalmente uma relação colonial entre a sociedade da qual o antropólogo é membro e a sociedade estudada; ou pode, também, implicar uma relação de poder, entre o segmento de sociedade ao qual o antropólogo pertence e o segmento de sociedade estudado; ou seja, o antropólogo geralmente vem da sociedade colonizadora ou da classe alta. Essas relações estão profundamente enraizadas na História da Antropologia. A imagem do antropólogo inglês usando um chapéu "colonial" e seguido por um safari de nativos de pele escura, carregando sua bagagem, não é uma criação de diretores de filmes de aventura. Nada mais significativo do que as idéias de Malinowski sobre o International African Institute (1929:23): "O Instituto busca, primeiro, a aplicação do conhecimento científico. Pode, de um lado, atuar em prol de diversos interesses coloniais em suas atividades práticas, enquanto do outro tem à sua disposição o conhecimento de especialistas treinados em teoria". Sem dúvida o uso de especialistas "treinados em teoria", isto é, antropólogos, foi um instrumento de importância na manutenção do império colonial inglês. A utilização do sistema de regra indireta ("indirect rule"), pelo qual o sistema político e jurídico nativo é mantido até certo ponto, é uma destas contribuições da Antropologia, que fizeram os ingleses conhecidos pelo seu "jeito"no trato dos povos coloniais. Com a destruição dos sistemas coloniais europeus e o surgimento de novas formas de dependência, o conhecimento de outros povos continuou a funcionar nos países desenvolvidos, trazendo inputs para decisões de políticos, diplomatas, homens de negócio ou quaisquer pessoas com algum interesse profissional nesses povos. A Antropologia alargou seu interesse, e atualmente não são muitos os jovens antropólogos em todo mundo que ainda se interessam por estudar os chamados "povos primitivos". O estudo da sociedade primitiva tende, cada vez mais, a ser campo de um número pequeno de especialistas interessados em problemas teóricos. Naturalmente, o crescente interesse por sociedades complexas está relacionado com sua relevância prática. Isto se expressa no cotidiano da vida acadêmica dos países desenvolvidos, por uma distribuição de verbas para pesquisa em áreas prioritárias, nas quais as sociedades complexas tendem a estar incluídas. A Antropologia não é porém, definitivamente, conservadora. O antropólogo, pelos métodos de trabalho que usa, tende a ficar ética e humanamente envolvido com as populações que estuda. Tal envolvimento em geral se reflete no que ele escreve e sugere. A Antropologia enfatiza contatos face a face, entre antropólogos e nativos em longos períodos de residência no campo. Neste período os antropólogos são transformados no que se tem chamado de "nativos marginais". A participação, mesmo periférica, do antropólogo na sociedade nativa que o acolheu pode fazer, então, do pesquisador envolvido em uma situação colonial, uma contradição viva com a antropologia que ele faz. A informação produzida pelo antropólogo possui muitas vezes, por esta razão, uma carga de simpatia pelas populações estudadas. Além disso, de certa forma ela ajuda essas populações: o simples explicar de um comportamento estranho de participantes de outras culturas, "humaniza" esse comportamento. Cada cultura tem sua própria definição de humanidade e, naturalmente, o máximo de humanidade para ela são os seus próprios padrões. E tais padrões situam as diversas regras de comportamento em um continuum que as aproxima, com maior ou menor razão, do comportamento genuinamente humano - que cada cultura imagina ser o seu. Explicados tais comportamentos diversos, eles se tornam uma resposta inteligente a situações diferentes. O antropólogo transforma, portanto, membros de outras culturas em "seres humanos" aos olhos dos membros de sua própria cultura. O nativo deixa de ser um objeto de condenação moral e seu comportamento converte-se em respostas específicas às condições históricas, sociais e naturais. Desta forma, quando usada como input para decisões, a Antropologia tende a substituir o conflito pelo compromisso, o preconceito pela tolerância. É claro que daí podem advir vantagens muito reais para os nativos, principalmente quando são eles membros de sociedades tribais, em geral política, econômica e militarmente mais fracos. Embora o antropólogo controle a informação que produz, não domina, porém, a maneira pela qual ela será usada. E a Antropologia, apesar destas atenuantes, não deixa de ser uma peça dos termos de poder entre diferentes nações, grupos étnicos e classes sociais. Tenho portanto motivos razoáveis para estudar a sociedade americana. Nós, latino-americanos, somos "nativos" típicos, objetos históricos de colonização e de estudo. A análise de um grupo da sociedade americana por um antropólogo latino-americano é uma inversão lógica das relações de dependência, é fazer do sujeito objeto e do objeto sujeito. Retrata, portanto, os anseios de igualdade dos chamados "povos do terceiro mundo". Para mim, como brasileiro, o estudo dos Estados Unidos foi uma oportunidade de exprimir esses anseios. Dentro da Antropologia essa inversão pode ter muita importância, na medida em que outros antropólogos, brasileiros ou de outros países do terceiro mundo, procurem estudar as sociedades desenvolvidas. Além disto, a Antropologia tem um papel conhecido e importante na formação da identidade dos diversos grupos humanos (cf. Roberto Cardoso de Oliveira, 1960). O estudo do Brasil por estrangeiros nos torna vistos através de seus olhos. O estudo da sociedade e cultura dominantes contrabalança esta relação. Para a Antropologia brasileira o estudo de um outro país vem a ser, sem dúvida, um enorme alargamento de perspectivas. Já possuímos um pequeno, porém, excelente, grupo de antropólogos, cuja preocupação tem sido, no entanto, o estudo de populações indígenas brasileiras, de populações camponesas ou urbanas dentro do território nacional. Temos evidentemente muitos problemas a resolver dentro do Brasil e a Antropologia poderá dar uma grande contribuição neste sentido. É, porém, uma ciência comparativa por definição, e desta perspectiva transcultural parte toda sua eficiência explanatória. É então essencial que haja uma diversificação nos tipos de sociedades estudadas, para que a Antropologia brasileira atinja sua maturidade. O estudo das sociedades desenvolvidas não nos afastará, porém, dos problemas internos que o Brasil apresenta e que aí estão para serem solucionados. O estudo da sociedade, e cultura norte-americanas apresenta uma importância enorme para a compreensão dos problemas internos do Brasil. Basta para isso que o leitor considere o peso político, econômico e cultural dos Estados Unidos sobre o Brasil. Um exemplo bem concreto desta relevância prática está no estudo de mercado para produtos do mar, que faço neste trabalho. O estudo de outras sociedades em geral traria conhecimentos de uma significação óbvia para "o político, o diplomata e o homem de negócios brasileiros". Relações de Poder e Metodologia Antropológica Não somente é a Antropologia um elemento de relações de poder, como tais relações condicionam toda a sua metodologia. Não, há Ciência Social que dê tamanha importância ao trabalho de campo. Pelo método que se convencionou chamar de "observação participante." o antropólogo vive o mais que pode as situações engendradas pela cultura nativa. Precisa, portanto, participar da intimidade de pelo menos algumas pessoas do grupo que estuda, a fim de obter informações relevantes. Para a Antropologia as técnicas impessoais de pesquisas com uso de questionários e com rápidos contatos com grande número de informantes são apenas complementares. O trabalho de campo é para o antropólogo uma experiência extremamente pessoal, envolvendo contato direto, intimo e prolongado com um número relativamente pequeno de pessoas. O antropólogo porém, é um estranho e, como tal, perigoso. Na maioria das situações de campo é ele apenas tolerado por um certo período e, depois de aceito, vive uma perpétua ambigüidade - ele jamais é inteiramente aceito. O antropólogo no campo é pelo menos um aborrecimento para os nativos que estuda. Ele desconhece as mais elementares regras de etiqueta, higiene e moral, definidas em cada cultura. Está sempre fazendo perguntas óbvias, que no início divertem os seus informantes, mas que pouco tempo depois se tornam extremamente irritantes. A situação poderia ser melhor entendida se um antropólogo viesse trabalhar conosco e passasse o dia inteiro inquirindo: "Por que usam vocês telhas de barro?" ou "Por que as cadeiras da sala de jantar estão colocadas desta forma e não de outra?" E compreensível que tais interrogações, repetidas diariamente dezenas de vezes, não constituam diversão agradável para os nativos. Pior porém é que a simples indagação do antropólogo em certas áreas da estrutura social nativa representa uma ameaça à sua sociedade. De fato, investigações nunca antes realizadas podem ameaçar seriamente o equilíbriotradicional das pequenas comunidades que o antropólogo normalmente estuda, transformando o sagrado em profano e o que transcende o interesse humano em mero tema de reflexão. Por fim, para atingir um certo grau de eficiência explanatória, o antropólogo precisa participar da intimidade das pessoas e conviver com elas, por mais desagradável que às mesmas seja essa aproximação. Tais fatos tornam o trabalho de campo uma experiência que pode vir a ser bastante traumática para o antropólogo e nativos. Em diversas sociedades primitivas, os antropólogos têm sido suspeitos de feitiçaria, correndo assim risco de morrer. Ser feiticeiro nessas sociedades pode equivaler a ser diferente. E não resta dúvida de que o estranho com costumes diversos, corre, igualmente, risco de ser executado em nossa sociedade. Basta para tal imaginar um índio antropólogo estudando nossa sociedade, andando nu pelas ruas, pensando que a propriedade de seus amigos nativos é sua também; que as namoradas de seus amigos são igualmente suas. Um indivíduo que, para sobreviver no meio social em que está, precisa do apoio de outras pessoas nas tarefas mais elementares. A interferência do antropólogo na sociedade que estuda não se limita às suas perguntas e à sua diferente maneira de ser. Muitas vezes ele interfere concreta e diretamente na vida dos nativos. Eu mesmo fiz isso em meio a um delírio de malária e tentando salvar a vida de uma criança. Passei quatro meses no Parque Indígena do Xingu, em final de 1971 e início de 1972. Minha esposa, como estudante de Antropologia, foi ao campo como assistente. Em nossa primeira semana uma mulher da aldeia morreu de parto. Quando as pajés chegaram à conclusão de que nada poderiam fazer, eu e minha esposa fomos chamados, como último recurso. Encontramos a mulher deitada em um lago de sangue, sendo "cutucada" com varas de bambu pelas "comadres" locais que tentavam tirar a placenta. A criança já nascera e chorava perto do fogo. Fizemos o que foi possível com um manual de primeiros socorros e toalhas molhadas. Percebi, contudo, que não havia mais esperança. A mulher não me tinha parecido ainda morta quando um pajé a considerou como tal. Um ritual de morte no Xingu, naquele sol e naquela febre, foi o acontecimento mais dramático por mim visto: o desespero e o choro ritualizado dos parentes, que durou três dias, da manhã ao pôr-do-sol; o fogo ateado na casa, e a destruição do seus objetos. No momento da morte interroguei um índio: - . E a criança? Quem a vai adotar? - Ninguém. Vai morrer. - Como? - Enterrada com a mãe. - Viva? .- É. Agarrei a criança e corri para minha rede. Passei dois dias montando guarda enquanto esperava uma canoa para me levar ao Posto Indígena. O pai dera colares e outros bens valiosos a alguns índios para que enterrassem a criança. Quando me afastava por um momento, voltava para encontrar alguém rondando minha rede. Uma vez fui buscar a criança do lado de fora da casa, e tirá-Ia dos braços de um homem. Afinal, partimos para o Posto em uma viagem de canoa, de doze horas, procurando proteger a criança da chuva, do sol, e dos ramos da beira dos canais, que unem a aldeia Aweti ao Posto Leonardo Villas-Boas. Marina Villas-Boas conseguiu salvar a criança que lhe entregamos, desidratada e castigada por chuva e sol. Naturalmente tornei-me suspeito de feitiçaria. No Xingu não se acredita em morte natural; morrer é sempre conseqüência da ação de um feiticeiro. Ora, o feiticeiro é sempre o estranho, e a mulher morrera logo após minha chegada. Mais tarde, uma das facções da aldeia transferiu a acusação para outro estranho - um índio Kamaiurá já acusado de outras mortes por feitiçaria. De fato, acusar um caraíba (termo pelo qual os xinguanos tratam os "civilizados") iria contra toda a estrutura de poder manifesta nas relações índio- branco. Mais tarde, já quando escrevia meu trabalho sobre os Aweti, ao interpretar meus dados de campo, entendi o comportamento dos índios. É tudo extremamente racional, embora sob uma forma de racionalidade diversa da nossa. Em primeiro lugar, há no fato um aspecto quase "humanista", em certo sentido. Os órfãos quando muito pequenos requerem enormes cuidados maternos, que outras mulheres multas vezes não podem dar. Seu leite é considerado um "bem limitado", que as mães ciosamente guardam para seus filhos. Evidentemente não há na aldeia outro leite. A morte com a mãe, substituindo a morte paulatina por inanição e falta de cuidados, seria uma forma de eutanásia. Além disto, um órfão que acaso sobreviva será sempre diferente, devido à sua própria experiência de vida, tão diversa da geral. Será sempre um candidato a feiticeiro. O sacrifício da criança com sua mãe morta, expressa e é um símbolo das idéias que os xinguanos têm da relação mãe- filho, considerados sempre uma unidade. Os índios preferem uma criança morta com sua mãe, do que viva sem ela. Minha ação porém ocorreu em uma área da vida social onde não poderia haver compromisso de valores. Ela só foi possível devido ao poder do meu status de branco. Para que o antropólogo seja tolerado nos seus primeiros estágios de campo, e afinal aceito, cumpre que as populações estudadas tenham boas razões para tal. Essas razões surgem do poder da sociedade ou da classe social do antropólogo. Em primeiro lugar, em uma sociedade com classes sociais marcadas e explícitas como o Brasil, é um dado que as classes "baixas" trabalham para as classes mais "altas". O antropólogo, devido à sua educação formal, é normalmente classificado como alto na hierarquia de classes. Representa, por conseguinte, um contato interessante, um "padrinho" potencial, um protetor, que algum dia poderá ajudar seus informantes, ou parentes de seus informantes, a conseguir, por exemplo, um emprego, ou uma vaga em um hospital. Algumas vezes esses contatos podem influenciar o bem- estar físico de comunidades inteiras. Isto ocorre especialmente com os índios, para quem o convívio com antropólogos tem sido da maior importância na defesa de suas terras contra fazendeiros, ou mesmo em sua defesa contra ameaças de violência física. Por fim, em algumas regiões da África ou do Nordeste brasileiro um camponês pode ganhar cerca de 30 dólares por mês. Em tais circunstâncias o antropólogo pode tornar-se uma fonte de renda para algumas pessoas dessas comunidades, remunerando os serviços a ele prestados. Invertendo uma Lógica de Dependência A inversão de uma lógica de dependência não é a inversão de uma relação concreta de poder. O meu estudo de uma comunidade norte-americana apresentou características e dificuldades especiais, pois o nativo estava se tornando antropólogo. O estudo só foi possível graças ao apoio de meu professor orientador, Charles Wagley, a quem pertence a idéia de se ter um antropólogo brasileiro estudando os Estados Unidos. Outros professores e colegas meus da Universidade da Flórida se entusiasmaram com o projeto e me deram toda ajuda, sem a qual o presente trabalho seria provavelmente impossível. Evidentemente um projeto que procure começar a dar a uma relação assimétrica o cunho de uma relação balanceada pode ser do interesse de ambas as sociedades envolvidas. Além disto, uma hipótese básica justificando minha pesquisa é a de que eu seria capaz, devido ao meu background cultural diferente, de ver uma realidade diversa da dos americanos fazendo pesquisa em seu próprio país. Elementos para mim relevantes, para eles seriam "dados". Uma perspectiva diferente poderia trazer certos elementos significativos na compreensão de sua realidade. Meu trabalho nos Estados Unidos foi porém extremamente difícil e requereu muita persistência. Minha experiência de pesquisa em sociedade americana começou no verão de 1973, quando participei, comos professores Charles Wagley e Solon T. Kimball, do projeto de pesquisa "Escola e Comunidade". A razão de ser do projeto era o problema do busing, isto é, da designação forçada da escola pública na qual as crianças deveriam estudar. O busing (o nome vem de bus, ônibus) foi uma medida tomada pela Suprema Corte dos Estados Unidos para forçar a integração racial nas escolas. Uma das primeiras medidas, após ser promulgada a legislação dos direitos civis na década de 60, foi proibir a segregação racial em qualquer prédio. Na prática, porém, as escolas continuaram segregadas. Como os estudantes pretos viviam em seus bairros e os estudantes brancos, em outros, cada qual ia à escola de seu próprio bairro. O busing busca um equilíbrio racial e estudantes são transferidos de um extremo a outro da cidade. O objetivo do projeto era obter uma informação geral sobre relações raciais em University City, na Flórida, partindo das relações entre as escolas e as comunidades pretas e brancas, respectivamente. Fui designado para trabalhar entre os negros. Como estrangeiro eu seria melhor aceito, era a idéia geral. Trabalhei durante três meses entrevistando pais irritados com o busing, e procurando colher uma idéia geral da cultura negra. A situação racial nos Estados Unidos, como é notório, é muito tensa. O Norte da Flórida, onde vivi, se identifica inteiramente com o Sul dos Estados Unidos, e isso imprime características particulares ao sistema de relações raciais. A Ku Klux Klan está ativa na região, e quase mensalmente há nos jornais locais, um protesto da NAACP (National Association for the Advancement of Colored People - "Associação Nacional Para o Avanço da Gente de Cor") contra a morte de negros em estradas, sem testemunhas, em circunstâncias muito suspeitas. Normalmente quem mata é a polícia,conhecida por ser um centro de rednecks, caipiras muito apegados aos valores raciais tradicionais dos Estados Unidos. Até cerca de dez anos atrás, antes da legislação dos direitos civis, um negro que, por exemplo, fizesse alguma proposta "indecorosa" a uma mulher -branca seria sem dúvida morto. Atualmente a situação dos pretos é ainda de muita pobreza, comparada à dos brancos; mas a segurança jurídica é, sem dúvida, maior. Um negro, pelo menos quando há testemunhas, não precisa recear ser morto por esporte.. Com o Black power e a reação negra, é hoje muito difícil um contato mais próximo entre pessoas de raça diferente. Isto é ainda mais verdadeiro a propósito de antropólogos brancos fazendo pesquisa entre negros, pois, como já vimos, o trabalho de campo em Antropologia requer condições muito especiais. Por isso meus três meses de pesquisa de campo foram realizados na companhia de um pesquisador negro. Trabalhamos intensivamente com uma família, e já estávamos começando a espalhar nossos contatos e ficar conhecidos na vizinhança. Então a participação de meu colega foi considerada desnecessária. Pareceu que já me podia considerar suficientemente seguro. Tinha ainda grande dificuldades em compreender o dialeto negro. A segregação levou os negros norte-americanos a apresentarem certas características próprias, uma das quais é o dialeto. Diferentemente do que ocorre no Brasil, onde tradições culturais negras são seguidas também por brancos, nos Estados Unidos essas tradições oriundas da escravidão e da segregação (poucas vindas da África, como entre nós), são apenas dos negros. Uma delas é o dialeto. Muitas vezes fui informado por brancos de que o dialeto negro, quando falado rapidamente, era ininteligível para eles. No primeiro dia em que fui sozinho para a casa daquela família minha conhecida, havia um indivíduo estranho sentado na sala. Seu nome era Frank, e estava tomando vinho com o velho Chatman, dono da casa. O vinho acabou e Chatman pediu que eu fosse com Frank comprar mais. No mercado um redneck empurrou Frank e disse, get out of my way boy ("Saia do meu caminho, moleque"). Frank reagiu batendo no homem. Em breve o mercado estava dividido com pretos de um lado, brancos do outro e um antropólogo brasileiro no meio, sem saber muito bem como agir. Felizmente a briga foi separada por pretos e brancos antes de se agravar. Ao ir-se embora, contudo, o branco iniciador da briga, disse a Frank que o mataria. Levei-o de volta para o bairro dos negros e ao retomar, minha esposa me mostrou todo o perigo da situação. Um antropólogo no campo, fica freqüentemente fascinado por seu próprio trabalho. A sensação assemelha-se muito à do desportista que esquece o perigo para conseguir um resultado. Cair na realidade da situação racial americana e no que isso envolvia em termos de perigo foi tarefa de minha esposa e também de meu professor orientador. Após aquele episódio achou que me cumpria suspender o trabalho no bairro negro e concentrar meus esforços em uma Igreja de negros um pouco distante da cidade. Lá tive oportunidade de ouvir spirituals cantados por negras velhas e gordas, e às vezes discussões estranhas. O tema dos muçulmanos pretos (Black muslims) de, que o homem branco é um diabo, estava sendo discutido na Igreja Batista, com referência a mim, evidentemente. A teologia cristã com o seu sentido de universalidade venceu, no entanto, e fui aceito na Congregação. Alguns dias após haver limitado meu trabalho exclusivamente à Igreja, mesmo a ele tive de renunciar. Fui informado de que o amigo de Mr. Chatman, Frank, havia morrido. A convicção dos pretos era de que ele havia sido morto. Pude então (como eles) lembrar-me e muito bem, da ameaça do redneck no supermercado. Senti toda a ambigüidade de minha situação. Para os pretos eu não passava de um branco e isso era o mais importante. Então meus amigos negros me informaram de que deveria abandonar a pesquisa. Eu estava procurando trabalhar sem nenhuma forma institucional de proteção contra brancos ou contra negros, que me classificavam como branco. Um americano branco, porém, não teria conseguido sequer iniciar um trabalho entre negros. Fui aceito três meses por ser um branco estrangeiro, e, portanto, sem responsabilidade direta na opressão histórica praticada contra negros norte-americanos.. Não desisti, porém, de estudar a sociedade norte-americana. Era uma oportunidade que tinha não apenas de fazer antropologia, como principalmente, de fazer algo novo e relevante. Procurei então o outro lado da moeda étnica, os rednecks, também chamados de crackers, a população tradicional da Flórida. A sugestão de trabalhar na pequena vila do Golfo do México, à qual dei o nome fictício de Mullet Springs, veio de um amigo americano, David Fleischer, que ensina atualmente na Universidade de Brasília. Fleischer havia morado por algum tempo em Mullet Springs, e sabia ser a cidade um objeto ideal de estudo para um antropólogo. Minha experiência na comunidade negra de University City proporcionou-me a possibilidade de um trabalho bem sucedido em Mullet Springs. Aprendi, na prática, o que é fazer trabalho de campo em uma sociedade fortemente cortada por linhas étnicas e de localidade. Pude compreender quanto é forte a categoria "raça" nos Estados Unidos, principalmente no Sul; e dentro dela a categoria "comunidade", de pessoas de mesma "raça", formando, freqüentemente, um grupo de vizinhança, um bairro ou uma pequena cidade. Minha situação como brasileiro era ambígua. Enquanto os negros me consideravam como "branco", os brancos me consideravam um "latino- americano" ou simplesmente "latino". Nos Estados Unidos, esta não é apenas uma categoria que denota uma área geográfica ou uma herança cultural específica. Para o povo americano, e principalmente nas áreas rurais do Sul, ser "latino" significa estar situado em um tipo especial de "raça"branca, ou em uma categoria intermediária entre brancos e pretos. O sentimento de que cada "raça" deve viver sua própria vida e formar suas próprias comunidades é muito forte. A maior evidência disto é a proibição de casamentos entre pretos e brancos, em diversos Estados do Sul. Embora seja o português a minha língua nativa, embora estivesse interessado em conhecer alguma coisa da cultura norte-americana, e não uma subcuItura latino-americana dentro dos Estados Unidos, todos sugeriam que eu deveria estudar os cubanos em Miami ou os católicos em University City. Este era o meu lugar "natural". O país ao qual pertenço, o Brasil, sabemos não possuir um grande poder no campo internacional, muito menos sobre os Estados Unidos. A condição normalmente encontrada na pesquisa antropológica - a dominância da sociedade ou segmento de sociedade do antropólogo sobre a sociedade nativa - não existia. Para agravar a situação eu pertencia a uma categoria étnica de baixo status, uma minoria. Pude superar esses dilemas por conhecer os canais de comunicação corretos entre a comunidade e o mundo exterior e desempenhar os papéis adequados a cada situação. Bater em uma porta e tentar estabelecer um contato com os moradores não era, por exemplo, uma tática bem sucedida. Lá inexiste a universalidade que o sistema de classes dá ao Brasil, onde todo mundo sabe, pelo “jeito” do indivíduo, se ele pode ou não ser amigo do dono da casa. Além disto, receber um estranho em casa não é um comportamento comum nos Estados Unidos. Em português, a sala principal da casa é a "sala de visitas", enquanto em inglês é o living room, a sala de viver da família. Minha experiência entre os pretos ensinou-me também que os primeiros contatos com estranhos são realizados nas Igrejas. Ao invés de me convidarem para suas casas, as pessoas que eu conhecia me convidavam a visitar sua Igreja - portal da comunidade, o lugar onde a ambigüidade é controlada. E o estranho é, naturalmente, ambíguo. Por ela os estranhos devem passar, antes que para si tenham definido uma personalidade social. Penetrei na comunidade pela Primeira Igreja Batista da cidade. Para introduzir-me em uma comunidade fechada planejei tudo muito cuidadosamente. Comecei a "preparar o terreno" em dezembro de 1973, quando conheci quatro estudantes de Geografia, não latinos, que tinham tentado realizar um projeto de pesquisa em Mullet Springs. A informação que deles recebi não era muito encorajadora. O Mayor (o "prefeito") da cidade comunicou-lhes que não queria ninguém se metendo na vida local. Um dos estudantes mais tarde se envolveu em um conflito de bar, o que teria tornado ainda mais indesejável a presença de quaisquer pesquisadores. Na entrevista com os quatro estudantes ouvi, pela primeira vez, a palavra clannish, designando a cidade. Clannish vem de "clan", que na linguagem comum, não-antropológica, designa um grupo muito fechado de pessoas que se casam entre si e se abstêm de muita comunicação com os de fora. Pus-me então, a indagar na Universidade da Flórida se alguém conhecia algum elemento relacionado com Mullet Springs. Em janeiro de 1974, procurei 12 pessoas indicadas. Quatro tiveram tempo ou interesse em ajudar. A partir delas, fui seguindo redes de relações sociais. Gente que conhecia gente com amigos em Mullet Springs. Uma carta de apresentação de meu orientador também muito me ajudou, dando um cunho oficial a meu trabalho, com o apoio da Universidade. Com ela conheci o delegado do xerife de Mullet Springs, a enfermeira do condado e outras autoridades. Do começo de março até o final de agosto morei em Mullet Springs. Mas de janeiro a março ia quase diariamente à vila. O primeiro mês de permanência na cidade foram usados em períodos de trabalho concentrado com alguns poucos informantes, principalmente da Igreja Batista. Durante 10 dias passei todo o tempo disponível seguindo a rotina de uma das fishhouse da cidade, (fishhouse é o entreposto para comercialização do pescado). Neste período a população pôde conhecer-me. O povo de Mullet Springs revelou muita curiosidade a meu respeito. E muita desconfiança inicial. Surgiram diversas hipóteses para explicar minha chegada à cidade e o objetivo do meu trabalho. Uma foi a de que eu estava tão interessado em pesca por desejar transformar-me em pescador. Outra era a de que eu de alguma forma estava sendo treinado pelo Peace Corps a fim de voltar a meu país e transmitir aos pescadores brasileiros os métodos de pesca. Mullet Springs servira, no passado, de campo de treinamento para Voluntários da Paz destinados a vir ao Brasil. A terceira hipótese era a de que estava, de alguma forma, ligado a interesses cubanos na Flórida. , A Flórida tem cerca de 600.000 cubanos concentrados principalmente nas cidades de Miami e Tampa. Pertenciam em sua maioria às classes média e alta de seu país; instalaram-se na Flórida por não aceitarem as novas condições vigentes em Cuba, após a tomada do poder por Fidel Castro. Atualmente, é uma das minorias economicamente mais bem sucedidas nos Estados Unidos, em período relativamente muito curto, devido à sua situação de classe. Existia entre eles um grande número de especialistas com curso superior, e um número ainda maior de pessoas com experiência empresarial. Isso lhes deu condições razoáveis de adaptação ao meio americano e de competição no comércio e nas profissões liberais. Tal sucesso causou muito ressentimento na população do Norte da Flórida, que inclui a de Mullet Springs, atrasada e conservadora sob o ponto de vista econômico. Poucos quilômetros ao Sul de Mullet Springs grupos financeiros cubanos que, segundo se divulgou, haviam sido apoiados pelo ex-ditador Fulgêncio Batista, compraram um belíssimo pedaço da costa do Golfo do México. Planejava-se lá uma cidade de veraneio, e o povo de Mullet Springs estava seriamente preocupado com a invasão de sua terra. Para eles South America é uma unidade geográfica e política como é North America. E South America inclui também a América Central. Não há, portanto, para o americano em geral, muita diferença entre um cubano e um brasileiro. Somos todos "latinos" e a nós está, é claro, associada a idéia de "Máfia", uma vez que no Sul, onde os italianos não fazem um grupo étnico social, todos os latinos levam o estigma de "mafiosos". A crença geral era de que eu seria um agente de investimentos cubanos pensando em investir na área. A última hipótese da qual tive conhecimento, foi a de que eu seria um mexicano, um chicano, dos muitos que entram ilegalmente pela fronteira do Texas e saem vendendo trabalho barato por fazendas de todo o Sul dos Estados Unidos (migrant farm workers, conforme são chamados pelos antropólogos lá nascidos). Após cerca de dois meses de residência na cidade, ficou claro para quase todos os habitantes que eu era o que declarara: um antropólogo, um estrangeiro tentando conhecer a vida de uma cidadezinha dos Estados Unidos. O fato de eu e minha família falarmos português e não espanhol ajudou a fazer a diferença. O fato de também estar deixando Mullet Springs em fim de agosto de 1974 e os Estados Unidos em fevereiro de 1975, deu-me um novo status. Os Estados Unidos como um todo, são um país de competidores. Compete-se por tudo e por nada. Como em breve o deixaria, escapei da categoria de "competidor potencial" e passei à de "visitante". Esta era uma situação privilegiada. Não havia mais para eles a necessidade de me segregar ou de usar a arma do preconceito étnico. Eu não oferecia perigo. Minha família e eu começamos a receber convites para jantares. As crianças da cidade começaram a vir brincar com milha filha. Começaram a me telefonar ou a bater em minha casa, espontaneamente, para dar informações que julgavamdo meu interesse. Daí por diante, estabelecemos uma relação amigável com quase todos, na cidade. Um problema sério que tive de enfrentar foi a reação dos pescadores por estar eu tirando um Ph. D.. Qualquer coisa capaz de dar a impressão de alguém supor-se "melhor do que os outros", encontrara uma forte reação da gente da cidade. E a educação formal é, sem dúvida, um dos mais importantes critérios de status em Mullet Springs. Para resolver este problema, desempenhei o papel de humildade tradicional do antropólogo no campo: eu estava aprendendo com o povo da cidade. E como estava, realmente, aprendendo, o papel não foi, afinal, apenas representado. Nunca fui ao Crab Trap Bar aos sábados à noite, quando freqüentemente ocorriam brigas entre membros do grupo jovem da vila. Os outsiders (pessoas de fora que vão lá sozinhas) normalmente se envolvem em complicações. Além da óbvia e não muito atraente possibilidade de ser surrado ou esfaqueado, entrar em uma briga poderia tornar impossível minha permanência na cidade. A companhia de minha família tornou muito mais fácil a minha aceitação pela cidade. Minha esposa fez amizades entre as senhoras das igrejas, participou do Women's Club, e conseguiu muitas das informações aqui incluídas. Minha filha, então com dois anos, foi um excelente meio de contato, pois o povo de Mullet Springs adora crianças. Muitas vezes, quando caminhávamos pelas ruas, as pessoas paravam para brincar com ela e conversar conosco. Isto representava sempre a possibilidade de novos contatos para o pai-antropólogo. Trabalhar em Mullet Springs foi um privilégio. Foi deveras agradável viver na cidade muito bonita, e conhecer a sua gente, capaz de ser muito amável; mas o processo global de aprender a trabalhar com a sociedade norte- americana foi difícil. Minha motivação para realizar este estudo foi estar convencido de ser necessário iniciar-se uma tradição de antropólogos do terceiro mundo em pesquisa nos países desenvolvidos, principalmente nos Estados Unidos. Se tal tradição for inviável, espero que meu trabalho revele, pelo menos, alguns dos limites e possibilidades que antropólogos de países do terceiro mundo enfrentam ao estudar uma sociedade que não a sua própria. Representatividade e Hipóteses Não estou apresentando uma análise sobre os Estados Unidos, mas sobre aspectos da economia, da cultura e da sociedade norte-americanas. O estudo, por antropólogos, de sociedades complexas, aponta problemas especiais provenientes do próprio método da ciência do homem. Conforme vimos, Antropologia se faz no campo. E o trabalho de campo, exigindo o envolvimento pessoal do pesquisador com seus nativos, é a razão de ser e a base de toda a ciência antropológica. A ênfase no trabalho de campo confere a ela condições únicas de profundidade para o conhecimento de sistemas sociais específicos; mas o que o antropólogo ganha em penetração na comunidade local perde em amplitude. Evidentemente o conhecimento das condições que circundam a comunidade local, da "sociedade envolvente", é necessário para compreendê- Ia. Muitas vezes, no entanto, as diversas comunidades locais apresentam formas específicas de articulação com a sociedade mais ampla que a cerca. O antropólogo tem que ser, então, altamente seletivo no estudo da sociedade mais ampla que envolve a comunidade que estuda. Tem de usar apenas aqueles elementos da sociedade circundante relevantes para compreensão da comunidade menor, principal objeto de seu estudo. Este raciocínio é também válido para qualquer estudo de sociedade camponesa, pois mesmo aí o antropólogo terá que trabalhar com um pequeno grupo. O problema que logicamente se coloca em seguida é o da representatividade da comunidade estudada. Toda pequena comunidade do mundo é única e universal, ao mesmo tempo. Redfield (1960) mostrou os aspectos gerais da pequena comunidade e centenas de estudos têm revelado os aspectos únicos de comunidades particulares. Seria necessário, portanto, que o antropólogo delimitasse uma cultura nacional ou uma subcultura regional da qual a pequena comunidade escolhida fosse representativa em certos níveis. Isto é, que a pequena comunidade funcionasse como uma amostra (ver por exemplo Arensberg e Kimball, 1965). Isto porém não é possível, se for obedecido um requisito mínimo de precisão. Para que o antropólogo saiba em que medida e em que grau uma comunidade é representativa de uma sociedade nacional ou de uma subcultura, é necessário que conheça antes a comunidade local. Para conhecê-Ia é necessário que a estude. Cai-se, assim, em um círculo vicioso. O antropólogo precisa escolher uma comunidade representativa para saber do alcance e da relevância do estudo pretendido, mas, para se inteirar de que é representativa, tem que estudá-Ia antes. Tal problema reflete entre outros, por sinal, certas questões semânticas contidas no conceito de amostra. Não se pode pretender que uma comunidade seja uma amostra estatística. Tal amostra é elaborada pelo pesquisador. Seus parâmetros são por ele definidos, enquanto que uma pequena comunidade é uma amostra dada por uma realidade histórica e social. É claro que um survey preliminar pode auxiliar o pesquisador a avaliar a representatividade de uma comunidade em certos níveis. Mas um survey trará apenas elementos muito rudimentares para conhecer o quanto uma comunidade é representativa. O antropólogo só o saberá, realmente, após concluir o seu trabalho. O problema de se escolher uma comunidade representativa seria, portanto, sem solução se todas as comunidades humanas não fossem representativas de alguma coisa, e se todas as comunidades locais, parte de sociedades mais amplas, não fossem representativas de algo dessas sociedades. A questão metodológica que surge não é, assim, a da escolha prévia de uma comunidade representativa, porém a de saber, através do trabalho de campo e de um trabalho comparativo posterior, dos níveis de representatividade da comunidade estudada. É claro que indícios trazidos por um survey anterior à pesquisa podem ajudar um pouco, mas os indícios de representatividade que desta forma surgem são extremamente superficiais. E não fornecem qualquer medida objetiva. Assim é que, por nosso trabalho já estar concluído, podemos indicar até que ponto Mullet Springs é representativa e em que níveis essa representatividade opera. Podemos adiantar que no nível da ideologia, dos valores, a população de Mullet Springs é altamente representativa no contexto norte-americano. A realidade concreta em que vivem é, no entanto, até certo ponto, representativa das partes mais isoladas do Sul dos Estados Unidos.' O Norte da Flórida e a região dos Apalaches são muito similares sob certos pontos de vista e aqui surgiria a representatividade neste nível. Por fim a vida dos pescadores de Mullet Springs representa uma adaptação a um meio-ambiente marítimo, e sua especialização econômica lhes dá uma representatividade muito grande quando nosso universo se reduz às populações costeiras do Golfo do México. Espero que tais níveis e limites de representatividade apontados no estudo de Mullet Springs surjam de maneira mais ou menos natural e explícita ao longo deste trabalho. Enquanto a representatividade da comunidade estudada aparece após a pesquisa, as hipóteses em Antropologia normalmente aparecem durante a pesquisa. O antropólogo pode definir um problema geral no qual esteja interessado, e ter mais ou menos definida a abordagem teórica que pretende usar, mas as hipóteses são elaboradas durante o trabalho de campo. Meu estudo de Mullet Springs parte de um problema teórico bastante geral: a relação entre ideologia e realidade, principalmente a relação entreideologia e realidade econômica. Entendemos por "ideologia" os valores culturais e as idéias que o povo de Mullet Springs tem sobre o mundo e sobre si mesmo. A realidade que mais enfatizamos é a do sistema econômico de Mullet Springs. Vejo "relações sociais" como um aspecto intermediário entre ideologia e o sistema econômico. A minha abordagem não é, portanto, original, mas simplesmente "holismo" antropológico tradicional, ou seja, uma perspectiva descritiva globalizante. Desde Manilowski tem sido este o ponto de vista mais comum em Antropologia. As relações entre "ideologia" e "realidade" já foram objeto de uma série de sistemas conceituais em Antropologia e Sociologia. Especificamente em Antropologia, Linton desenvolveu as noções de padrão "real" e padrão "ideal". A cultura ideal estabeleceria o nível que determina como as pessoas devem agir, e o padrão real determina o nível em que as pessoas realmente agem. Vários autores subseqüentemente elaboraram dicotomias similares, com diferentes ênfases, de acordo com suas perspectivas teóricas próprias. Merton (1951:21-82), um sociólogo, trabalhando porém com um funcionalismo bastante antropológico, adiciona o envolvimento do observador no processo de conhecimento pela identificação da "função latente" com os processos materiais reais, não percebidos pelas pessoas que os vivem. Somente o cientista com uma visão diferente poderia apreender a realidade. Lévi-Strauss (1953:526-527), por outro lado, relativiza o alcance do processo de conhecimento, definindo o "modelo do antropólogo" como uma transformação do "modelo nativo", de maneira que este faça sentido para a nossa própria cultura. O que estou chamando de "realidade" não é apenas comportamento no sentido de interação entre indivíduos de diferentes categorias, definidas pela cultura local. Embora este também pretenda ser um dos principais interesses de meu estudo, um aspecto da maior importância a ser considerado é o das relações entre pessoas de categorias não reconhecidas localmente. Este é especificamente o caso de classes sociais, que vejo como o foco do processo explanatório utilizado neste estudo. Também tem sido este um ponto de vista comum para o estudo de camponeses e de outras "sociedades tradicionais" ao redor do mundo, quando classes sociais são relacionadas com o acesso econômico e político à sociedade mais ampla; e quando uma compreensão do processo de articulação da comunidade com o meio social envolvente é essencial para se explicar a comunidade. Os pescadores de Mullet Springs não são "camponeses", como os "camponeses" tem sido definidos em Antropologia (ver por exemplo, Foster, 1967:2-14) mas representam uma "sociedade intermediária" como a definiu Casagrande (1959:2) e, portanto, partilham certas características comuns com "camponeses". Entre elas está o papel similar do acesso econômico e político à sociedade envolvente, como uma variável básica. Embora dentro desta preocupação geral, o presente estudo é basicamente um trabalho de Antropologia Econômica. Procurarei estudar o comportamento de indivíduos de diferentes classes sociais, usando como instrumento a noção de racionalidade econômica". Um agente econômico "racional" é a base e toda teoria econômica. Schneider (1974:35) mostra quem é o homem econômico, bem como a sua importância para a análise econômica: "A análise formal em Economia utiliza vários postulados muito debatidos, dos quais o mais importante é o de que os atores fazem decisões buscando maximizar sua utilidade ou satisfação. O famoso e muito maldito homem econômico é um sujeito ganancioso, procurando sempre melhorar sua posição no referente a valor, tomado em algum sentido geral (utilidade)." Esta noção tem sido, é claro, desafiada desde os inícios da Antropologia Econômica. Mais ainda: seu questionamento marca mesmo o início da Antropologia Econômica com o estudo de Malinowsky sobre o Kula (1922). Mais tarde, esta noção tornou-se o centro da polêmica entre substantivistas e formalistas em Antropologia Econômica. Enquanto os segundos acreditam que a Ciência Econômica pode ter seus conceitos operacionalizados e é, portanto, aplicável a todas as economias humanas, os substantivistas creem que é necessária a compreensão das economias não modernas por conceitos específicos. A ciência econômica convencional não seria, portanto, aplicada a todas as economias humanas, mas teria seu poder explanatório limitado às economias de mercado. A escassês, a oferta e a procura e com elas o "homem econômico", não explicariam as economias primitivas. Esta é a posição da maioria dos pesquisadores que trabalham em sociedades diferentes da nossa. O "econômico" nestas sociedades estaria muito mais envolvido no "social": o costume e a tradição substituiriam decisões "racionais" em sociedades primitivas. Embora da oposição entre economias "primitivas" e "modernas" se possa partir para uma generalização do tipo acima, há toda uma gama de economias que não são nem "primitivas", nem "modernas". Este seria o caso da maior parte da população do mundo, os chamados "camponeses", e também de outras "sociedades intermediárias", inclusive as pertencentes ao mais moderno complexo econômico mundial, os Estados Unidos. O envolvimento social da Economia é portanto tão verdadeiro nas economias modernas, como nas primitivas. Nas primeiras é necessário que os níveis deste envolvimento sejam identificados. No estudo de pequenos grupos, tais como uma comunidade local, semelhante à de Mullet Springs, este envolvimento surge de maneira clara. Estudos recentes sobre mudança social e econômica, como os de Sheppard Forman (1970) e de Johnson (1971), no Nordeste Brasileiro, ou o de Comitas (1962), na Jamaica, não omitiram nem o papel de classes sociais, nem fatores naturais e sociais no processo econômico. Estes autores enfatizam porém o papel da escolha "racional" individual, tanto no aceitar inovações tecnológicas, como no escolher atividades econômicas alternativas pelos agentes econômicos. Estes estudos trouxeram uma contribuição importante à Antropologia, uma vez que exploraram uma área até então negligenciada, aquela em que a escolha individual é relevante. Eles ignoram, no entanto, o papel de valores culturais influenciando ou mesmo substituindo decisões. Os seres humanos que eles estudam são clássicos, "homens econômicos", sempre buscando maximizar seus ganhos, e tomando as decisões mais adequadas para estes fins. Forman (1970: 134), por exemplo, é muito explícito: "É o empresário querendo explorar um mercado alargado que introduz novas técnicas, e estas são racionalmente aceitas ou rejeitadas por pessoas com liberdade de escolha". Este ponto de vista foge ao que sempre foi uma idéia básica em Antropologia, a de que o considerado "racional" toma formas diferentes, e de que a cultura de cada sociedade faz uma forma específica de racionalidade. Deve ficar claro que o "comportamento racional" para o antropólogo freqüentemente não se conforma com a definição de "homem racional" na teoria econômica. Por fim, em todas as sociedades, inclusive na nossa, há diferentes níveis de comportamento; um de comportamento prescrito e outro de "livre escolha". Firth (1964: 12), por exemplo, reconhece esta dicotomia entre "estrutura social" e "organização social". Enquanto "estrutura social" governa o comportamento prescrito, "organização social" seria o nível no qual as decisões e o comportamento individuais entrariam em operação. Este estudo dos pescadores em Mullet Springs terá como principal objetivo o seu comportamento econômico, a ideologia relacionada com esse comportamento, bem como as conexões entre ideologia e sistema social. As nossas hipótesesmais importantes são as seguintes: 1º - o acesso aos mercados externos é um critério para distinção entre classes sociais; 2º - a sobrevivência da estrutura social - e nela da estrutura de classes - depende da falta de solidariedade entre os pescadores de classe baixa; 3º - esta falta de solidariedade é expressa e reforçada por um conjunto de valores culturais que afirmam padrões de individualismo e de participação, em determinados grupos; 4º - esses valores produzem entre pescadores de classe "baixa" um comportamento econômico que pode ser considerado "irracional", de um ponto de vista econômico. Capítulo II O CONDADO E A VILA Um Condado Norte-Americano O condado ao qual demos o nome fictício de Cohen é localizado na costa Oeste da Flórida, ao Norte da cidade de Tampa e ao Sul da cidade de Apalachicola. Noventa quilômetros a Leste está University City, um importante centro regional. A maior parte da área do condado é constituída de pântanos e florestas. O condado é cruzado por uma das principais estradas de turismo da Flórida. Tem além disto um excelente sistema interno de rodovias pavimentadas, que praticamente elimina o uso de estradas de terra, a não ser para caçadores ou pessoas que por alguma razão desejem penetrar no pântano. Um condado como o de Cohen é a unidade administrativa americana correspondente ao nosso município. Fica entre o estado e a . cidade, mas não é exatamente nem um município nem um distrito.O Condado de Cohen tem oito "cidades incorporadas", isto é, cidades com o seu próprio governo. Não há porém uma clara divisão de funções governamentais entre o condado e as cidades. Diferindo da relação existente entre nossos municípios e as cidades brasileiras, não há uma hierarquização marcada de funções, sendo a cidade muito mais autônoma. Os 14.000 habitantes do Condado de Cohen em 1975 (Thompson, 1973:25) estavam distribuídos em três categorias: na primeira os habitantes das cidades, na segunda, os habitantes das fazendas e finalmente, uma parte da população não vivendo em cidades ou fazendas, mas em uma forma de aglomeração que chamo de "vizinhanças não-estruturadas". A maior cidade do Condado de Cohen é Cohenville, com uma população que em 1970 era de 1965 pessoas (U. S. Census of Population, 1970). Cohenville é uma cidade típica do Norte da Flórida, bem como de uma ampla região dos Estados Unidos. Seu padrão urbanístico é o resultado do cruzamento de duas artérias principais que, como em quase toda cidade americana, têm os nomes de Main Street (rua principal) e First Avenue (primeira avenida). Ao longo destas duas artérias estão concentradas as principais instituições comerciais, financeiras e do governo. A área de comércio abrangida por Cohenville atende cerca de 50.000 pessoas. As outras ruas de Cohenville correm paralelas à Main Street e à First Avenue. A despeito deste padrão urbanístico à maneira de tabuleiro de xadrez, Cohenville, como outras cidades do condado, não tem uma área urbana claramente delimitada como a que encontramos em nossas cidades brasileiras. Na pequena cidade americana entra-se gradualmente no ambiente urbano. As casas, ao contrário das nossas, tradicionalmente coladas umas às outras, são separadas, escondidas entre árvores e muitas vezes difíceis de se ver. Também em contraste com a nossa cidade brasileira tradicional é muito difícil encontrar pessoas andando pelas ruas. Todas as outras cidades do interior do condado seguem mais ou menos este mesmo padrão. São também o resultado do cruzamento de duas vias principais, repetindo-se o sistema de tabuleiro de xadrez. Assim, essas cidades resultam do crescimento do que Arensberg e Kimball (1965: 108) chamaram de crossroads hamlets ("povoados de encruzilhadas de estradas"). As cidades à beira-mar tentam seguir o mesmo padrão, mas a geometria é comprometida em um dos casos pelas curvas de um rio e em outros pelas baías e recortes do Golfo do México. O padrão urbanístico dessas cidades é ainda influenciado pelo fato de que o acesso à água é preferencialmente feito através dos quintais das casas. Tais cidades parecem organizadas de forma a que o maior número de residências tenha acesso ao rio ou ao mar. Além das "cidades incorporadas" (townships no Norte dos Estados Unidos), o Condado de Cohen tem duas "vizinhanças estruturadas", que são simplesmente uma concentração de casas ao longo de uma estrada com um pequeno armazém. Embora sem organização política e comunitária, uma das vizinhanças não-estruturadas é maior do que a menor "cidade incorporada" do condado. Não há quase pretos nas vilas à beira-mar ou à margem dos rios, mas cada uma das vilas do interior do condado tem uma concentração de negros nos arredores, habitando em pequenas favelas. A população preta caiu, de 1960 para 1970, de 1/3 para cerca de 1/4, embora tenha ocorrido na mesma década um pequeno aumento, em termos absolutos. Este aumento só foi possível devido à taxa muito elevada de natalidade nesse grupo, pois o número de pessoas de cor que deixa o condado em busca de cidades do Norte do país, como Washington, Chicago e Nova York, é também elevado. Essa emigração, principalmente para o Norte, reflete uma tendência iniciada no começo do presente século, de saírem os negros das áreas rurais do Sul em busca de melhores oportunidades econômicas e de maior segurança pessoal. O Condado de Cohen, todavia, tem perdido, igualmente, jovens de todas as raças. Como acontece em outras áreas rurais, há uma falta generalizada de oportunidades econômicas, que expulsa os jovens da área. Apesar disso a população do Condado de Cohen cresceu 12,5%, de 1960 a 1970 (Thompson, 1973:47). Este aumento é explicado pela vinda de pessoas de fora, principalmente aposentadas, o que faz com que a população local se concentre nas faixas de idade mais alta. Esta tendência se acentuou nos últimos anos. A maioria dos aposentados vem para o Condado de Cohen em busca do clima quente da Flórida e procura naturalmente estabelecer-se nas cidades à beira da água. Encontram no Condado de Cohen a calma da vida de cidade pequena e imóveis ainda relativamente baratos. Ao contrário dos aposentados que vão para os grandes centros turísticos do Sul da Flórida, estes não são ricos; ganham, contudo, o suficiente de sua aposentadoria para levar uma vida simples, mas confortável. Cerca de 18% da população do condado vivem em fazendas e o restante nos centros descritos acima. A principal atividade econômica é a produção de madeira. As grandes empresas sediadas ao Norte do País possuem aproximadamente 2/3 das florestas. A criação de gado segue a produção de madeira como segunda atividade em importância. Milho e amendoim são os produtos agrícolas mais importantes. O setor industrial é relativamente pequeno, estando a maioria das grandes indústrias relacionada com o aproveitamento da madeira. O turismo não é tão importante como no Sul da Flórida, embora haja para ele algumas atrações, principalmente em Mullet Springs. A grande maioria dos milhões de turistas que invadem a Flórida durante o inverno apenas atravessa o condado em busca das praias do Sul do Estado. A distinção que Wagley (1952:147) faz entre a classe "alta local" e a classe "alta regional" em estudos de sociedade brasileira pode ser aplicada a esta área do Sul dos Estados Unidos. Pesosoas que poderiam ser consideradas da classe "alta" do condado tendem a ter laços políticos e econômicos com pessoas da mesma classe na região e no Estado. O contraste, porém, não é tão marcante como no Brasil, pois a classe "alta regional” não está concentrada em algum importante centro urbano regional, ou em alguma capital. O eficiente sistema de comunicações do condado e da Flórida,em geral, dispersa todos os níveis da classe "alta" em diferentes lugares, confundindo especialmente a classe "alta regional'" com a classe "alta local". Além disto, não há diferenças marcadas de estilos de vida entre as diversas classes sociais. A difusão das classes "altas" pelo condado, sua pequena população e a ausência de diferenças essenciais entre os estilos de vida das diferentes classes, criam uma situação onde o condado pode ser compreendido como uma "comunidade", na maneira definida por Arensberg e Kimball (1965: 15). Há uma rede de relações Sociais e de parentesco abrangendo o condado inteiro e integrando pessoas de todas as classes e lugares em uma só comunidade. A Vila Pertencendo, embora, à comunidade do condado, Mullet Springs é muito mais fechada que as demais vilas. Há muitos fatores contribuindo para esta característica. O primeiro é a distância de Mullet Springs das outras "cidades incorporadas" e dos principais centros da região. A localidade mais próxima é o povoado de Coon Creek, a 33km de distância. Outra razão é o passado peculiar da cidade. Conforme veremos no capítulo seguinte, a história de Mullet Springs bastaria para conferir-lhe uma forte identidade local, dificilmente encontrada em outras vilas da Flórida. A terceira razão e sua especialidade econômica. A maioria da sua população está empregada na indústria pesqueira. A pesca requer conhecimentos e habilidades inerentes à tradição local, e a sub-cultura específica da vila é uma adaptação ao meio- ambiente marítimo. A última razão é que a população tradicional da vila forma um grupo relativamente fechado. Mullet Springs é porém, politicamente, uma parte do condado. A gente da vila a vê como uma unidade do Condado de Cohen, do Estado da Flórida e do Sul dos Estados Unidos. Compete com as outras vilas do condado de diversas formas, e o povo dessas outras vilas gosta de ridicularizá-Ia. Seus habitantes são mais pobres que os dos outros centros, tendem a ter um menor grau de educação formal e são fisicamente e socialmente mais isolados da "grande tradição", presente nas cidades maiores da área. Se de um lado o povo da vila se situa em oposição ao dos demais centros do condado, por outro separa o Estado da Flórida do restante dos Estados Unidos. Sua concepção de "Flórida" é limitada à Flórida do Norte e Central, região que se situa culturalmente ao Sul dos Estados Unidos. O Sul da Flórida é considerado Yankee country terra de yankees, nome dado aos habitantes do Norte dos Estados Unidos. Como sulistas que o são, os habitantes tradicionais de Mullet Springs consideram o Sul dos Estados Unidos dominado e explorado pelo Norte mais industrializado. Um exemplo de forte dominação nortista sempre citado é a questão racial, principalmente a integração forçada das escolas, realizada à força no Sul e não realizada, ou pelo menos não muito levada a sério, no Norte. Muitos dos residentes de Mullets Springs falam da guerra civil americana do século passado como se houvesse ocorrido há apenas alguns anos atrás. O incêndio da cidade de Atlanta, capital do estado sulista de Georgia, um dos episódios mais dramáticos da guerra, é algumas vezes relatado com tal emoção que, se ignorássemos esse episódio da história americana, poderíamos pensar que quem conta a história o presenciou. Se de um lado o povo de Mullet Springs se ressente dos nortistas, de outro se considera muito mais americano do que aqueles. Uma razão citada pela gente local é que "para cada herói nortista há 20 heróis sulistas", nas guerras em que os Estados Unidos tem-se envolvido. Tal afirmativa não deixa de ser viável, uma vez que há, ao que parece, grande quantidade de sulistas nas forças armadas americanas, devido à pobreza da área. Mullet Springs consiste em um grupo de ilhas ligadas por pontes à península da Flórida. Como outras cidades à beira-mar, segue o padrão urbanístico de "tabuleiro de xadrez" somente no Iimite do possível. A grande maioria das casas é de madeira, como no restante do condado. Embora dêem a impressão errônea de serem construções frágeis, muitas estão de pé por mais de 100 anos, além de terem enfrentado furacões. A cidade de Mullet Springs tem vizinhanças bem definidas. Na sua entrada, em uma ilha, há lugares com os nomes pitorescos de Kiss me quick ("Beije-me depressa"), Hug me tight ("Abrace-me apertado") e Serena Park. Cada uma dessas localidades compreende um grupo de vizinhança. Ao longo da Main Street ("rua principal") estão alguns dos hotéis de turismo, o Bar Porthole ("Buraco do porto") e o City Hall, prédio da administração da cidade, com uma garagem lateral para o carro do corpo de bombeiros e outro destinado à estação de correios. Em outra ilha estão as casas distribuídas na vizinhança, conhecidas como "Ponta do Pelicano" e "Estrada do Cemitério". Não há nome porém para o local onde a maior parte das casas estão concentradas, área que chamarei de "cerne". O velho grupo de casas dos negros aí fica, e seu conjunto é conhecido como the bottom, "o fundo", "o lado de baixo", o que sem dúvida reflete sua posição de local mais baixo da ilha, e ao mesmo tempo, simbolicamente, a posição de seus antigos habitantes na estrutura social local. Alguns dos casebres abandonados pelos negros foram comprados pelo setor de habitação do condado, que em seu lugar construiu casas de alvenaria para pessoas brancas de renda baixa. Como em outras cidades do condado, é difícil encontrar-se alguém nas ruas durante a semana. Só no começo da tarde é que se vêem pessoas sentadas nos alpendres. Em geral permanecem em casa, trabalhando em seus barcos, ou em alguns dos pontos de reunião da cidade, quase sempre a portas fechadas. Os principais centros de reunião da cidade para "bate-papos", ou para atividades consideradas mais sérias, são: a loja de ferragens, que pertencia ao prefeito, os quatro bares, as igrejas e as fishhouses (entrepostos de estocagem e comercialização dos produtos do mar). No fim de semana a situação muda, pois a vila é velha e pitoresca e vem gente das principais cidades no Norte da Flórida para pescar, comer nos restaurantes especializados em frutos do mar ou apenas para apreciar o cenário. A população da cidade aumentou durante o inverno, enchendo os quartos dos hotéis ou estacionamento seus trailer no trailer park. A população permanente de Mullet Springs é dividida nas categorias de natives ("nativos") e outsiders ("os de fora"). Os "nativos" formam o grupo tradicional da cidade, na qual seus membros foram criados em sua maioria. Muitos dos outsiders são pessoas idosas aposentadas, que lá foram residir. Sua população em 1970 era 714 pessoas, de acordo com o censo. Para 1975 minha contagem alcançou o número de 750, devido à chegada de novos outsiders, que constituem, por sinal, cerca de 1/4 da população em apreço. Como o restante do condado, Mullet Springs tem perdido sua jovem e o crescimento de 1960 para cá se deve à chegada de velhos outsiders. A concentração de população nas classes de idade idosa é ainda mais acentuada que no restante do condado. O perfil demográfico da cidade apresenta ainda um desequilíbrio entre os sexos, sendo maior a quantidade de mulheres. As razões são a maior taxa de emigração entre jovens do sexo masculino e a maior taxa de mortalidade masculina, principalmente nas faixas etárias mais velhas. Em 1970 havia 186 homens e 206 mulheres adultas entre 19 e 64 anos, isto é, na faixa considerada capaz de trabalhar. A população economicamente ativa da cidade seria então de 54,9%. Além disto, ainda em 1970, 118 pessoas acima de 65 anos foram consideradas aposentadas. Muitas destas porém continuam a trabalhar, seja por que a pensão de aposentadoria pague muito pouco seja para possuírem uma ocupação. A economia da vila é baseada na indústria
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