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DISCURSO JURÍDICO E IMAGINAÇÃO: HIPÓTESES PARA UMA ANTROPOLOGIA DO JURISTA * Pietro Costa Sumário: 1. Conhecimento vs. imaginação: uma nota introdutória; 2. O paradigma “lógico positivista” e a sua crise; 3. Um dilema para o jurista: o saber jurídico, entre conhecimento “rigoroso” e interpretação “criativa”; 4. Os juristas “em ação”: hipóteses e exemplos; 4.1. “Imaginar” o texto: o caso dos juristas medievais; 4.2. “Imaginar” o objeto: exemplos do século XIX; 4.3 “Imaginar” o direito: o jurista e o legislador; 5. Conhecer, imaginar, projetar. 1. Conhecimento vs. imaginação: uma nota introdutória O discurso jurídico e a imaginação. Associar de algum modo esses termos é uma operação que pode gerar no interlocutor talvez ainda alguma surpresa: a surpresa de uma aproximação entre termos evidentemente incompatíveis. Para nosso sentido comum, efetivamente, é o poeta ou o romancista e não o jurista, e muito menos o “homem da ciência”, quem pode ser definido como um homem dotado de “imaginação”. Por que esta distinção de papéis e de faculdades parece tão óbvia? Entendo que a resposta deve ser buscada na permanência de uma “mentalidade”, que conecta a atividade lógico-racional com o conhecimento da “realidade”, e atribui à imaginação a tarefa de superar, de ultrapassar a “realidade”. O sujeito que conhece é o “contador” da “realidade”; o sujeito que imagina é o sujeito “criativo”, que inventa, que produz “o que não é”, que desenvolve ideias, elabora narrações em torno de um objeto que vem definido precisamente por sua contraposição constitutiva da realidade. Conhecimento da realidade e imaginação aparecem como faculdades ou operações distintas por natureza ou até mesmo contrapostas. Esta oposição aparentemente óbvia é na realidade só o resultado de um intricado processo histórico-cultural, do qual posso indicar aqui unicamente, ao que me parece, o plano de fundo: a partir da Ilustração atuou com crescente êxito uma tendência que fez quebrar o antigo ideal do caráter unitário do sujeito para dar forma a antinomias que se chocam * Tradução de Danielle Regina Wobeto de Araujo, mestranda no programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná; bolsista do CAPES/PROEX. diretamente com o nosso problema: lógica/imaginação, razão/paixão, ciência/arte, realidade/invenção. Provemos ler verticalmente o segundo termo das oposições: a imaginação associa-se de modo cada vez mais incisivo à paixão, à arte, à invenção, e distancia-se do domínio da razão, da ciência, da realidade. Cada um dos termos de cada dupla define-se por oposição: o campo semântico da razão (de ciência, de lógica) vem delimitado, “a partir de fora”, pela área de significado do termo oposto. Razão, lógica, ciência, realidade, de um lado, imaginação, paixão, arte, invenção, de outro, enfrentam-se como chaves de aceso ao mundo, necessariamente, unidas porque opostas. Sobre este plano de dicotomias constitutivas se instalam as crenças epistemológicas que a cultura moderna, em seu já secular desenvolvimento, deixou-nos como herança. 2. O paradigma “lógico positivista” e a sua crise Desta complexa situação gostaria de relembrar, em uma síntese bem concentrada para não ser imprudente, algumas ideias-guias que encontraram um posicionamento definitivo no clima cultural do positivismo do final do século XIX e no muito mais sofisticado neopositivismo da primeira metade do século passado, no panorama dos extraordinários êxitos das ciências físico naturais. Em primeiro lugar, o discurso do saber constitui-se porque que vem organizado em termos rigorosamente lógico demonstrativos. Basta pensar na fascinação que provoca o modelo geométrico matemático de argumentação, a partir de algumas grandes obras “inaugurais” da modernidade (de Hobbes a Spinoza) e até os recentes exercícios neopositivistas: o que se quer conquistar por meio de todo o discurso de saber, pela filosofia, pela economia, pelo direito, é um estatuto de solidez, de fundamento epistemológico, que coincide com o rigor dedutivo das argumentações. Em segundo lugar, o discurso do saber, enquanto discurso “científico”, deve apresentar-se como empiricamente verificável: a chamada aos fatos, o nexo opressor e direto que se quer instituir entre teoria e realidade, é a segunda decisiva garantia da “cientificidade”, da pretensão de verdade do discurso. Em terceiro lugar, em termos negativos, é preciso que o discurso do saber, enquanto discurso “científico”, não venha marcado por elementos que de alguma forma o reconduzam ao mundo da paixão, da valoração, da imaginação. Somente livre de todo material “impuro” pode o discurso do saber ser aceito como cientificamente fundado, portanto, como produtor de verdade. Precisamente por isso o rigor lógico demonstrativo do discurso parece incompatível com o caráter “equívoco”, com os curtos-circuitos da metáfora. A metáfora aparece como a mais perigosa intromissão, no mundo puramente descritivo e demonstrativo da ciência, de “outro” mundo, definível per oppositionem: de um lado, outra vez, a lógica, a ciência, a percepção direta e tendencialmente unívoca do real; de outro, os procedimentos metafóricos, as invenções estilísticas, a exibição da imaginação, o domínio do arbitrário, do sugestivo, do indemonstrável. Com base nessas coordenadas gerais vai se constituindo o paradigma que eu chamaria, para facilitar, lógico positivista, ou simplesmente “cientificista”. Este implica substancialmente em uma teoria forte do conhecimento científico e uma teoria fraca da subjetividade. No que se refere ao conhecimento científico, na realidade, ele inclui ao menos os seguintes corolários: a) a ciência é, ainda que seja de modo assíndeto, produtora de verdade porque é capaz de conhecer a realidade “objetivamente”, pelo que é; b) o conhecimento é objetivo, pois está pautado em procedimentos da lógica e na observação dos fatos; c) os fatos apresentam-se diante de qualquer como diretamente observáveis e constatáveis. Ao contrário, no que tange ao papel do sujeito no processo cognoscitivo, o paradigma positivista impõe o desaparecimento da subjetividade logo que surge o discurso da ciência: a subjetividade, portanto, vem entendida como um roupão que se usa apenas em casa, o qual pode, e deve, ser retirado assim que se vestem os trajes solenes e públicos da ciência. A proclamação da ausência de valoração, de objetividade, da impessoalidade, da capacidade da ciência para descrever, e a ênfase posta em sua absoluta relevância gnosiológica conduzem à correspondente redução máxima da “subjetividade” dos sujeitos, também, portanto, dos “homens da ciência”, de sua necessária e integral inserção histórico social e institucional. A historicização da ciência dentro do paradigma “cientificista” converte-se simplesmente na representação de um percurso unidirecional até a verdade, quase sem tradução epistemológica da ideia (paleopositivista) de “progresso”. Nos últimos anos o paradigma lógico positivista entrou, como se sabe, em uma crise radical. O debate desenvolvido no cerne da tradição epistemológica 1 , de uma parte, e o crescente êxito da reflexão hermenêutica 2 , de outra, encontraram-se quanto à impugnação das principais ideias guias do paradigma positivista e estimularam a busca de nexos relevantes 1 Cfr. V. VILLA, Teorie della scienza giuridica e teorie delle scienze naturali. Modelli e analogie, Milano, Giuffrè, 1984; D. ZOLO, Scienza e política in Otto Neurath. Uma propspettiva post-empirista, Milano, Feltrinelli, 1986.2 Para uma história geral da hermenêutica cfr. M. FERRARIS, Storia dell’ermeneutica, Milano, Bompiani, 1988. Sobre o enxerto da reflexão hermenêutica no pensamento jurídico cfr. G. ZACCARIA, L’arte della interpretazione. Saggi sull’ermeneutica giuridica contemporanea, Padova, Cedam, 1990; P. NERHOT (a cura di), Law, interpretation and Reality, Dordrecht/Boston/London, Kluwer Academic Publishers, 1990; P. NEROHT, Il diritto, lo scrtio, il senso, Ferrara, Corso ed., 1992. entre aqueles dois mundos que o positivismo queria tranquilamente separados: entre o mundo do sujeito (o mundo das paixões, dos esquemas valorativos, do enraizamento ambiental do sujeito) e as operações cognoscitivas que o paradigma vai executando; entre lógica “rigorosa” e metáfora; entre descrição e construção; entre afirmação e valoração; entre demonstração e retórica. A partir desta perspectiva não existem, por um lado, os fatos, nem a sua observação “pura”, por outro: toda observação é theory laden, faz-se possível, é necessariamente plasmada pelas construções teóricas, pela linguagem, pela cultura, pela identidade subjetiva do observador. Os discursos do saber não mantêm nunca uma relação direta e mimética com a realidade: não a reproduz pelo que é, senão que intervêm seletivamente sobre os dados da experiência, propondo-os de forma diferente em cada ocasião, em um processo no qual descrição e construção vão intrincadamente unidas. Desse modo, elaborar um discurso científico em torno de um objeto é uma atividade complexa que não se esgota na representação de algo existente, mas que procede por meio de uma mélange dos materiais mais diversos, aonde demonstrações rigorosas avançam junto com associações metafóricas em um mundo indissolúvel. Sob esse enfoque e à luz do paradigma positivista a relação entre lógica e imaginação parece ter sofrido uma inversão: se bem que no plano psicológico ou antropológico alguma distinção entre os dois conceitos ainda pode se sustentar, no plano de análise dos discursos, e em particular dos discursos do saber, a proibição positivista de pensar em uma possível unidade de fundo entre discursos, que se dão por opostos, parece ser substituída, sem acaso, pela dificuldade pós-positivista de manter em vigor, para aqueles discursos, qualquer critério de distinção. 3. Um dilema para o jurista: o saber jurídico, entre conhecimento “rigoroso” e interpretação “criativa” De que modo estas vicissitudes, das quais recordei sucintamente alguns aspectos, refletiram-se na cultura jurídica ao longo de seu desenvolvimento? A meu ver o problema deve na realidade articular-se em duas perguntas distintas, que dão lugar a duas possíveis “narrações” historiográficas. A primeira pergunta é esta: de que modo os juristas adotaram o paradigma lógico- positivista? De que maneira os juristas traduziram para o seu específico discurso a parábola de um saber que se quer rigorosamente lógico, descritivo, verdadeiro, “científico” e, portanto, separado da sedução do metafórico, do mitológico, das invenções “irrealistas” da imaginação? E finalmente: como e quando alguns juristas distanciaram-se, se isso ocorreu, do paradigma lógico positivista para acolher as sugestões de um paradigma diverso. Esta série de perguntas pertence ao setor, quem sabe, mais cultivado pelos historiadores do pensamento jurídico e da filosofia do direito: o setor das teorias, das filosofias, das metodologias relativas ao saber jurídico. Nesta área de estudos busca-se contar o que um jurista ou um grupo de juristas, disse que faria ou que queria fazer produzindo um discurso que vinha apresentado e era reconhecido como jurídico. O que é o saber jurídico; se este é, e em que condições “ciência”; se exclui ou inclui procedimentos “não lógicos”, são perguntas que nesta hipótese de resenha historiográfica dirigimos diretamente, por assim dizer, ao jurista do passado: com fundamento em suas repostas explícitas e diretas nós organizamos este tipo de narração historiográfica. Nesta linha, que relato historiográfico podemos apresentar? Não posso obviamente comprometer-me em uma extensa exposição. Posso somente apresentar como hipótese as principais rupturas de tal relato, que por sinal é amplamente conhecida. É uma narração que indica como antecedente a crise da interpretatio iuris na Europa do direito comum e põe como pressupostos essenciais destas vicissitudes as codificações do século XIX, de um lado, e a revisão “pandectística” do direito romano, de outro. Os tipos de pensamento jurídico que daí derivam são sensivelmente diferentes, quando não opostos, mas acabam tendo ao menos um ponto de convergência: concebem de modo semelhante o jurista, seu papel profissional, sua legitimação social; apresentam de modo similar o discurso jurídico, sua lógica, sua função. O discurso jurídico anuncia-se como um discurso do saber que produz diretamente a verdade. O discurso jurídico, como qualquer outro tipo de saber, à medida que examina os standards descritivos, falta de valoração, rigoroso consequencialismo, objetividade, impessoalidade, abstração, generalidade, é um discurso que se considera capaz de captar, sem mediações nem incertezas, a realidade, a realidade do direito, o direito como “realmente” é, como quer que se entenda esta expressão: o direito como “norma especial”, o direito como “sistema de normas”, o direito como “vontade do legislador”. Naturalmente, nem todo discurso jurídico apresenta-se como produtor da verdade, nem está em condições de dizê-la, a não ser aquele discurso que, por suas características de abstração, impessoalidade, descrição, “cientificidade”, coloca-se, sine ira et studio, como mero espelho refletor diante do objeto; logo nem todo discurso jurídico é discurso que reflete, que reproduz duplicado em si mesmo, o direito tal e como “objetivamente” é, mas só o discurso jurídico do saber, o discurso jurídico decorrente e exclusivo do jurista acadêmico. A ênfase posta nas possibilidades cognoscitivas “puras” do discurso do saber jurídico e a celebração do papel profissional do jurista acadêmico sustentam-se mutuamente e constituem a tradução, no mundo da cultura jurídica, do paradigma lógico positivista; em todos estes acontecimentos dever-se-á ter presente, como nos mostrou Schiera 3 , o jogo combinado do papel “constituinte” da universidade e da formação das elites políticas e sociais nos diversos Estados nacionais. O jurista acadêmico apresenta, então, o discurso do saber jurídico como capaz de captar o direito segundo realmente é. Contudo, a partir do momento que por esta via o discurso do saber jurídico inclui a representação do direito no que é, exclui a consideração daquilo que o direito não é porque ainda não é. A atribuição ao discurso do saber jurídico do “poder” da verdade, a ênfase posta em sua capacidade de refletir, no espelho da “pura” lógica e da descrição desinteressada, a forma jurídica do real, exige, para tanto, a proibição da faculdade de inventar, e usemos também a palavra, de imaginar: de imaginar, pelo e mais além do direito que é, o direito que pode ser; de imaginar por dentro e mais além do direito que é, o direito em que se converte. Demos um nome a estes dois possíveis itinerários da imaginação jurídica e acharemos a política, de um lado, e a interpretação, de outro. Diante da dimensão política, o jurista fiel ao paradigma lógico positivista adota uma clara posição de encerramento: é possível conferir ao discurso jurídico altas possibilidades cognoscitivas à medida que ele se apresente como separado do domínio subjetivo, descontrolado, “despótico”, da política. Apresentar o discurso do saber jurídico como não político nãoé uma provocação acadêmica, mas uma escolha obrigatória, de acordo com o paradigma compartilhado: o discurso do saber, e também o discurso do saber jurídico, é produtivo de verdade, por um lado, se estiver separado do mundo imprevisível e incontrolável da subjetividade, a qual, ainda que colocada entre parênteses na rigorosa argumentação do jurista, é livre para expressar-se sem limites no campo do discurso político, e por outro, à medida que representa o objeto como “necessariamente” é, e não como queria que fosse. Definitivamente, dentro do paradigma lógico positivista é possível fundar a eficácia cognoscitiva do discurso do saber jurídico, só em troca de deter no seu limiar as pretensões da subjetividade e as tentações da projeção. A partir do momento em que se espera que o direito diga a verdade sobre o direito que é, pretende-se a exclusão de expectativas, previsões, desejos, ou seja, de projetos sobre o direito que poderia ser. Mais complexa, e talvez também mais interessante, é a posição que o jurista, dentro do paradigma lógico positivista, deve adotar ante à interpretação. A interpretação é objeto de 3 P. SCHIERA, Il laboratório borghese. Scienza e política nella Germania dell’Ottocento, Bologna, Il Mulino, 1987. atenção do discurso do saber jurídico há muito tempo, precisamente, porque consiste em uma operação constitutiva da experiência jurídica, pelo menos naquelas sociedades nas quais a organização normativa depende, em parte, da referência a textos jurídicos escritos. Ao mesmo tempo, porém, a interpretação é uma operação que, talvez mais do que nenhuma outra, tende continuamente a escapar das mãos do discurso do saber, em muitos sentidos: em primeiro lugar, porque evoca figuras profissionais distintas do doctor iuris, como o advogado, o notário, o juiz, comprometidas também na atividade cotidiana de decifrar textos jurídicos oficiais; em segundo lugar a interpretação jurídica pode, na realidade, interrogar os textos normativos “como tais”, porém com certa frequência acede aos textos partindo de uma situação concreta, uma ação transgressora, uma interação conflituosa, e retorna à situação, ao “caso”, para sugerir (impor) alguma hipótese de solução do conflito. A interpretação, enfim, por um lado, se abre espontaneamente ao mundo da prática, das práticas jurídicas e sociais (e inclusive, caso se queira, é ela mesma um conjunto das mais diversas práticas sociojurídicas); por outro, tende a se individualizar, a se concentrar “no aqui e agora”, a exaltar a diversidade, as surpresas, as anomalias. Compreende-se, então, como, para o discurso do saber jurídico de viés lógico positivista, a dimensão hermenêutica era certamente indispensável, mas ao mesmo tempo perigosa: posicionar a interpretação no centro da experiência jurídica colocaria em xeque tanto os benefícios cognoscitivos atribuídos ao saber jurídico como também a importância do saber “abstrato e geral”, consequentemente o papel profissional dos juristas acadêmicos. Existem ao menos dois cruciais pontos sobre os quais a dimensão hermenêutica exerce, por assim dizer, uma pressão insustentável sobre o paradigma lógico positivista. O primeiro ponto relaciona-se com a forma, com o estilo, com a “ordem” do discurso do saber: se de fato a interpretação concretiza-se em face de “casos”, de situações determinadas, de problemas específicos, o estilo argumentativo que mais se sintoniza com a hermenêutica parece divergir desse ideal de “cientificidade” e “sistematicidade” que agora, na culminação de um processo plurissecular, já se converteu no orgulho da cultura jurídica universitária; discurso do saber e hermenêutica, em resumidas contas, estão em uma relação de tensão latente, assim como o raciocínio por problemas contrapõe-se, como se disse, à dedução dos princípios, como a tópica opõe-se à sistemática. O segundo ponto relaciona-se com a “forma do conteúdo”, com as características cognoscitivas culturais do saber jurídico: se a interpretação procede (e não pode proceder de outra maneira) lendo os textos jurídicos oficiais a partir da subjetividade do intérprete e do contexto sócio institucional em que este opera; se, em síntese, “reescreve” os textos interpretados para o “aqui e o agora” do presente, a operação hermenêutica tende a ativar uma concepção diferente da temporalidade, tende a inscrever o objeto jurídico em um horizonte temporal que não é o postulado pelo discurso do saber jurídico porque, a diferença deste, leva a sério o movimento e não a rigidez, persegue não a contemplação da ordem que é, mas sim a invenção de um equilíbrio que (ainda) não é. Dessa forma, uma vez mais, nos encontramos no terreno da cultura jurídica, campo de tensões irresolúveis que aparecem, de modo tão singular, como constitutivas da modernidade: se uma linha contínua conecta conhecimento, lógica, ciência, objetividade, realidade, uma análoga e oposta linha contínua unirá a imaginação com a “desenfreada” subjetividade, com a invenção, com a arte, com a superação do existente, com a “irrealidade”. É este o jogo de oposições que a cultura jurídica de inspiração lógico positivista encontra diante de si e é este o jogo que ela mesma propõe, desta vez em seu próprio campo. O discurso do saber jurídico apresentar-se-á, então, como veículo de conhecimento, como “ciência” daquilo que a ordem jurídico-normativa realmente é (ou daquilo que a realidade é enquanto ordem jurídico normativa); entretanto com o mesmo movimento deverá também marcar intransigentemente o limite que separa o domínio da ciência de sua zona de sombra: a zona da subjetividade, do movimento, da problemática, da projeção; precisamente a zona da interpretação e da política. A operação de iluminar alguns fragmentos da experiência jurídica e ao mesmo tempo manter outros na zona de sombra projetada pela fonte de luz escolhida nunca é uma operação simples, entre outras coisas porque excluir um objeto da plena “visibilidade” exige sempre e em qualquer caso algum “pensamento” sobre o objeto excluído e sobre as suas subterrâneas relações com a área mantida iluminada. Esta operação, ademais, é particularmente complicada para a cultura jurídica: pois a dimensão hermenêutica e a dimensão projetista sempre estiveram entrelaçadas e dos modos mais variados, com a atividade cotidiana do jurista, constituindo-se, inclusive, como parte integrante de seu papel. É preciso então que a cultura jurídica de inspiração lógico positivista coloque a hermenêutica em uma área de discreta visibilidade, e neutralize, de vez, seus possíveis, seus subliminares efeitos “inquietantes” A resposta ao potencial caráter “subversivo” da hermenêutica é variável e articulável, mas pode se resumir em alguns princípios guia: a) a ênfase colocada no saber jurídico como saber geral e abstrato; b) a renegação da hermenêutica à “scientia inferior”, atribuindo a ela, em qualquer caso, um papel propedêutico e setorial; c) a ideia de transparência do texto e da interpretação como extirpação do sentido “verdadeiro” do texto; d) conseguintemente, a redução ao mínimo do papel da subjetividade no processo interpretativo; e) a convicção da autonomia (da autossuficiência, da integridade, da falta de contradição) dos textos legislativos e do caráter “declarativo” da interpretação; f) a tese do caráter lógico silogístico da interpretação e da aplicação jurisprudencial do direito; g) a rígida hierarquização dos diversos componentes da experiência jurídica, que coloca no seu vértice o Professorenrecht e configura o mundo da prática jurídica como rigidamente dependente deste. Deste modo, a hermenêutica é acolhidapelo paradigma lógico positivista, porém ao mesmo tempo nela vem “obscurecidos” aqueles componentes que o paradigma compartilhado deve considerar incompatíveis: a subjetividade, o movimento, a projeção. Posto isto e pautados nestas premissas abre-se o segundo capítulo da exposição historiográfica que estou tentando supor ou imaginar. É um capítulo que pretende reforçar o que parece já escrito, já contido in nuce, no que o paradigma lógico positivista incluiu e, sobretudo, excluiu. Na realidade, os itinerários histórico-culturais são, como sempre, muito mais incertos, mais fragmentários do que pode supor qualquer jogo combinatório; no meu esboço ou esquema de narração deverei, porém, me limitar a algumas articulações essenciais. As articulações, os temas principais da narração em sua “segunda parte” são precisamente aquelas ideias de subjetividade, de movimento, de projeção que o paradigma lógico positivista excluiu no momento de se estruturar constitutivamente. Começa a se desenvolver, entre o final do século XIX e o início do XX, um amplo processo de revisão que de múltiplas formas ressalta a zona de sombra projetada pelo paradigma até então unanimemente compartilhado. Justamente por isso, justamente porque os “revisionistas” se servem dos aspectos obscuros ou excluídos pela cultura jurídica dominante, sua estratégia de ataque passa pelas vias indicadas pela cultura “tradicional”, mas as percorre, pode-se dizer, para trás. Se a dimensão hermenêutica era o terreno sobre o qual o paradigma lógico positivista pôs a prova sua própria “capacidade”, é de novo no terreno hermenêutico que se tenta introduzir uma regra de jogo diferente, ou até mesmo oposta. Invertem-se muitos dos axiomas que constituíam o andaime da teoria lógico positivista da hermenêutica, que permitiriam preservar a posição central do discurso do saber, seu alto valor cognoscitivo, seu caráter abstrato e geral, sua pretensão de estrito consequencialismo. Começa aquela longa “revolta contra o formalismo”4 que, diante da cultura jurídica, individualiza numerosos objetivos polêmicos; são colocadas em dúvida, sucessivamente, as ideias da autossuficiência, da integridade, da falta de contradição, do sistema normativo; discute-se a concepção do discurso do saber como discurso puramente lógico, rechaça-se a tese do caráter “mecânico”, 4 A expressão é de M. WHITE, La rivolta contro il formalismo, Bologna, Il Milino, 1956. puramente silogístico, da interpretação e aplicação jurisprudencial do direito; em resumo, são submetidos a uma constante crítica diversos aspectos do paradigma até este momento compartilhado, mas sobretudo tornou-se ponto de referência e foco de irradiação das críticas setoriais, precisamente, um dos temas centrais lançados a sombra pelo paradigma lógico positivista: o assunto da subjetividade. O tema do sujeito, o papel “criativo” do jurista, do jurista acadêmico, sobretudo do juiz, o caráter necessariamente “criativo” da interpretação voltam sempre como pontos de força, como suportes principais de uma tendência que se quer dura e intransigentemente oposta a cultura jurídica dominante. Com o segundo Jhering, com Gèny, com Kantorowicz, com os ilustres ou obscuros repetidores do verbo anti formalista tanto na Alemanha como na França ou na Itália, a palavra-guia da “criatividade” do sujeito é uma expressão que atravessa movimentos culturais e contextos históricos também notavelmente diferentes: que vão, simplesmente para exemplificar, do ecletismo de base neo jusnaturalista de Gèny ao positivismo dos juristas italianos do fim do século XIX, às veias irracionais do iusliberlismo “extremo”, ou às especulações neoidealistas da filosofia do direito dos anos vinte e trinta 5 do século passado. Posto isto, qual é o sentido da nova e anti formalista exaltação do sujeito e de sua “criatividade”? O que se quer dizer exatamente com esta expressão? O campo semântico da criatividade se estende, por assim dizer, entre dois extremos: de um lado o sujeito, de outro, o que é concebido como oposto e resistente ao sujeito, o dado, a objetividade, a realidade. O sujeito “criativo” é o que vai mais além do dado, que o nega transcendendo-o, um sujeito que não mantém uma relação mimética ou meramente reprodutiva da realidade, mas que inicia um percurso que o leva para além da objetividade do dado, para além da mera descrição do existente. Saber, prontamente, quais são as características do “outro” mundo ao qual o sujeito “criativo” se abre, é menos importante que o movimento que o leva até ele, que o mundo de possibilidades que se oferece ao sujeito logo que este se situa “criativamente” ante à experiência. Afirmar a preeminência do sujeito; transcender o objeto, o dado, a realidade; superar os estreitos limites do raciocínio meramente lógico; inventar alternativas: quais, se não estes, são os conteúdos que nossa atual enciclopédia, nossa linguagem corrente atribui a imaginação? A imaginação emerge, então, no contexto da mais viva rebelião contra o formalismo, como uma dimensão antropológica atribuível ao jurista e, por sua vez, como a 5 Sobre Gèny cfr., entre o último, o numero monográfico que lhe é dedicado pela revista Quarderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, XX, Milano, Giuffrè, 1991. Sobre o iusliberalismo em geral cfr. L. LOMBARDI, Soggio sul diritto giurisprudenciale, Milano, Giuffrè, 1967. Sobre a filosofia jurídica do neo- idealismo cfr. A. de GENNARO, Crocianesimo e cultura giuridica italiana, Milano, Giuffrè, 1974. conotação essencial de sua atividade profissional: é o jurista, e, sobretudo o juiz, no momento que interroga o direito existente para aplicá-lo, quem descobre que não pode individualizar a “norma do caso singular” simplesmente deduzindo-a de normas já dadas, que percebe que está executando uma obra não de registro, de recepção do que já existe, mas sim de invenção de algo que começa a existir no “aqui e agora” do procedimento jurisprudencial. A imaginação como dimensão constitutiva do jurídico sai, então, a plena luz, precisamente, no terreno da hermenêutica; e emerge junto com dotes que “naturalmente” (historicamente) a caracteriza: o papel da subjetividade, a valoração do movimento, a superação do dado. Diante do problema da interpretação, de seu papel, de suas modalidades, o paradigma lógico positivista havia experimentado sua capacidade de conduzir todo aspecto da atividade do jurista ao nexo ciência-lógica-objetividade-realidade. Mas é por meio de uma drástica revisão da hermenêutica “formalista” que a imaginação adquire direito de cidadania e indica como linha de desenvolvimento da atividade jurídica, em particular, da atividade jurisprudencial, o nexo subjetividade-invenção-mudança. Ciência/imaginação, objetividade/subjetividade, descrição/invenção: de novo encontramos então, depois de uma longa volta, também no terreno do jurídico, o mesmo jogo de oposições que interessa profundamente, além do universo jurídico, à cultura, e à sensibilidade, dos séculos XIX e XX. Neste jogo de oposições não se assiste tanto a uma definitiva Vendrängung da imaginação e de seus resultados, à aparição de um racionalismo completo e pacificado, como à proposta, outra vez, de uma oposição binária entre termos onde nenhum dos quais parece capaz de funcionar de modo duradouro por si só: porque cada um deles extrai seu sentido do outro, é definido (delimitado em seu campo semântico) pelo outro, atue o primeiro in absentia ou in praesentia do segundo. O descobrimento da imaginação, e dos temas atraídos pelo seu campo semântico,efetivamente anunciado e aclamado pelo variado exército dos “anti formalistas”, tende a se concentrar no terreno da hermenêutica e em particular na representação da atividade jurisprudencial, entretanto esforça-se em se apresentar como um ponto de vista capaz de substituir integralmente o anterior. O descobrimento da imaginação, para entendermos, a linha imaginação-construção-movimento-mudança-superação do dado, consegue com dificuldade propor-se como um ponto de observação a partir do qual se esboça/projeta o mapa do jurídico em termos radicalmente inovadores. Certamente não faltam juristas que defendem convencidos, para todos os campos do jurídico, os méritos da “criatividade” contra as prevaricações da lógica. Neste caso, entretanto, o que se dá realmente é a inversão dos termos da oposição, não a nova formulação de sua relação, não a superação de seu caminhar aporético. É, caso se me permita uma metáfora, a volta do destituído, que conduz à luz as instâncias colocadas na sombra, revela a constitutiva oposição destas quanto ao paradigma dominante, porém não consegue abatê-lo porque com ele compartilha sua íntima aporia, seu paradoxo essencial Para que se vislumbre a possibilidade de um novo paradigma não basta que a cultura jurídica, globalmente considerada, inclua a imaginação no próprio diagrama de oposições: é preciso que amadureçam as condições para projetar de forma diferente a trama da juridicidade. Uma destas condições parece ser a impugnação da lógica que governava a relação de oposição binária entre conhecimento e imaginação. Começa-se então a propor lentamente, uma atitude que considera a historicidade do sujeito, que duvida da possibilidade de um conhecimento direto, objetivo, mimético da realidade, que debilita as pretensões cognoscitivas do discurso do saber e reforça seus componentes metafóricos (imaginativos) e retóricos. Por conseguinte, o discurso do saber jurídico tende a perder o revestimento “cientificista” que o caracterizava, renuncia a pretensão de representar hegemonicamente a totalidade do campo jurídico, converte em problema a ideia da própria capacidade de descrever e a de sua “objetividade”: o discurso do saber é um discurso a mais (e simultaneamente uma prática entre outras) que inclui em uma única e complexa amálgama componentes “rigorosamente” lógicos, metafóricos, retóricos; o discurso do saber entrelaça-se com as formas narrativas e argumentativas próprias das diversas práticas jurídicas em um determinado contexto; compartilha com elas a dimensão hermenêutica; concebe-se em relação à atividade de um sujeito como integralmente “posicionado”; define-se em seu método, em seu estilo, em seu objeto, definitivamente, em seu paradigma, graças aos standards de reconhecimento e aceitação elaborados, em cada caso, pelo grupo profissional do qual o discurso é, simultaneamente, expressão e instrumento de legitimação. 4. Os juristas “em ação”: hipóteses e exemplos É preciso, neste momento, introduzir uma segunda pergunta, que conduza nossa atenção a partir daquilo que os juristas disseram, ou dizem que fariam, àquilo que realmente fizeram. Até aqui contamos sobre as mudanças na representação que os juristas modernos, os modernos teóricos do direito, davam sobre o discurso do saber jurídico e, em geral, da experiência jurídica. Nesta hipótese de narração a reconstrução do passado não era conduzida diretamente, pelo contrário era feita por meio de interposta pessoa; não se estudavam os produtos como tais, mas as apresentações (as recomendações, as intenções) dos produtores. Neste viés, interrogar-se sobre o “direito e imaginação” significa perguntar se os juristas representaram-se a si mesmos e a suas produções por meio de uma rede linguística conceitual que incluía (ou excluía) a imaginação (fosse qual fosse o sentido outorgado a este termo); e em caso afirmativo, de que forma. É possível, porém, levantar uma pergunta e um relato diferentes a hipótese. Vale dizer, assumamos como hipótese de partida nossas ideias de conhecimento, ciência, imaginação, realidade e deste ponto de observação contemplemos a cultura jurídica do passado; o espaço do relato nos vem agora dado, diretamente, pela organização do discurso do saber em um determinado contexto, e nossa pergunta sobre o “direito e imaginação” traduz-se em uma investigação sobre as estratégias cognoscitivas e argumentativas daquele mesmo discurso. Daí deriva uma consequência sobre os próprios limites de tal narração. Enquanto na precedente o elemento de partida, a dissociação entre conhecimento e imaginação, sugeria a coincidência do terminus a quo com a própria instauração da cultura jurídica “moderna”, na presente narração a pergunta de fundo – as estratégias cognoscitivas e retóricas do discurso jurídico – nos impõem uma rígida contextualização, ainda que possam sempre ser de novo propostas em contextos históricos sensivelmente diversos. Com maior razão, a hipótese de narração que tentarei representar virá desenvolvida não só esquematicamente, mas também rapsodicamente: não só indicarei unicamente os títulos dos capítulos como até agora, senão que, neste caso, não enumerarei sequer todos os capítulos principais, pois citarei só algum isolado exemplo. 4.1 “Imaginar” o texto: o caso dos juristas medievais – Nossa provisória pergunta de partida pode assim ser resumida: Quais são as características cognoscitivas de um discurso do saber que em um determinado contexto é declarado e reconhecido como jurídico? Quanto a que e de que forma, este discurso produz conhecimento? Demos, em uma primeira aproximação, a resposta mais simples e convincente: o discurso do saber jurídico mostra-nos o que o direito é, em um certo contexto, e qualquer que seja o sentido da expressão “direito”. A resposta é simples e clara, mas induz, de imediato, a um primeiro e recorrente equívoco: é uma resposta que pressupõe, de um lado, a existência de um sujeito da operação cognoscitiva, e, de outro, a existência de um objeto, o direito (as instituições, as leis, os costumes, a vontade do soberano e tudo mais) que, diante do sujeito apresenta-se como já dado, definido, em si mesmo concluído: um objeto que tem a mesma conclusiva “objetividade”, queria dizer naturalidade, que o mundo. A operação cognoscitiva do jurista nasce “depois”, exercita-se sobre uma “realidade” já constituída, que não espera mais do que ser completamente representada mediante o discurso do saber. Imaginemos uma exposição historiográfica que, segundo este esquema, nos descreva a origem e o desenvolvimento do saber jurídico medieval, a formação do ius commune por meio do “redescobrimento” do direito romano. Precisamente, o “redescobrimento”: a mesma expressão, tradicional, faz pensar em um universo jurídico já existente que o jurista medieval traz à luz, como um tesouro que, longamente sepultado, é desenterrado, mas segue sendo o que era. Na realidade, o direito romano, como magnitude já dada, não existe e não existia para os primeiros glosadores. Não existiam o direito e as normas, existiam alguns (complicados, obscuros) textos, os textos da compilação justiniana, junto com muitíssimos outros. O texto justinianeu não era por virtude própria o direito, existente em si mesmo e que não esperava mais que ser conhecido ou reconhecido. O texto justinianeu, como qualquer outro texto, precisava que um leitor lhe atribuísse algum sentido: é com esta atribuição de sentido, é com esta operação interpretativa 6 que se atribui ao texto, caso se lhe atribua, o caráter da juridicidade. A juridicidade não é uma qualidade objetiva do texto, mas um standard conferido a um texto em meiode um intricado itinerário interpretativo. Entender o texto justinianeu, para Irnério e companhia, era então uma complexa tarefa, cujas fases deviam ser aproximadamente as seguintes: a) escolher o texto, decidir qual é o texto (qual seu início, seus componentes, seu final) sobre o qual será feita a operação interpretativa; b) decidir se esse texto é um texto prescritivo, atribuir-lhe um sentido, isto é, captar o núcleo normativo; c) argumentar, em favor do caráter prescritivo do texto, de sua “atualidade” normativa, de sua autoridade; d) reconhecer-lhe finalmente o caráter da “juridicidade” (qualquer que fosse o significado do termo). O saber jurídico medieval configura-se como um discurso que inclui procedimentos de individualização, antes que de conhecimento do direito. O jurista decide, em um único movimento, sobre o texto, seus limites, suas características, seu uso: o jurista constrói o texto como “próprio” texto, como texto para si, no momento em que o “conhece” e, vice-versa, conhece o texto à medida que o individualiza, que fixa o seu papel de texto (em nosso caso, de texto autorizado, prescritivo, jurídico, etc.), que o constitui em sua aparente objetividade. 6 Sobre a relação entre interpretação e texto jurídico cfr. G. TARELLO, L’intepretazione della legge, Milano, Giuffrè, 1980; R. GUASTINI, Le fonti del diritto e l’intepretazione, Milano, Giuffrè, 1993. O jurista medieval constrói seu próprio texto prescritivo e é, ao mesmo tempo, “construído” pelo texto. É preciso destacar a complexidade deste “duplo” reconhecimento. Em primeiro lugar: o jurista medieval não constrói o direito romano como texto próprio movendo-se na terra de ninguém, escolhendo livremente os próprios textos e os próprios procedimentos de leitura. O processo de constituição e de leitura do texto vêm enormemente predeterminados pela situação em que o jurista medieval efetivamente atua: a transformação do Corpus iuris, por sua parte nesse macro texto prescritivo jurídico que está na base do ius commune é o produto de um cruzamento extremamente complexo de interesses, símbolos, crenças, expectativas que constituem o mundo a partir do qual o sujeito, o jurista, atua, constrói os próprios textos, os interpreta. Em segundo lugar, no momento em que o sujeito, um grupo de sujeitos, constrói uma série de textos como ponto de referência da própria atividade cognoscitiva, aquele sujeito, aquele grupo de sujeitos, constitui-se a si mesmo como grupo designado para conhecer ”autorizadamente” o âmbito de experiência sobre o qual os textos, agora, se referem. E de novo o jogo dos reconhecimentos (dos sujeitos aos textos, dos textos à sociedade, da sociedade ao reconhecimento “profissional” dos sujeitos) avança por meio de uma complicada trama de remissões recíprocas, mediante um jogo interativo perfeitamente circular. Construído o texto como texto “próprio”, certamente deverá o jurista se ocupar tanto no conhecimento como na difusão do conhecimento do texto prescritivo jurídico previamente escolhido. E quem fica convencido com os argumentos que precedem poderá pensar que ao menos neste momento o jurista conhece efetivamente o próprio objeto: encontra-o, entende-o, expõe-no ao próprio público, capta sua “verdade” imanente. É preciso ter em mente, porém, uma informação elementar, que não secundária. O jurista conhece o direito quando interpreta textos. O que podemos pensar sobre a estratégia (e o alcance) cognoscitivo do discurso do saber jurídico passa necessariamente pelo que pensamos sobre o processo de interpretação dos textos, sobre os pressupostos, sobre as condições de sua eficácia. Neste estudo, não tenho como esgotar em poucas linhas todo o debate hermenêutico do século passado e do atual. Posso somente recordar, esquematicamente, algumas das principais características compartilhadas por quem se encontra, por assim dizer, no ponto de confluência da epistemologia pós-positivista e da tradição hermenêutica “radical” ou radicalmente “subjetivista”7: a) o sujeito interpreta os 7 Cfr., como obra fundamental dessa perspectiva, S. FISH, Doing what comes naturally. Change and practice of theory in literary and legal studies, Oxford, Claredon Press, 1989. Do ponto de vista semiótico cfr. B.S. JACKSON, Law . Fact and Narrative Coherence, Roby, Merseyside, Deborah Charles Publications, 1988. textos a partir de sua “situação” integral; b) o sentido do texto não é uma qualidade objetiva dele mesmo, imanente, pelo contrário o sentido é atribuído ao texto pelo intérprete; c) o intérprete reescreve o texto em função das perguntas, dos interesses, das exigências que caracterizam seu presente; d) não há critérios racionais e absolutos sobre a verdade ou falsidade de uma interpretação; e) a verdade sobre uma interpretação manifesta-se por meio do consenso obtido a partir de pressupostos compartilhados por um grupo, por uma sociedade, em um contexto determinado; f) não podendo a interpretação de um texto ser apresentada como apoditicamente verdadeira, traduz-se em uma estratégia de persuasão do interlocutor com fundamento nos pressupostos “localmente” aceitos pelo próprio interlocutor; g) a argumentação interpretativa não pertence ao domínio da lógica, mas da retórica. Para quem compartilha destas afirmações o discurso jurídico, em geral, em sua variada fenomenologia histórica, e o saber medieval, em particular, oferecem contínuas e sugestivas ocasiões de verificação. Voltando, agora, a pergunta: pode-se dizer que o jurista medieval “conhece” o direito romano interpretando-o? Que ele entende o sentido imanente dos textos justinianeus, que ele o representa como “objetivamente” é, e finalmente o propõe, simultaneamente, como norma para a própria sociedade? Ou de modo mais adequado, precisamente porque “interpreta” o Corpus iuris, o reescreve produzindo um discurso, o seu próprio discurso, radicalmente novo, incomensurável e imprescindível com relação ao texto? O jurista não “conhece” um direito já dado, não contempla um sistema de normas, como se estas fossem essências ideais que a razão jurídica contempla e depois aplica. O jurista constrói o próprio texto como texto jurídico, lhe atribui um significado, interpreta-o e, portanto, reescreve-o a partir da própria Lebenswelt e em função dela. Acerca do tema, vislumbram-se dois exemplos. Pense-se na doutrina medieval do dominium 8 ou no significado de iurisdicito 9 . O jurista não contemplava, no texto romano, um significado previamente existente, como se o domínio dividido fosse, pelo menos, um dos significados possíveis de serem extraídos da abertura do texto. Os juristas medievais, de fato, comportaram-se com relação ao texto romano segundo a lógica daquele tipo de intérprete que Rorty chama, elogiosamente, o textualista forte 10: “sacudiram” o texto até adaptá-lo a forma de seu discurso, reescreveram o texto no momento em que o interpretavam. Não foi diferente a operação efetuada com os textos romanos referentes à iurisdicitio e ao ordenamento 8 Cfr. P. GROSSI, Le situazioni reali nell’eserienza giuridica medievale, Padova, Cedam, 1968. 9 Cfr. P. COSTA, Iurisdictio. Semantica del potere político nella publicista medievale, Milano, Giuffrè, 1969; J. VALLEJO, “Power hierarchies in Medieval Juridical Thought. An Essay in Reinterpretation”, in Jus Commune, XIX, 1992, p. 1 ss.; Id. Ruda equidad, ley consumada. Concepción de la potestad normative (1250-1350), Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1992. 10 R. RORTY, Conseguenze del pragmatismo,Milano, Feltrinelli, 1986, p. 16. hierárquico das magistraturas romanas. Dilataram enormemente o campo semântico de iurisdictio para fazê-lo coincidir integralmente com o “processo de poder político”, receberam o que podia lhes servir, deixaram de lado o que consideravam que não poderia ser reescrito e, portanto, desenvolveram um discurso que, mediante a contínua interpretação/reescrita de textos de autoridade (construídos como jurídicos), acompanharam (preparado, representado, legitimado) um longuíssimo processo institucional a partir da sociedade comunal às estruturas burocráticas dos primeiros Estados Nacionais 11 . O jurista medieval, então, não exercia sua atividade “conhecendo” um sistema de normas externas, hospedando-as em um discurso que delas fosse espelho: escolhia os textos e os interpretava escrevendo por meio deles o seu próprio discurso do saber. Não refletia um mundo já dado, mas sim construía um mundo novo, construía o que os semióticos (e os lógicos) chamariam de um mundo possível 12 . O mundo que ele construía não era a simples reprodução do mundo da experiência comum, assim como não era a representação do sentido já dado ao texto romano: era a elaboração de um discurso que, mediante a interpretação/reescrita do texto justinianeu, dava lugar a uma exposição dotada de coerência interna, e cujos protagonistas, ações, problemas moviam-se em uma realidade alterada no que concerne à experiência cotidiana, funcionavam em um mundo “doxástico” conectado por mil fios ao mundo “real”, mas ao mesmo tempo distinto deste. 4.2 “Imaginar” o objeto: exemplos do século XIX – É certo: referir-se aos juristas medievais como autores de um discurso de saber que não descreve um mundo existente, seja o mundo das “normas” ou o mundo da “realidade”, mas que constrói, inventa, imagina um mundo por meio da interpretação, diria que mediante um sistemático misreading, da textualidade justinianea, pode parecer um fácil modo de valorizar o ponto de observação “pós-positivista” no qual idealmente nos situamos: porque falamos de uma cultura ainda muito alheia a “moderna” focalização da oposição binária conhecimento/imaginação. Acredito, porém, que não faltarão tampouco ocasiões de verificação em pleno positivismo do século XIX. 11 A. M. HESPANHA, “Justiça e administração entre o antigo regime e a revolução”, em Hispania entre derechos própios y derechos nacionales, Milano, Giuffrè, 1990, vol. I, p. 135.ss.; L. MANNORI, “Per uma preistoria della funzione amministrativa”, em Quaderni fiorentini per la istoria del pensiero giurido moderno, vol. XIX, MIlano, Giuffrè, 1990, p. 323 ss. 12 Cfr. U. Eco, I limiti della interpretazione, Milano, Bompiani, p. 1990, p. 193 ss. Não posso aqui discutir adequadamente a possibilidade e os limites do uso do conceito de “mundo possível”. Tomemos rapidamente em consideração um aspecto inescusável da cultura jurídica do século XIX: a constituição de uma doutrina do Estado, de um saber sobre o Estado, que se quer intransigentemente jurídico. É preciso antes de tudo sublinhar dois aspectos deste fato. Em primeiro lugar, o jurista se move em uma atmosfera rarefeita e insólita: vem produzindo um discurso que não só se organiza segundo os cânones já consolidados de generalização e sistematicidade, mas que também foge, em termos certamente anômalos em relação a maior parte dos textos do saber jurídico, de qualquer específica dimensão hermenêutica. Não há, para a iuspublicística do final do século XIX – penso, sobretudo, na Itália, mas o discurso parece-me que se estende também para a Alemanha – textos prescritivos de cujo saber se possa fazer, em primeira ou segunda instância, interpretação. Em definitivo, não há nada na iuspublicística que recorde a relação que, na iusprivatística, estabelecia-se entre a “construção” do sistema e a referência às fontes romanas, primeiro, e a codificação, mais tarde. A iuspublicística desenvolve-se em uma espécie de “vazio” hermenêutico que a obriga a apresentar seus próprios standards de juridicidade à margem de significativas conexões com textos prescritivos. Em segundo lugar, com a iuspublicística italiana e alemã entre os séculos XIX e XX, de Gerber a Jellinek, de Orlando a Romano, nos encontramos diante daquele discurso do saber que, em homenagem ao que chamei de paradigma lógico positivista, sublinha a “pureza” do próprio método e a objetividade dos resultados: encontramo-nos, definitivamente, diante de um discurso do saber que não legitima a si mesmo exibindo alguma conexão hermenêutica com textos de autoridades (dados por) jurídicos, mas que tende a se fundamentar diretamente na reivindicação do rigor lógico dos procedimentos argumentativos, de caráter “puramente” descritivo, não valorativo, dos enunciados de que se compõe, e, portanto, no alto valor cognoscitivo conferido a estes. Dizer então que a iuspublicística de inspiração lógico positivista constitui um possível terreno para verificar a existência de uma dimensão “imaginativa” no discurso do saber jurídico parece uma provocação mais do que uma hipótese plausível. Ao contrário, logo que deixamos para trás, como historiadores da iuspublicística dos séculos XIX e XX, as declarações de método (ou de tentativas) e seguimos o discurso na efetiva construção do seu próprio objeto, analisamos seus procedimentos argumentativos, seguimos suas principais preocupações, vemos emergir um tecido argumentativo mais complexo e “equívoco” que aquele que o modelo “cientificista” queria nos fazer acreditar. Ressalta em primeiro lugar a contínua intervenção da metáfora: uma intervenção que não pode ser reduzida a um mero jogo de estilo, mas que é compreensível em relação ao esforço inventivo e construtivo que, para dizer parodiando um célebre título “no ha altre parole” para dizer aquilo que diz13. A mesma definição do objeto, a definição de Estado, a relação Estado sociedade, busca continuamente no thesaurus das grandes metáforas da tradição filosófico-política: e entre estas, sobretudo, a metáfora organicista, sucessivamente reformulada segundo os pressupostos culturais de um ou outro jurista, mas sempre irredutível, em qualquer resolução, a conceitos distintos e claros, ou seja, “unívocos”. A representação do Estado, definitivamente, que coincide também, para a iuspublicística do século XIX, com a individualização do próprio objeto teórico, aparece continuamente suspensa entre uma análise puramente “jurídica” e um contínuo, dissimulado mas operante, retorno do mito: o saber jurídico, no momento em que observa o Estado em termos rigorosamente “positivista”, simultaneamente, no mesmo movimento discursivo, caracteriza o Estado com os grandes atributos “míticos” da eternidade, da “personalidade”, da ética “realizada”. A iuspublicística, também e precisamente a iuspublicística como “ciência” rigorosa, não descreve o Estado como o resultado objetivo de uma série de normas simplesmente constatadas, senão que constrói o Estado, converte o Estado em tema por meio de uma densa rede de metáforas, retém-no dentro do círculo mágico do mito e deste modo, em termos ao mesmo tempo analíticos e metafóricos, descritivos e valorativos, “científicos” e “míticos”, o assume como campo teórico próprio. O saber jurídico, em um momento “alto” de tensão cognoscitiva, organiza-se como discurso eficaz porque conduz por um mesmo canal metáforas, imagens, esquemas rigorosamente lógicos: em síntese, a medida que constrói e imagina o próprio objeto no momento em que pretende descrevê-lo 14 . Eu me referi, portanto, em uma espécie de rápida “exibição de amostras”, a dois tiposde discursos do saber jurídico tão diferentes entre si que aparecem como substancialmente opostos: de um lado, um saber jurídico que, depois de um desenvolvimento secular, estabeleceu-se por meio de uma contínua interpretação/reescrita dos textos de autoridade; de outro, um saber jurídico que em uma mais breve, mas intensa temporada, desenvolveu-se à margem de comprometedoras e constantes operações hermenêuticas. De qualquer sorte, nos dois casos, apesar do diferente contexto histórico, do panorama cultural e dos procedimentos empregados, o saber jurídico, progressivamente elaborado, parece nos mostrar um jogo retórico rico e heterogêneo, que entre seus recursos pode também incluir (com aparente paradoxo) a pretensão “positiva” da “pura” descrição, mas que, no seu efetivo funcionamento, 13 Sobre o papel da metáfora no discurso do saber cfr., por exemplo, M. BLACK, Models and Metaphors, Ithaca, Cornell Univ. Press, 1962; M. HESSE, Modelli e analogía nella scienza, Milano, Feltrinelli, 1984. 14 Vale uma remissão, para uma análise mais próxima do problema, a P. COSTA, Lo Stato immaginario. Metafore e paradigmi nella cultura giuridica italiana fra Ottocento e Novecento, Milano, Giuffrè, 1986. não se reduz nunca ao simples “reflexo” do dado, à reprodução de um “direito” existente antes e independente dele. Outra prova que corrobora as ideias acima pode ser encontrada no “mostruário” que nos leva para fora do âmbito dos discursos do saber, mas que nos coloca em contato com uma das práticas jurídicas mais relevantes, a atividade jurisprudencial. Pensemos na jurisprudência da França ou da Itália do século XIX, em um clima dominado, como é (inclusive demasiado) sabido, pelas grandes codificações e pela conexa e imperante ideologia do código. É a ideologia, revolucionária e pós-revolucionária, que inclui os temas da centralidade da lei, da divisão dos poderes, da subordinação do juiz à lei, é uma ideologia que proclama e recomenda o caráter meramente “executivo” da atividade jurisprudencial; é uma ideologia que se prolonga em uma hermenêutica “objetivista”, na qual o sentido da lei já existe e é tendencialmente claro, na qual o juiz verifica o fato e o direito e silogisticamente “deduz”. Neste quadro, (que é, em substância, o mesmo que continuaremos delineando quando nos referimos à época da codificação) provavelmente não só se reconhecia a cultura jurídica da época, mas também a jurisprudência: e o juiz, ou ao menos a received view da jurisprudência que em torno de sua própria função e das operações hermenêuticas cotidianamente praticadas sobre o texto “código” não vacilava certamente em apresentar e legitimar o seu papel profissional segundo a retórica do “juiz/boca da lei” e do silogismo judicial. O problema, entretanto, é de novo o seguinte: que relação existia entre a apresentação do seu próprio papel em uma revista acadêmica ou na reunião de um congresso, as dissertações hermenêuticas (foram universitárias ou extra universitárias) e o contínuo, cotidiano atuar da jurisprudência? Somente assumindo, hoje, a ingênua hermenêutica “objetivista” da época da codificação poderemos preencher a relevante brecha que devia separar, uma vez mais, o que se dizia (por parte dos juristas acadêmicos, de juízes) sobre a interpretação do que se fazia com a interpretação, o discurso hermenêutico da prática interpretativa. Devo efetivamente me expressar em termos hipotéticos e provisórios, não só por causa da minha ignorância sobre o problema, mas também por causa da escassez, ainda hoje, de estudos de história da jurisprudência. Posso de todos os modos me referir a algum indício, quando não a uma verdadeira “amostra de amostras”, que permita, se não resolver o problema, ao menos, continuar os raciocínios em torno dele. Sugiro, como primeiro indício, um testemunho indireto, mas significativo, em virtude do personagem que o profere: Gèny. O jurista francês não se mostra simpático à ideologia da codificação, culpada de restringir o papel do jurista aos estreitos limites de uma “técnica” marcada pelo “fetichismo da lei”: uma lei que, como expressão da vontade do legislador, está ligada à política, à sociedade para a qual foi projetada. Precisamente por isso, o jurista encontra-se diante de um dilema: reservar-se ao reconhecimento e “governo” da mudança social, restringir-se a uma temporalidade absurdamente “imóvel”, ou recolocar a sua tarefa para além dos limites da lei e de sua interpretação, para identificar as regras inscritas na natureza “profunda” das relações sociais. Existe, na realidade, uma terceira via, que Gèny menciona para criticá-la: que é precisamente a que, a seu juízo, seguiu a jurisprudência francesa durante lustros, em pleno triunfo da ideologia do código. O que os tribunais franceses realmente fizeram foi entrar espontaneamente em uma rota que colidia com esse “fetichismo da lei” que os anti formalistas começam, nesse momento, a reprovar na cultura tradicional. Os exemplos indicados por Gèny são numerosos e significativos 15 (do direito de família às condições do contrato, ao problema da responsabilidade civil) e servem ao autor para demonstrar o aberrante “subjetivismo” da interpretação jurisprudencial da lei. Mas o que nos interessa não é seguir Gèny naquilo que em sua opinião o jurista deveria fazer, mas tomar seu testemunho sobre o que o jurista, o juiz (não deveria fazer, mas) faz, com ou sem o beneplácito dos Kathederjuristen, exegetas ou anti formalistas. “Dans la pensée de la Cour suprême – observa Gèny – le texte légal devient un instrument de mise en oeuvre juridique (…) estimé suivant les ressources qu’il est susceptible de fournir à l’interpréte”16. Não poderia ter dito melhor. A interpretação dos textos prescritivos é uma “mise em ouvre juridique” que reescreve o texto em razão do “presente” do intérprete: que não encontra e repete um dado existente previamente, não o registra como é, mas o inventa, o imagina, e nos comunica sobre ele mediante um texto que é novo precisamente porque interpreta (não apesar de que interprete) um texto preexistente. Se depois, a margem dos verossímeis testemunhos, olharmos para Itália, nos deparamos com uma situação substancialmente idêntica. Faz-se obrigatório mencionar o setor de intervenção da (nascente) iuslaborística. O jurista, tanto o acadêmico como o juiz, enfrenta uma grave separação, que se evidencia com o transcorrer do tempo, entre a codificação de 1865, expressão de uma sociedade em grande medida ainda pré-industrial, e a acelerada industrialização dos anos oitenta e noventa, com a seguinte e relevante transformação (quantitativa e qualitativa) do conflito social. Não posso entrar nas particularidades deste 15 Crf. F. GÈNY, Méthode d’inteprétration et sources en droit privé positif, 2e. ed., París, Libraire Générale de Droit et de Jurisprudenze, 1932, vol. I, p. 261. 16 F. GÈNY, Méthode d’inteprétration, cit., p. 261. evento, cujo significado em relação ao nosso problema, é, por outro lado, bem conhecido 17 : a classe jurídica, em sua totalidade (obviamente, por meio da contínua interação de posições explicitamente diferenciadas e de pressupostos tacitamente compartilhados), protegeu seu próprio papel, sua capacidade de intervenção também ali onde os textos prescritivos mostravam-se particularmente não aptos para um uso (aparentemente) simples e “imediato” e “inventou” de todos os modos as soluções normativas, imaginou o direito; imaginou esse direito que sucessivamente a total interação social, a distribuição do poder, os valorescompartilhados, os esquemas referenciais sugeriam e recomendavam. Qualquer que fossem as teorias hermenêuticas sustentadas, qualquer que fosse o conteúdo das dissertações acerca da “intenção do legislador” e dos limites da interpretação, a classe profissional dos juristas não se limitou a constatar, a registrar “o direito que é”, pelo contrário continuamente lançou-se a prefigurar, imaginar, recomendar “o direito que não é”, enquanto a teoria do caráter “descritivo” e “meramente aplicativo” da interpretação jurisprudencial não funcionava em absoluto como sujeição efetivamente operante para sua cotidiana atividade profissional, senão só como componente da prórpa “retórica de classe”, como marionete de uma eficaz estratégia persuasiva. 4.3 “Imaginar” o direito: o jurista e o legislador – Até agora falei do discurso jurídico como um discurso que, regra geral, ainda que não sempre, refere-se “interpretativamente” a textos prescritivos já dados, seja para por meio deles descrever (e ilustrar didaticamente) o objeto “direito”, ou para identificar a “norma do caso individual”. Convém, neste momento, ao menos aludir a um tipo de intervenção do jurista que, em muitos aspectos (mas não em todos, como logo mencionarei), diferencia-se daqueles anteriormente tratados, justamente, porque não se refere a textos prescritivos já dados, mas que sugerem a redação “em pessoa” de textos prescritivos originais. Em resumo, o jurista, recorrentemente e nos mais diversos contextos históricos, intervém ativamente no processo de redação das leis, oferece seus serviços a um comitente que neste caso não é um indivíduo ou grupo social como tantos, mas a elite política em plena atividade de “governo por meio das leis”. A partir da redação dos estatutos na sociedade comunal ao processo de criação e consolidação das instituições das monarquias absolutas, ao código Napoleônico, às constituições e às 17 Cfr. Por exemplo C. VANO, “I ‘problemi del lavoro’ e la civilistica italiana alla fine dell’Ottocento: il contributo di Emanuele Gianturco” em A. MAZZACANE (a cura di), L’esperienza giuridica di Emanuele Gianturco, Napoli, Liguori, 1987, p.167 ss.; ou para o problema da responsabilidade, G. CAZZEITA, Responsabilità aquiliana e frammentazione del diritto comune civilistico (1865-1914), Milano, Giuffrè, 1991, p. 327 ss. codificações de nosso século 18 , até as mais recentes reformas legislativas, o jurista intervém como um “conselheiro do Príncipe” dificilmente substituível. Aparecem neste ponto duas perguntas: o que oferece realmente o jurista ao seu augusto comitente Quais são as características da intervenção do jurista? As respostas comumente produzidas são compatíveis, mas potencialmente equivocadas. À primeira pergunta responde-se apelando para “técnica” que o jurista detém: a “matéria” decorrente da “vontade política” recebe do jurista a “forma” adequada, o léxico, as definições, as distinções necessárias e suficientes para transformar-se em norma. A resposta é verdadeira sempre que não se leve muito a sério a salomônica divisão de tarefas entre “legislador” e “jurista”, sempre que não se entenda a técnica do jurista como algo, ao mesmo tempo, misterioso e instrumental: um passe-portout em poder de alguns especialistas, suficiente para abrir qualquer porta. Na realidade, o jurista, como coautor de textos prescritivos, como sujeito profissional inserido em uma interação estreita e continuada com a classe política – ele é, às vezes, um importante expoente desta classe –, pois não fornece instrumentos aptos para qualquer fim, mas sim oferece a classe política um discurso que inclui em si mesmo, espontaneamente, uma imagem de sociedade e um projeto de sociedade, uma ideia do que a sociedade é e uma proposta do que a sociedade deve chegar a ser. Chega-se, assim, a resposta da segunda pergunta, acerca das características próprias da intervenção do jurista conselheiro do Príncipe: trata-se de uma intervenção projeto, de uma intervenção na qual abertamente e “por definição” o jurista encontra-se diante do jurídico existente para transcendê-lo, onde ele não descreve algo, mas inventa, projeta, ou seja, imagina. Mas, é fundamental aclarar, imediatamente, um equívoco. A projeção que se descobre no drafting do jurista conselheiro não é o momento excepcional de um discurso que no desenvolvimento ordinário e multiforme possui peso suficiente para fazer frente e “governar” as mudanças sociais: é, sob esse enfoque, a continuação de um mesmo jogo só que sobre outro tabuleiro, com as devidas adaptações em virtude de serem diferentes os jogadores e a aposta. Visando construir um “mundo possível” de certo modo autônomo e delimitado quanto ao mundo da experiência comum, restrito pela sua legitimação social a rastrear e controlar os conflitos de interesses e a mudança dos equilíbrios, o discurso do jurista se acha, por assim dizer, atado por um duplo fio à carruagem (aparentemente bem colorida para a austeridade de sua retórica de classe) da imaginação. 18 Como exemplo, pensa-se em Portalis, em Windscheid ou, no caso da Itália recente, em Rocco, Redenti, Calamendrei. 5. Conhecer, imaginar, projetar Mesmo em contextos históricos tão distintos que parecem dificilmente cotejáveis, mesmo em uma enorme variedade de relações com os textos prescritivos, o discurso do jurista (do jurista acadêmico, do jurista/“legislador”, do juiz) mostra-se sempre e de qualquer forma como um tecido composto, como uma trama de diversos materiais que se mantêm unidos pela existência de construir um “mundo possível”, uma exposição coerente, na qual os dados da experiência não vem reproduzidos (e, por outra parte, em que discurso os dados vem “simplesmente” reproduzidos?) mas sim trasladados nessa específica forma narrativa, reconhecida (em um contexto determinado) como jurídica. Nesse passo, é possível seguir o rastro de alguns elementos que, em que pese a variedade de estilos e conteúdos da narração, tendem a trazer de volta a imaginação jurídica? Acredito que é possível responder afirmativamente a pergunta e fazer referência, como hipótese, a alguns elementos peculiares do universo do discurso jurídico. a) O jurista produz seu discurso como sujeito pertencente a uma específica comunidade profissional, como sujeito definido por uma densa rede de ações e interações, de conflitos, de solidariedade, de relações de poder, de esquemas de comportamentos, valores, normas socialmente comuns: está, por assim dizer, dentro da densa e viscosa amálgama da interação social na qual o discurso jurídico toma forma, é lido, usado, produz seus efeitos. Mas mesmo assim, porém, o discurso jurídico não se diferencia substancialmente de qualquer outro discurso do saber. Sua especificidade surge quando se leva em consideração o mundo que ele próprio constrói/imagina. Da complexa realidade da interação social o discurso jurídico seleciona alguns fragmentos (esquemas de comportamento, sujeitos, hierarquias, poderes), graças aos quais a dispersão desordenada de conflitos, a incalculável diversidade de sujeitos, de ações, de estratificações sociais, são devolvidas a uma narrativa que as expõe como momentos de uma ordem completa. O mundo possível que o jurista acede a narrar é a realidade na qual ele concretamente atua, a realidade da experiência comum que está diante dele, com toda a sua complexidade e variedade. Mas ao mesmo tempo, esse mundo imaginado pelo jurista não é mais a complexa realidade das mais variadas interações e conflitos, mas uma realidade composta e “bloqueada” comoum jogo de peças unidas onde os sujeitos, as ações, as normas, as transgressões são previstas, ordenadas, colocadas cada uma em seu lugar: o mundo possível que o jurista imagina é um mundo essencialmente ordenado, é o mundo como ordem. b) O mundo construído/imaginado pelo jurista requer um horizonte temporal no qual se situar. No momento em que o jurista imagina a ordem, não pode senão incluir também, em sua visão de ordem, uma visão de temporalidade. Portanto, está-se diante de um aparente paradoxo. O jurista imagina um mundo que em parte ainda é, e em parte não é mais, o mundo da experiência comum: sua narração fala efetivamente sempre do teatro da vida cotidiana, contudo dela retira a variedade, a fluidez, em uma palavra, a contínua mudança e movimento. Deste ponto de vista, o mundo imaginado pelo jurista parece fixo a uma espécie de eterno presente, extraído do movimento, indisponível para todo esforço de historização (é precisamente sobre esta base que poder-se-ia talvez entender a recorrente tendência do discurso jurídico a “dogmática”, a um saber “firme e estável”). Na realidade, sob outro ponto de vista, o movimento, o fluxo da temporalidade rompe no universo jurídico, passando não por uma porta secundária, mas pela principal, seja qual for a barreira anti-historicista erguida por um ou outro teórico do direito. O mundo possível que o discurso jurídico constrói, na verdade, não é só um mundo imaginado, é também um mundo projetado: os sujeitos, os tipos de ação, as normas, os papéis, as transgressões, as sanções, as hierarquias dos quais o relato jurídico se compõe não são sujeitos “reais”, não são sequer os sujeitos e ações da experiência cotidiana, mas pertencem de todos os modos, a uma narração que, no momento que imagina os próprios personagens e ações como figuras do próprio mundo, tende também a impô-los como figuras da “realidade”. O discurso jurídico é, intrinsecamente, também um projeto de sociedade. Quando o jurista exerce a função de conselheiro do Príncipe seu discurso de projeto de sociedade é programático e aberto, quando ele intervém como juiz de um conflito o discurso é, de modo geral, dissimulado e deslocado. Qualquer que seja seu papel específico, o jurista imagina para realizar, imagina para construir, imagina em relação a uma forma de sociedade que ele (regra geral no mesmo instante) descreve, prescreve, deseja. É exatamente esse caráter projetista da imaginação do jurista que reintroduz a temporalidade no mundo por ele construído e dá simultaneamente a essa temporalidade uma flexão particular. A ordem imaginada pelo jurista aparece, deste modo, não como uma fotografia da ”realidade”, mas como um esquema de atuação sobre ela: uma intervenção que se mede programaticamente com as anomalias, as resistências, a diversidade, em uma palavra, com a contínua mudança e fluxo da interação social. Percebe-se, portanto, que o discurso jurídico, no momento que constrói/imagina o próprio mundo possível como mundo ordenado, como “ordem projetada” ou, se preferir, como “projeto de ordem”, postula precisamente esse nexo constitutivo com o movimento, com a temporalidade (com o passado, com o futuro) que, paradoxalmente, parecia excluir por definição. O nexo passado-presente-futuro converte-se assim em uma condição obrigatória (também) do agir do jurista: o jurista constrói seu discurso do saber mediante uma contínua reescrita da tradição e pensa a ordem do direito “que é” (também) como projeto de uma sociedade que deve ser, que poderá ser (será). O juiz é, institucionalmente, quem resolve um conflito a luz de uma ordem (aparentemente) já dada e imóvel, que, sem embargo desdobra suas potencialidades de projeto exatamente no momento em que o juiz reformula o conflito em função de uma dinâmica intersubjetiva sempre nova e diferente. A imaginação jurídica desdobra-se em uma narrativa programaticamente suspensa entre a representação de uma ordem que existe somente enquanto “descrição” (no mundo possível do jurista) e outra que é colocada como projeto que existe somente enquanto "atuação" (no âmbito da cotidiana interação social). Suspenso entre ordem e projeto, entre contemplação “desinteressada” e intervenção “pretendida”; unido não só a parte subjecti, mas também a parte objecti, ao mundo da experiência cotidiana, a complexa geografia de poderes, papéis sociais, estratificações socioeconômicas; o discurso do jurista parece se negar a uma só dimensão do imaginário: a dimensão da utopia. É singular constatar como, na longa e fascinante panorâmica de ilhas felizes e cidades perfeitas 19 , a contribuição do jurista, como tal, é totalmente secundária; é singular, mas coerente com sua “antropologia de classe” e especificidades de seu discurso. Preso a imaginar a ordem de seu presente (a imaginar o presente como ordem), o jurista pode incluir o futuro como variável dele dependente. A prefiguração de um futuro radicalmente distinto é um jogo tendencialmente perigoso e não é, em qualquer caso, o jogo para o qual o jurista considera-se profissionalmente preparado. Certamente parece que não haveria nada mais fácil, para ele, que imaginar as melhores leis, as melhores instituições, as melhores formas de governo para a Cidade do Sol: é precisamente em leis, instituições, formas de governo, que ele é astuto. Entretanto, aquilo que faz a dimensão utópica estranha ao imaginário do jurista é seu caráter “radical” e “não atual”: não atual porque incapacita precisamente esse presente em relação ao qual, e só em relação ao qual, o jurista dispunha-se a conceber o futuro; radical porque pretende cortar pela raiz essa rede de poderes, papeis, hierarquias que (nos mais diversos contextos, com significativa recorrência) constituem a base 19 Cfr., para uma fascinante sinopse, A. MANGUEL – G. GUADALUPI, Guía de lugares imaginários, Madrid, Alianza Editorial, 1992. de sustentação da legitimação social do jurista e ao mesmo tempo o “material” que o jurista utiliza criativamente em sua narração. INTERVENÇÕES Jesús Vallejo: Queria introduzir uma questão já quase ao final deste seminário: durante todo o tempo vem se falando das paixões do jurista, do jurista em geral, e a verdade é que o auditório e os debatedores são em sua grande maioria historiadores do direito, juristas, sim, mas em uma dimensão especial. O assunto que gostaria de discutir, portanto, é o das paixões do historiador do direito, enfocando a conjunção entre história e direito. Depois da palestra proferida por Pietro Costa, este tema parece-me especialmente significativo pelo seguinte: não só o direito, mas também a história são duas esferas do conhecimento que sofreram a desilusão do paradigma lógico-positivista, que relativizaram, ambos, seus pontos de vista. O historiador do direito cria por ser jurista e também por ser historiador: digamos que é um duplo momento criativo, que se potencializa um com o outro. O historiador do direito atua com o passado em um momento presente e, desde logo, projeta o futuro. Afinal de contas somos os oráculos da memória jurídica, damos a cada momento histórico a memória jurídica por ele requerida, a memória jurídica que está sendo pedida: por isso variam sempre a função e as orientações histórico-jurídicas. Esta é a colocação que queria fazer. A pergunta concreta é: até que ponto é esta função do historiador-jurista uma fatalidade? Até que ponto o historiador dela consegue se afastar ou até que ponto ele consegue cumpri-la? Pietro Costa: É uma pergunta objetivamente comprometida. Empresto a analogia que acredito que fundamenta a intervenção de Vallejo:
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