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Pietro Costa_tradução texto para fichamento

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DISCURSO JURÍDICO E IMAGINAÇÃO: HIPÓTESES PARA UMA 
ANTROPOLOGIA DO JURISTA
*
 
 
 
Pietro Costa 
 
Sumário: 1. Conhecimento vs. imaginação: uma nota introdutória; 2. O 
paradigma “lógico positivista” e a sua crise; 3. Um dilema para o jurista: o 
saber jurídico, entre conhecimento “rigoroso” e interpretação “criativa”; 4. Os 
juristas “em ação”: hipóteses e exemplos; 4.1. “Imaginar” o texto: o caso dos 
juristas medievais; 4.2. “Imaginar” o objeto: exemplos do século XIX; 4.3 
“Imaginar” o direito: o jurista e o legislador; 5. Conhecer, imaginar, projetar. 
 
 
1. Conhecimento vs. imaginação: uma nota introdutória 
 
O discurso jurídico e a imaginação. Associar de algum modo esses termos é uma 
operação que pode gerar no interlocutor talvez ainda alguma surpresa: a surpresa de uma 
aproximação entre termos evidentemente incompatíveis. Para nosso sentido comum, 
efetivamente, é o poeta ou o romancista e não o jurista, e muito menos o “homem da ciência”, 
quem pode ser definido como um homem dotado de “imaginação”. Por que esta distinção de 
papéis e de faculdades parece tão óbvia? 
Entendo que a resposta deve ser buscada na permanência de uma “mentalidade”, que 
conecta a atividade lógico-racional com o conhecimento da “realidade”, e atribui à 
imaginação a tarefa de superar, de ultrapassar a “realidade”. O sujeito que conhece é o 
“contador” da “realidade”; o sujeito que imagina é o sujeito “criativo”, que inventa, que 
produz “o que não é”, que desenvolve ideias, elabora narrações em torno de um objeto que 
vem definido precisamente por sua contraposição constitutiva da realidade. Conhecimento da 
realidade e imaginação aparecem como faculdades ou operações distintas por natureza ou até 
mesmo contrapostas. 
Esta oposição aparentemente óbvia é na realidade só o resultado de um intricado 
processo histórico-cultural, do qual posso indicar aqui unicamente, ao que me parece, o plano 
de fundo: a partir da Ilustração atuou com crescente êxito uma tendência que fez quebrar o 
antigo ideal do caráter unitário do sujeito para dar forma a antinomias que se chocam 
 
*
Tradução de Danielle Regina Wobeto de Araujo, mestranda no programa de Pós-graduação em Direito da 
Universidade Federal do Paraná; bolsista do CAPES/PROEX. 
 
 
diretamente com o nosso problema: lógica/imaginação, razão/paixão, ciência/arte, 
realidade/invenção. 
Provemos ler verticalmente o segundo termo das oposições: a imaginação associa-se 
de modo cada vez mais incisivo à paixão, à arte, à invenção, e distancia-se do domínio da 
razão, da ciência, da realidade. Cada um dos termos de cada dupla define-se por oposição: o 
campo semântico da razão (de ciência, de lógica) vem delimitado, “a partir de fora”, pela área 
de significado do termo oposto. Razão, lógica, ciência, realidade, de um lado, imaginação, 
paixão, arte, invenção, de outro, enfrentam-se como chaves de aceso ao mundo, 
necessariamente, unidas porque opostas. Sobre este plano de dicotomias constitutivas se 
instalam as crenças epistemológicas que a cultura moderna, em seu já secular 
desenvolvimento, deixou-nos como herança. 
 
2. O paradigma “lógico positivista” e a sua crise 
 
Desta complexa situação gostaria de relembrar, em uma síntese bem concentrada 
para não ser imprudente, algumas ideias-guias que encontraram um posicionamento definitivo 
no clima cultural do positivismo do final do século XIX e no muito mais sofisticado 
neopositivismo da primeira metade do século passado, no panorama dos extraordinários 
êxitos das ciências físico naturais. 
Em primeiro lugar, o discurso do saber constitui-se porque que vem organizado em 
termos rigorosamente lógico demonstrativos. Basta pensar na fascinação que provoca o 
modelo geométrico matemático de argumentação, a partir de algumas grandes obras 
“inaugurais” da modernidade (de Hobbes a Spinoza) e até os recentes exercícios 
neopositivistas: o que se quer conquistar por meio de todo o discurso de saber, pela filosofia, 
pela economia, pelo direito, é um estatuto de solidez, de fundamento epistemológico, que 
coincide com o rigor dedutivo das argumentações. Em segundo lugar, o discurso do saber, 
enquanto discurso “científico”, deve apresentar-se como empiricamente verificável: a 
chamada aos fatos, o nexo opressor e direto que se quer instituir entre teoria e realidade, é a 
segunda decisiva garantia da “cientificidade”, da pretensão de verdade do discurso. 
Em terceiro lugar, em termos negativos, é preciso que o discurso do saber, enquanto 
discurso “científico”, não venha marcado por elementos que de alguma forma o reconduzam 
ao mundo da paixão, da valoração, da imaginação. Somente livre de todo material “impuro” 
pode o discurso do saber ser aceito como cientificamente fundado, portanto, como produtor de 
verdade. Precisamente por isso o rigor lógico demonstrativo do discurso parece incompatível 
 
 
com o caráter “equívoco”, com os curtos-circuitos da metáfora. A metáfora aparece como a 
mais perigosa intromissão, no mundo puramente descritivo e demonstrativo da ciência, de 
“outro” mundo, definível per oppositionem: de um lado, outra vez, a lógica, a ciência, a 
percepção direta e tendencialmente unívoca do real; de outro, os procedimentos metafóricos, 
as invenções estilísticas, a exibição da imaginação, o domínio do arbitrário, do sugestivo, do 
indemonstrável. 
Com base nessas coordenadas gerais vai se constituindo o paradigma que eu 
chamaria, para facilitar, lógico positivista, ou simplesmente “cientificista”. Este implica 
substancialmente em uma teoria forte do conhecimento científico e uma teoria fraca da 
subjetividade. No que se refere ao conhecimento científico, na realidade, ele inclui ao menos 
os seguintes corolários: a) a ciência é, ainda que seja de modo assíndeto, produtora de verdade 
porque é capaz de conhecer a realidade “objetivamente”, pelo que é; b) o conhecimento é 
objetivo, pois está pautado em procedimentos da lógica e na observação dos fatos; c) os fatos 
apresentam-se diante de qualquer como diretamente observáveis e constatáveis. Ao contrário, 
no que tange ao papel do sujeito no processo cognoscitivo, o paradigma positivista impõe o 
desaparecimento da subjetividade logo que surge o discurso da ciência: a subjetividade, 
portanto, vem entendida como um roupão que se usa apenas em casa, o qual pode, e deve, ser 
retirado assim que se vestem os trajes solenes e públicos da ciência. A proclamação da 
ausência de valoração, de objetividade, da impessoalidade, da capacidade da ciência para 
descrever, e a ênfase posta em sua absoluta relevância gnosiológica conduzem à 
correspondente redução máxima da “subjetividade” dos sujeitos, também, portanto, dos 
“homens da ciência”, de sua necessária e integral inserção histórico social e institucional. A 
historicização da ciência dentro do paradigma “cientificista” converte-se simplesmente na 
representação de um percurso unidirecional até a verdade, quase sem tradução epistemológica 
da ideia (paleopositivista) de “progresso”. 
Nos últimos anos o paradigma lógico positivista entrou, como se sabe, em uma crise 
radical. O debate desenvolvido no cerne da tradição epistemológica
1
, de uma parte, e o 
crescente êxito da reflexão hermenêutica
2
, de outra, encontraram-se quanto à impugnação das 
principais ideias guias do paradigma positivista e estimularam a busca de nexos relevantes 
 
1
 Cfr. V. VILLA, Teorie della scienza giuridica e teorie delle scienze naturali. Modelli e analogie, Milano, 
Giuffrè, 1984; D. ZOLO, Scienza e política in Otto Neurath. Uma propspettiva post-empirista, Milano, 
Feltrinelli, 1986.2
 Para uma história geral da hermenêutica cfr. M. FERRARIS, Storia dell’ermeneutica, Milano, Bompiani, 1988. 
Sobre o enxerto da reflexão hermenêutica no pensamento jurídico cfr. G. ZACCARIA, L’arte della 
interpretazione. Saggi sull’ermeneutica giuridica contemporanea, Padova, Cedam, 1990; P. NERHOT (a cura 
di), Law, interpretation and Reality, Dordrecht/Boston/London, Kluwer Academic Publishers, 1990; P. 
NEROHT, Il diritto, lo scrtio, il senso, Ferrara, Corso ed., 1992. 
 
 
entre aqueles dois mundos que o positivismo queria tranquilamente separados: entre o mundo 
do sujeito (o mundo das paixões, dos esquemas valorativos, do enraizamento ambiental do 
sujeito) e as operações cognoscitivas que o paradigma vai executando; entre lógica “rigorosa” 
e metáfora; entre descrição e construção; entre afirmação e valoração; entre demonstração e 
retórica. A partir desta perspectiva não existem, por um lado, os fatos, nem a sua observação 
“pura”, por outro: toda observação é theory laden, faz-se possível, é necessariamente 
plasmada pelas construções teóricas, pela linguagem, pela cultura, pela identidade subjetiva 
do observador. Os discursos do saber não mantêm nunca uma relação direta e mimética com a 
realidade: não a reproduz pelo que é, senão que intervêm seletivamente sobre os dados da 
experiência, propondo-os de forma diferente em cada ocasião, em um processo no qual 
descrição e construção vão intrincadamente unidas. Desse modo, elaborar um discurso 
científico em torno de um objeto é uma atividade complexa que não se esgota na 
representação de algo existente, mas que procede por meio de uma mélange dos materiais 
mais diversos, aonde demonstrações rigorosas avançam junto com associações metafóricas 
em um mundo indissolúvel. Sob esse enfoque e à luz do paradigma positivista a relação entre 
lógica e imaginação parece ter sofrido uma inversão: se bem que no plano psicológico ou 
antropológico alguma distinção entre os dois conceitos ainda pode se sustentar, no plano de 
análise dos discursos, e em particular dos discursos do saber, a proibição positivista de pensar 
em uma possível unidade de fundo entre discursos, que se dão por opostos, parece ser 
substituída, sem acaso, pela dificuldade pós-positivista de manter em vigor, para aqueles 
discursos, qualquer critério de distinção. 
 
3. Um dilema para o jurista: o saber jurídico, entre conhecimento “rigoroso” e 
interpretação “criativa” 
 
De que modo estas vicissitudes, das quais recordei sucintamente alguns aspectos, 
refletiram-se na cultura jurídica ao longo de seu desenvolvimento? A meu ver o problema 
deve na realidade articular-se em duas perguntas distintas, que dão lugar a duas possíveis 
“narrações” historiográficas. 
A primeira pergunta é esta: de que modo os juristas adotaram o paradigma lógico-
positivista? De que maneira os juristas traduziram para o seu específico discurso a parábola de 
um saber que se quer rigorosamente lógico, descritivo, verdadeiro, “científico” e, portanto, 
separado da sedução do metafórico, do mitológico, das invenções “irrealistas” da imaginação? 
 
 
E finalmente: como e quando alguns juristas distanciaram-se, se isso ocorreu, do paradigma 
lógico positivista para acolher as sugestões de um paradigma diverso. 
Esta série de perguntas pertence ao setor, quem sabe, mais cultivado pelos 
historiadores do pensamento jurídico e da filosofia do direito: o setor das teorias, das 
filosofias, das metodologias relativas ao saber jurídico. Nesta área de estudos busca-se contar 
o que um jurista ou um grupo de juristas, disse que faria ou que queria fazer produzindo um 
discurso que vinha apresentado e era reconhecido como jurídico. O que é o saber jurídico; se 
este é, e em que condições “ciência”; se exclui ou inclui procedimentos “não lógicos”, são 
perguntas que nesta hipótese de resenha historiográfica dirigimos diretamente, por assim 
dizer, ao jurista do passado: com fundamento em suas repostas explícitas e diretas nós 
organizamos este tipo de narração historiográfica. 
Nesta linha, que relato historiográfico podemos apresentar? Não posso obviamente 
comprometer-me em uma extensa exposição. Posso somente apresentar como hipótese as 
principais rupturas de tal relato, que por sinal é amplamente conhecida. É uma narração que 
indica como antecedente a crise da interpretatio iuris na Europa do direito comum e põe 
como pressupostos essenciais destas vicissitudes as codificações do século XIX, de um lado, e 
a revisão “pandectística” do direito romano, de outro. Os tipos de pensamento jurídico que daí 
derivam são sensivelmente diferentes, quando não opostos, mas acabam tendo ao menos um 
ponto de convergência: concebem de modo semelhante o jurista, seu papel profissional, sua 
legitimação social; apresentam de modo similar o discurso jurídico, sua lógica, sua função. 
O discurso jurídico anuncia-se como um discurso do saber que produz diretamente a 
verdade. O discurso jurídico, como qualquer outro tipo de saber, à medida que examina os 
standards descritivos, falta de valoração, rigoroso consequencialismo, objetividade, 
impessoalidade, abstração, generalidade, é um discurso que se considera capaz de captar, sem 
mediações nem incertezas, a realidade, a realidade do direito, o direito como “realmente” é, 
como quer que se entenda esta expressão: o direito como “norma especial”, o direito como 
“sistema de normas”, o direito como “vontade do legislador”. 
Naturalmente, nem todo discurso jurídico apresenta-se como produtor da verdade, 
nem está em condições de dizê-la, a não ser aquele discurso que, por suas características de 
abstração, impessoalidade, descrição, “cientificidade”, coloca-se, sine ira et studio, como 
mero espelho refletor diante do objeto; logo nem todo discurso jurídico é discurso que reflete, 
que reproduz duplicado em si mesmo, o direito tal e como “objetivamente” é, mas só o 
discurso jurídico do saber, o discurso jurídico decorrente e exclusivo do jurista acadêmico. A 
ênfase posta nas possibilidades cognoscitivas “puras” do discurso do saber jurídico e a 
 
 
celebração do papel profissional do jurista acadêmico sustentam-se mutuamente e constituem 
a tradução, no mundo da cultura jurídica, do paradigma lógico positivista; em todos estes 
acontecimentos dever-se-á ter presente, como nos mostrou Schiera
3
, o jogo combinado do 
papel “constituinte” da universidade e da formação das elites políticas e sociais nos diversos 
Estados nacionais. 
O jurista acadêmico apresenta, então, o discurso do saber jurídico como capaz de 
captar o direito segundo realmente é. Contudo, a partir do momento que por esta via o 
discurso do saber jurídico inclui a representação do direito no que é, exclui a consideração 
daquilo que o direito não é porque ainda não é. A atribuição ao discurso do saber jurídico do 
“poder” da verdade, a ênfase posta em sua capacidade de refletir, no espelho da “pura” lógica 
e da descrição desinteressada, a forma jurídica do real, exige, para tanto, a proibição da 
faculdade de inventar, e usemos também a palavra, de imaginar: de imaginar, pelo e mais 
além do direito que é, o direito que pode ser; de imaginar por dentro e mais além do direito 
que é, o direito em que se converte. Demos um nome a estes dois possíveis itinerários da 
imaginação jurídica e acharemos a política, de um lado, e a interpretação, de outro. 
Diante da dimensão política, o jurista fiel ao paradigma lógico positivista adota uma 
clara posição de encerramento: é possível conferir ao discurso jurídico altas possibilidades 
cognoscitivas à medida que ele se apresente como separado do domínio subjetivo, 
descontrolado, “despótico”, da política. Apresentar o discurso do saber jurídico como não 
político nãoé uma provocação acadêmica, mas uma escolha obrigatória, de acordo com o 
paradigma compartilhado: o discurso do saber, e também o discurso do saber jurídico, é 
produtivo de verdade, por um lado, se estiver separado do mundo imprevisível e incontrolável 
da subjetividade, a qual, ainda que colocada entre parênteses na rigorosa argumentação do 
jurista, é livre para expressar-se sem limites no campo do discurso político, e por outro, à 
medida que representa o objeto como “necessariamente” é, e não como queria que fosse. 
Definitivamente, dentro do paradigma lógico positivista é possível fundar a eficácia 
cognoscitiva do discurso do saber jurídico, só em troca de deter no seu limiar as pretensões da 
subjetividade e as tentações da projeção. A partir do momento em que se espera que o direito 
diga a verdade sobre o direito que é, pretende-se a exclusão de expectativas, previsões, 
desejos, ou seja, de projetos sobre o direito que poderia ser. 
Mais complexa, e talvez também mais interessante, é a posição que o jurista, dentro 
do paradigma lógico positivista, deve adotar ante à interpretação. A interpretação é objeto de 
 
3
 P. SCHIERA, Il laboratório borghese. Scienza e política nella Germania dell’Ottocento, Bologna, Il Mulino, 
1987. 
 
 
atenção do discurso do saber jurídico há muito tempo, precisamente, porque consiste em uma 
operação constitutiva da experiência jurídica, pelo menos naquelas sociedades nas quais a 
organização normativa depende, em parte, da referência a textos jurídicos escritos. Ao mesmo 
tempo, porém, a interpretação é uma operação que, talvez mais do que nenhuma outra, tende 
continuamente a escapar das mãos do discurso do saber, em muitos sentidos: em primeiro 
lugar, porque evoca figuras profissionais distintas do doctor iuris, como o advogado, o 
notário, o juiz, comprometidas também na atividade cotidiana de decifrar textos jurídicos 
oficiais; em segundo lugar a interpretação jurídica pode, na realidade, interrogar os textos 
normativos “como tais”, porém com certa frequência acede aos textos partindo de uma 
situação concreta, uma ação transgressora, uma interação conflituosa, e retorna à situação, ao 
“caso”, para sugerir (impor) alguma hipótese de solução do conflito. A interpretação, enfim, 
por um lado, se abre espontaneamente ao mundo da prática, das práticas jurídicas e sociais (e 
inclusive, caso se queira, é ela mesma um conjunto das mais diversas práticas sociojurídicas); 
por outro, tende a se individualizar, a se concentrar “no aqui e agora”, a exaltar a diversidade, 
as surpresas, as anomalias. 
Compreende-se, então, como, para o discurso do saber jurídico de viés lógico 
positivista, a dimensão hermenêutica era certamente indispensável, mas ao mesmo tempo 
perigosa: posicionar a interpretação no centro da experiência jurídica colocaria em xeque 
tanto os benefícios cognoscitivos atribuídos ao saber jurídico como também a importância do 
saber “abstrato e geral”, consequentemente o papel profissional dos juristas acadêmicos. 
Existem ao menos dois cruciais pontos sobre os quais a dimensão hermenêutica 
exerce, por assim dizer, uma pressão insustentável sobre o paradigma lógico positivista. 
O primeiro ponto relaciona-se com a forma, com o estilo, com a “ordem” do discurso 
do saber: se de fato a interpretação concretiza-se em face de “casos”, de situações 
determinadas, de problemas específicos, o estilo argumentativo que mais se sintoniza com a 
hermenêutica parece divergir desse ideal de “cientificidade” e “sistematicidade” que agora, na 
culminação de um processo plurissecular, já se converteu no orgulho da cultura jurídica 
universitária; discurso do saber e hermenêutica, em resumidas contas, estão em uma relação 
de tensão latente, assim como o raciocínio por problemas contrapõe-se, como se disse, à 
dedução dos princípios, como a tópica opõe-se à sistemática. 
O segundo ponto relaciona-se com a “forma do conteúdo”, com as características 
cognoscitivas culturais do saber jurídico: se a interpretação procede (e não pode proceder de 
outra maneira) lendo os textos jurídicos oficiais a partir da subjetividade do intérprete e do 
contexto sócio institucional em que este opera; se, em síntese, “reescreve” os textos 
 
 
interpretados para o “aqui e o agora” do presente, a operação hermenêutica tende a ativar uma 
concepção diferente da temporalidade, tende a inscrever o objeto jurídico em um horizonte 
temporal que não é o postulado pelo discurso do saber jurídico porque, a diferença deste, leva 
a sério o movimento e não a rigidez, persegue não a contemplação da ordem que é, mas sim a 
invenção de um equilíbrio que (ainda) não é. 
Dessa forma, uma vez mais, nos encontramos no terreno da cultura jurídica, campo 
de tensões irresolúveis que aparecem, de modo tão singular, como constitutivas da 
modernidade: se uma linha contínua conecta conhecimento, lógica, ciência, objetividade, 
realidade, uma análoga e oposta linha contínua unirá a imaginação com a “desenfreada” 
subjetividade, com a invenção, com a arte, com a superação do existente, com a “irrealidade”. 
É este o jogo de oposições que a cultura jurídica de inspiração lógico positivista encontra 
diante de si e é este o jogo que ela mesma propõe, desta vez em seu próprio campo. O 
discurso do saber jurídico apresentar-se-á, então, como veículo de conhecimento, como 
“ciência” daquilo que a ordem jurídico-normativa realmente é (ou daquilo que a realidade é 
enquanto ordem jurídico normativa); entretanto com o mesmo movimento deverá também 
marcar intransigentemente o limite que separa o domínio da ciência de sua zona de sombra: a 
zona da subjetividade, do movimento, da problemática, da projeção; precisamente a zona da 
interpretação e da política. 
A operação de iluminar alguns fragmentos da experiência jurídica e ao mesmo tempo 
manter outros na zona de sombra projetada pela fonte de luz escolhida nunca é uma operação 
simples, entre outras coisas porque excluir um objeto da plena “visibilidade” exige sempre e 
em qualquer caso algum “pensamento” sobre o objeto excluído e sobre as suas subterrâneas 
relações com a área mantida iluminada. Esta operação, ademais, é particularmente complicada 
para a cultura jurídica: pois a dimensão hermenêutica e a dimensão projetista sempre 
estiveram entrelaçadas e dos modos mais variados, com a atividade cotidiana do jurista, 
constituindo-se, inclusive, como parte integrante de seu papel. 
É preciso então que a cultura jurídica de inspiração lógico positivista coloque a 
hermenêutica em uma área de discreta visibilidade, e neutralize, de vez, seus possíveis, seus 
subliminares efeitos “inquietantes” A resposta ao potencial caráter “subversivo” da 
hermenêutica é variável e articulável, mas pode se resumir em alguns princípios guia: a) a 
ênfase colocada no saber jurídico como saber geral e abstrato; b) a renegação da hermenêutica 
à “scientia inferior”, atribuindo a ela, em qualquer caso, um papel propedêutico e setorial; c) a 
ideia de transparência do texto e da interpretação como extirpação do sentido “verdadeiro” do 
texto; d) conseguintemente, a redução ao mínimo do papel da subjetividade no processo 
 
 
interpretativo; e) a convicção da autonomia (da autossuficiência, da integridade, da falta de 
contradição) dos textos legislativos e do caráter “declarativo” da interpretação; f) a tese do 
caráter lógico silogístico da interpretação e da aplicação jurisprudencial do direito; g) a rígida 
hierarquização dos diversos componentes da experiência jurídica, que coloca no seu vértice o 
Professorenrecht e configura o mundo da prática jurídica como rigidamente dependente deste. 
Deste modo, a hermenêutica é acolhidapelo paradigma lógico positivista, porém ao 
mesmo tempo nela vem “obscurecidos” aqueles componentes que o paradigma compartilhado 
deve considerar incompatíveis: a subjetividade, o movimento, a projeção. 
Posto isto e pautados nestas premissas abre-se o segundo capítulo da exposição 
historiográfica que estou tentando supor ou imaginar. É um capítulo que pretende reforçar o 
que parece já escrito, já contido in nuce, no que o paradigma lógico positivista incluiu e, 
sobretudo, excluiu. Na realidade, os itinerários histórico-culturais são, como sempre, muito 
mais incertos, mais fragmentários do que pode supor qualquer jogo combinatório; no meu 
esboço ou esquema de narração deverei, porém, me limitar a algumas articulações essenciais. 
As articulações, os temas principais da narração em sua “segunda parte” são 
precisamente aquelas ideias de subjetividade, de movimento, de projeção que o paradigma 
lógico positivista excluiu no momento de se estruturar constitutivamente. Começa a se 
desenvolver, entre o final do século XIX e o início do XX, um amplo processo de revisão que 
de múltiplas formas ressalta a zona de sombra projetada pelo paradigma até então 
unanimemente compartilhado. Justamente por isso, justamente porque os “revisionistas” se 
servem dos aspectos obscuros ou excluídos pela cultura jurídica dominante, sua estratégia de 
ataque passa pelas vias indicadas pela cultura “tradicional”, mas as percorre, pode-se dizer, 
para trás. Se a dimensão hermenêutica era o terreno sobre o qual o paradigma lógico 
positivista pôs a prova sua própria “capacidade”, é de novo no terreno hermenêutico que se 
tenta introduzir uma regra de jogo diferente, ou até mesmo oposta. Invertem-se muitos dos 
axiomas que constituíam o andaime da teoria lógico positivista da hermenêutica, que 
permitiriam preservar a posição central do discurso do saber, seu alto valor cognoscitivo, seu 
caráter abstrato e geral, sua pretensão de estrito consequencialismo. Começa aquela longa 
“revolta contra o formalismo”4 que, diante da cultura jurídica, individualiza numerosos 
objetivos polêmicos; são colocadas em dúvida, sucessivamente, as ideias da autossuficiência, 
da integridade, da falta de contradição, do sistema normativo; discute-se a concepção do 
discurso do saber como discurso puramente lógico, rechaça-se a tese do caráter “mecânico”, 
 
4
 A expressão é de M. WHITE, La rivolta contro il formalismo, Bologna, Il Milino, 1956. 
 
 
puramente silogístico, da interpretação e aplicação jurisprudencial do direito; em resumo, são 
submetidos a uma constante crítica diversos aspectos do paradigma até este momento 
compartilhado, mas sobretudo tornou-se ponto de referência e foco de irradiação das críticas 
setoriais, precisamente, um dos temas centrais lançados a sombra pelo paradigma lógico 
positivista: o assunto da subjetividade. O tema do sujeito, o papel “criativo” do jurista, do 
jurista acadêmico, sobretudo do juiz, o caráter necessariamente “criativo” da interpretação 
voltam sempre como pontos de força, como suportes principais de uma tendência que se quer 
dura e intransigentemente oposta a cultura jurídica dominante. Com o segundo Jhering, com 
Gèny, com Kantorowicz, com os ilustres ou obscuros repetidores do verbo anti formalista 
tanto na Alemanha como na França ou na Itália, a palavra-guia da “criatividade” do sujeito é 
uma expressão que atravessa movimentos culturais e contextos históricos também 
notavelmente diferentes: que vão, simplesmente para exemplificar, do ecletismo de base neo 
jusnaturalista de Gèny ao positivismo dos juristas italianos do fim do século XIX, às veias 
irracionais do iusliberlismo “extremo”, ou às especulações neoidealistas da filosofia do direito 
dos anos vinte e trinta
5
 do século passado. 
Posto isto, qual é o sentido da nova e anti formalista exaltação do sujeito e de sua 
“criatividade”? O que se quer dizer exatamente com esta expressão? O campo semântico da 
criatividade se estende, por assim dizer, entre dois extremos: de um lado o sujeito, de outro, o 
que é concebido como oposto e resistente ao sujeito, o dado, a objetividade, a realidade. O 
sujeito “criativo” é o que vai mais além do dado, que o nega transcendendo-o, um sujeito que 
não mantém uma relação mimética ou meramente reprodutiva da realidade, mas que inicia um 
percurso que o leva para além da objetividade do dado, para além da mera descrição do 
existente. Saber, prontamente, quais são as características do “outro” mundo ao qual o sujeito 
“criativo” se abre, é menos importante que o movimento que o leva até ele, que o mundo de 
possibilidades que se oferece ao sujeito logo que este se situa “criativamente” ante à 
experiência. 
Afirmar a preeminência do sujeito; transcender o objeto, o dado, a realidade; superar 
os estreitos limites do raciocínio meramente lógico; inventar alternativas: quais, se não estes, 
são os conteúdos que nossa atual enciclopédia, nossa linguagem corrente atribui a 
imaginação? A imaginação emerge, então, no contexto da mais viva rebelião contra o 
formalismo, como uma dimensão antropológica atribuível ao jurista e, por sua vez, como a 
 
5
 Sobre Gèny cfr., entre o último, o numero monográfico que lhe é dedicado pela revista Quarderni fiorentini per 
la storia del pensiero giuridico moderno, XX, Milano, Giuffrè, 1991. Sobre o iusliberalismo em geral cfr. L. 
LOMBARDI, Soggio sul diritto giurisprudenciale, Milano, Giuffrè, 1967. Sobre a filosofia jurídica do neo-
idealismo cfr. A. de GENNARO, Crocianesimo e cultura giuridica italiana, Milano, Giuffrè, 1974. 
 
 
conotação essencial de sua atividade profissional: é o jurista, e, sobretudo o juiz, no momento 
que interroga o direito existente para aplicá-lo, quem descobre que não pode individualizar a 
“norma do caso singular” simplesmente deduzindo-a de normas já dadas, que percebe que 
está executando uma obra não de registro, de recepção do que já existe, mas sim de invenção 
de algo que começa a existir no “aqui e agora” do procedimento jurisprudencial. A 
imaginação como dimensão constitutiva do jurídico sai, então, a plena luz, precisamente, no 
terreno da hermenêutica; e emerge junto com dotes que “naturalmente” (historicamente) a 
caracteriza: o papel da subjetividade, a valoração do movimento, a superação do dado. Diante 
do problema da interpretação, de seu papel, de suas modalidades, o paradigma lógico 
positivista havia experimentado sua capacidade de conduzir todo aspecto da atividade do 
jurista ao nexo ciência-lógica-objetividade-realidade. Mas é por meio de uma drástica revisão 
da hermenêutica “formalista” que a imaginação adquire direito de cidadania e indica como 
linha de desenvolvimento da atividade jurídica, em particular, da atividade jurisprudencial, o 
nexo subjetividade-invenção-mudança. 
Ciência/imaginação, objetividade/subjetividade, descrição/invenção: de novo 
encontramos então, depois de uma longa volta, também no terreno do jurídico, o mesmo jogo 
de oposições que interessa profundamente, além do universo jurídico, à cultura, e à 
sensibilidade, dos séculos XIX e XX. 
Neste jogo de oposições não se assiste tanto a uma definitiva Vendrängung da 
imaginação e de seus resultados, à aparição de um racionalismo completo e pacificado, como 
à proposta, outra vez, de uma oposição binária entre termos onde nenhum dos quais parece 
capaz de funcionar de modo duradouro por si só: porque cada um deles extrai seu sentido do 
outro, é definido (delimitado em seu campo semântico) pelo outro, atue o primeiro in absentia 
ou in praesentia do segundo. O descobrimento da imaginação, e dos temas atraídos pelo seu 
campo semântico,efetivamente anunciado e aclamado pelo variado exército dos “anti 
formalistas”, tende a se concentrar no terreno da hermenêutica e em particular na 
representação da atividade jurisprudencial, entretanto esforça-se em se apresentar como um 
ponto de vista capaz de substituir integralmente o anterior. O descobrimento da imaginação, 
para entendermos, a linha imaginação-construção-movimento-mudança-superação do dado, 
consegue com dificuldade propor-se como um ponto de observação a partir do qual se 
esboça/projeta o mapa do jurídico em termos radicalmente inovadores. Certamente não faltam 
juristas que defendem convencidos, para todos os campos do jurídico, os méritos da 
“criatividade” contra as prevaricações da lógica. Neste caso, entretanto, o que se dá realmente 
é a inversão dos termos da oposição, não a nova formulação de sua relação, não a superação 
 
 
de seu caminhar aporético. É, caso se me permita uma metáfora, a volta do destituído, que 
conduz à luz as instâncias colocadas na sombra, revela a constitutiva oposição destas quanto 
ao paradigma dominante, porém não consegue abatê-lo porque com ele compartilha sua 
íntima aporia, seu paradoxo essencial 
Para que se vislumbre a possibilidade de um novo paradigma não basta que a cultura 
jurídica, globalmente considerada, inclua a imaginação no próprio diagrama de oposições: é 
preciso que amadureçam as condições para projetar de forma diferente a trama da 
juridicidade. Uma destas condições parece ser a impugnação da lógica que governava a 
relação de oposição binária entre conhecimento e imaginação. Começa-se então a propor 
lentamente, uma atitude que considera a historicidade do sujeito, que duvida da possibilidade 
de um conhecimento direto, objetivo, mimético da realidade, que debilita as pretensões 
cognoscitivas do discurso do saber e reforça seus componentes metafóricos (imaginativos) e 
retóricos. 
Por conseguinte, o discurso do saber jurídico tende a perder o revestimento 
“cientificista” que o caracterizava, renuncia a pretensão de representar hegemonicamente a 
totalidade do campo jurídico, converte em problema a ideia da própria capacidade de 
descrever e a de sua “objetividade”: o discurso do saber é um discurso a mais (e 
simultaneamente uma prática entre outras) que inclui em uma única e complexa amálgama 
componentes “rigorosamente” lógicos, metafóricos, retóricos; o discurso do saber entrelaça-se 
com as formas narrativas e argumentativas próprias das diversas práticas jurídicas em um 
determinado contexto; compartilha com elas a dimensão hermenêutica; concebe-se em relação 
à atividade de um sujeito como integralmente “posicionado”; define-se em seu método, em 
seu estilo, em seu objeto, definitivamente, em seu paradigma, graças aos standards de 
reconhecimento e aceitação elaborados, em cada caso, pelo grupo profissional do qual o 
discurso é, simultaneamente, expressão e instrumento de legitimação. 
 
4. Os juristas “em ação”: hipóteses e exemplos 
 
É preciso, neste momento, introduzir uma segunda pergunta, que conduza nossa 
atenção a partir daquilo que os juristas disseram, ou dizem que fariam, àquilo que realmente 
fizeram. Até aqui contamos sobre as mudanças na representação que os juristas modernos, os 
modernos teóricos do direito, davam sobre o discurso do saber jurídico e, em geral, da 
experiência jurídica. Nesta hipótese de narração a reconstrução do passado não era conduzida 
diretamente, pelo contrário era feita por meio de interposta pessoa; não se estudavam os 
 
 
produtos como tais, mas as apresentações (as recomendações, as intenções) dos produtores. 
Neste viés, interrogar-se sobre o “direito e imaginação” significa perguntar se os juristas 
representaram-se a si mesmos e a suas produções por meio de uma rede linguística conceitual 
que incluía (ou excluía) a imaginação (fosse qual fosse o sentido outorgado a este termo); e 
em caso afirmativo, de que forma. 
É possível, porém, levantar uma pergunta e um relato diferentes a hipótese. Vale 
dizer, assumamos como hipótese de partida nossas ideias de conhecimento, ciência, 
imaginação, realidade e deste ponto de observação contemplemos a cultura jurídica do 
passado; o espaço do relato nos vem agora dado, diretamente, pela organização do discurso do 
saber em um determinado contexto, e nossa pergunta sobre o “direito e imaginação” traduz-se 
em uma investigação sobre as estratégias cognoscitivas e argumentativas daquele mesmo 
discurso. 
Daí deriva uma consequência sobre os próprios limites de tal narração. Enquanto na 
precedente o elemento de partida, a dissociação entre conhecimento e imaginação, sugeria a 
coincidência do terminus a quo com a própria instauração da cultura jurídica “moderna”, na 
presente narração a pergunta de fundo – as estratégias cognoscitivas e retóricas do discurso 
jurídico – nos impõem uma rígida contextualização, ainda que possam sempre ser de novo 
propostas em contextos históricos sensivelmente diversos. Com maior razão, a hipótese de 
narração que tentarei representar virá desenvolvida não só esquematicamente, mas também 
rapsodicamente: não só indicarei unicamente os títulos dos capítulos como até agora, senão 
que, neste caso, não enumerarei sequer todos os capítulos principais, pois citarei só algum 
isolado exemplo. 
 
4.1 “Imaginar” o texto: o caso dos juristas medievais – Nossa provisória pergunta 
de partida pode assim ser resumida: Quais são as características cognoscitivas de um discurso 
do saber que em um determinado contexto é declarado e reconhecido como jurídico? Quanto 
a que e de que forma, este discurso produz conhecimento? 
Demos, em uma primeira aproximação, a resposta mais simples e convincente: o 
discurso do saber jurídico mostra-nos o que o direito é, em um certo contexto, e qualquer que 
seja o sentido da expressão “direito”. A resposta é simples e clara, mas induz, de imediato, a 
um primeiro e recorrente equívoco: é uma resposta que pressupõe, de um lado, a existência de 
um sujeito da operação cognoscitiva, e, de outro, a existência de um objeto, o direito (as 
instituições, as leis, os costumes, a vontade do soberano e tudo mais) que, diante do sujeito 
apresenta-se como já dado, definido, em si mesmo concluído: um objeto que tem a mesma 
 
 
conclusiva “objetividade”, queria dizer naturalidade, que o mundo. A operação cognoscitiva 
do jurista nasce “depois”, exercita-se sobre uma “realidade” já constituída, que não espera 
mais do que ser completamente representada mediante o discurso do saber. 
Imaginemos uma exposição historiográfica que, segundo este esquema, nos descreva 
a origem e o desenvolvimento do saber jurídico medieval, a formação do ius commune por 
meio do “redescobrimento” do direito romano. Precisamente, o “redescobrimento”: a mesma 
expressão, tradicional, faz pensar em um universo jurídico já existente que o jurista medieval 
traz à luz, como um tesouro que, longamente sepultado, é desenterrado, mas segue sendo o 
que era. 
Na realidade, o direito romano, como magnitude já dada, não existe e não existia 
para os primeiros glosadores. Não existiam o direito e as normas, existiam alguns 
(complicados, obscuros) textos, os textos da compilação justiniana, junto com muitíssimos 
outros. O texto justinianeu não era por virtude própria o direito, existente em si mesmo e que 
não esperava mais que ser conhecido ou reconhecido. O texto justinianeu, como qualquer 
outro texto, precisava que um leitor lhe atribuísse algum sentido: é com esta atribuição de 
sentido, é com esta operação interpretativa
6
 que se atribui ao texto, caso se lhe atribua, o 
caráter da juridicidade. A juridicidade não é uma qualidade objetiva do texto, mas um 
standard conferido a um texto em meiode um intricado itinerário interpretativo. Entender o 
texto justinianeu, para Irnério e companhia, era então uma complexa tarefa, cujas fases 
deviam ser aproximadamente as seguintes: a) escolher o texto, decidir qual é o texto (qual seu 
início, seus componentes, seu final) sobre o qual será feita a operação interpretativa; b) 
decidir se esse texto é um texto prescritivo, atribuir-lhe um sentido, isto é, captar o núcleo 
normativo; c) argumentar, em favor do caráter prescritivo do texto, de sua “atualidade” 
normativa, de sua autoridade; d) reconhecer-lhe finalmente o caráter da “juridicidade” 
(qualquer que fosse o significado do termo). 
O saber jurídico medieval configura-se como um discurso que inclui procedimentos 
de individualização, antes que de conhecimento do direito. O jurista decide, em um único 
movimento, sobre o texto, seus limites, suas características, seu uso: o jurista constrói o texto 
como “próprio” texto, como texto para si, no momento em que o “conhece” e, vice-versa, 
conhece o texto à medida que o individualiza, que fixa o seu papel de texto (em nosso caso, 
de texto autorizado, prescritivo, jurídico, etc.), que o constitui em sua aparente objetividade. 
 
6
 Sobre a relação entre interpretação e texto jurídico cfr. G. TARELLO, L’intepretazione della legge, Milano, 
Giuffrè, 1980; R. GUASTINI, Le fonti del diritto e l’intepretazione, Milano, Giuffrè, 1993. 
 
 
O jurista medieval constrói seu próprio texto prescritivo e é, ao mesmo tempo, 
“construído” pelo texto. É preciso destacar a complexidade deste “duplo” reconhecimento. 
Em primeiro lugar: o jurista medieval não constrói o direito romano como texto próprio 
movendo-se na terra de ninguém, escolhendo livremente os próprios textos e os próprios 
procedimentos de leitura. O processo de constituição e de leitura do texto vêm enormemente 
predeterminados pela situação em que o jurista medieval efetivamente atua: a transformação 
do Corpus iuris, por sua parte nesse macro texto prescritivo jurídico que está na base do ius 
commune é o produto de um cruzamento extremamente complexo de interesses, símbolos, 
crenças, expectativas que constituem o mundo a partir do qual o sujeito, o jurista, atua, 
constrói os próprios textos, os interpreta. 
Em segundo lugar, no momento em que o sujeito, um grupo de sujeitos, constrói uma 
série de textos como ponto de referência da própria atividade cognoscitiva, aquele sujeito, 
aquele grupo de sujeitos, constitui-se a si mesmo como grupo designado para conhecer 
”autorizadamente” o âmbito de experiência sobre o qual os textos, agora, se referem. E de 
novo o jogo dos reconhecimentos (dos sujeitos aos textos, dos textos à sociedade, da 
sociedade ao reconhecimento “profissional” dos sujeitos) avança por meio de uma complicada 
trama de remissões recíprocas, mediante um jogo interativo perfeitamente circular. 
Construído o texto como texto “próprio”, certamente deverá o jurista se ocupar tanto 
no conhecimento como na difusão do conhecimento do texto prescritivo jurídico previamente 
escolhido. E quem fica convencido com os argumentos que precedem poderá pensar que ao 
menos neste momento o jurista conhece efetivamente o próprio objeto: encontra-o, entende-o, 
expõe-no ao próprio público, capta sua “verdade” imanente. 
É preciso ter em mente, porém, uma informação elementar, que não secundária. O 
jurista conhece o direito quando interpreta textos. O que podemos pensar sobre a estratégia (e 
o alcance) cognoscitivo do discurso do saber jurídico passa necessariamente pelo que 
pensamos sobre o processo de interpretação dos textos, sobre os pressupostos, sobre as 
condições de sua eficácia. Neste estudo, não tenho como esgotar em poucas linhas todo o 
debate hermenêutico do século passado e do atual. Posso somente recordar, 
esquematicamente, algumas das principais características compartilhadas por quem se 
encontra, por assim dizer, no ponto de confluência da epistemologia pós-positivista e da 
tradição hermenêutica “radical” ou radicalmente “subjetivista”7: a) o sujeito interpreta os 
 
7
 Cfr., como obra fundamental dessa perspectiva, S. FISH, Doing what comes naturally. Change and practice of 
theory in literary and legal studies, Oxford, Claredon Press, 1989. Do ponto de vista semiótico cfr. B.S. 
JACKSON, Law . Fact and Narrative Coherence, Roby, Merseyside, Deborah Charles Publications, 1988. 
 
 
textos a partir de sua “situação” integral; b) o sentido do texto não é uma qualidade objetiva 
dele mesmo, imanente, pelo contrário o sentido é atribuído ao texto pelo intérprete; c) o 
intérprete reescreve o texto em função das perguntas, dos interesses, das exigências que 
caracterizam seu presente; d) não há critérios racionais e absolutos sobre a verdade ou 
falsidade de uma interpretação; e) a verdade sobre uma interpretação manifesta-se por meio 
do consenso obtido a partir de pressupostos compartilhados por um grupo, por uma sociedade, 
em um contexto determinado; f) não podendo a interpretação de um texto ser apresentada 
como apoditicamente verdadeira, traduz-se em uma estratégia de persuasão do interlocutor 
com fundamento nos pressupostos “localmente” aceitos pelo próprio interlocutor; g) a 
argumentação interpretativa não pertence ao domínio da lógica, mas da retórica. 
Para quem compartilha destas afirmações o discurso jurídico, em geral, em sua 
variada fenomenologia histórica, e o saber medieval, em particular, oferecem contínuas e 
sugestivas ocasiões de verificação. Voltando, agora, a pergunta: pode-se dizer que o jurista 
medieval “conhece” o direito romano interpretando-o? Que ele entende o sentido imanente 
dos textos justinianeus, que ele o representa como “objetivamente” é, e finalmente o propõe, 
simultaneamente, como norma para a própria sociedade? Ou de modo mais adequado, 
precisamente porque “interpreta” o Corpus iuris, o reescreve produzindo um discurso, o seu 
próprio discurso, radicalmente novo, incomensurável e imprescindível com relação ao texto? 
O jurista não “conhece” um direito já dado, não contempla um sistema de normas, como se 
estas fossem essências ideais que a razão jurídica contempla e depois aplica. O jurista constrói 
o próprio texto como texto jurídico, lhe atribui um significado, interpreta-o e, portanto, 
reescreve-o a partir da própria Lebenswelt e em função dela. 
Acerca do tema, vislumbram-se dois exemplos. Pense-se na doutrina medieval do 
dominium
8
 ou no significado de iurisdicito
9
. O jurista não contemplava, no texto romano, um 
significado previamente existente, como se o domínio dividido fosse, pelo menos, um dos 
significados possíveis de serem extraídos da abertura do texto. Os juristas medievais, de fato, 
comportaram-se com relação ao texto romano segundo a lógica daquele tipo de intérprete que 
Rorty chama, elogiosamente, o textualista forte
10: “sacudiram” o texto até adaptá-lo a forma 
de seu discurso, reescreveram o texto no momento em que o interpretavam. Não foi diferente 
a operação efetuada com os textos romanos referentes à iurisdicitio e ao ordenamento 
 
8
 Cfr. P. GROSSI, Le situazioni reali nell’eserienza giuridica medievale, Padova, Cedam, 1968. 
9
 Cfr. P. COSTA, Iurisdictio. Semantica del potere político nella publicista medievale, Milano, Giuffrè, 1969; J. 
VALLEJO, “Power hierarchies in Medieval Juridical Thought. An Essay in Reinterpretation”, in Jus Commune, 
XIX, 1992, p. 1 ss.; Id. Ruda equidad, ley consumada. Concepción de la potestad normative (1250-1350), 
Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1992. 
10
 R. RORTY, Conseguenze del pragmatismo,Milano, Feltrinelli, 1986, p. 16. 
 
 
hierárquico das magistraturas romanas. Dilataram enormemente o campo semântico de 
iurisdictio para fazê-lo coincidir integralmente com o “processo de poder político”, receberam 
o que podia lhes servir, deixaram de lado o que consideravam que não poderia ser reescrito e, 
portanto, desenvolveram um discurso que, mediante a contínua interpretação/reescrita de 
textos de autoridade (construídos como jurídicos), acompanharam (preparado, representado, 
legitimado) um longuíssimo processo institucional a partir da sociedade comunal às estruturas 
burocráticas dos primeiros Estados Nacionais
11
. 
O jurista medieval, então, não exercia sua atividade “conhecendo” um sistema de 
normas externas, hospedando-as em um discurso que delas fosse espelho: escolhia os textos e 
os interpretava escrevendo por meio deles o seu próprio discurso do saber. Não refletia um 
mundo já dado, mas sim construía um mundo novo, construía o que os semióticos (e os 
lógicos) chamariam de um mundo possível
12
. O mundo que ele construía não era a simples 
reprodução do mundo da experiência comum, assim como não era a representação do sentido 
já dado ao texto romano: era a elaboração de um discurso que, mediante a 
interpretação/reescrita do texto justinianeu, dava lugar a uma exposição dotada de coerência 
interna, e cujos protagonistas, ações, problemas moviam-se em uma realidade alterada no que 
concerne à experiência cotidiana, funcionavam em um mundo “doxástico” conectado por mil 
fios ao mundo “real”, mas ao mesmo tempo distinto deste. 
 
4.2 “Imaginar” o objeto: exemplos do século XIX – É certo: referir-se aos juristas 
medievais como autores de um discurso de saber que não descreve um mundo existente, seja 
o mundo das “normas” ou o mundo da “realidade”, mas que constrói, inventa, imagina um 
mundo por meio da interpretação, diria que mediante um sistemático misreading, da 
textualidade justinianea, pode parecer um fácil modo de valorizar o ponto de observação 
“pós-positivista” no qual idealmente nos situamos: porque falamos de uma cultura ainda 
muito alheia a “moderna” focalização da oposição binária conhecimento/imaginação. 
Acredito, porém, que não faltarão tampouco ocasiões de verificação em pleno positivismo do 
século XIX. 
 
11
 A. M. HESPANHA, “Justiça e administração entre o antigo regime e a revolução”, em Hispania entre 
derechos própios y derechos nacionales, Milano, Giuffrè, 1990, vol. I, p. 135.ss.; L. MANNORI, “Per uma 
preistoria della funzione amministrativa”, em Quaderni fiorentini per la istoria del pensiero giurido moderno, 
vol. XIX, MIlano, Giuffrè, 1990, p. 323 ss. 
12
 Cfr. U. Eco, I limiti della interpretazione, Milano, Bompiani, p. 1990, p. 193 ss. Não posso aqui discutir 
adequadamente a possibilidade e os limites do uso do conceito de “mundo possível”. 
 
 
Tomemos rapidamente em consideração um aspecto inescusável da cultura jurídica 
do século XIX: a constituição de uma doutrina do Estado, de um saber sobre o Estado, que se 
quer intransigentemente jurídico. 
É preciso antes de tudo sublinhar dois aspectos deste fato. Em primeiro lugar, o 
jurista se move em uma atmosfera rarefeita e insólita: vem produzindo um discurso que não 
só se organiza segundo os cânones já consolidados de generalização e sistematicidade, mas 
que também foge, em termos certamente anômalos em relação a maior parte dos textos do 
saber jurídico, de qualquer específica dimensão hermenêutica. Não há, para a iuspublicística 
do final do século XIX – penso, sobretudo, na Itália, mas o discurso parece-me que se estende 
também para a Alemanha – textos prescritivos de cujo saber se possa fazer, em primeira ou 
segunda instância, interpretação. Em definitivo, não há nada na iuspublicística que recorde a 
relação que, na iusprivatística, estabelecia-se entre a “construção” do sistema e a referência às 
fontes romanas, primeiro, e a codificação, mais tarde. A iuspublicística desenvolve-se em uma 
espécie de “vazio” hermenêutico que a obriga a apresentar seus próprios standards de 
juridicidade à margem de significativas conexões com textos prescritivos. 
Em segundo lugar, com a iuspublicística italiana e alemã entre os séculos XIX e XX, 
de Gerber a Jellinek, de Orlando a Romano, nos encontramos diante daquele discurso do 
saber que, em homenagem ao que chamei de paradigma lógico positivista, sublinha a 
“pureza” do próprio método e a objetividade dos resultados: encontramo-nos, definitivamente, 
diante de um discurso do saber que não legitima a si mesmo exibindo alguma conexão 
hermenêutica com textos de autoridades (dados por) jurídicos, mas que tende a se 
fundamentar diretamente na reivindicação do rigor lógico dos procedimentos argumentativos, 
de caráter “puramente” descritivo, não valorativo, dos enunciados de que se compõe, e, 
portanto, no alto valor cognoscitivo conferido a estes. 
Dizer então que a iuspublicística de inspiração lógico positivista constitui um 
possível terreno para verificar a existência de uma dimensão “imaginativa” no discurso do 
saber jurídico parece uma provocação mais do que uma hipótese plausível. Ao contrário, logo 
que deixamos para trás, como historiadores da iuspublicística dos séculos XIX e XX, as 
declarações de método (ou de tentativas) e seguimos o discurso na efetiva construção do seu 
próprio objeto, analisamos seus procedimentos argumentativos, seguimos suas principais 
preocupações, vemos emergir um tecido argumentativo mais complexo e “equívoco” que 
aquele que o modelo “cientificista” queria nos fazer acreditar. Ressalta em primeiro lugar a 
contínua intervenção da metáfora: uma intervenção que não pode ser reduzida a um mero jogo 
de estilo, mas que é compreensível em relação ao esforço inventivo e construtivo que, para 
 
 
dizer parodiando um célebre título “no ha altre parole” para dizer aquilo que diz13. A mesma 
definição do objeto, a definição de Estado, a relação Estado sociedade, busca continuamente 
no thesaurus das grandes metáforas da tradição filosófico-política: e entre estas, sobretudo, a 
metáfora organicista, sucessivamente reformulada segundo os pressupostos culturais de um ou 
outro jurista, mas sempre irredutível, em qualquer resolução, a conceitos distintos e claros, ou 
seja, “unívocos”. A representação do Estado, definitivamente, que coincide também, para a 
iuspublicística do século XIX, com a individualização do próprio objeto teórico, aparece 
continuamente suspensa entre uma análise puramente “jurídica” e um contínuo, dissimulado 
mas operante, retorno do mito: o saber jurídico, no momento em que observa o Estado em 
termos rigorosamente “positivista”, simultaneamente, no mesmo movimento discursivo, 
caracteriza o Estado com os grandes atributos “míticos” da eternidade, da “personalidade”, da 
ética “realizada”. A iuspublicística, também e precisamente a iuspublicística como “ciência” 
rigorosa, não descreve o Estado como o resultado objetivo de uma série de normas 
simplesmente constatadas, senão que constrói o Estado, converte o Estado em tema por meio 
de uma densa rede de metáforas, retém-no dentro do círculo mágico do mito e deste modo, em 
termos ao mesmo tempo analíticos e metafóricos, descritivos e valorativos, “científicos” e 
“míticos”, o assume como campo teórico próprio. O saber jurídico, em um momento “alto” de 
tensão cognoscitiva, organiza-se como discurso eficaz porque conduz por um mesmo canal 
metáforas, imagens, esquemas rigorosamente lógicos: em síntese, a medida que constrói e 
imagina o próprio objeto no momento em que pretende descrevê-lo
14
. 
Eu me referi, portanto, em uma espécie de rápida “exibição de amostras”, a dois tiposde discursos do saber jurídico tão diferentes entre si que aparecem como substancialmente 
opostos: de um lado, um saber jurídico que, depois de um desenvolvimento secular, 
estabeleceu-se por meio de uma contínua interpretação/reescrita dos textos de autoridade; de 
outro, um saber jurídico que em uma mais breve, mas intensa temporada, desenvolveu-se à 
margem de comprometedoras e constantes operações hermenêuticas. De qualquer sorte, nos 
dois casos, apesar do diferente contexto histórico, do panorama cultural e dos procedimentos 
empregados, o saber jurídico, progressivamente elaborado, parece nos mostrar um jogo 
retórico rico e heterogêneo, que entre seus recursos pode também incluir (com aparente 
paradoxo) a pretensão “positiva” da “pura” descrição, mas que, no seu efetivo funcionamento, 
 
13
 Sobre o papel da metáfora no discurso do saber cfr., por exemplo, M. BLACK, Models and Metaphors, Ithaca, 
Cornell Univ. Press, 1962; M. HESSE, Modelli e analogía nella scienza, Milano, Feltrinelli, 1984. 
14
 Vale uma remissão, para uma análise mais próxima do problema, a P. COSTA, Lo Stato immaginario. 
Metafore e paradigmi nella cultura giuridica italiana fra Ottocento e Novecento, Milano, Giuffrè, 1986. 
 
 
não se reduz nunca ao simples “reflexo” do dado, à reprodução de um “direito” existente 
antes e independente dele. 
Outra prova que corrobora as ideias acima pode ser encontrada no “mostruário” que 
nos leva para fora do âmbito dos discursos do saber, mas que nos coloca em contato com uma 
das práticas jurídicas mais relevantes, a atividade jurisprudencial. 
Pensemos na jurisprudência da França ou da Itália do século XIX, em um clima 
dominado, como é (inclusive demasiado) sabido, pelas grandes codificações e pela conexa e 
imperante ideologia do código. É a ideologia, revolucionária e pós-revolucionária, que inclui 
os temas da centralidade da lei, da divisão dos poderes, da subordinação do juiz à lei, é uma 
ideologia que proclama e recomenda o caráter meramente “executivo” da atividade 
jurisprudencial; é uma ideologia que se prolonga em uma hermenêutica “objetivista”, na qual 
o sentido da lei já existe e é tendencialmente claro, na qual o juiz verifica o fato e o direito e 
silogisticamente “deduz”. Neste quadro, (que é, em substância, o mesmo que continuaremos 
delineando quando nos referimos à época da codificação) provavelmente não só se reconhecia 
a cultura jurídica da época, mas também a jurisprudência: e o juiz, ou ao menos a received 
view da jurisprudência que em torno de sua própria função e das operações hermenêuticas 
cotidianamente praticadas sobre o texto “código” não vacilava certamente em apresentar e 
legitimar o seu papel profissional segundo a retórica do “juiz/boca da lei” e do silogismo 
judicial. O problema, entretanto, é de novo o seguinte: que relação existia entre a apresentação 
do seu próprio papel em uma revista acadêmica ou na reunião de um congresso, as 
dissertações hermenêuticas (foram universitárias ou extra universitárias) e o contínuo, 
cotidiano atuar da jurisprudência? Somente assumindo, hoje, a ingênua hermenêutica 
“objetivista” da época da codificação poderemos preencher a relevante brecha que devia 
separar, uma vez mais, o que se dizia (por parte dos juristas acadêmicos, de juízes) sobre a 
interpretação do que se fazia com a interpretação, o discurso hermenêutico da prática 
interpretativa. 
Devo efetivamente me expressar em termos hipotéticos e provisórios, não só por 
causa da minha ignorância sobre o problema, mas também por causa da escassez, ainda hoje, 
de estudos de história da jurisprudência. Posso de todos os modos me referir a algum indício, 
quando não a uma verdadeira “amostra de amostras”, que permita, se não resolver o 
problema, ao menos, continuar os raciocínios em torno dele. 
Sugiro, como primeiro indício, um testemunho indireto, mas significativo, em 
virtude do personagem que o profere: Gèny. O jurista francês não se mostra simpático à 
ideologia da codificação, culpada de restringir o papel do jurista aos estreitos limites de uma 
 
 
“técnica” marcada pelo “fetichismo da lei”: uma lei que, como expressão da vontade do 
legislador, está ligada à política, à sociedade para a qual foi projetada. Precisamente por isso, 
o jurista encontra-se diante de um dilema: reservar-se ao reconhecimento e “governo” da 
mudança social, restringir-se a uma temporalidade absurdamente “imóvel”, ou recolocar a sua 
tarefa para além dos limites da lei e de sua interpretação, para identificar as regras inscritas na 
natureza “profunda” das relações sociais. Existe, na realidade, uma terceira via, que Gèny 
menciona para criticá-la: que é precisamente a que, a seu juízo, seguiu a jurisprudência 
francesa durante lustros, em pleno triunfo da ideologia do código. O que os tribunais 
franceses realmente fizeram foi entrar espontaneamente em uma rota que colidia com esse 
“fetichismo da lei” que os anti formalistas começam, nesse momento, a reprovar na cultura 
tradicional. Os exemplos indicados por Gèny são numerosos e significativos
15
 (do direito de 
família às condições do contrato, ao problema da responsabilidade civil) e servem ao autor 
para demonstrar o aberrante “subjetivismo” da interpretação jurisprudencial da lei. Mas o que 
nos interessa não é seguir Gèny naquilo que em sua opinião o jurista deveria fazer, mas tomar 
seu testemunho sobre o que o jurista, o juiz (não deveria fazer, mas) faz, com ou sem o 
beneplácito dos Kathederjuristen, exegetas ou anti formalistas. “Dans la pensée de la Cour 
suprême – observa Gèny – le texte légal devient un instrument de mise en oeuvre juridique 
(…) estimé suivant les ressources qu’il est susceptible de fournir à l’interpréte”16. Não poderia 
ter dito melhor. A interpretação dos textos prescritivos é uma “mise em ouvre juridique” que 
reescreve o texto em razão do “presente” do intérprete: que não encontra e repete um dado 
existente previamente, não o registra como é, mas o inventa, o imagina, e nos comunica sobre 
ele mediante um texto que é novo precisamente porque interpreta (não apesar de que 
interprete) um texto preexistente. 
Se depois, a margem dos verossímeis testemunhos, olharmos para Itália, nos 
deparamos com uma situação substancialmente idêntica. Faz-se obrigatório mencionar o setor 
de intervenção da (nascente) iuslaborística. O jurista, tanto o acadêmico como o juiz, enfrenta 
uma grave separação, que se evidencia com o transcorrer do tempo, entre a codificação de 
1865, expressão de uma sociedade em grande medida ainda pré-industrial, e a acelerada 
industrialização dos anos oitenta e noventa, com a seguinte e relevante transformação 
(quantitativa e qualitativa) do conflito social. Não posso entrar nas particularidades deste 
 
15
 Crf. F. GÈNY, Méthode d’inteprétration et sources en droit privé positif, 2e. ed., París, Libraire Générale de 
Droit et de Jurisprudenze, 1932, vol. I, p. 261. 
16
 F. GÈNY, Méthode d’inteprétration, cit., p. 261. 
 
 
evento, cujo significado em relação ao nosso problema, é, por outro lado, bem conhecido
17
: a 
classe jurídica, em sua totalidade (obviamente, por meio da contínua interação de posições 
explicitamente diferenciadas e de pressupostos tacitamente compartilhados), protegeu seu 
próprio papel, sua capacidade de intervenção também ali onde os textos prescritivos 
mostravam-se particularmente não aptos para um uso (aparentemente) simples e “imediato” e 
“inventou” de todos os modos as soluções normativas, imaginou o direito; imaginou esse 
direito que sucessivamente a total interação social, a distribuição do poder, os valorescompartilhados, os esquemas referenciais sugeriam e recomendavam. Qualquer que fossem as 
teorias hermenêuticas sustentadas, qualquer que fosse o conteúdo das dissertações acerca da 
“intenção do legislador” e dos limites da interpretação, a classe profissional dos juristas não se 
limitou a constatar, a registrar “o direito que é”, pelo contrário continuamente lançou-se a 
prefigurar, imaginar, recomendar “o direito que não é”, enquanto a teoria do caráter 
“descritivo” e “meramente aplicativo” da interpretação jurisprudencial não funcionava em 
absoluto como sujeição efetivamente operante para sua cotidiana atividade profissional, senão 
só como componente da prórpa “retórica de classe”, como marionete de uma eficaz estratégia 
persuasiva. 
 
4.3 “Imaginar” o direito: o jurista e o legislador – Até agora falei do discurso 
jurídico como um discurso que, regra geral, ainda que não sempre, refere-se 
“interpretativamente” a textos prescritivos já dados, seja para por meio deles descrever (e 
ilustrar didaticamente) o objeto “direito”, ou para identificar a “norma do caso individual”. 
Convém, neste momento, ao menos aludir a um tipo de intervenção do jurista que, em muitos 
aspectos (mas não em todos, como logo mencionarei), diferencia-se daqueles anteriormente 
tratados, justamente, porque não se refere a textos prescritivos já dados, mas que sugerem a 
redação “em pessoa” de textos prescritivos originais. Em resumo, o jurista, recorrentemente e 
nos mais diversos contextos históricos, intervém ativamente no processo de redação das leis, 
oferece seus serviços a um comitente que neste caso não é um indivíduo ou grupo social como 
tantos, mas a elite política em plena atividade de “governo por meio das leis”. A partir da 
redação dos estatutos na sociedade comunal ao processo de criação e consolidação das 
instituições das monarquias absolutas, ao código Napoleônico, às constituições e às 
 
17
 Cfr. Por exemplo C. VANO, “I ‘problemi del lavoro’ e la civilistica italiana alla fine dell’Ottocento: il 
contributo di Emanuele Gianturco” em A. MAZZACANE (a cura di), L’esperienza giuridica di Emanuele 
Gianturco, Napoli, Liguori, 1987, p.167 ss.; ou para o problema da responsabilidade, G. CAZZEITA, 
Responsabilità aquiliana e frammentazione del diritto comune civilistico (1865-1914), Milano, Giuffrè, 1991, p. 
327 ss. 
 
 
codificações de nosso século
18
, até as mais recentes reformas legislativas, o jurista intervém 
como um “conselheiro do Príncipe” dificilmente substituível. 
Aparecem neste ponto duas perguntas: o que oferece realmente o jurista ao seu 
augusto comitente Quais são as características da intervenção do jurista? 
As respostas comumente produzidas são compatíveis, mas potencialmente 
equivocadas. À primeira pergunta responde-se apelando para “técnica” que o jurista detém: a 
“matéria” decorrente da “vontade política” recebe do jurista a “forma” adequada, o léxico, as 
definições, as distinções necessárias e suficientes para transformar-se em norma. 
A resposta é verdadeira sempre que não se leve muito a sério a salomônica divisão de 
tarefas entre “legislador” e “jurista”, sempre que não se entenda a técnica do jurista como 
algo, ao mesmo tempo, misterioso e instrumental: um passe-portout em poder de alguns 
especialistas, suficiente para abrir qualquer porta. Na realidade, o jurista, como coautor de 
textos prescritivos, como sujeito profissional inserido em uma interação estreita e continuada 
com a classe política – ele é, às vezes, um importante expoente desta classe –, pois não 
fornece instrumentos aptos para qualquer fim, mas sim oferece a classe política um discurso 
que inclui em si mesmo, espontaneamente, uma imagem de sociedade e um projeto de 
sociedade, uma ideia do que a sociedade é e uma proposta do que a sociedade deve chegar a 
ser. 
Chega-se, assim, a resposta da segunda pergunta, acerca das características próprias 
da intervenção do jurista conselheiro do Príncipe: trata-se de uma intervenção projeto, de uma 
intervenção na qual abertamente e “por definição” o jurista encontra-se diante do jurídico 
existente para transcendê-lo, onde ele não descreve algo, mas inventa, projeta, ou seja, 
imagina. Mas, é fundamental aclarar, imediatamente, um equívoco. A projeção que se 
descobre no drafting do jurista conselheiro não é o momento excepcional de um discurso que 
no desenvolvimento ordinário e multiforme possui peso suficiente para fazer frente e 
“governar” as mudanças sociais: é, sob esse enfoque, a continuação de um mesmo jogo só que 
sobre outro tabuleiro, com as devidas adaptações em virtude de serem diferentes os jogadores 
e a aposta. Visando construir um “mundo possível” de certo modo autônomo e delimitado 
quanto ao mundo da experiência comum, restrito pela sua legitimação social a rastrear e 
controlar os conflitos de interesses e a mudança dos equilíbrios, o discurso do jurista se acha, 
por assim dizer, atado por um duplo fio à carruagem (aparentemente bem colorida para a 
austeridade de sua retórica de classe) da imaginação. 
 
18
 Como exemplo, pensa-se em Portalis, em Windscheid ou, no caso da Itália recente, em Rocco, Redenti, 
Calamendrei. 
 
 
 
5. Conhecer, imaginar, projetar 
 
Mesmo em contextos históricos tão distintos que parecem dificilmente cotejáveis, 
mesmo em uma enorme variedade de relações com os textos prescritivos, o discurso do jurista 
(do jurista acadêmico, do jurista/“legislador”, do juiz) mostra-se sempre e de qualquer forma 
como um tecido composto, como uma trama de diversos materiais que se mantêm unidos pela 
existência de construir um “mundo possível”, uma exposição coerente, na qual os dados da 
experiência não vem reproduzidos (e, por outra parte, em que discurso os dados vem 
“simplesmente” reproduzidos?) mas sim trasladados nessa específica forma narrativa, 
reconhecida (em um contexto determinado) como jurídica. 
Nesse passo, é possível seguir o rastro de alguns elementos que, em que pese a 
variedade de estilos e conteúdos da narração, tendem a trazer de volta a imaginação jurídica? 
Acredito que é possível responder afirmativamente a pergunta e fazer referência, como 
hipótese, a alguns elementos peculiares do universo do discurso jurídico. 
a) O jurista produz seu discurso como sujeito pertencente a uma específica 
comunidade profissional, como sujeito definido por uma densa rede de ações e interações, de 
conflitos, de solidariedade, de relações de poder, de esquemas de comportamentos, valores, 
normas socialmente comuns: está, por assim dizer, dentro da densa e viscosa amálgama da 
interação social na qual o discurso jurídico toma forma, é lido, usado, produz seus efeitos. 
Mas mesmo assim, porém, o discurso jurídico não se diferencia substancialmente de qualquer 
outro discurso do saber. Sua especificidade surge quando se leva em consideração o mundo 
que ele próprio constrói/imagina. Da complexa realidade da interação social o discurso 
jurídico seleciona alguns fragmentos (esquemas de comportamento, sujeitos, hierarquias, 
poderes), graças aos quais a dispersão desordenada de conflitos, a incalculável diversidade de 
sujeitos, de ações, de estratificações sociais, são devolvidas a uma narrativa que as expõe 
como momentos de uma ordem completa. O mundo possível que o jurista acede a narrar é a 
realidade na qual ele concretamente atua, a realidade da experiência comum que está diante 
dele, com toda a sua complexidade e variedade. Mas ao mesmo tempo, esse mundo imaginado 
pelo jurista não é mais a complexa realidade das mais variadas interações e conflitos, mas 
uma realidade composta e “bloqueada” comoum jogo de peças unidas onde os sujeitos, as 
ações, as normas, as transgressões são previstas, ordenadas, colocadas cada uma em seu lugar: 
o mundo possível que o jurista imagina é um mundo essencialmente ordenado, é o mundo 
como ordem. 
 
 
b) O mundo construído/imaginado pelo jurista requer um horizonte temporal no qual 
se situar. No momento em que o jurista imagina a ordem, não pode senão incluir também, em 
sua visão de ordem, uma visão de temporalidade. Portanto, está-se diante de um aparente 
paradoxo. O jurista imagina um mundo que em parte ainda é, e em parte não é mais, o mundo 
da experiência comum: sua narração fala efetivamente sempre do teatro da vida cotidiana, 
contudo dela retira a variedade, a fluidez, em uma palavra, a contínua mudança e movimento. 
Deste ponto de vista, o mundo imaginado pelo jurista parece fixo a uma espécie de eterno 
presente, extraído do movimento, indisponível para todo esforço de historização (é 
precisamente sobre esta base que poder-se-ia talvez entender a recorrente tendência do 
discurso jurídico a “dogmática”, a um saber “firme e estável”). 
Na realidade, sob outro ponto de vista, o movimento, o fluxo da temporalidade 
rompe no universo jurídico, passando não por uma porta secundária, mas pela principal, seja 
qual for a barreira anti-historicista erguida por um ou outro teórico do direito. O mundo 
possível que o discurso jurídico constrói, na verdade, não é só um mundo imaginado, é 
também um mundo projetado: os sujeitos, os tipos de ação, as normas, os papéis, as 
transgressões, as sanções, as hierarquias dos quais o relato jurídico se compõe não são sujeitos 
“reais”, não são sequer os sujeitos e ações da experiência cotidiana, mas pertencem de todos 
os modos, a uma narração que, no momento que imagina os próprios personagens e ações 
como figuras do próprio mundo, tende também a impô-los como figuras da “realidade”. O 
discurso jurídico é, intrinsecamente, também um projeto de sociedade. Quando o jurista 
exerce a função de conselheiro do Príncipe seu discurso de projeto de sociedade é 
programático e aberto, quando ele intervém como juiz de um conflito o discurso é, de modo 
geral, dissimulado e deslocado. Qualquer que seja seu papel específico, o jurista imagina para 
realizar, imagina para construir, imagina em relação a uma forma de sociedade que ele (regra 
geral no mesmo instante) descreve, prescreve, deseja. 
É exatamente esse caráter projetista da imaginação do jurista que reintroduz a 
temporalidade no mundo por ele construído e dá simultaneamente a essa temporalidade uma 
flexão particular. A ordem imaginada pelo jurista aparece, deste modo, não como uma 
fotografia da ”realidade”, mas como um esquema de atuação sobre ela: uma intervenção que 
se mede programaticamente com as anomalias, as resistências, a diversidade, em uma palavra, 
com a contínua mudança e fluxo da interação social. Percebe-se, portanto, que o discurso 
jurídico, no momento que constrói/imagina o próprio mundo possível como mundo ordenado, 
como “ordem projetada” ou, se preferir, como “projeto de ordem”, postula precisamente esse 
 
 
nexo constitutivo com o movimento, com a temporalidade (com o passado, com o futuro) que, 
paradoxalmente, parecia excluir por definição. 
O nexo passado-presente-futuro converte-se assim em uma condição obrigatória 
(também) do agir do jurista: o jurista constrói seu discurso do saber mediante uma contínua 
reescrita da tradição e pensa a ordem do direito “que é” (também) como projeto de uma 
sociedade que deve ser, que poderá ser (será). O juiz é, institucionalmente, quem resolve um 
conflito a luz de uma ordem (aparentemente) já dada e imóvel, que, sem embargo desdobra 
suas potencialidades de projeto exatamente no momento em que o juiz reformula o conflito 
em função de uma dinâmica intersubjetiva sempre nova e diferente. A imaginação jurídica 
desdobra-se em uma narrativa programaticamente suspensa entre a representação de uma 
ordem que existe somente enquanto “descrição” (no mundo possível do jurista) e outra que é 
colocada como projeto que existe somente enquanto "atuação" (no âmbito da cotidiana 
interação social). 
Suspenso entre ordem e projeto, entre contemplação “desinteressada” e intervenção 
“pretendida”; unido não só a parte subjecti, mas também a parte objecti, ao mundo da 
experiência cotidiana, a complexa geografia de poderes, papéis sociais, estratificações 
socioeconômicas; o discurso do jurista parece se negar a uma só dimensão do imaginário: a 
dimensão da utopia. É singular constatar como, na longa e fascinante panorâmica de ilhas 
felizes e cidades perfeitas
19
, a contribuição do jurista, como tal, é totalmente secundária; é 
singular, mas coerente com sua “antropologia de classe” e especificidades de seu discurso. 
Preso a imaginar a ordem de seu presente (a imaginar o presente como ordem), o jurista pode 
incluir o futuro como variável dele dependente. A prefiguração de um futuro radicalmente 
distinto é um jogo tendencialmente perigoso e não é, em qualquer caso, o jogo para o qual o 
jurista considera-se profissionalmente preparado. Certamente parece que não haveria nada 
mais fácil, para ele, que imaginar as melhores leis, as melhores instituições, as melhores 
formas de governo para a Cidade do Sol: é precisamente em leis, instituições, formas de 
governo, que ele é astuto. Entretanto, aquilo que faz a dimensão utópica estranha ao 
imaginário do jurista é seu caráter “radical” e “não atual”: não atual porque incapacita 
precisamente esse presente em relação ao qual, e só em relação ao qual, o jurista dispunha-se 
a conceber o futuro; radical porque pretende cortar pela raiz essa rede de poderes, papeis, 
hierarquias que (nos mais diversos contextos, com significativa recorrência) constituem a base 
 
19
 Cfr., para uma fascinante sinopse, A. MANGUEL – G. GUADALUPI, Guía de lugares imaginários, Madrid, 
Alianza Editorial, 1992. 
 
 
de sustentação da legitimação social do jurista e ao mesmo tempo o “material” que o jurista 
utiliza criativamente em sua narração. 
 
INTERVENÇÕES 
 
Jesús Vallejo: Queria introduzir uma questão já quase ao final deste seminário: 
durante todo o tempo vem se falando das paixões do jurista, do jurista em geral, e a verdade é 
que o auditório e os debatedores são em sua grande maioria historiadores do direito, juristas, 
sim, mas em uma dimensão especial. O assunto que gostaria de discutir, portanto, é o das 
paixões do historiador do direito, enfocando a conjunção entre história e direito. Depois da 
palestra proferida por Pietro Costa, este tema parece-me especialmente significativo pelo 
seguinte: não só o direito, mas também a história são duas esferas do conhecimento que 
sofreram a desilusão do paradigma lógico-positivista, que relativizaram, ambos, seus pontos 
de vista. O historiador do direito cria por ser jurista e também por ser historiador: digamos 
que é um duplo momento criativo, que se potencializa um com o outro. O historiador do 
direito atua com o passado em um momento presente e, desde logo, projeta o futuro. Afinal de 
contas somos os oráculos da memória jurídica, damos a cada momento histórico a memória 
jurídica por ele requerida, a memória jurídica que está sendo pedida: por isso variam sempre a 
função e as orientações histórico-jurídicas. Esta é a colocação que queria fazer. A pergunta 
concreta é: até que ponto é esta função do historiador-jurista uma fatalidade? Até que ponto o 
historiador dela consegue se afastar ou até que ponto ele consegue cumpri-la? 
 
Pietro Costa: É uma pergunta objetivamente comprometida. Empresto a analogia 
que acredito que fundamenta a intervenção de Vallejo:

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