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A CIDADE GENÉRICA 1.Introdução 1.1. Será a cidade contemporânea como II I .roporto contemporâneo «igual a todos os outros»? ',i I possível teorizar esta convergência? E em caso rll 11mativo, a que configuração definitiva aspira? A con- VI I gência é possível apenas à custa do despojamento til identidade. Isso é geralmente visto como uma per- li/I. Mas à escala em que isso acontece, tem de signi- 111:malgo. Quais são as desvantagens da identidade li, Inversamente, quais as vantagens da vacuidade? I 11 esta homogeneização aparentemente acidental I) eralmente deplorada- fosse um processo inten- r lon l, um movimento consciente de distanciamento Ilrl diferença e aproximação da semelhança? E se esti- vuun s a assistir a um movimento de libertação glo- 11111:«abaixo o ca-rácter!» O que resta se removermos ri 111ntidade? O Genérico? 1.2. Na medida em que a I1I111Lidade deriva da substância física, do histórico, do I 11111xto e do real, de certo modo não consegu imos 1111Iginar que algo contemporâneo -feito por nós- 1111111ibua para ela. Mas o facto do crescimento hurna- 1111li r exponencial implica que o passado se tornará 1111cJ do momento demasiado «pequeno» para ser 31 habitado e partilhado por aqueles que estão vivos. Nós mesmos o esgotamos. Na medida em que a história encontra o seu depósito na arquitectura, as cifras actuais da população vão inevitavelmente disparar e dizimar a substância existente. A identidade concebi- da como forma de partilhar o passado é uma proposta perdedora: não só existe -num modelo estável de expansão contínua da população- proporcionalmen- te cada vez menos o que partilhar, mas a história tem uma ingrata meia-vida -quanto mais se abusa dela, menos significativa se torna- até chegar o momento em que as suas decrescentes dádivas se tornam insul- tuosas. Esta rarefacção é exacerbada pela massa sempre crescente de turistas, uma avalanche que, na busca perpétua do «carácter», tritura as identidades bem-sucedidas transformando-as em poeira insig- nificante. 1.3. A identidade é como uma ratoeira, onde cada vez mais ratos têm de partilhar o isco original, e que, examinada mais de perto, pode estar vazia há séculos. Quanto mais poderosa for a identidade, mais nos aprisiona, mais resiste à expansão, à interpreta- ção, à renovação, à contradição. A identidade torna-se semelhante a um farol-fixa, sobredeterminada: pode mudar a sua posição ou o padrão em que emite, mas o preço é desestabilizar a navegação (Paris só se pode tornar mais parisiense -já está a caminho de se tor- nar hiper-Paris, uma caricatura polida. Há excepções: 32 londres -cuja única identidade é a falta de uma Id ntidade clara- está perpetuamente a tornar-se cada vez menos Londres, mais aberta, menos estáti- on). 1.4. A identidade centraliza; insiste numa essên- Li , num ponto. A sua tragédia é dada em termos geo- ITl tricos simples. À medida que se expande a esfera 11 influência, a área caracterizada pelo centro torna- I cada vez maior, diluindo irremediavelmente tanto a torça como a autoridade do núcleo; inevitavelmente, /! distância entre o centro e a circunferência aumenta 111 ao ponto de ruptura. Nesta perspectiva, a desce- horta recente e tardia da periferia como zona de valor p tencial -uma espécie de condição pré-histórica 11118 pode ser finalmente digna de atenção arquitectó- nlca-> é apenas uma insistência dissimulada na prio- II(J de e na dependência do centro: sem centro não há pc riferia; o interesse do primeiro compensa presumi- VI [mente a vacuidade do segundo. Conceptualmente III tà, a condição de periferia é agravada pelo facto da li mãe continuar viva, roubando o espectáculo, enfa- 11/ ndo as insuficiências da sua descendência. As ultimas vibrações que emanam do centro esgotado hupedern a leitura da periferia como uma massa criti- I I. Não só o centro é por definição demasiado peque- 110 para cumprir as obrigações que lhe estão consig- 1I Idas, como também não é já o centro real, antes uma 11111 gem empolada em vias de implosão; contudo, a 33 sua presença ilusória nega legitimidade ao resto da cidade (Manhattan denigra como «gente das pontes e túneis» aqueles que precisam do apoio das infra- estruturas para entrar na cidade e fá-los pagar por isso). A persistência da actual obsessão concêntrica faz que todos nós sejamos gente das pontes e túneis, cidadãos de segunda classe na nossa própria civiliza- ção, privados dos nossos direitos por essa tonta coin- cidência do nosso exílio colectivo do centro. 1.5. Na nossa programação concêntrica (o autor passou parte da sua juventude em Amesterdão, cidade da máxima centralidade) a insistência no centro como núcleo de valor e significado, fonte de toda a significação, é duplamente destrutiva: não só o volume sempre cres- cente das dependências é uma tensão essencialmen- te intolerável, como também significa que o centro tem que ser constantemente mantido, quer dizer modernizado. Como «lugar mais importante» parado- xalmente tem que ser, ao mesmo tempo, o mais velho e o mais novo, o mais fixo e o mais dinâmico; sofre a adaptação mais intensa e constante, que em seguida se vê comprometida e complicada pelo facto de ter de ser uma transformação irreconhecível, invisível a olho nu (a cidade de Zurique encontrou a solução mais radical e dispendiosa ao voltar a uma espécie de arqueologia inversa: camada após camada de novas modernidades -centros comerciais, parques de esta- 34 ,lllIlllmento, bancos, abóbadas, laboratórios, etc.- , I) c nstruídos por baixo do centro. Ocentro já não se I' pnnde para fora ou para o alto, mas sim para dentro 1111 direcção ao próprio centro da Terra). Desde o enxer- 111 ti vias de comunicação, circunvalações e túneis IIlllorrâneos mais ou menos discretos, a construção tlll c da vez mais tangenciais até à transformação roti- 1/1 11 de habitações em escritórios, de armazéns em IIJII~;.de igrejas abandonadas em clubes nocturnos, ,li nd as falências em série e subsequentes reabertu- I til e espaços comerciais cada vez mais caros até à 1IIIplacável conversão de espaço utilitário em espaço "Illlblico», a pedonalização, a criação de novos par- '111( , plantando, ligando e expondo a sistemática res- 111111 ção da mediocridade histórica -toda a autenti- I ulade se vê incessantemente evacuada. 1.6. A Cidade (jl nérica é a cidade libertada da clausura do centro, I lI) spartilho da identidade. A Cidade Genérica rompe I om o ciclo destrutivo da dependência, não é mais do 1111 um reflexo da necessidade actual e da capacida- dI ctual. É a cidade sem história. É suficientemente 1',londepara toda a gente. É fácil. Não necessita de IlIl1nutenção. Se se tornar demasiado pequena sim- pl smente expande-se. Se ficar velha, simplesmen- II utodestrói-se e renova-se. É igualmente ernocio- nnnte -ou pouco emocionante- em toda a parte. I «superficial» -tal como um estúdio de Hollywood 35 pode produzir uma nova identidade todas as manhãs de segunda-feira. 2.1. A Cidade Genéri- ca cresceu espectacularmente nas últimas décadas. Não só o seu tamanho aumentou, mas também os seus números. No início da década de 1970, era habi- tada em média por 2,5 milhões de residentes oficiais (e mais ou menos 500.000 eventuais); agora, ronda os 15 milhões. 2.2. Será que a Cidade Genérica comecou na América? É tão profundamente pouco original que só pode ter sido importada? Em qualquer caso, a Cida- de Genérica agora também existe na Ásia, Europa, Austrália e África. A passagem definitiva do campo, da agricultura para a cidade não é uma passagem para a cidade como a conhecemos: é a passagem para a Cidade Genérica, uma cidade que se expandiu tanto que chegou ao campo. 2.3. Alguns continentes como a Ásia aspiram à Cidade Genérica; outros envergonham- se dela. Como tende para o tropical-convergindo em torno do equador- grande parte das Cidades Genéri- cas são asiáticas, o que aparentementeé uma contra- dição nos termos: o superfamiliar habitado pelo ines- crutável. Um dia voltará a ser absolutamente exótica, um produto descartável da civilização ocidental, gra- ças à resemantização que a sua própria difusão deixa na sua esteira ... 2.4. Por vezes, uma cidade antiga e singular, como é o caso de Barcelona, ao simplificar excessivamente a sua identidade passa a ser Genéri- 36 11\. Torna-se transparente, como um logótipo. O con- II I io nunca sucede ... pelo menos ainda não aconte- I I U. ~ 3.1. A Cidade Genérica é o que resta til pois de grandes sectores da vida urbana terem pas- I o para o ciberespaço. É um lugar de sensações II nues e distendidas, de emoções escassas e distan- II ti, discreto e misterioso como um grande espaço ilu- nunado por um candeeiro de mesa-de-cabeceira. I .omparada com a cidade clássica, a Cidade Genérica I t L' sedada, normalmente observada de uma posição I entária. Em vez de concentração -presença " ultânea- na Cidade Genérica, cada «momento» I)oncreto afasta-se dos demais para criar um transe tli experiências estéticas quase inapreciáveis: as vmiações de cor na iluminação fluorescente de um Ildifício de escritórios pouco antes do pôr do Sol, as ubtilezas dos brancos ligeiramente diferentes de um I'lIinel iluminado à noite. Tal como a comida japonesa, li!; ensações podem reconstituir-se e intensificar-se I \ I mente, ou não: podem ser simplesmente ignoradas (11 uma opção). Esta difusa falta de urgência e insis- I ncia actua como uma droga potente: induz uma oiu- l'lnação do normal. 3.2. Numa drástica inversão do que upostamente a principal característica da cidade «negócio»- a sensação dominante da Cidade I i nérica é uma calma misteriosa: quanto mais calma 10 , mais se aproxima do seu estado puro. A Cidade 37 Genérica enfrenta os «males» que se atribuíam à cida- de tradicional antes que o nosso amor por esta se tor- nasse incondicional. A serenidade da Cidade Genérica consegue-se através da evacuação do domínio públi- co, como na emergência de um simulacro de incêndio. A superfície urbana agora só alberga o movimento necessário, fundamentalmente os carros; as auto- estradas são uma versão superior das avenidas e pra- ças, ocupando cada vez mais espaço; o seu traçado, que aparentemente procura a eficácia automobilísti- ca, é de facto surpreendentemente sensual, uma pre- tensão, utilitária que entra no domínio do espaço tiso. O_quee novo neste domínio público sobre rodas é que nao pode ser medido em termos de dimensões. Omes- mo percurso (digamos de dez quilómetros) proporcio- na grande número de experiências completamente diferentes: pode durar cinco minutos ou quarenta; pode ser partilhado com quase ninguém ou com toda a população; pode proporcionar o prazer absoluto da velocidade pura e não adulterada -caso em que a sensação da Cidade Genérica pode mesmo tornar-se intensa ou pelo menos adquirir densidade- ou mo- mentos de paragem totalmente claustrofóbicos _ caso em que a rarefacção da Cidade Genérica será mais perceptível. 3.3. A Cidade Genérica é fractal, uma repetição infindável do mesmo módulo estrutural sim- ples; é possível reconstruí-la a partir da sua entidade 38 mnis pequena, de um computador pessoal ou talvez 111 mo de uma disquete. 3.4. Os campos de golfe são tudo o que resta da alteridade. 3.5. A Cidade Genérica IlJIn números de telefone fáceis, não esses rebeldes IIiLuradores do lóbulo frontal de dez algarismos que I xi tem na cidade tradicional, mas sim versões mais homogéneas, por exemplo com os algarismos inter- 111 dios idênticos. 3.6. A sua principal atracção é a 1111 mia. 4.1. Anteriormente manifesta- 1:0 s da máxima neutralidade, os aeroportos estão /'I/~ ra entre os elementos mais singulares e caracte- / I!;ticos da Cidade Genérica, sendo o seu mais podero- o veículo de diferenciação. Têm de o ser, já que é mui- 111 vezes tudo o que uma pessoa comum fica a conhecer de uma determinada cidade. Tal como numa / licaz apresentação de um perfume, os murais foto- 1',1 ficos, a vegetação e os costumes locais proporcio- uarn um primeiro choque concentrado da identidade local (por vezes é também o último). Longínquo, con- lortável, exótico, polar, regional, oriental, rústico, novo IlU mesmo «inexplorado»: são estes os registos emo- cionais que evocam. Assim, com esta carga conceptu- il. os aeroportos transformam-se em sinais ernble- máticos, gravados no inconsciente colectivo global, c m selvagens manipulações dos seus atractivos não 1\ ronáuticos -lojas tax-ttee, qualidades espaciais ( pectaculares, a frequência e a fiabilidade das suas 39 ligações com outros aeroportos. Em termos da sua iconografia/desempenho, o aeroporto é um concen- trado tanto do híper-local como do híper-global _ híper-global no sentido de que podemos adquirir aí artigos que não se encontram nem mesmo na cidade' híper-local no sentido em que se podem adquirir nele coisas que não se podem obter em mais parte nenhu- ma. 4.2. A tendência da Gestalt dos aeroportos é para uma autonomia cada vez maior: por vezes, não têm sequer na prática qualquer relação com a Cidade Genérica específica. Ao tornarem-se cada vez maio- res, equipados com mais serviços não associados às viagens, estão em vias de substituir a cidade. A condi- ção de estar «em trânsito» está a tornar-se universal. Em conjunto, os aeroportos contêm populações de milhões de habitantes, além de contarem com a maior força de trabalho diurna. Tendo em conta a totalidade dos seus serviços, são como bairros da Cidade Genéri- ca, sendo mesmo por vezes a sua razão de ser (o seu centro?), com a atracção adicional de serem sistemas herméticos dos quais não há escapatória -salvo para ir para outro aeroporto. 4.3. A data/idade da Cidade Genérica pode ser reconstruída a partir de uma leitura atenta da geometria do seu aeroporto. Planta hexago- nal (em casos singulares, pentagonal ou heptagonal): década de 1960. Planta e corte ortogonais: década de 1970. Cidade col/age: década de 1980. Um corte curvo 40 .uuco, interminavelmente extrudido numa planta line- /11' provavelmente, década de 1990. (A sua estrutura uunificada como um carvalho: Alemanha). 4.4. Exis- Itllll aeroportos de dois tamanhos: demasiado gran- di 1 demasiado pequenos. Contudo, o seu tamanho 11 () tem influência no seu desempenho. Isto sugere 'III( o aspecto mais intrigante de todas as infra-estru- 1111(l é a sua elasticidade essencial. Calculados com 11(I tidão em função do número -de passageiros por 11110- são invadidos por um sem número deles e ohrevivern, expandidos até à máxima indetermina- " (J. 5.1. A Cidade Genérica é rigorosa- 1111nte multirracial, tendo em média 8 % de negros, 1 Y% de brancos, 27 % de hispânicos, 37 % de chine- I DI siáticos, 6 % de indeterminados e 1O% de outros. 1 unosó multirracial mas também multicultural. É por , I razão que não surpreende encontrar templos nutre os prédios, dragões nas avenidas principais ou 1111(..1 s no CBO (Central Business Oistrict: centro I umercial e financeiro). 5.2. A Cidade Genérica é sem- I'll Fundada por pessoas em trânsito, determinadas a ( f\uir adiante. Isto explica a insubstancialidade das 11II1Sfundações. Como os flocos que se formam subi- I unente num líquido transparente ao juntarem-se IIIIOSsubstâncias químicas, para posteriormente se ncurnularern numa pilha incerta no fundo, a colisão ou ( onfluência de duas migrações -por exemplo, emi- 41 grados cubanos a caminho do norte e judeus aposen- tados indo para o sul, em última instância todos a caminho de outro lugar- estabelece, quando menos se espera, um assentamento. Nasceu uma Cidade Genérica. 6.1. A grande originalidade da Cidade Genérica é simplesmente a de abandonar o que não funciona -o que sobreviveu ao seu uso- para romper a capa de asfalto do idealismo com os martelos pneumáticos do realismo e aceitar qualquer coisa que cresça em seulugar. Nesse sentido, a Cida- de Genérica concilia tanto o primitivo como o futurista -na verdade, somente estas duas coisas. A Cidade Genérica é tudo o que fica do que costumava ser a cidade. A Cidade Genérica é a pós-cidade que se está a preparar no lugar da ex-cidade. 6.2. A Cidade Genéri- ca mantém-se unida não por um domínio público excessivamente exigente -progressivamente degra- dado numa sequência inesperadamente longa em que o fórum romano está para a ágora grega como o centro comercial está para a rua principal- mas pelo residual. No modelo original dos modernos, o residual era simplesmente uma zona verde, o seu controlado asseio era uma afirmação moralista de boas inten- ções, desencorajando a associação e o uso. Na Cidade Genérica, por virtude da sua capa civilizacional ser tão fina, e graças à sua tropicalidade imanente, o vegetal transforma-se em Resíduo Edénico, sendo o principal 42 111111idor da sua identidade: um híbrido de política e I'nlllngem. Ao mesmo tempo refúgio do ilegal e do In- 1111\IIOlávele submetida a uma interminável marupu- 111,,1\0,representa um triunfo simultâneo do cosmético I do primordial. A sua exuberância imoral compensa 111111s fraquezas da Cidade Genérica. Supremamente 1lllllgânica, o orgânico é o mito mais poderoso da Cida- di C nérica. 6.3. A rua morreu. Essa descoberta COIn- I 1IIIucom as frenéticas tentativas da sua ressurreição. 1\ 111te pública está por toda a parte -como se duas 11101tes fizessem uma vida. A pedonalização- pensa- 1111ara preservar -canaliza simplesmente o fluxo IIII!; condenados a destruir com os seus pés o objecto 1111ua presumida veneração. 6.4. A Cidade Genérica li 1 a passar da horizontalidade para a verticalidade. 1I 11ranha-céus parece ser a ti pologia fi nal e defi nitiva. l ngoliu tudo o resto. Pode existir em qualquer lugar: 1IIIInarrozal ou no centro da cidade, já não há nenhu- 1111\diferença. As torres já não estão juntas; separam- I de modo a que não interajam. A densidade isolada é 11ideal. 6.5. A habitação não é um problema. Ou foi 1111lmente resolvida ou foi deixada completamente ao /I(;OSO; no primeiro caso é legal; no segundo, «ilegal»; 111)primeiro caso, são torres ou, geralmente, prédios (com um máximo de 15 metros de profundidade); e no '11 undo (em perfeita complementaridade) uma cros- 111de barracas improvisadas. Uma solução consome o 43 44 céu; a outra o terreno. É estranho que aqueles que têlll menos dinheiro habitem o recurso mais caro -a te: ra- e os que pagam habitem o que é de graça -o I, Em ambos os casos, a habitação demonstra ser SUl preendentemente acomodatícia - não só a popul cão duplica de tantos em tantos anos, como também, com o decrescente controlo das diferentes religiões, O número médio de habitantes por unidade se reduz para metade -devido a divórcios e outros fenómenos de divisão familiar- com a mesma frequência que duplica a população da cidade; à medida que estes números crescem, a densidade da Cidade Genérica está perpetuamente em redução. 6.6. Todas as Cida- des Genéricas surgem da tabula rasa; se não havia nada, agora elas estão lá; se já existia algo, elas subs- tituíram-no. Teria que ser assim, de outro modo se- riam históricas. 6.7. A paisagem Urbana Genérica é geralmente uma amálgama de sectores excessiva- mente ordenados -que datam do início do seu desen- volvimento, quando «o poder» ainda não se tinha dilu- ído- e soluções cada vez mais livres por toda a parte. 6.8. A Cidade Genérica é a apoteose do conceito de escolha múltipla: todas as hipóteses marcadas, uma antologia de todas as opções. Em geral, a Cidade Genérica foi «planeada» não no sentido habitual de uma organização burocrática que controla o seu des- envolvimento, mas sim como se diversos ecos, espo- III I1I pos e sementes tivessem, como na natureza, I IIItlo n terra ao acaso, se tivessem fixado -aprovel- I IIltlo fertilidade natural do solo- e agora formas- I111um conjunto: uma reserva arbitrária de genes que 11111v zes produz resultados assombrosos. 6.9. A es- 1111/1a cidade pode resultar indecifrável e defeituosa, 11111'i so não significa que não haja escrita; pode ter 1IIIIILecido simplesmente que tenhamos criado um IIIIVOanalfabetismo, uma nova cegueira. A detecção 1"11:1nte revela os temas, as partículas e os fila~en- I" que se podem isolar da aparente impanetrabilida- ti" I sta ur-sopa wagneriana: notas deixadas numa til!! sia por um génio numa visita há 50 anos, relato- 110:; multi-copiados da ONU que se desintegram no 1111 silo de vidro em Manhattan, descobrimentos de .uulgos pensadores coloniais com olho clí~ico para 11clima, imprevisíveis ricochetes de educaçao para o IIi enho que recuperam força como um processo glo- 11111 de branqueamento. 6.10. A melhor definição da I nt tica da Cidade Genérica é o «estilo livre». Como " screvê-Io? Imaginemos um espaço aberto, uma ela- I( ira na floresta, uma cidade nivelada. Há três ele- 111ntos: as estradas, os edifícios e a natureza; todos ( I s coexistem com relações flexíveis, aparentemente :; m motivo, numa espectacular diversidade organiza- liva. Qualquer dos três pode dominar: por vezes a « strada» perde-se -e volta a encontrar-se serpen- 45 teando num desvio incompreensível; por vezes não vemos edifícios, só a natureza; depois, de modo igual- mente imprevisível, vemo-nos rodeados só por edifí- cios. Em certos pontos assustadores, as três coisas estão simultaneamente ausentes. Nesses «sítios» (na verdade, qual é o oposto de sítio? São como buracos perfurados no conceito de cidade), a arte pública emerge como o monstro do lago Ness, figurativa e abs- tracta em partes iguais, habitualmente auto-mantida. 6.11. As cidades específicas continuam a discutir os graves erros dos arquitectos -por exemplo, as suas propostas para criar redes pedonais elevadas com tentáculos que levam de um prédio para o seguinte como solução para a congestão- mas a Cidade Gené- rica simplesmente desfruta das vantagens das suas invenções:plataformas, pontes, túneis e auto-estradas -uma enorme proliferação da parafernália de liga- ção- frequentemente cobertos de fetos e flores como se para esconjurar o pecado original, criando assim uma congestão vegetal mais severa do que um filme de ficção científica dos anos 1950. 6.12. As estradas são apenas para os carros. As pessoas (os peões) são largados em caminhos (como num parque de diver- sões), em «promenades» que as levantam do solo e depois as sujeitam a todo um catálogo de situacões exageradas -vento, calor, escarpas, frio, interior, ~xte- rior, cheiros e vapores- numa sequência que é uma 46 1111 icatura grotesca da vida na cidade histórica. 6.13. I tnte horizontalidade na Cidade Genérica, mas está 11111 vias de extinção. Consiste da história que ainda 11110 foi apagada ou então de enclaves ao estilo Tudor 111" se multiplicam em redor do centro, como emble- 1111\' recém-cunhados da preservação. 6.14. Ironica- monte, embora sendo nova, a Cidade Genérica está Illd ada por uma constelação de Cidades Novas: as Lld des Novas são como anéis de crescimento anual. 1)1) lgurn modo, as Cidades Novas envelhecem com 1IIIIita rapidez, tal como uma criança de cinco anos '1" fica com rugas e artrite devido à doença chamada piO éria. 6.15. A Cidade Genérica apresenta a morte rlulinitiva do planeamento. Porquê? Não porque não (j planeada -de facto, enormes universos comple- II1 ntares de burocratas e promotores imobiliários I 1Ializam fluxos inimagináveis de energia e dinheiro pfl a a sua concretização; pelo mesmo dinheiro, as 111 s planícies podiam ser fertilizadas com diaman- 11 s, os seus terrenos lamacentos pavimentados com ln] s de ouro ... Mas a sua descoberta mais perigosa e IIliLimulante é que o planeamento não faz qualquer rlilerenca. Os edifícios podem colocar-se bem (uma I() re perto de uma estação de metro) ou mal (centros 11 quilómetros de distância de qualquer estrada).Todos Ilorescem/morrem de maneira imprevisível. As redes viúrias expandem-se em excesso, envelhecem, apo- 47 drecem.' tornam-se obsoletas; as populações dupll cam, triplicarn, quadruplicam e de repente desapar cem. A superfície da cidade explode, a economi t acelera, desacelera, dispara, afrouxa. Como velha mães que continuam a amamentar os seus embriõe titânicos, cidades inteiras são construídas sobre infra estruturas coloniais, cujas plantas os opressores levaram de volta para casa. Ninguém sabe de onde cor:n0 ou desde quando funcionam os esgotos, nin~ guem sabe a localização exacta das linhas telefónicas qual foi a razão para colocar ali o centro, nem onde acabam os eixos monumentais. O que tudo isso demonstra é que há infinitas margens ocultas colos- sais reservas de inércia, um perpétuo processo orgâ- nico de afinação, normas, comportamentos; as ex- pectativas mudam com a inteligência biológica do animal mais atento. Nesta apoteose de escolha múlti- pla nunca voltará a ser possível reconstruir a causa e o efeito. Funcionam, é tudo. 6.16. A aspiração da Cidade Genérica à tropicalidade implica automatica- mente a rejeição de qualquer referência prolongada à cidade como fortaleza, como cidadela; é aberta e aco- modatícia como um mangal.~7.1. A Cidade Genérica tem uma relação (por vezes distante) com um regime mais ou menos autoritário, local ou nacio- nal. O habitual é que os amigos do dirigente -quem quer que ele seja- tenham decidido promover um 48 1111( Inço de «centro urbano» na periferia, ou inclusiva- 111111110 comecar uma cidade no meio do nada e desen- I 1110 r assim uma prosperidade que ponha a cidade 11II m pa. 7.2. Com frequência, o regime desenvolveu 11111 urpreendente grau de invisibilidade, como se jl,IIIÇ s à sua permissividade a Cidade Genérica resis- III '1 ao ditatorial. 8.1. É deveras surpro- Illd nte que o triunfo da Cidade Genérica não tenha I o\l1cidido com o triunfo da sociologia -uma disciplina IIIJ «campo» foi ampliado pela Cidade Genérica para til im de tudo o que se possa imaginar. A Cidade Ge- I I (li ica é sociologia a acontecer. Cada Cidade Genéri- I I uma placa de Petri, ou um quadro preto infinita- 111( nte paciente no qual quase qualquer hipótese pode ( r «demonstrada» e logo apagada, para nunca mais I (, ar nas mentes dos seus autores ou do seu público. .2. Claramente, há uma proliferação de comunidades um zapping sociológico- que resiste a uma única 1111 rpretação dominante. A Cidade Genérica está a d ,bilitar todas as estruturas que no passado levaram I que algo se consolidasse. 8.3. Ainda que infinita- IT\ nte paciente, a Cidade Genérica também se mostra il rsistentemente rebelde perante a especulação: d monstra que a sociologia pode ser o pior sistema p ra captar a sociologia a acontecer. Vence todas as críticas estabelecidas. Contribui com uma grande quantidade de provas a favor e -em quantidades ain- 49 da mais impressionantes- contra cada hipótese. Em A os prédios construídos em torre levam ao suicídio, em B, à felicidade para sempre. Em C,são vistos como um primeiro passo no caminho da emancipação (con- tudo, presume-se que sujeito a algum tipo de coação); em D, simplesmente como algo que passou de moda. Construídos em quantidades inimagináveis em K, estão a ser dinamitados em L. A criatividade é inexpli- cavelmente alta em E, e inexistente em F. G é um mosaico étnico ininterrupto; H está constantemente à mercê do separatismo, para não dizer à beira da guerra civil. Omodelo Y nunca perdurará devido à alte- ração que produz na estrutura familiar, mas Z floresce -uma palavra que um académico nunca aplicaria a qualquer actividade da Cidade Genérica- por causa dela. A religião desaparece em V, sobrevive em W e transmuta-se em X. 8.4. Estranhamente, ninguém pensou que, ao acumularem-se, as infinitas contradi- ções destas interpretações demonstram a riqueza da Cidade Genérica; essa é a hipótese que foi eliminada antecipadamente.~9.1. Há sempre um bairro chamado Lipservice,' onde se conserva uma parte mínima do passado: normalmente há um velho com- boio/eléctrico ou autocarro de dois pisos que lá circu- , Jogo de palavras: to pay lip service significa algo como «dar palmadi- nhas nas costas» [N. do T.]. 50 ln lnzendo soar sinistras campainhas: versões domes- 111:l\dasdo navio fantasma de Der fliegende Holldnder. Iv cabines telefónicas ou são vermelhas e transplan- IlIeI s de Londres, ou estão dotadas de pequenos Ii lhados chineses. Lipservice -também chamado 1\11 rthoughts, Waterfront, Toa Late, 42nd Street, t lmplesrnente Village ou mesmo Underground+" é 11111elaborada operação mítica: exalta o passado I orno só o recentemente concebido sabe. É uma mriquina. 9.2. A Cidade Genérica teve em tempos um I) I ado. No seu esforço para alcançar notorieda- IIi , grandes sectores dela de certo modo desaparece- 1IIIn, a princípio sem que ninguém o lamentasse - ogundo parece, o passado era surpreendentemente lnsalubre, mesmo perigoso- e depois, sem avisar, o IIIIViotransformou-se em pesar. Alguns profetas -de longos cabelos brancos, peúgas cinzentas e sandá- 111- tinham sempre avisado que o passado era necessário, um recurso. Lentamente, a máquina de I lostruicão comeca a imobilizar-se; algumas casinho- I 1 ale~tórias do branqueado plano euclidiano sal- v irn-se, restituídas a um esplendor que nunca tive- I fim ... 9.3. Apesar da sua ausência, a história é a 1'1incipal preocupação, ou mesmo indústria da Cidade 'Ilospectivamente «Margem», «Muito tarde», «Rua 42», «a Vila» e ,(~lubterrâneo» [N. do T.]. 51 Genérica. Nos terrenos libertados, em volta das casi- nhotas restauradas, constroem-se mais hotéis para acolher turistas adicionais na proporção directa da eli- minação do passado. Oseu desaparecimento não tem qualquer influência no seu número, ou talvez se trate apenas de uma avalanche de última hora. O turismo é agora independente do destino ... 9.4. Em vez de recor- dações específicas, as associações de ideias que a Cidade Genérica mobiliza são recordações gerais, recordações de recordações: se não todas as recorda- ções ao mesmo tempo, ao menos uma recordação abs- tracta e simbólica, um déjà vu que nunca acaba, uma recordação genérica. 9.5. Apesar da sua modesta pre- sença física (Lipservice nunca tem uma altura superior a três andares: homenagem aJaneJacobs ou vingança desta?), condensa todo o passado num único conjunto. A história regressa aqui não como uma farsa mas como um serviço: mercadores mascarados (chapéus cómi- cos, ventres à mostra e véus) promovem voluntaria- mente as condições (escravatura, tirania, doença, pobreza ou colonialismo) por cuja abolição o seu país noutros tempos se lançou numa guerra. Como um vírus que se multiplica por todo o mundo, o colonial parece ser a única fonte inesgotável do autêntico. 9.6. 42nd Street: embora aparentemente sejam os lugares onde o passado se preserva, na verdade são os lugares on- de o passado mais mudou, está mais distante -como 52 o víssemos com o telescópio ao contrário- ou foi mesmo completamente eliminado. 9.7. Só a recorda- I'IlO dos excessos anteriores é suficientemente forte f pnra intensificar o anódino. Como se tentassem aque- I. r-se ao calor de um vulcão extinto, os sítios mais p pulares (com turistas, e na Cidade Genérica isso Inclui toda a gente) são os que alguma vez estiveram rn is intensamente associados ao sexo e à má condu- 111. Os inocentes invadem os antigos redutos de proxe- 11 tas, prostitutas, traficantes, travestis e, em menor wau, de artistas. Paradoxalmente, no mesmo momen- 10 em que a auto-estrada da informação está pronta Il ra levar a pornografia às toneladas até às suas salas d estar, é como se a experiência de caminhar sobre t 'sas brasas reaquecidas da transgressão e do peca- ti os fizesse sentirem-se especiais e vivos. Numa épo- t: que não gera nova aura, o valor da aura estabelecidadispara. Será ao caminhar sobre essas cinzas que mais p rto se encontrarão da culpa? Existencialismo diluído t: ma intensidade de uma garrafa de Perrier?9.8. Cada Cidade Genérica tem uma beira-mar, não necessaria- mente com a água -também pode ser com um deser- I , por exemplo- mas pelo menos uma linha limítrofe onde se encontra com outra situação, como se uma p sição de escape próximo fosse a melhor garantia p ra o seu divertimento. Aqui os turistas reúnem-se \ s magotes em volta de um punhado de tendas. Mul- 53 tidões de vendedores ambulantes tentam venderlhes os aspectos «únicos» da cidade. As partes únicas de todas as Cidades Genéricas juntas criaram um souve- nir universal, um cruzamento científico entre a Torre Eiffel, o Sacré-Coeur e a Estátua da Liberdade: um edi- fício alto (normalmente entre os 200 e os 300 metros) submergido numa pequena bola de água com neve ou, se estivermos próximo do equador, com flocos de ouro; diários com capas de couro picadas de varíola; san- dálias hippies -mesmo que os verdadeiros hippies sejam repatriados rapidamente. Os turistas afagam- nos -nunca ninguém viu uma venda- de seguida se~tam-se em exóticos restaurantes que bordejam a beira-mar. Aí provam toda a gama de pratos do dia: picantes que em princípio e em última análise podem ser o sinal mais fiável de estarem noutro sítio; pana- dos de vaca ou sintéticos; crus, um costume atávico que será muito popular no terceiro milénio. 9.9. As gambas são o aperitivo fundamental. Gracas à sim- plificação da cadeia alimentar e às vicissitudes da pre- paração -sabem aos queques ingleses, quer dizer, a nada. 10.1. Os escritórios continuam a existir, de facto cada vez em maior número. As pessoas dizem que já não são necessários. Dentro de cinco a dez anos, trabalharemos todos em casa. Mas precisa- remos de casas maiores, suficientemente grandes para as utilizar em reuniões. Osescritórios terão de ser 54 convertidos em casas. 10.2. A única actividade é ir às compras ... Mas porque não considerar que ir às com- pr s é algo temporário, provisório? Espera melhores di s. E a culpa é nossa -nunca pensámos em nada 111 lhor para fazer. Osmesmos espaços inundados com () tros programas -bibliotecas, banhos, universida- ti s- seria espectacular; ficaríamos estupefactos p rante a sua grandiosidade. 10.3. Os hotéis estão a II nsformar-se no alojamento genérico da Cidade (I nérica, no seu prédio edificado mais comum. Antes costumavam ser os escritórios que pelo menos impli- c vam um ir e vir e supunham a presença de outros nlojamentos importantes em qualquer outro sítio. Os hotéis são agora contentores que, na expansão e na universalidade dos seus serviços, fazem com que qua- l) todos os restantes edifícios se tornem redundantes. Actuando também como centros comerciais, são o mais parecido que temos com a existência urbana ao stilo do século XXI. 10.4. O hotel implica agora um ncarceramento, uma prisão domiciliária voluntária; não há outro sítio onde ir que possa competir com ele; hegamos e lá ficamos. Em conjunto, descrevem uma cidade de dez milhões de habitantes, todos encerrados nos seus quartos, uma espécie de animação invertida -a densidade implodida. 11.1. Feche- mos os olhos e imaginemos uma explosão de bege. No seu epicentro espalha-se a cor das pregas vaginais 55 (não excitadas), em beringela metálico mate, tabaco- caqui, abóbora acinzentada, todos os carros a cami- nho da brancura nupcial. .. 11.2. Há edifícios interes- santes e aborrecidos na Cidade Genérica, como em todas as cidades. Em ambos os casos a sua ascendên- cia remonta a Mies van der Rohe: a primeira categoria à sua torre irregular da Friedrichstrasse (1921); a segunda, às caixas que ele concebeu não muito tempo depois. Esta sequência é importante: obviamente, depois de uma experiência inicial, Mies tomou uma decisão de uma vez por todas contra o interesse, a favor do aborrecimento. Quando muito, os seus edifí- cios posteriores captam o espírito do seu trabalho anterior -sublimado, reprimido?- como uma ausên- cia mais ou menos perceptível, mas nunca mais voltou a propor projectos «interessantes» para possíveis edifícios. A Cidade Genérica demonstra que estava equivocado: os seus arquitectos mais ousados aceita- ram o desafio que Mies recusou, até a um ponto que hoje é difícil encontrar uma caixa. Ironicamente, esta homenagem exuberante ao Mies interessante mostra que «o» Mies estava enganado. 11.3. A arquitectura da Cidade Genérica é, por definição, bela. Construída a uma velocidade incrível e concebida a um ritmo mais incrível ainda, há uma média de 27 versões aborta- das por cada edifício realizado, mas este não é o ter- mo adequado. Os projectos são elaborados nesses 56 \(l.OOO escritórios de arquitectura, de que nunca nin- 1,11 m ouviu falar, todos vibrantes de uma inspiração luovadora. Supostamente mais modestos que os seus I olegas mais conhecidos, estes escritórios estão .liga- tio por uma consciência colectiva de que algo vai mal IIIl arquitectura e que só pode ser corrigido mediante Il!l seus esforços. O poder dos números outorgalhes lima esplêndida e lustrosa arrogância. São eles que !lI jectam sem vacilar. De mil e uma fontes, com uma \H cisão sem controlo, reúnem mais riquezas do que poderia qualquer outro génio. Em média, a su~ educa- 1:110 custou 30.000 dólares, sem contar com viagens e illojamento. 23 % foram branqueados nas universida- II s norte-americanas da Ivy League, onde estiveram IHn contacto -há que reconhecer que durante perio- ti s muito curtos- com a elite bem paga da outra pro- li são «oficial». Daí se deduz que um investimento I: mbinado total de 300 mil milhões de dólares em for- I11 ção de arquitectos (30.000 dólares [custo médio] x 100 [número médio de trabalhadores por atelier] x I 0.000 [números de ateliers em todo o mundo]) está a ti senvolver e a produzir a todo o momento Cidades Clenéricas. 11.4. Os edifícios que são formalmente t: mplexos dependem da indústria da parede-cortina, t: m adesivos e selantes cada vez mais eficazes que II nsformam cada edifício numa mescla de carni- !) -de-forcas e tenda de oxigénio. O uso de silicone 57 -«estam os a estender a fachada tanto quanto for possível»- aplanou todas as fachadas, colou o vidro à pedra, ao aço e ao betão numa impureza própria da era espacial. Essas uniões dão a impressão de certo rigor intelectual graças à aplicação generosa de um com- posto espermático transparente que mantém tudo unido, mais pelo objectivo do que pelo desenho: um triunfo da cola sobre a integridade dos materiais. Como tudo o resto na Cidade Genérica, a sua arquitectura é o resistente tornado maleável, uma epidemia do flexível causada não pela aplicação dos princípios, mas sim pela aplicação sistemática do que não tem princípios. 11.5. Dado que a Cidade Genérica é principalmente asiática, a sua arquitectura funciona geralmente com ar condicionado; e é aí onde o paradoxo da recente mudança de paradigma -que a cidade já não repre- senta o máximo desenvolvimento, mas sim um subde- senvolvimento no limite- se torna agudo: os meios brutais com que se consegue o acondicionamento uni- versal imitam, dentro dos edifícios as condicões cli-, , máticas que antes «sucediam» fora: tempestades repentinas, mini tornados, jactos de ar gelado na cafe- taria, ondas de calor e inclusive neblina; um provincia- nismo do mecânico, abandonado pela massa cinzenta em busca do electrónico. Incompetência ou imagina- ção? 11.6. A ironia é que desse modo a Cidade Genérica alcança o seu ponto mais subversivo, mais ideológico; 58 eleva a mediocridade a um nível superior; é como o Merzbau de Kurt Schwitters à escala da cidade: a Cida- de Genérica é uma Merzstadt. 11.7. O ângulo das facha- ti s é o único indicador fiável da genialidade arquitec- I nica: 3 pontos por se inclinar para trás, 12 pontos por II inclinar para a frente, penalização de 2pontos pelos I cuos (demasiado nostálgicos). 11.8. A substância iparenternente sólida da Cidade Genérica é enganosa. l)1 % do seu volume consiste num átrio. O átrio é um I curso diabólico pela sua capacidade para dar subs- I ncia ao insubstancial. O seu nome romano é uma 1'1 rantia eterna de classe arquitectónica -as suas ori- I~ ns históricas fazem com que o tema seja inesgotá- v l. Dá alojamento ao habitante das cavernas no seu I rnecimento incessante de comodidade metropolita- u .11.9. O átrio é espaço vazio: os vazios são o prédio ndificado essencial da Cidade Genérica. Paradoxal- mente, a sua vacuidade assegura a sua natureza física, tI ndo o exagero do volume o único pretexto para a sua manifestação física. Quanto mais completos e repetiti- v s são os seus interiores, menos se nota a sua repeti- <; - o essencial. 11.10. Oestilo de eleição é o pós-rnoder- Il e sempre permanecerá assim. O pós-modernismo é o único movimento que conseguiu ligar o exercício da nrquitectura ao exercício do pânico. O pós-modernis- mo não é uma doutrina baseada numa interpretação I,uperiormente civilizada da história da arquitectura, 59 mas sim um método, uma mutação da arquitectura profissional que produz resultados suficientemente rápidos para acompanhar o ritmo de desenvolvimento da Cidade Genérica. Em vez de consciência, como tal- vez tivessem esperado os seus inventores originais, o que cria é um novo inconsciente. É o pequeno ajudante da modernização. Qualquer um o pode fazer - um arranha-céus inspirado num pagode chinês e/ou uma cidade tosca na numa colina. 11.11. Toda a resistência ao pós-modernismo é antidemocrática. Cria um reves- timento «furtivo» em redor da arquitectura que a torna irresistível, como um presente de Natal proveniente de uma instituição benemérita. 11.12. Haverá uma ligação entre a predominância de espelhos na Cidade Genérica ~será para celebrar o nada através da sua multiplica- çao ou um esforço desesperado para captar as suas essências em vias de evaporação?- e as «prendas» que, durante séculos, se consideraram o presente mais popular e mais eficaz para os selvagens? 11.13. Maxi- mo Gorki fala, em relação a Coney Island, de «tédio variado». É claro que pretende estabelecer um parado- xo. A variedade não pode ser entediante. O tédio não pode ser variado. Mas a variedade infinita da Cidade Genérica quase consegue, pelo menos, tornar a varie- dade uma coisa normal: banalizada, numa inversão da expectativa, é a repetição que se torna inabitual e por- tanto potencialmente audaz e estimulante. Mas isso é 60 p ra o século XXI. 12.1. ACidade Genérica vive num clima mais quente do que é habitual; vai a c minho do sul -até ao equador- para longe d:ssa confusão que o norte fez com o segundo milénio. E um conceito num estado de migração. Oseu destino final é "er tropical-melhor clima, gente mais bonita. É habi- l da por aqueles que não gostam de viver noutro lado. 12.2. Na Cidade Genérica as pessoas não só são mais bonitas do que os seus contemporâneos, também têm lama de serem mais serenas, menos preocupadas em relacão ao trabalho, menos hostis, mais simpáticas - ma prova, por outras palavras, de que existe uma liga- ção entre a arquitectura e o comportamento, de que a cidade pode melhorar as pessoas através de métodos ainda não identificados. 12.3. Uma das características com maior potencial da Cidade Genérica é a estabilida- de do tempo -sem estações, previsão de ambiente soalheiro- no entanto todos os prognósticos se apre- sentam em termos de mudança eminente e agrava- mento futuro: nuvens em Carachi. Doético e do religio- so, o tema da fatalidade passa a estar no âmbito inescapável do meteorológico. Omau tempo é quase a única preocupação que paira sobre a Cidade Genérica. 13.1. Há uma redundância calculada (?) na iconografia que a Cidade Genérica adopta. Se esti- ver próximo da água, os símbolos aquáticos espalham- se por todo o seu território. Se for um porto, barcos e 12. Geografia 13. Identidade 61 guindastes aparecerão muito longe terra dentro (con- tudo, não faria sentido mostrar contentores: não se pode particularizar o genérico através do Genérico). Se for asiática, por todo o lado aparecerão mulheres «delicadas» (sensuais, inescrutáveis) em poses elásti- cas, indicando submissão (religiosa, sexual). Se tiver uma montanha, cada folheto, cada ementa, cada bilhete ou cartaz reproduzirá a colina, como se nada mais fosse convincente senão essa redundância sem fim. A sua identidade é como um mantra. ~ 14.1. Lamentar-se por falta de história é um reflexo entediante. Revela um consenso tácito de que a pre- sença da história é algo desejável. Mas quem diz que é esse o caso? Uma cidade é um plano habitado do modo mais eficaz por pessoas e processos, e na maioria dos casos a presença da história apenas debilita o seu rendimento ... 14.2. A presença da história limita o puro aproveitamento do seu valor teórico como ausên- cia. 14.3. Ao longo da História da Humanidade -para começar um parágrafo à maneira norte-americana- as cidades cresceram mediante um processo de con- solidação. As mudanças fazem-se no lugar. As coisas melhoram. As culturas florescem, degradam-se, renascem e desaparecem, são saqueadas invadidas, humilhadas e espoliadas, triunfam, renascem, têm idades de ouro e ficam subitamente em silêncio -e tudo no mesmo lugar. Por esta razão a arqueologia é 62 uma profissão de escavação: revela estrato após estra- 10 da civilização (quer dizer, da cidade). A Cidade Gené- uca, como um esboço que nunca se acaba, não é 1\1lhorada, antes abandonada. A ideia de estratifica- cno, intensificação e conclusão são estranhas a ela: 11110tem estratos. O seu estrato seguinte tem lugar 11utro sítio, que até pode ser mesmo ao lado -e isso pode ser o tamanho de um país- ou então noutro li I ar completamente diferente. O arqueólogo (= arque- ul gia com mais interpretação) do século xx necessita li um número ilimitado de bilhetes de avião e não de uma pá. 14.4. Ao explorar/expulsar os seus melhora- 111ntos, a Cidade Genérica perpetua a sua própria II1 nésia (o seu único vínculo com a eternidade?). A sua 111 ueologia será portanto a prova do seu esquecimen- 10 progressivo, a documentação da sua evaporação. 1\ ua genialidade acabará de mãos vazias -não no rei 1111 vai nu, mas sim num arqueólogo sem achados ou 1IIImajazida vazia. 15.1. As infra- I nlruturas que se reforçavam e completavam mutua- 111 nte, estão a tornar-se cada vez mais competitivas e 10 is; já não pretendem criar conjuntos que funcio- unm, agora produzem entidades funcionais. Em vez de II es e organismos, a nova infra-estrutura cria encla- VI ' e impasses: não mais o grand récit, mas sim des- VIO parasitas (a cidade de Banguecoque aprovou pla- 111) para três sistemas rivais de metro elevado para 63 chegar de A a B: que ganhe o mais forte). 15.2. A infr , estrutura já não é uma resposta mais ou menos retat dada a uma necessidade mais ou menos urgente, ma antes uma arma estratégica, uma profecia: o porto não se amplia para prestar serviços a um territórl ) interior de consumidores frenéticos, mas sim para ell minar/reduzir as hipóteses de sobrevivência do porto Y até ao século XXI. Numa única ilha, a metrópole meridio nal Z, ainda na sua infância, é «dotada» de um novo sistema de metro para fazer com que a metrópole W, já consolidada a norte, pareça pouco fluida, conges- tionada e antiga. A vida em V simplifica-se para fazer com que a vida em U se torne insuportável.lIDI!!II 16.1. Só o redundante conta. 16.2. Em cada fuso horá rio há mais ou menos três representações do musical Cats. Omundo está rodeado por um anel de Saturno de miadelas. 16.3. A cidade costumava ser uma reserva natural de caça sexual. A Cidade Genérica é como uma agência matrimonial: concilia eficazmente a oferta e a procura. Orgasmos em vez de sofrimento: aí está o pro- gresso. As possibilidadesmais obscenas são anuncia- das com a letra de imprensa mais limpa: a Helvética tornou-se pornográfica.1fIi!iD 17.1. Imaginemos um filme de Hollywood sobre a Bíblia. Uma cidade algures na Terra Santa. Uma cena de mercado: da esquerda para a direita, figurantes vestidos com trapos de cores vivas, peles e túnicas de seda entram na imagem a gri- 64 I 11, gesticulando, revirando os olhos, iniciando brigas, rlndo, coçando as barbas, com os postiços pingando I til , apinhando-se no centro da imagem, agitando VIII paus e punhos, derrubando bancas, pisando ani- 1IIIis... As pessoas gritam. Vendendo mercadorias? ÀII nciando futuros? Invocando deuses? Bolsas são iuubadas, criminosos são perseguidos (ou ajudados?) pl I multidão. Os sacerdotes rezam e pedem calma. À~,crianças correm como loucas por entre uma floresta d, pernas e túnicas. Animais berram. Estátuas caem. Àli mulheres gritam -ameaçadas? exaltadas? A multi- 11110 agitada torna-se oceânica. As ondas rebentam. ÀI\ ra cortamos o som -silêncio, um alívio abençoa- ,10- e fazemos rodar o filme para trás. Os homens e as mulheres, agora mudos mas visivelmente agitados, Introcedern aos tropeções: o observador já não regista npenas seres humanos, mas começa a notar os espa- 1;0 entre eles. Ocentro esvazia-se; as últimas sombras " 11 m do enquadramento da imagem, provavelmente queixando-se, mas felizmente não os ouvimos. Agora o ',ilêncio é reforçado pelo vazio: a imagem mostra ten- ti s vazias, alguns restos de lixo pisado. Que alívio ... I stá terminado. Esta é a história da cidade. A cidade já 1100 existe. Agora já podemos sai r do ci nema ... 65
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